Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4362/19.8T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: CRIME DE INJÚRIA
HONRA
CONCEITO
ELEMENTO SUBJECTIVO DO CRIME
CONTEXTUALIZAÇÃO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
DIGNIDADE PENAL
Nº do Documento: RP202210194362/19.8T9PRT.P1
Data do Acordão: 10/19/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO E PARCIALMENTE PROVIDO O DO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Atento o contexto em que o arguido chamou ladrão ao assistente, no seio de uma discussão sobre a devolução àquele por parte deste de determinada quantia, inexiste crime de injúria, pois que tal expressão não é objetivamente ofensiva da honra e consideração do comum dos cidadãos, não excedendo o comummente aceitável como exercício de qualquer liberdade de expressão, designadamente enquanto legitimo direito de crítica e indignação.
II – O tipo legal do artigo 143º do Código Penal preenche-se através de uma ofensa no corpo ou na saúde da vítima, independentemente da dor ou sofrimento causados, entendendo-se por ofensa no corpo todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante.
III – A exclusão das lesões bagatelares do âmbito deste tipo legal de crime é imposta por critérios de natureza constitucional, como o princípio da dignidade do bem jurídico protegido e da necessidade da intervenção do direito penal e pelo próprio teor literal do tipo, uma vez que não poderá considerar-se existente uma ofensa ao corpo ou à saúde onde a lesão seja insignificante ou irrelevante, devendo a relevância da lesão ser avaliada por critérios objetivos, de acordo com um padrão objetivo médio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 4362/19.8T9PRT.P1
Recurso penal

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. RELATÓRIO
Após realização da audiência de julgamento no Processo 4362/19.8T9PRT do Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 1, foi proferida sentença em 10/05/2022, e na mesma data depositada, na qual – além do mais - se decidiu (transcrição):

a) condenar o arguido AA, pela prática do crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. no art. 143.º, n.º 1, do Cód. Penal, de que vem acusado, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €15,00, num total de €1500,00 (mil e quinhentos euros).
b) condenar o arguido, pela prática do crime de injúrias, p. e p. no art. 181.º, n.º 1, do Cód. Penal, de que vem acusado, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €15,00, num total de €750,00 (setecentos e cinquenta euros).
c) Em cúmulo jurídico das duas penas, nos termos do art. 77.º, n.º1, do Código Penal, condenar o arguido na pena única de 120 dias de multa, à taxa diária de €15,00, num total de €1800,00 (mil e oitocentos euros);
d) julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido cível de fls. 210 e ss., deduzido contra o arguido e, consequentemente, condenar o demandado AA, a pagar ao demandante, BB, a quantia de €3000,00 (três mil euros), a que acrescem juros de mora, contados à taxa legal, desde a data da sentença, até integral pagamento, improcedendo quanto ao restante”.
-
Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso o arguido e o Ministério Público, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
Conclusões do recurso do Ministério Público
1. Nos presentes autos, foi condenado o arguido AA, pela prática:
a) De um crime ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal (doravante CP), na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 15,00 (quinze euros), perfazendo a quantia global de €1.500€ (mil e quinhentos euros).
b) De um crime de injúrias, p. e p. no artigo 181º, nº 1, do CP, de que vem acusado, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 15,00, num total de €750,00 (setecentos e cinquenta euros).
c) Em cúmulo jurídico das duas penas, nos termos do artigo 77º, nº 1, do CP, condeno o arguido AA na pena única de 120 dias de multa, à taxa diária de €15,00, num total de €1800,00 (mil e oitocentos euros).
2. Na determinação do quantitativo da pena de multa deve atender-se à situação económica e financeira do condenado e aos seus encargos pessoais, de acordo com o artigo 47º, nº 1, do Código Penal, mas este deve ser fixado de forma a que represente algum sacrifício para o condenado, sob pena de se não atingir as finalidades da pena, devendo, ainda, ser de molde a expressar o princípio da igualdade material.
3. Tal como refere Jorge de Figueiredo Dias, a amplitude da lei na graduação do quantitativo diário da multa “visa dar realização, também quanto à pena pecuniária, ao princípio da igualdade de ónus e sacrifícios”. E acrescenta ser “indiscutível que a regulação da multa deve conduzir à aplicação de penas suficientemente pesadas para que nelas encontrem integral realização as finalidades gerais das sanções criminais” (in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, págs. 128 e 136).
4. Como doutamente se refere no ponto V do sumário do citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04/07/2008, proferido no proc. 153/08-1 “(…) neste domínio – como, de resto, em tudo na vida – há que ter o sentido das proporções, impondo-se critérios de razoabilidade e de exigibilidade.”
5. Fazendo um breve exercício comparativo, temos que, quando um arguido recebe o equivalente ao salário mínimo nacional, por via de regra, o quantitativo diário da pena de multa é fixado entre os € 5,50 e os € 7,00 (cinco e sete euros).
6. Assim, considerando o montante mensalmente auferido pelo arguido e visto no conjunto do agregado familiar, bem como que o quantitativo diário da pena de multa pode variar entre €5 e €500 (artigo 47º, nº 2, do Código Penal), entendemos que o quantitativo diário encontrado nos presentes autos se deveria fixar num montante nunca inferior a em €40 (quarenta euros), valor esse que implicara um efetivo sacrifício que se impõe na pena de multa, garantindo a sua eficácia preventiva.
7. Ao fixar o quantitativo diário no montante que fixou, a sentença recorrida tornou a pena de multa bastante inócua para o arguido assim violando os referidos critérios prescritos pelo artigo 47º, nº 2, do Código Penal.
Nestes termos e nos demais de Direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser alterada a douta decisão recorrida e substituída por outra que fixe o quantitativo diário da pena de multa a que o arguido foi condenado nos termos supra expostos.
*
Conclusões do recurso do arguido
1. Atenta a matéria dada como provada pelo Tribunal a quo, mal andou o mesmo por ter condenado o Arguido pela prática dos referidos crimes, sendo manifesto o erro na apreciação e valoração da prova produzida bem como a insuficiência de elementos que permitissem considerar factos como provados.
2. O enquadramento dado pelo Tribunal a quo e que fundamentou a condenação do Arguido pela prática do crime de ofensas à integridade física simples – disposto no ponto 6 da matéria dada como provada - não corresponde à realidade dos factos, motivo pelo qual é gritante o erro de apreciação da prova produzida.
3. No âmbito dos presentes autos, foi requerida a realização de uma perícia às imagens existentes junto do Comando Metropolitano do Porto – DIC – Unidade de Polícia Técnica Forense, tendo o referido relatório sido junto aos autos a fls. 190 e ss, resultando do mesmos o seguinte: “No interior do laboratório clínico verifica-se um diálogo entre o denunciado (elemento “A”) e o denunciante (elemento “D”), durante o qual o denunciante afronta o denunciado tendo este empurrado para trás, sendo os mesmos prontamente separados pelo elemento “C” (Fotograma 7,8,9 e 10). Nas imagens visualizadas não foi perceptível qualquer agressão física semelhante a murros na face ou na parte superior do corpo.
4. O que se constata é que no decorrer da discussão, encontrando-se o Arguido a falar com o Assistente, este último dá dois passos à frente e encosta a sua cara na cara do Arguido em tom agressivo e de desafio, tendo o Arguido afastado o Assistente para que não houvesse qualquer confronto!
5. Jamais, em tempo algum, o Arguido agrediu o Assistente com murros na face, no peito e nos ombros!
6. Da análise dos factos alegados pelo Assistente e da prova que foi produzida relativamente às ofensas à integridade física, o que se constata é que tudo não passa de uma grande fantasia criada pelo Assistente, comportamento este absolutamente lastimável e censurável à luz do Direito e da responsabilidade que os ofendidos deverão ter ao apresentar uma queixa-crime contra alguém.
7. Não existiu por parte do Arguido qualquer agressão, mas sim uma tentativa do mesmo afastar o Assistente porque este último se havia aproximado de si numa atitude absolutamente desafiadora e intimidatória, tendo dado dois passos em frente e colocado a sua cara junto da do Arguido.
8. Tal conduta – afastamento do Assistente por parte do Arguido - não deve merecer a tutela penal, uma vez que a mesma não preenche materialmente o tipo legal de crime de ofensa à integridade física dada a sua insignificância e respectivo grau de ilicitude.
9. Atento o exposto, deverá o ponto 6 dos factos dados como provados ser eliminado por não ter existido qualquer agressão por parte do Arguido mas sim um comportamento de afastamento do Assistente por o mesmo se ter aproximado de si de forma manifestamente desafiadora e ostensiva, devendo o Arguido ser absolvido do crime de ofensas à integridade física simples.
10. De facto, tal comportamento não deverá ser merecedor de tutela penal por não revelar qualquer conduta típica por ser insignificante.
11. Em consequência, deverão os demais pontos da matéria dada como provada ser alterados de forma a acolher a absolvição relativa ao crime de ofensas à integridade física simples, nomeadamente, o ponto 9 dos factos dados como provados.
12. Relativamente ao ponto 7 da matéria de facto dada como provada, veio o Tribunal a quo dar como provado que o Arguido dirigiu palavras ao Assistente apelidando-o de “cobarde” e “ladrão”.
13. Dos depoimentos prestados pelas testemunhas – e vertidos nas motivações - resulta evidente que existem contradições absolutas relativamente à prova produzida nos autos quanto à prática do crime de injúrias imputado ao Arguido.
14. Veja-se que duas testemunhas referem que não ouviram qualquer insulto, outra diz que ouviu mas que de credível tem pouco e a outra pessoa que refere ter ouvido as alegadas injúrias é o próprio Assistente que, em declarações prestadas em sede de julgamento, lembrou-se de dizer que para além do “cobarde” já constante dos autos, que o Arguido também o apelidou de “Cobarde, ladrão, filho da mãe, filho do pai….” Para logo de seguida referir que lhe chamou de “cobarde, ladrão, canalha, filho da puta.”
15. O que de facto se constata é que de credíveis estas declarações têm muito pouco… tal como as alegações descritas na queixa e na acusação particular apresentadas pelo Assistente que foram dadas como não provadas e que, igualmente, se constatou que não passavam de uma mera invenção de factos falsos carreados pelo Assistente.
16. Atentas todas as dúvidas, nomeadamente as referidas relativas à credibilidade da testemunha CC, arrolada pelo Assistente, não existe margem para dúvidas de que de nenhuma forma poderá o Arguido vir a ser condenado tendo por base uma prova tão falível quanto a aqui demonstrada.
17. Se existiu uma discussão acesa entre o Arguido e o Assistente? Isso não há dúvidas. 18. Já se no âmbito dessa mesma discussão, o Arguido proferiu as palavras mencionadas na queixa?... A resposta a esta questão é “não!”, não podendo dessa forma e sobre tamanha dúvida, o Arguido ser condenado por factos que não se tem por absolutamente certos que tenha praticado.
19. Para que haja condenação, é necessário que exista uma convicção por parte do Tribunal de que o crime foi de facto praticado, sendo impossível neste autos, atenta a prova produzida em sede de julgamento que o Tribunal condene o Arguido pelo crime de injúrias.
20. Ainda que assim não se entenda, o que apenas se admite por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que a ser considerado que as palavras “cobarde” e “ladrão” foram realmente proferidas pelo Arguido, as mesmas têm necessariamente que ser enquadradas.
21. Não se pode de nenhuma forma ignorar que era a quarta vez que o Arguido se deslocava de Lisboa ao Porto para solicitar à M..., Lda. – sociedade da qual o Assistente é gerente – a restituição do valor entregue para a realização de tratamentos dentários que não foram possíveis realizar por questões de saúde da esposa do Arguido, a qual se encontra totalmente incapacitada em termos físicos – consequência da doença degenerativa que padece.
22. A par das referidas deslocações, tentou o Arguido contactar telefonicamente e por email a Clínica M... sem nunca ter recebido qualquer resposta relativamente à devolução dos montantes entregues.
23. De referir que numa das deslocações, foi pelo Assistente referido ao Arguido que não devolvia o montante do tratamento porque já haviam sido realizadas as facetas e coroas.
24. No entanto, tal era impossível ter acontecido porque a esposa do Arguido apenas e só havia realizado uma consulta para tratamento de 3 cáries dentárias!
25. Tanto assim é que no processo cível que corre termos, foi pela própria esposa do Arguido requerida à M... a junção aos autos de todo o processo clínico, incluindo próteses, coroas e demais elementos, não tendo sido junto qualquer desses elementos!!!
26. De facto, a M..., para justificar a não devolução dos montantes pagos pela esposa do Arguido, alegou que já tinha produzido coroas e facetas quando bem sabia não corresponder à verdade.
27. Atenta a absoluta inexistência de prova produzida por parte da M..., Lda. no sentido de ter sido fabricado qualquer coroa ou faceta para a esposa do Arguido, outra decisão não restou ao Tribunal do processo cível que condenar a referida clínica à devolução da totalidade dos € 15.000,00 entregues.
28. Não pode o Tribunal a quo – ao entender que a palavra “ladrão” foi proferida (o que não se admite) – deixar de enquadrar os acontecimentos no meio de uma discussão acesa entre as partes em que está em causa, ainda para mais, a devolução de € 15.000,00 com que a clínica da qual o Assistente é sócio gerente ficou, sem que tenha sido realizado qualquer tratamento.
29. Já relativamente à expressão “cobarde”, muitas dúvidas existem de que a mesma tenha sido proferida porque não existe sequer enquadramento para tal.
30. O único enquadramento que se vislumbra que possa ter acontecido – o que não se admite – é que atendendo à forma provocatória com que o Assistente se encontrava a filmar o Arguido – com o telemóvel muito perto da cara do mesmo e em tom de provocação -, que o mesmo tenha referido “não seja cobarde”.
31. O que, salvo melhor entendimento, considerando e ponderando a circunstância, não poderá tal expressão merecer tutela penal.
32. De facto, não poderão as palavras “cobrade” e “ladrão” serem consideradas objectivamente ofensivas da honra e consideração do Assistente.
33. Atento o exposto, deverá o ponto 7 dos factos dados como provados ser eliminado por não ter sido provado cabalmente que o Arguido tenha proferido tais palavras, devendo o Arguido ser absolvido do crime de injúrias a que foi condenado.
34. Caso assim não se entenda, o que apenas se admite por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que as palavras têm de ser consideradas e ponderadas atendendo a todas as circunstâncias que envolvem as mesmas, não podendo ser atribuída censura penal às palavras de “cobarde” e “ladrão” que o Assistente refere terem sido proferidas pelo Arguido.
35. Mais, tais palavras sempre teriam sido não contra a honra do Assistente como pessoa mas sim na qualidade de sócio gerente da sociedade detentora da clínica dado que o Arguido o que pretendia era claramente a devolução de valores que havia entregado para a realização de tratamentos nunca realizados.
36. Neste sentido, à cautela – caso não seja eliminado o ponto 7 da matéria dada como provada – sempre se dirá que o referido ponto deverá ser alterado no sentido da inexistência de dignidade penal às palavras proferidas dado que as mesmas não ofendem a honra e consideração do Assistente nem foram proferidas de forma gratuita e injustificada, devendo, portanto, o Arguido ser absolvido do crime de injúrias.
37. Como consequência da eliminação ou alteração do ponto 7, deverá igualmente ser eliminado o ponto 10 da matéria dada como provada.
38. Quanto à matéria dada como provada nos pontos 21 e 22, analisada a prova produzida, não consegue o Arguido vislumbrar em que se baseou o Tribunal a quo para dar tal matéria como provada.
39. Isto porque, em nenhuma fase processual – tanto do inquérito como do julgamento – foi feita prova a este respeito, apenas existindo declarações prestadas pelo próprio Assistente nesse sentido.
40. Ora, conforme já anteriormente referido, foram vários os factos a que o Assistente faltou ostensivamente à verdade, encontrando-se a sua credibilidade absolutamente afectada para efeitos de prova de qualquer facto.
41. Dos depoimentos das duas testemunhas arroladas pelo Assistente (CC e DD) e que com ele trabalham diariamente há mais de 10 anos, nada decorre no sentido de que o Assistente lhes tenha demonstrado algum receio em sair sozinho das instalações ou que tenha ficado afectado emocional ou socialmente por qualquer circunstância.
42. Aliás, estranho seria que tivesse ficado com receio porque em nenhum momento o Arguido agrediu o Assistente nem tão-pouco o ameaçou de nada.
43. Mais, bem sabe o Assistente que o Arguido vive longe – a mais de 300 km – do seu local de trabalho.
44. Na verdade, nenhuma das referidas testemunhas referiu uma única palavra que reflita e, portanto, faça prova, da matéria constante nestes dois pontos (21 e 22) da matéria de facto dada como provada!
45. Neste sentido, deverão os referidos pontos serem eliminados da matéria de facto dada como provada porque nenhuma – mas absolutamente nenhuma prova – foi feita nesse sentido.
46. Caso não se entenda pela a absolvição do Arguido pelos crimes que lhe são imputados, o que apenas se admite por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que andou mal o Tribunal a quo por não ter feito uma correta apreciação e ponderação da pena aplicada.
47. o Arguido tem 74 anos de idade, não tem qualquer registo criminal e sempre pautou a sua conduta pela correcção, teve que se deslocar de Lisboa ao Porto quatro vezes para solicitar a restituição do valor de € 15.000,00 entregue – No processo cível, apesar de não transitado em julgado, foi-lhe dada razão, tendo a clínica dentária sido condenada à restituição da totalidade do valor, foi reiteradamente provocado e confrontado pelo Assistente tanto com a aproximação deste à sua cara como com as gravações ostensivas com o telemóvel perto da cara do Arguido, o mesmo não provocou quaisquer danos, nem morais nem físicos no Assistente.
48. Parece-nos absolutamente excessivo a condenação pelos valores referidos na sentença recorrida, não tendo o Tribunal a quo feito uma adequada ponderação da medida da pena a aplicar, devendo os valores serem reduzidos.
49. Quanto ao pedido de indemnização civil, a sentença recorrida condenou ainda o Arguido ao pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais ao Assistente no valor de € 3.000,00!
50. Para fundamentar tal condenação, recorreu o Tribunal a quo aos factos 21 e 22 que resultam da matéria dada como provada, os quais não foram de todo provados em nenhum momento!
51. Nas motivações colocam-se várias questões porque da experiência comum é totalmente inverosímil que o Assistente tenha sofrido qualquer desequilíbrio emocional ou social por alegadamente lhe ter chamado no âmbito da discussão de “cobarde” ou “ladrão”.
52. Nada disto foi provado, apenas alegado pelo Assistente…suscitando as declarações do mesmo sérias dúvidas, o que naturalmente afecta objectivamente a sua credibilidade.
53. Pelo exposto, deverá ser considerado totalmente improcedente por não provado o pedido cível apresentado.
54. Caso assim não se entenda – o que apenas se admite por mera cautela de patrocínio – sempre se dirá que o valor determinado pelo Tribunal se reputa de manifestamente excessivo/ injustificado atendendo à realidade do sucedido pelo que deve o mesmo ser ponderado no sentido de ser determinado valor muito inferior.
Termos em que se requer a V. Exa. seja o presente Recurso aceite e julgado totalmente procedente, por provado, sendo a Sentença recorrida parcialmente revogada e substituída por outra que:
a) Elimine o ponto 6 da matéria dada como provada – e por seu turno o ponto 9 - na sentença recorrida pelos factos aí descritos não corresponderem à verdade e os que realmente se sucederam não serem merecedores de tutela penal por não revelarem qualquer conduta típica por serem insignificantes, devendo, consequentemente, o Arguido ser absolvido da prática do crime de ofensas à integridade física simples;
b) Eliminado o ponto 7 da matéria dada como provada na sentença recorrida por a mesma não corresponder à verdade, devendo o Arguido ser absolvido do crime de injúrias;
c) Ainda que assim não se entenda – o referido na alínea anterior – e que o Tribunal entenda como provado que o Arguido proferiu as referidas palavras – o que não se admite - deverá o Arguido ser igualmente absolvido por inexistência de dignidade penal às palavras proferidas por as mesmas não ofenderam a honra e consideração do Assistente;
d) Elimine os pontos 21 e 22 da matéria dada como provada por total ausência de prova produzida que sustente tais factos, devendo, como consequência, ser o Arguido absolvido do pedido de indemnização civil a que foi condenado;
e) Caso assim não se entenda – o referido na alínea anterior – sempre deverá a condenação do pedido de indemnização civil ser considerada manifestamente excessiva, devendo a mesma ser reduzida;
f) Ainda que não se entenda pela absolvição do Arguido dos crimes, sempre se dirá que a medida da pena aplicada na sentença recorrida não é adequada atendendo aos factos, devendo a mesma ser reduzida”.
-
Os recursos foram regularmente admitidos a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
--
Respondeu o Ministério Público ao recurso do arguido, pugnando pela sua improcedência.
--
Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pelo provimento do recurso do Ministério Público e pela improcedência do recurso do arguido.
--
Na sequência da notificação a que se refere o art.417º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi efetuado o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
*
2. FUNDAMENTAÇÃO
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior - artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) [1].
O essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso” – cfr. Ac. do STJ, de 15.04.2010, in http://www.dgsi.pt. [2].
Posto isto,
as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal são:
A) Erro de julgamento da matéria de facto (art. 410°, nº2, do Código Processo Penal): erro notório e insuficiência
B) Impugnação alargada da matéria de facto (art.412º, do Código Processo Penal);
C) Falta de preenchimento dos elementos dos tipos legais de crime;
D) Medida concreta da pena: quantitativo e taxa diária da multa
D) Pressupostos e montante da indemnização civil.
--
No que ao caso interessa, com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa recordar
a fundamentação de facto da decisão recorrida, que é a seguinte (transcrição):
Factos Provados
1. O assistente é médico dentista, exercendo a sua actividade na clínica M..., sita na Rua ..., no Porto, sociedade de que é sócio.
2. No dia 29 de janeiro de 2019, o arguido dirigiu-se às instalações da referida clinica, com o objectivo de reaver o pagamento da quantia de €15.000,00 efectuado pelo seu cônjuge referente a um tratamento dentário contratado na referida clínica, do qual a mesma queria desistir, alegadamente por razões de doença incompatível com o referido tratamento.
3. Após uma breve conversa com as funcionárias sobre o assunto da sua visita, o arguido aguardou pela chegada do assistente.
4. No interior da referida clínica, mais concretamente, no hall de entrada/sala de espera, em frente às pessoas que se encontravam na sala de espera, após ter conseguido contactar o assistente e este lhe ter dito que não lhe iria devolver o montante pago, uma vez que já tinha pago ao laboratório as peças dentárias por este produzidas e se mantinham disponíveis para terminar o tratamento, gerou-se entre ambos uma troca de palavras em tom exaltado.
5. Seguidamente, já no interior do laboratório/sala de esterilização, da clínica, para onde o assistente se deslocou, continuou a troca de palavras entre o assistente e o arguido, em tom exaltado.
6. Nessa altura, sem que nada o fizesse prever, o arguido desferiu dois murros na parte superior do corpo do assistente (ao mesmo tempo), atingindo-o no peito, com força e projetando-o contra a parede de vidro aí existente, provocando-lhe pelo menos dores físicas, que não careceram de tratamento médico ou hospitalar.
7. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar (itens 2 e 4-5), entre outras expressões, além de lhe pedir várias vezes a devolução dos €15.000,00, o arguido em tom exaltado e voz alta, dirigiu ao assistente as palavras “és um cobarde” e apelidou-o de “ladrão”.
8. Durante as supra referidas agressões, em virtude do assistente o estar a filmar, dando uma pancada na mão do assistente, o arguido deitou o telemóvel (i phone 8) que o assistente tinha na mão naquele momento, ao chão.
9. Ao actuar do modo descrito em 6), o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar a integridade física do ofendido e de lhe provocar pelo menos dor, como efectivamente provocou, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei como crime.
10. O arguido sabia que não podia mencionar as palavras referidas em 7), e que ao proferir as referidas expressões ofendia, como ofendeu, o assistente na sua honra e consideração.
11. Não obstante o arguido agiu de forma, consciente, deliberada e voluntariamente, querendo proferir tais palavras e obter esse resultado e sendo esse o seu propósito e desígnio criminoso, que acabou por alcançar efetivamente.
12. Sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Mais se provou:
13. Em virtude de parte dos factos se terem passado no hall de entrada da clínica, em frente a todas as pessoas que se encontravam à espera da consulta ou em parte reservada da mesma, o arguido foi impedido de continuar com a sua conduta por funcionários e terceiros que aí se encontravam e lhe pediram para ter calma e ir embora.
14. No dia 21 de Junho de 2018, EE, esposa do arguido compareceu na clínica acima referida, a fim de ser objecto de uma avaliação e diagnóstico, para posterior tratamento.
15. No âmbito da referida avaliação, a mesma efectuou diversos exames de diagnóstico nomeadamente uma ortopantomografia e uma TAC 3 D com incidência no maxilar superior e inferior.
16. Após ter na sua posse os elementos necessários para o tratamento, o assistente procedeu à elaboração do respectivo plano e orçamento, que foram apresentados à paciente EE, que os aceitou e assinou o documento inerente ao orçamento apresentado.
17. No dia 1 de Agosto de 2018, a empresa supra identificada, foi informada que a paciente EE, pretendia desistir do tratamento, por motivos de saúde da mesma.
18. Na mesma comunicação, além de transmitir que queria desistir do tratamento, era também solicitada a devolução da quantia dos €15.000,00, que já havia pago inicialmente, de acordo com o orçamento aprovado e que correspondia a parte do valor total do tratamento.
19. Em resposta à referida comunicação, em data e por meio não apurados, a M... informou a paciente que já não seria possível proceder à devolução do montante pago, na medida em que as peças dentárias a aplicar – coroas e facetas cerâmicas- já se encontravam produzidas e pagas ao laboratório incumbido de tal serviço, informando ainda a paciente que a clínica se encontrava disponível para terminar o plano de tratamento acordado.
20. Não aceitando tal resposta, o arguido decidiu insistir com os serviços da M..., pela devolução da referida quantia.
21. Em virtude da agressão do arguido, o assistente teve receio que o arguido voltasse a intentar contra a sua integridade física, razão pela qual durante alguns dias evitou sair sozinho das instalações da clínica.
22. Em virtude da conduta do arguido, o assistente sofreu forte perturbação no seu equilíbrio social e emocional.
23. Em data não concretamente apurada, a esposa do arguido, EE, apresentou participação contra o assistente, na Ordem dos Médicos Dentistas (OMD), que foi arquivada por despacho de 11/05/2019, em virtude de a mesma não ter apresentada a reclamação em formulário de reclamação próprio da OMD; o referido despacho foi notificado ao assistente por despacho de 27/01/2020.
24. O arguido:
a) é casado e tem 74 anos de idade;
b) trabalhou 40 anos na X... como piloto e por último como comandante; encontra-se reformado e recebe €6.000,00 mensais;
c) a esposa é doméstica;
d) residem em casa própria, sem pagar empréstimo e não têm filhos;
e) tem como habilitações o 1.º ano do Curso de Economia, que não terminou; frequentou a Universidade antes de entrar para a X...;
f) Não tem antecedentes criminais.
--
2) Factos não provados: Não se provou:
a) que o arguido ou esposa do mesmo queriam desistir do tratamento referido em 2), porque se encontravam insatisfeitos com o tratamento dentário efectuado;
b) que na data referida em 2), o arguido tenha ameaçado o assistente, dizendo que se não devolvesse os €15.000,00 iria sofrer consequências bem piores;
c) que nas circunstâncias referidos em 6), o arguido tenha atingido o assistente com um ou vários murros na face;
d) se nas circunstâncias referidos em 6) ou na data referida em 2), o arguido atingiu o assistente com uma bofetada na cara;
e) se nas circunstâncias referidos em 6), o arguido tenha atingido o assistente nos ombros ou braços;
f) se a agressão referida em 6), provocou ao assistente outras lesões físicas ou sequelas, para além de dores;
g) em virtude da agressão do arguido, o assistente tivesse ficado com hematomas na cara;
h) em virtude da agressão do arguido e das marcas com que ficou na face, o assistente tivesse deixado de participar no programa televisivo em que participava, agendado para essa semana ou semana seguinte;
i) que o arguido tenha dito as expressões referidas em 7), enquanto agredia o assistente;
j) que o arguido tenha proferido as expressões referidas em 7), após o assistente o ter advertido de que o iria denunciar, apresentando a competente queixa crime;
l) se em virtude dos factos referidos em 8), o telemóvel se partiu e/ou ficou inutilizado;
m) que o telemóvel referido em 8) tinha o valor de €800,00;
n) que em virtude da conduta do arguido o assistente teve que adquirir um telemóvel novo que importou na quantia de €800,00;
o) se foi agendada nova consulta para o dia 2 de Julho de 2018, data em que se iniciaram os tratamentos com o dr. FF, designadamente tratamentos de endodontia aos dentes 17, 35 e 46, e ainda ao encerramento de diagnóstico com o respectivo mock up para produção imediata das coroas provisórias em cerâmica.
p) se após tal consulta foi agendada uma nova data para colocação dos implantes e, consequentemente, para dar seguimento ao plano de tratamento ao plano apresentado.
q) na data referida em 2), o assistente tenha agredido ou sequer se tenha defendido da agressão do arguido;
r) na data referida em 2), o assistente tenha injuriado ou sequer tenha respondido aos insultos do arguido;
s) se o arguido e seu acompanhante entraram na área referida em 5), com o consentimento do assistente e/ou do pessoal da clínica;
t) não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contrário dos dados como provados, com interesse para a boa decisão da causa.
--
3) Convicção do Tribunal:
A convicção do tribunal, relativamente aos factos dados como provados e não provados, fundou-se na análise crítica e conjugada, do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento e documental junta aos autos, apreciada de forma crítica e conjugada nos termos do art. 127.º, do C.P.P..
Assim:
a) o arguido:
Negou os factos que lhe foram imputados, referindo que “é mentira”; não agrediu o assistente, foi tudo “palavreado”.
Referiu que foi a 4.ª vez que foi ao Porto, para chegar a acordo mas foi posto de lado e o assistente não lhe ligou nenhuma.
Segundo o mesmo, a esposa só fez tratamento de cáries.

O tratamento ia durar um ano e meio e ao fim de 20 dias, desistiram; não havia coroas feitas, nem os moldes fez; dia 21 teve uma consulta onde tirou as fotografias e fez um plano de €20.000 e tal euros; a esposa só foi a uma consulta no dia 28 de Junho (não a acompanhou), dia 1 de Julho tratou das cáries (acha que nesse dia assinou o contrato) e no dia 20 de Julho comunicou a desistência; no dia 1 de Agosto é que iam começar os moldes e o plano; na data dos factos não podia estar feitas coroas nem implantes. É tudo mentira.
Pagaram €15.000,00 de entrada (para diminuir as mensalidades) que nunca foram devolvidos; o tratamento era no total de €25.000,00.
Segundo o mesmo o médico da esposa proibiu-a de fazer os implantes por sofrer de Polimiosite.
Foi 3 vezes ao Porto, não lhe ligaram nenhuma; na data dos factos era a 4.ª vez, foi para fazer uma “acareação”.
O assistente nem quis dialogar, não quis falar com ele, exaltou-se. 8
Não deu murros na cara nem no peito, é falso.
Confirma que lhe deu um empurrão.
O assistente estava a filmá-lo, deu-lhe uma “sapatada” e o telemóvel caiu mas o assistente continuou a filmá-lo.
Disse-lhe que lhe devia dinheiro e que o dinheiro era dele; pode ter dito uma ou outra palavra mas não lhe chamou “cobarde”; “não se lembra bem”.
“Vigarista, ladrão, caloteiro” pode ter chamado, não sabe.
Sabe que lhe disse “pague-me os €15.000,00, que não são seus” e foi atrás do assistente; entrou em diálogo acesso e o assistente levou-o para aquele corredor, talvez por causa dos clientes. Os factos passaram-se num corredor.
O depoente foi com um sobrinho, que é testemunha de defesa.
Confirma que havia pessoas da clínica, o sobrinho e clientes na sala da espera.
O assistente não falou, só estava a filmar o depoente; o depoente só lhe empurrou o telemóvel.
Quanto à denúncia do contrato, referiu que telefonou para a recepção; fez vários telefonemas para o assistente que nunca atendeu, mandou mails que não tiveram resposta; em 20 de Julho a recepção recebeu a sua comunicação com o atestado médico da doença auto-imune da esposa.
O depoente é que tratou de tudo.
Foi ao Porto 3 vezes para tentar reaver o dinheiro, foi-se “enchendo”; pediu à funcionária que lhe dessem as coroas, já que não lhe davam o dinheiro mas não deram.
Quis resolver com base no diálogo, ser “justiceiro”, falou de maneira acesa. Depôs a final quanto à sua situação pessoal.
b) O assistente:
Prestou declarações apenas na segunda sessão de julgamento, pelo que oportunamente as mesmas serão consideradas.
c) as testemunhas de acusação ouvidas: c.1- DD:
Depôs de forma credível e coerente.
Referiu que trabalha como técnico de prótese dentária, na clínica dentária dos autos, há cerca de 10 anos.
Referiu que na data dos factos estava no laboratório a trabalhar e ouviu barulho; o assistente e o arguido entraram no laboratório (zona privada), vindos da sala de espera; estavam a falar exaltados e nem sabe qual era o assunto.
Ouviu que o senhor pedia para lhe entregar o dinheiro; o assistente dizia que já tinha feito o trabalho.
Se chamou “nomes” não sabe.
A certa altura ficaram parados a olhar um para o outro, parecia que se iam agredir; meteu-se no meio.
Não se apercebeu de agressão nem de tentativa de agressão, meteu-se no meio dos dois.
Se existiu agressão antes não sabe.
Foi confrontado com o parágrafo das suas declarações prestadas em inquérito (fls. 98-99), em 04/12/19, onde refere ter ouvido o arguido a dizer ao assistente “ladrão, cobarde”, cujo teor confirma.
O depoente fazia próteses; na data dos factos ficou sempre no laboratório mas não aparece nas fotos.
A clínica e o laboratório são empresas diferentes, mas ambas pertencem ao assistente.
c.2- GG (falecido durante a pendência dos autos): Foram lidas as declarações que prestou em sede de inquérito, em 04/12/19, juntas a fls. 96-97.
Referiu que era paciente da clínica dos autos; no dia e hora dos factos, 29 de Janeiro de 2019, cerca das14.30 e as 15.30 horas, estava na sala de espera a aguardar a sua consulta.
Quando o assistente entrou na clínica, o arguido começou a interpelar o assistente em voz alta, à frente do depoente e dos pacientes que se encontravam à espera de consulta, dizendo “Paga o que me deves, devolve-me os meus €15.000,00, ladrão, cobarde”.
O assistente disse ao arguido que se acalmasse, que não ir falar com o mesmo no estado nervoso e exaltado em que se encontrava.
O arguido seguiu-o até uma zona privada, dentro dum corredor que dá acesso ao laboratório e esterilização.
Nesse corredor ouviu o arguido chamar “cobarde” ao assistente visualizou aquele a tentar agarrar o mesmo, levantando o braço na tentativa de lhe desferir um murro, mas como se iam afastando, não visualizou a agressão.
Os “insultos” duraram cerca de 20 minutos, continuou na sala de espera; viu o arguido sair da clínica e os ânimos acalmaram.
b) o assistente BB:
Referiu que é médico dentista desde 2004, trabalhando na Clínica dos autos. Referiu que na data dos factos, o arguido abordou-o à porta da clínica, em
Janeiro de 2019 e insultou-o de “cobarde, ladrão, canalha, filho da puta, vigarista”. Quando o depoente entrou foi atrás dele, fazendo-se acompanhar de um senhor de óculos, com cerca de 50 anos.
Continuou a insultar, disse que não tinha nada para falar com ele e para se ir embora, que estava descontrolado.
Seguiu para uma zona reservada aos médicos (zona de esterilização) e o arguido continuou a trás dele, usando os mesmos termos, que queria o dinheiro de volta.
O arguido empurrou o depoente com as duas mãos, na zona do tronco, batendo com as costas contra a parede de vidro; depois deu-lhe uma bofetada na cara, do lado esquerdo.
O relevante não foi nas costas; o pior foi na cara, que ficou pisada e já não fez o programava televisivo que ia fazer, para não ter que dar explicações; era uma rubrica semanal, de tarde chamada “Sr. Doutor”.
Os pacientes da sala de espera assistiram e ficaram mal impressionados; alguns até desistiram (no entanto, não se fez qualquer outra prova nesse sentido, ou seja, de que alguns pacientes tenham desistido da consulta/tratamento).
A pessoa que vinha com o arguido agarrou-o, depois deste o agredir.
Não chegou a defender-se; estava com o telefone a filmar; quando o arguido lhe bateu, deixou cair o telefone.
Não respondeu aos insultos.
É de lamentar o que aconteceu, simplesmente prestou os serviços requeridos pela paciente. A paciente aceitou o orçamento e o plano de tratamentos e depois desistiu dos tratamentos através dum atestado médico, que diz que o tratamento não é contra-indicado mas deve ser coordenado com o dentista.
O arguido queria receber o dinheiro que tinha pago €15.000,00; o valor global era de €28.000,00.
Referiu que já tinha sido iniciado o tratamento; fizeram um scanner intraoral para ver como era e como ia ficar (o antes e o depois) e se queria alterações; a senhora concordou, leu o contrato e orçamento, concordou e avançou com o pagamento inicial; mandaram fazer coroas e facetas; quando a cliente voltasse, cerca de um mês depois, isso tinha que estar feito
Em 3 a 6 meses o processo fica completo; há um processo inicial de reabilitação das coroas e facetas sobre os dentes maturações, que demora cerca de 3 meses.
Referiu que a paciente residia em Lisboa e segundo a ficha clínica o diagnóstico foi feito de manhã e à tarde a senhora voltou e disse que era para avançar; assinou e disseram que iam mandar produzir as coroas e facetas.
Não tinha dentes posteriores, para mastigar; era também uma questão estética e queria ser tratada.
Na ficha clínica nunca referiu qualquer patologia ou alergias que impedissem o tratamento.
Referiu que segundo soube depois a paciente já teria a doença alegada no atestado há mais de 10 anos e essa doença não proibia o tratamento, só tinha que ter um acompanhamento; o tratamento não era causa de stress; é um processo digital.
Segundo o mesmo, à data do cancelamento a paciente já tinha sido consultada por um especialista em medicina estética, residente em Londres.
A bofetada causou-lhe dor, desconforto físico; teve que faltar aos compromissos profissionais e sentiu vergonha.
Fugiu para a área reservada, sentiu-se inseguro; o arguido ia acompanhado dum senhor que não conhecia.
A sala de espera estava cheia; sentiu-se humilhado, ridicularizado com os insultos, viu a sua honra afectada.
A partir dos factos dos autos, passou a entrar pela garagem.
Sabe que o arguido, antes da data dos factos, já tinha tentado entrar em contacto com a clínica para desistir do tratamento, por mail por telefone. Foi informado que o material já estava produzido e não dava para mais ninguém.
Inquirido referiu que mesmo que se tratasse de uma doença concológica, não devolviam o dinheiro; as coroas e facetas já estavam feitas e havia honorários médicos a liquidar.
Foi confrontado com os fotogramas de fls. 31 e ss. (início do tratamento) e 192 e ss.
Inquirido se o arguido lhe deu autorização para o filmar, respondeu que sim, quando entrou em espaço vedado.
Referiu que o telemóvel que caiu ao chão era um i-phone 1, no valor de cerca de €1000,00; comprou um novo a seguir.
***
Foram visualizadas as imagens e fotogramas de fls. 192 a fls. 199.
***
b.3- CC:
Referiu trabalhar como administrativa na clínica dos autos, há 11 anos. Conhece o arguido, por ir acompanhar a esposa, paciente da clínica.
Referiu que na data dos factos o arguido foi à clínica e perguntou pelo dr BB (assistente); disse que não estava e era melhor marcar; o arguido disse que ia aguardar e esperou.
O assistente chegou e o arguido começou a discutir; o arguido disse que queria o dinheiro, que a mulher queria desistir; “paga o que deves, caloteiro”, és um “moço, “um cobarde”, “mentiroso”, “o dinheiro é meu”, “caloteiro”.
O assistente disse que não era ali que discutiam, que tinham que marcar sítio e hora para falarem.
O arguido vinha acompanhado dum senhor.
Depois foram para a parte do laboratório e esterilização (que é uma área privada) continuaram os insultos e o arguido agrediu o dr. BB.
Acertou-lhe com a mão aberta na zona da cara (segundo a mesma corresponde ao fotograma de fls. 195).
Também houve toques com as mãos no peito do assistente; acha que empurrou o assistente mas não sabe se tocou; o assistente tentou afastá-lo.
A depoente foi pedir aos colegas que viessem ajudar.
Todos tentaram que se acalmassem mas ainda demorou um bocado.
Para o final o arguido deu uma pancada na mão do assistente e o telemóvel partiu-se, teve que comprar outro.
Quanto aos insultos, o assistente disse que não era “cobarde”, que já não tinha o dinheiro, que tinha feito os gastos.
Sabe que a esposa do arguido tinha pago €15.000,00, duma vez.
Tinha estado numa consulta onde fez o plano de tratamento e orçamento e uma consulta no mês seguinte (Juho); em 2018.
Sabe que o arguido telefonou e mandou mail a dizer que queria desistir do tratamento, por problemas de saúde; tinha que ser tratado pelo director; não sabe se houve resposta.
Na altura deu conhecimento ao assistente, disse que as peças já estavam produzidas.
A consulta para a colocação dos dentes não foi cancelada mas a senhora já não compareceu.
d) a testemunha de defesa, HH:
Referiu que a esposa do arguido é irmã da mãe do depoente.
Na data dos factos ofereceu-se para acompanhar o arguido à clínica.
Inquirido, referiu que não se recorda de ter ouvido insultos; acha que o arguido não disse insultos na clínica.
O arguido foi ao Porto já em desespero de causa porque tentou várias vezes ligar para o sr. dentista (assistente) para lhe devolver o dinheiro e nunca conseguiu falar.
Nessa data o arguido pediu para falar com o assistente, ele apareceu e disse que não era bem assim, que teria que ir a tribunal.
Segundo o mesmo o assistente “gozou” com o arguido e houve uma troca de palavras.
Quanto à acusação de agressão ficou espantado.
Referiu que o assistente estava a filmar e o arguido disse que não autorizava a filmagem, que não tinha que gravar nada e deu-lhe um “safanão”, mandando-lhe o telemóvel ao chão; o assistente apanhou o telemóvel e continuou a gravar como se nada fosse.
O arguido não autorizou a gravação das imagens, filmou por prepotência. Primeiro estiveram na sala de espera, depois o assistente pô-los num laboratório; ele é que os convidou a ir para lá.
Havia mais gente; um senhor que disse que era polícia/segurança e uns senhores de bata branca.
Como estavam a fazer barulho, pediram para ir para dentro, alguém os mandou entrar no laboratório; o assistente convidou-os a entrar.
Referiu que o assistente dava respostas evasivas e o arguido ia tentar resolver o problema, frente a frente.
O assistente disse que não havia nada a resolver, que os tribunais serviam para isso.
Quando chegaram disseram que o assistente não estava e esperaram bastante tempo; quando chegou forma ter com o mesmo.
Não viu violência, viu uma pessoa enervada.
O assistente estava a filmar, o tio deu-lhe um abanão e o telemóvel caiu ao chão; o assistente apanhou-o e continuou a filmar.
***
O arguido prestou novamente declarações
e referiu que fez telefonemas, comunicou por mail; disseram que tinha havido um crash no computador; foi lá pessoalmente; a secretaria disse que já tinham as coroas feitas, pediu as coroas e “foi gozado” pelo assistente, das vezes que lá foi resolver a questão; foi lá 3 vezes pedir a devolução do dinheiro.
Referiu ainda que o telemóvel não pode ter ficado estragado e que nunca bateu na cara do assistente, pelo que não podia ter ficado com hematomas na cara.
Depôs quanto à sua situação sócio-económica.
***
Documentos
Tiveram-se ainda em conta, os documentos juntos aos autos: teor de fls. 30-47 juntos pelo assistente com a participação criminal; despacho de arquivamento da OMD de fls. 117-119; relatório de visionamento de imagens e fixação de fotogramas e respectivos fotogramas de fls. de fls. 190-199 e imagens visualizadas em julgamento; plano de tratamento de fls. 310-311 e factura/recibo de fls. 312.
***
No que respeita à situação pessoal do arguido e respectivos antecedentes criminais, tiveram-se em conta as suas declarações, o depoimento da testemunha de defesa ouvida e o C.R.C. do mesmo junto aos autos a fls. 328.
***
Relativamente aos factos dados como não provados, resultaram os mesmos de não se ter feito prova nesse sentido, atenta a prova produzida, analisada nos termos supra referidos.
***
Analisando a prova produzida e para além do acima referido, caberá referir que o arguido negou os factos que lhe foram imputados, mais concretamente negou ter agredido o assistente com murros –como refere a acusação- ou com uma bofetada como referiu o assistente.
Admitiu que deu um empurrão ao assistente e que empurrou também o telemóvel que caiu ao chão, mas referiu que o mesmo o apanhou e continuou a filmar.
Quanto aos insultos nega inicialmente ter chamado “cobarde” ao assistente, noutra fase admite que possa ter dito, não se lembra bem; e, quanto às expressões “vigarista, ladrão, caloteiro”, referiu que pode ter chamado, não sabe.
Antes de mais e quanto aos insultos, temos que a testemunha DD, que depôs de forma credível, referiu que já não se lembrava se ouviu insultos, tendo-lhe sido lidas as declarações que prestou em inquérito, onde consta que ouviu o arguido chamar “ladrão e cobarde” ao assistente, confirmou tais declarações.
A testemunha GG, falecido na pendência dos autos e cujas declarações também foram lidas em julgamento, declarou ter ouvido “paga o que me deves, devolve-me os €15.000,00, ladrão, cobarde”.
A testemunha CC, que dizia “paga o que deves, caloteiro, moço, cobarde, mentiroso, o dinheiro é meu”.
O assistente referiu que o arguido o apelidou de “cobarde, ladrão, canalha, filha da puta, vigarista”.
Por seu turno, a testemunha de defesa, HH, familiar do arguido, que esteve sempre ao lado do mesmo e referiu que não foi proferido qualquer insulto, não se afigurou minimamente credível, sendo certo que nem o arguido referiu que não proferiu alguns insultos.
Assim sendo, entende-se que não obstante a acusação apenas referir a palavra “cobarde”, terá que se dar como provado que o arguido apelidou o assistente, pelo menos de “cobarde” e “ladrão”.
No que concerne às agressões físicas, vinha o arguido acusado de agredir o assistente, com vários murros na face e na parte superior do corpo (segundo a causação particular, atingindo-o nos ombros peito e braços).
O assistente referiu que o arguido o agrediu, empurrando-o com as duas mãos, batendo com as costas na parede de vidro; depois deu-lhe uma bofetada do lado esquerdo, causando-lhe hematomas.
O arguido nega qualquer murro ou bofetada, apenas admitindo que empurrou o assistente e que lhe empurrou a mão, fazendo com que o telemóvel caísse ao chão.
Ora, tendo em conta as imagens visualizadas em julgamento, verifica-se que o arguido efectivamente dá um safanão na mão do assistente que estava a filmar (CH8), hora 23.58 (conforme consta do próprio relatório as horas dos filmes aprecem como sendo à noite mas os factos ocorreram durante o dia, pelo que não estão correctas mas servem de referência para a visualização).
E, do vídeo CH11, 23.49.15 (fotograma de fls. 195) verifica-se que o arguido dá dois murros no peito do assistente –ao mesmo tempo-, com força, projectando-o contra a parede de vidro, ou seja, empurrando-o, mas usando a força dos seus dois punhos cerrados, o que salvo melhor entendimento não deixam de ser dois murros no peito do assistente.
No entanto, quanto à bofetada na face, referida pelo assistente, temos que apesar da mesma poder ter ocorrido, esta não é confirmada por qualquer outra testemunha, excepto a testemunha CC, a qual situa tal agressão nos fotogramas de fls. 195 (que corresponde aos murros no peito/empurrão) e o seu depoimento não revela muita certeza sobre a referida agressão (se tocou, se não tocou).
Por outro lado, entende-se que não se visualiza nos vídeos juntos aos autos – no vídeo CH11, 33.50 vê-se que o arguido tenta agarrar o assistente com a mão e tenta tirar-lhe o telemóvel mas é impedido por terceiros e não chega a tocar-lhe- ou fotogramas nem existe qualquer elementos clínico ou pericial que suporte tal agressão na face.
Assim sendo, e tendo em conta o princípio in dubio pro reo, entende-se que as dúvidas sérias quanto a este facto, têm que ser resolvidas a favor do arguido e deve o tribunal dar tal bofetada como não provada.
No que concerne ao telemóvel, também não foi feita qualquer prova que o telemóvel tenha ficado partido ou danificado –nomeadamente com uma fotografia do mesmo-, do comprovativo do seu valor ou a impossibilidade da sua reparação ou sequer documento comprovativo da aquisição de um novo.
Assim sendo, e tendo em conta o princípio in dubio pro reo, entende-se que as dúvidas sérias, têm que ser resolvidas a favor do arguido e ser tal dano –que no caso resultaria da agressão e não de um crime de dano- ser dado como não provado.
Acresce que a pancada na mão do arguido que fez cair o telemóvel, caso se considerasse uma alteração não substancial dos factos, entende-se que não teria que ser comunicada, porque resultou das próprias declarações do arguido (cfr. art. 358.º, n.ºs 1 e 2, do CPP).
Por outro lado, dúvidas não resultaram que na origem dos factos dos autos, está a desistência do tratamento dentário e a exigência do arguido em reaver os €15.000,00 que a esposa pagou a título de adiantamento para tal tratamento –que alegadamente desistiu por razões de saúde-, que o assistente não aceita, questão contratual a resolver em sede cível e não no foro criminal”.
***
Conhecendo as questões suscitadas, cumpre decidir.
1ª. Da impugnação restrita da matéria de facto
O recorrente suscita o erro de julgamento da matéria de facto, concretamente dos factos dados como provados, nos pontos 6, 7, 9, 10, 21 e 22, com os seguintes fundamentos previsto no nº 2 do art. 410° do Cód. Proc. Penal (conclusão 1ª):
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do art. 410º do CPP, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum.
Não é permitido, para a demonstração da sua verificação, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida.
-
Do erro notório na apreciação da prova
O erro notório da apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, supõe factualidade contrária à lógica e às regras da experiência comum, detetável por qualquer cidadão de formação cultural média – cfr. STJ 2015-03-12 (Pires da Graça) www.dgsi.pt.
Estamos em presença de erro notório na apreciação da prova sempre que do texto da decisão recorrida resulta, com evidência, um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores e que se traduza numa conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. É necessário que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum [3]
O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Para se verificar este vício tem pois de existir uma “(…) incorrecção evidente da valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova, incorrecção susceptível de se verificar, também, quando o tribunal retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [4].
Também na doutrina, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Lisboa/S.Paulo, 1994, pág. 327, recorda que o erro notório na apreciação da prova verifica-se quando se evidencia a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência por se ter decidido contra o que se provou ou não provou ou por se ter dado por provado o que não podia ter acontecido. Este erro tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média. Dito de outro modo, o requisito da notoriedade do erro afere-se pela circunstância de não passar despercebido ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, acrescenta o mesmo Autor.
Por sua vez, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, pág. 77, escrevem que tal vicio ocorre quando se verifica “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que efetivamente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. (…) há um tal erro quando um ser humano médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis”.
Ao tribunal de recurso apenas cabe “(…) aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”. [5]
Daí que o eventual erro na apreciação da prova, por regra, nunca emerge como erro notório na apreciação da prova. Quando os recorrentes entendem que a prova foi mal apreciada devem proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o art.412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal e não invocar o vício do erro notório.
Contudo, estando em causa a “apreciação da prova não pode deixar de dar-se a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores do Tribunal a quo.
Deste modo, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só pode censurá-la se demonstrado ficar que tal opção é de todo em todo inadmissível face às regras de experiência comum.
Como se escreve no ac STJ 2013-07-18 (Rui Gonçalves) in www.dgsi.pt, “são os Juízes de 1.ª instância quem de forma direta e “imediata” podem observar, as intransferíveis sensações que derivam das declarações e que se obtêm a partir do que os arguidos e das testemunhas disseram, do que calaram, dos seus gestos, da palidez ou do suor do seu rosto, das suas hesitações. É uma verdade empírica que frente a um mesmo facto diversos testemunhos presenciais, de boa-fé, incorrem em observações distintas. A congruência dos testemunhos entre si, o grau de coerência com outras provas que existam e com outros factos objetivamente comprováveis, quer dizer, a apreciação conjunta das provas, são elementos fundamentais para dar maior credibilidade a um testemunho que a outro.
Para tal, a convicção do Tribunal tem de ser formada na ponderação de toda a prova produzida, não podendo censurar-se aquele por nesse juízo ter optado por uma versão em detrimento de outra. Não existindo prova legal ou tarifada que se impusesse ao Tribunal, o Tribunal julga a prova segundo as regras de experiência comum e a livre convicção que sobre ela forma (art. 127.º do Código de Processo Penal)”.
Em síntese, o vício vindo de referir refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva, na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
--
Dito isto, a partir do texto da decisão recorrida, nenhum erro notório se verifica na apreciação dos factos impugnados, nem o recorrente arguido o explica.
Consta-se, na verdade, que a análise efetuada pelo recorrente não se cinge ao teor da decisão recorrida, mormente à motivação da decisão de facto, antes convoca o conteúdo dos meios de prova por si elencados, sobretudo os testemunhais, com a finalidade de contrariar a valoração da prova vertida na sentença recorrida quanto aos pontos de facto indicados, deste modo extravasando os limites da arguição do convocado vício decisório.
Da leitura da motivação de recurso resulta, isso sim, que nessa parte o arguido pretende impugnar a matéria de facto nos termos da impugnação ampla a que se refere o art.412º, nºs 3, 4 e 6.
Na verdade, da leitura da decisão recorrida não sobressai qualquer erro clamoroso, que tenha resultado provado algum facto que não possa ter acontecido ou que a prova tenha sido valorada contra as mais elementares regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados.
Do seu texto e contexto lógico e de fundamentação não resulta que os factos dados como provados, ora impugnados pelo recorrente arguido, se contradigam entre si ou violem os conhecimentos adquiridos pelas regras da experiência comum.
Nesta parte, tendo em conta todos estes ensinamentos e lendo a decisão recorrida não logramos descortinar onde a mesma é absurda, ilógica ou atentatória das regras da experiência comum.
O que o recorrente arguido pretende é colocar em crise a convicção que o Tribunal recorrido formou perante as provas produzidas em audiência e substituir essa convicção pela sua própria convicção.
Ora, como já se disse, a divergência de convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal formou, não se confunde com o vício de erro notório de apreciação de prova nem qualquer outro do artigo 410º nº 2 do CPP.
Em conclusão, improcede nesta parte o recurso.
-
Da insuficiência da matéria de facto
Argumenta o recorrente arguido, nos termos do artigo 410º, nº2, do CPP, ter havido insuficiência da matéria de facto provada, por si aqui impugnada, na medida em que não permite o juízo valorativo deduzido sob a matéria vertida naquele.
O vício previsto no art.410º, nº 2, al. a), ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito alcançada na decisão e sempre que o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto contida no objeto do processo e com relevo para a decisão final.
O conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa pois que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena cfr. entre outros Acórdão de 4/10/2006, Proc. n.º 06P2678 - 3.ª Secção, em www.dgsi.pt; Acórdão de 05-09-2007, Proc. n.º 2078/07 - 3.ª Secção e Acórdão de 14-11-2007, Proc. n.º 3249/07 - 3.ª Secção, sumariados em Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça -Secções Criminais).
Deste modo, a insuficiência em causa neste vício decisório reporta-se aos factos indispensáveis para a decisão de direito, daí que o vício se considere demonstrado quando a sentença, por si só considerada evidencie que os factos dados como provados não permitiam atingir a decisão de direito a que se chegou. Ou seja, o vício ocorre quando a matéria de facto provada se mostra exígua para fundamentar a decisão de direito, em resultado de o tribunal ter omitido o dever de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão.
Portanto a insuficiência diz respeito aos factos e não à prova, por isso, o que importa indagar é se a sentença contém falha, hiato ou omissão ao nível dos factos e não se a decisão da matéria de facto tem apoio na prova ou se era exigível ao tribunal produzir ou valorar de forma diversa as provas, como vem invocado pelo aqui recorrente.
Ora a ocorrência do nomeado vício é justificada pelo recorrente arguido porque, em seu entender, o Tribunal a quo não foi rigoroso na sustentação e prova da matéria de facto que considerou provada sob pontos aqui impugnados, não havendo, na interpretação que faz daquela, prova que o sustentasse.
No fundo, apela à sua convicção quanto à prova que foi produzida em audiência e que, em seu entender, impunha decisão diversa, o que nada tem a ver com a insuficiência enquanto vicio decisório, tal como acabou de se expor.
Há uma diametral diferença entre omissão na sentença de elementos do tipo e insuficiência de prova desses mesmos elementos do tipo, equivoco em que o recorrente notoriamente incorre.
O que o recorrente expressa é a sua divergência sobre o modo como a prova foi examinada e valorada na sentença, contrapondo uma diferente visão sobre a mesma, por não “concordar” com a decisão de facto, ou seja, que exista prova que permita suportar os pontos de facto impugnados.
A verificação do vício em causa implicaria a deteção, na própria decisão, de uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a imputação dos crimes em causa, o que não se vislumbra no texto da sentença, nem o recorrente a especifica na motivação e conclusões do recurso.
Deste modo, resta concluir que a decisão recorrida não padece dos supra apontados vícios, mostrando-se a sua arguição infundada.
Não ocorrendo vício que inquine a matéria de facto nos termos do art.410º, nº2, do Código Processo Penal, a factualidade assente é insuscetível de modificação pela via da impugnação restrita.
--
Passemos agora à impugnação ampla da matéria de facto.
2ª Da impugnação alargada da matéria de facto
Nos termos do art. 428º, nº 1, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do nº 3, do artigo 412º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
Por outro lado, dispõe o art. 412º, nº 3 que “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”.
No nº 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
E no nº 6 “No caso previsto no nº 4 o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa
Quanto a esta última modalidade de impugnação impõe-se pois ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa. Tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e bem assim tem de ser referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
O erro de julgamento da matéria de facto, tal como resulta do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, reporta-se, normalmente, a situações como as seguintes:
- o Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto;
- ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;
- prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo;
- prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;
- e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.
Posto isto, cabe referir que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso como se lê no Ac. STJ de 16.06.2005 disponível in www.dgsi.pt, assim como todos os demais arestos a que se venha a fazer referência.
Do que se conclui que o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente.
Por seu turno, o nosso código de processo penal consagra no art. 127º o princípio da livre apreciação da prova. De acordo com este princípio, o tribunal é livre na formação da sua convicção, mas encontra-se vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que estão subtraídas a essa livre convicção, sendo esta motivada, e estando ainda o tribunal sujeito aos princípios do processo penal, como o da legalidade das provas e in dubio pro reo.
Por conseguinte, feito este enquadramento, cabe concluir que assim e para além da violação das provas subtraídas à livre apreciação do julgador, ou da violação dos referidos princípios, o juízo decisório da matéria de facto só é suscetível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objetivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida.
Cabe, portanto, a este tribunal de recurso verificar se o julgador, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do supra mencionado princípio da livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar ao veredicto de facto, sendo que, na base desse controlo deverá estar a motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação daquela que foi a sua opção, ao dar cumprimento ao disposto o art. 374º, nº 2.
Assim, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente.
Contudo, a livre convicção não significa apreciação segundo as impressões, nem inexistência de pressupostos valorativos, ou a desconsideração do valor de critérios, ainda objetivos ou objetiváveis, determinados pela experiência comum das coisas e da vida, e pelas inferências lógicas do homem comum suposto pela ordem jurídica – cfr. Ac STJ 13/07/2005 e STJ de 17/03/2004, ambos do Cons. Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt
A livre apreciação da prova pressupõe, pois, a concorrência de critérios objetivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação da convicção, que emerge da intervenção de tais critérios objetivos e racionais.
Descendo já ao caso que nos ocupa, cabe referir que o recorrente arguido na sua motivação deu cumprimento satisfatório às exigências do citado art. 412º, nºs 3 e 4, indicando os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como as concretas provas que, no seu entendimento, impõem decisão diversa da recorrida e tendo referenciado concretamente as passagens em que funda a sua impugnação.
A especificação da sua impugnação limita-se aos pontos 6 e 9 (quanto às agressões ali descritas), 7 e 10 (quanto às expressões cobarde e ladrão), 21 e 22 dos factos dados como provados.
Vejamos então se os meios de prova indicados pelo recorrente arguido se revelam ou não idóneos à pretendida alteração da matéria de facto, a qual nos convoca – outrossim - para a prova:
- dos elementos subjetivos da atuação do agente;
- da idoneidade e efetividade da agressão e expressão utilizadas para ofender a integridade física e a honra/consideração do assistente.
-
Vejamos.
Quanto aos pontos 6 e 9 (agressões ali descritas) e pontos 7 e 10 (expressão cobarde e ladrão), o recorrente nega que tivesse:
- desferido “dois murros na parte superior do corpo do assistente (ao mesmo tempo), atingindo-o no peito, com força e projetando-o contra a parede de vidro aí existente”; e
- chamado o assistente de cobarde e ladrão.
O recorrente arguido não impugna o conteúdo da prova declarativa vertido na sentença recorrida.
Na prova positiva desses factos o tribunal a quo baseou-se desde logo no que o próprio arguido admitiu em julgamento, ou seja, ter empurrado o assistente e chamado o mesmo de ladrão.
Contudo, a respeito das expressões ladrão e cobarde, o tribunal serviu-se ainda do depoimento das testemunhas:
- DD, a partir das declarações que prestou em inquérito, lidas e confirmadas em julgamento, onde consta que ouviu o arguido chamar “ladrão e cobarde” ao assistente;
- GG, falecido na pendência dos autos, cujas declarações foram lidas em julgamento, que declarou ter ouvido “paga o que me deves, devolve-me os €15.000,00, ladrão, cobarde”;
- CC, segundo a qual o arguido dizia “paga o que deves, caloteiro, moço, cobarde, mentiroso, o dinheiro é meu”; e
- o assistente, o qual referiu que o arguido o apelidou de “cobarde, ladrão, canalha, filha da puta, vigarista”.
Em face da confissão parcial do arguido é incontroverso que este empurrou e chamou o assistente de ladrão, ainda que tal conduta deva ser esclarecida a partir do contexto e circunstâncias em que os factos se desenrolaram.
O que sobressai da generalidade da prova declarativa são as contradições, falsidades e incongruências dos depoimentos, quer desvirtuando o que resulta da observação direta das imagens vídeos, quer desmentindo o que o arguido confessou.
A testemunha DD (ponto 37 da motivação de recurso), desde há cerca de 10 anos que é técnico de prótese dentária, na clínica dentária da qual o assistente é sócio, esclarecendo que a clínica e o laboratório são empresas diferentes, mas ambas pertencem ao assistente.
Além da subordinação ou ligação profissional com o assistente, a testemunha prestou declarações diferentes entre o julgamento e aquelas validamente lidas do inquérito.
Estas circunstâncias desvalorizam sobremaneira o seu depoimento, sem que o tribunal tivesse adiantado qualquer explicação para valorizar aquele do inquérito em detrimento das declarações prestadas em audiência de julgamento.
A testemunha CC é administrativa na clínica do assistente desde há 11 anos.
Além da subordinação ou ligação profissional com o assistente, circunstância que fragiliza a sua credibilidade, a testemunha faltou descaradamente à verdade, ao acrescentar que além de vários insultos do arguido, não comprovados, o mesmo bateu com a mão aberta na cara do assistente.
Ora, sendo evidente na observação das imagens vídeo CH 11 que o arguido não bateu na cara do assistente, não explica o tribunal a quo, nem agora se alcança, porque razão deva a testemunha merecer credibilidade quanto ao mais.
Também a testemunha GG, falecido durante a pendência dos autos, referiu nas declarações validamente lidas em julgamento, ter ouvido o arguido, além do mais, chamar o assistente de cobarde.
Contudo, afirmou que tais expressões foram proferidas no interior da área reservada da clinica enquanto ele permaneceu na sala de espera, o que enfraquece a razão de ciência da testemunha quanto à perceção exata do que se disse e por quem na sua ausência.
Nenhuma credibilidade merece o assistente quando, além do interesse direto no desfecho da causa, afirma ter sido apelidado de expressões que ninguém mais ouviu e agredido com uma bofetada na cara que não consta das gravações vídeo do seu telemóvel nem da videovigilância, como não se observa o embate das costas no vidro, aquando do empurrão que sofreu.
E não constam estes factos dessas gravações vídeo, como não são conhecidos elementos clínicos que documentem essas lesões, nem sequer fotografias que as ilustrem, o que a ser verdade o assistente não teria descurado fazer.
Posto isto, do ponto 7 apenas se poderia ter dado como provado que o arguido chamou o assistente de ladrão.
No mais, sempre restará uma dúvida fundada e razoável sobre o arguido ter chamado o assistente de cobarde, dúvida objetiva e insanável que deve ser resolvida a favor do arguido.
Nenhuma dúvida oferece, à luz das regras da experiência, que o arguido sabia e quis proferir a expressão ladrão. O arguido confessou-o.
Diferente é conhecer as circunstâncias em que a expressão ladrão foi proferida, isto para saber se, ao proferi-la, o arguido sabia e quis ofender o assistente na sua honra e consideração, sendo ao caso irrelevante se o conseguiu ou não [6], ciente que tal conduta era proibida e punida por lei.
Ora, no tocante aos elementos subjetivos dos crimes são de considerar as regras da experiência comum em face do contexto em que os factos foram praticados.
Uma vez que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infração, socorrendo-nos de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência.
Naturalmente que na ponderação da idoneidade ofensiva das palavras deverão ter-se em conta, como defendido no ac RC 28.10.2008 (Belmiro Andrade) www.dgsi.pt, as circunstâncias de lugar, modo, meio, pessoa que pratica o ato ou daquela a quem é dirigido, do grau de educação e instrução, hábitos de linguagem, relacionamento antecedente entre as pessoas, da disposição, das finalidades prosseguidas, enfim do contexto em que ocorre a prática dos factos.
Enfim, a adequação da palavra, escrita ou verbalizada, para ofender a honra e consideração de outrem depende decisivamente do contexto em que é proferida ou escrita.
Para determinar se certa expressão, imputação ou formulação de juízos de valor tem relevância típica no âmbito dos crimes contra a honra, isto é, se ofende a honra de outra pessoa, há que considerar, entre outros fatores, o contexto em que o agente atuou, as razões que o levaram a agir como agiu, a maior ou menor adequação social do seu comportamento, de modo a integrar na previsão legal apenas as imputações objetivamente ofensivas da honra ou consideração – cfr. Ac RP de 05-11-2008 (in www.dgsi.pt).
A honra é um bem jurídico complexo, que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua manifestação exterior - reputação ou consideração -, traduzida na estima e respeito que a personalidade moral de alguém infunde aos outros e que vai sendo adquirida ao longo dos anos, probidade e lealdade de carácter, protegendo-se a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade", a qual encontra o seu "fundamento essencial" na "irrenunciável dignidade pessoal" - cfr. RL 11-12-2019 (Abrunhosa de Carvalho) www.dgsi.pt.
Nem todos os juízos que envolvam uma apreciação negativa de outrem, seja nas suas qualidades intrínsecas ou extrínsecas, seja nos seus comportamentos, têm a carga ofensiva necessária para que caiam sob a alçada penal e mereçam o respetivo sancionamento [7].
A injúria e difamação não se confundem com a simples indelicadeza, com a falta de polidez ou mesmo com a grosseria, que são comportamentos que apenas podem traduzir a falta de educação.
A mera censurabilidade ética de uma determinada conduta não implica necessariamente a sua censurabilidade em termos penais.
A tutela penal não visa a proteção da suscetibilidade pessoal, antes da dignidade, honra ou consideração da pessoa.
Tem que se retirar das expressões proferidas um carácter ofensivo, em termos objetivos, tomando como paradigma o sentir geral da comunidade, a «consciência ético-social da comunidade histórica que há legitimar a decisão legislativa de incriminar uma conduta» - Ac RP de 05-11-2008 (www.dgsi.pt).
Para que um facto ou juízo possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objeto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento [8].
De fora ficam comportamentos que à partida não têm propósito injurioso ou difamatório, como sejam os tradicionalmente conhecidos «animus jocandi» (o propósito, não de ofender a honra, mas sim de brincar, gracejar, desde que não seja ultrapassado o limite de numa normal conduta jocosa), «animus consulendi» (o fim do agente é aconselhar, advertir ou informar; desde que não haja excesso neste processo informatório, a ação não é censurável), «animus corrigendi» (o propósito é repreender ou admoestar alguém sobre quem se tem o poder de autoridade), «animus narrandi» (o relato a terceiro do que se viu ou sentiu, desde que não se ultrapasse a fidelidade da transmissão), «animus defendendi» (a própria defesa do agente é que está em causa, e não qualquer ofensa a terceiro) - cfr. Simas Santos e Leal Henriques (in Código Penal Anotado, Vol. II, pg. 318) e AcRP de 05-11-2008 (www.dgsi.pt).
No que ao elemento subjetivo do tipo legal de crime em apreço diz respeito não se exige qualquer dolo específico, como o animus injuriandi vel diffamandi, bastando o dolo genérico do arguido, em qualquer das suas modalidades, direto, necessário ou eventual.
Relativamente ao elemento subjetivo do crime de difamação ou injuria a lei não exige como elemento do tipo criminal em análise qualquer dano ou lesão efetiva da honra ou da consideração, bastando, para a existência do crime, o perigo de que tal dano possa verificar-se, com efeito.
Tratando-se de um crime de perigo, não é necessário que o agente com o seu comportamento queira "ofender a honra ou consideração alheias, nem mesmo que se haja conformado com esse resultado, ou sequer que haja previsto o perigo (previsão da efetiva possibilidade ou probabilidade de lesão do bem jurídico da honra), bastando a consciência da genérica perigosidade da conduta ou do meio da ação previstos nas normas incriminatórias respetivas - cfr.RL 11-12-2019 (Abrunhosa de Carvalho) www.dgsi.pt.
Tanto mais que, como bem refere o recorrente arguido, não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o assistente entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais.
Ora, retomando o caso dos autos, não é de aceitar que naquele contexto a expressão ladrão seja objetivamente idónea a ofender a honra e consideração do assistente e menos ainda que o arguido a tenha proferido com esse fito.
De acordo com as máximas da lógica e da experiência comum, baseadas no consenso social sobre a normalidade da vida, dado o local e modo como o arguido a proferiu, no contexto da discussão acesa entre ambos sobre a devolução dos 15.000 euros adiantados pelo tratamento dentário, após insistências e deslocações várias do arguido, sem nunca conseguir o dinheiro, a expressão ladrão mais não significa do que a retenção (e não subtração) indevida desse montante, pelo menos assim foi sentida e querida pelo arguido e deve ser compreendida pela generalidade das pessoas.
Daí que o ponto 10 não possa ser dado como provado.
Naquele circunstancialismo, eivado das relatadas emoções, ao usar a expressão ladrão, após ver recusada a devolução dos 15.000 euros a que se julgada ter direito, o arguido não quis imputar juízos de valor sobre a personalidade desvaliosa do assistente, antes e só criticar e mostrar a sua forte indignação perante a recusa deste em devolver um enriquecimento que objetivamente sentia injustificado.
No referido contexto, a expressão ladrão não é objetivamente ofensiva da honra e consideração devida ao assistente, nem foi utilizada com esse propósito.
Nas concretas circunstâncias de modo e lugar em que foi proferida, a expressão ladrão não ultrapassa a liberdade de expressão, senão mesmo o direito de critica que seria legitimo ao arguido, enquanto manifestação de indignação, face à atuação e não personalidade do assistente.
De acordo com o sentimento da generalidade das pessoas, no contexto em que foi proferida, num momento de tensão e confronto verbal aberto entre ambos sobre a discutida devolução do dinheiro, não é censurável pela comunidade chamar ladrão a quem recusa indevidamente a devolução de uma dada quantia que razoavelmente sente não lhe ser devida.
O significante utilizado no referido contexto não encerra em si a potência ofensiva da honra e o bom nome do assistente, antes e só a crítica que pretendia exprimir contra o particular modo de agir do assistente, motivados pelo inconformismo do arguido.
Assim,
Do ponto 7 dos factos provados, reformulado, passará a constar: “7. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar (itens 2 e 4-5), além de lhe pedir várias vezes a devolução dos €15.000,00, o arguido em tom exaltado e voz alta, apelidou o assistente de “ladrão”.
Dos factos não provados constara que: “Nas circunstâncias de tempo e lugar (itens 2 e 4-5), o arguido em tom exaltado e voz alta, dirigiu ao assistente as palavras “és um cobarde”.
Dos factos não provados passará a constar também que: “O arguido sabia que não podia mencionar as palavras referidas em 7), e que ao proferir as referidas expressões sabia e quis ofender, como ofendeu, o assistente na sua honra e consideração”.
Consequentemente, no ponto 11 manter-se-á como provado que: “11. Não obstante o arguido agiu de forma, consciente, deliberada e voluntariamente, sabendo e querendo proferir tais palavras”.
Ficará como não provado o restante segmento do ponto 11 que se repete com o do ponto 10º não provado.
Também assim ficará consequentemente não provado que ao proferir tais expressões o arguido sabia que tal conduta era proibida e punida por lei.
--
Prosseguindo,
o recorrente faz ainda uma análise pessoal dos meios de prova produzidos para concluir que os pontos 6 e 9 dos factos provados, deveriam ter sido dados como não provados.
Recorda-se aqui ter o arguido admito em julgamento que empurrou o assistente, o que corrobora em parte a versão do assistente, permitindo em conjugação com a visualização das imagens formar convicção quanto ao empurrão desferido pelo arguido.
Do vídeo CH11, minuto 23.46.31 ss (fotograma de fls. 195) verifica-se que é o assistente que chama o arguido para entrar e falar consigo na área reservada da clinica, dando-lhe a conhecer que está a ser gravado, apontando, para a câmara interior de videovigilância, onde quis posicionar a conversa na objetiva da sua gravação.
Mais se observa, a partir do minuto 23.49, enquanto o arguido conservava as suas mãos nos bolsos, já no decorrer da discussão entre ambos, é o assistente que bruscamente se aproxima e cresce para o arguido, furioso, exaltado, inclinando e erguendo o tronco e cabeça na direção do olhar deste, quase o tocando.
De seguida, na sequência dessa atitude desafiadora e provocatória do assistente, senão mesmo na iminência da agressão, para afastar o assistente, que – repete-se – quase o tocava, o arguido retira as suas mãos dos bolsos, fechou-as, encostou-as ao peito do assistente e empurrou-o para trás, sem que este chegasse a embater com as costas no vidro à sua retaguarda.
Não obstante ter sido repelido, recuando, o assistente logo voltou à frente na direção do arguido, sujeitando-o à sua fúria e à gravação não apenas das câmaras de videovigilância, mas também do seu telemóvel, quando aquelas e as várias testemunhas presentes o dispensariam da necessidade de semelhante prova.
Não é de crer que a força exercida para repelir o assistente, fazendo-o - sem mais - recuar curta distância e voltando este logo à frente para o afrontar, tivesse causado sequer dores físicas no assistente, ainda que este o diga, como falsamente disse tantas outras coisas desmentidas pela sua gravação.
Nenhum propósito ofensivo da integridade física do assistente se percebe na conduta do arguido.
Por tudo isto se afirma no relatório da Unidade de Policia Técnica Forense de fls.190 ss ser percetível nas imagens que o arguido empurra o assistente, mas não qualquer agressão na face ou na parte superior do corpo deste, o que de facto é mais claro a partir do vídeo do que na observação estanque dos fotogramas juntos.
Ora, mais importante do que a semântica dos atos é a descrição objetiva dos movimentos dos interlocutores a partir das imagens disponíveis.
O relatório em causa, afirmando que o arguido afronta o assistente e o empurra para trás, não descreve a forma como o fez.
É neste gesto que o tribunal a quo viu murros no peito do assistente.
Contudo, como sobredito, não é isso que nos é dado a observar no vídeo CH11, minuto 23.49, valendo muito mais as imagens vídeo da ação do que todas as palavras ditas em julgamento sobre ela.
A descrição factual levada na sentença ao ponto 6 dos factos provados desvirtua o que objetivamente nos é dado a observar naquele vídeo, o qual é bastante para infirmar os fundamentos em que se alicerçou nessa parte a convicção do tribunal sobre a matéria provada.
No caso, os sobreditos factos não foram corretamente julgados, posto que a factualidade dada como provada não foi sustentada pela concatenação de toda a prova produzida.
Daí que, apesar do princípio da livre apreciação da prova vertido no art. 127º, do Código Processo Penal, se vislumbram razões para sobrepor o juízo interpretativo do recorrente referente àquela prova, ao que foi alcançado na decisão impugnada.
Assim, do ponto 6 dos factos provados constará apenas: “6. Nessa altura, como o assistente, exaltado, se aproximou bruscamente do arguido, inclinando e erguendo o tronco e cabeça na direção do olhar deste, quase o tocando, o arguido tirou as mãos dos bolsos, fechou-as, encostou-as ao peito do assistente e empurrou-o para trás, fazendo-o recuar”.
Não se considera provado que: “Nas aludidas circunstâncias, o arguido tivesse dado dois murros na parte superior do corpo do assistente (ao mesmo tempo), atingindo-o no peito, projetando-o contra a parede de vidro aí existente, provocando-lhe pelo menos dores físicas, que não careceram de tratamento médico ou hospitalar.
Também aqui a prova do dolo e da consciência da ilicitude, a que se reportam os factos impugnados, baseia-se na conjugação da conduta do arguido com as regras da experiência comum para se concluir que o arguido sabia e quis praticar aquela ação, mas não desse modo atingir a integridade física do assistente.
Assim, entende-se, nessa decorrência, também nesta parte, a decisão da matéria de facto deve ser alterada, dando-se como não provada a matéria do ponto 9.
--
Em relação pontos 21 e 22 ali se deu como provado o seguinte:
“21. Em virtude da agressão do arguido, o assistente teve receio que o arguido voltasse a intentar contra a sua integridade física, razão pela qual durante alguns dias evitou sair sozinho das instalações da clínica.
22. Em virtude da conduta do arguido, o assistente sofreu forte perturbação no seu equilíbrio social e emocional”.
Relativamente ao ponto 22 o mesmo deve ser tido como não escrito, já que genérico, evasivo, destituído de qualquer suporte factual.
Quanto ao ponto 21, dada a fragilidade da credibilidade do depoimento do assistente e das testemunhas, nenhuma prova consistente permite formar convicção segura sobre a sua ocorrência.
Basta ver a atuação do assistente para perceber que este nenhum medo teve do arguido, antes o desafiou e provocou quando na presença física deste.
A expressão facial e comportamento do assistente, melhor ilustrados na gravação vídeo disponível, revelam claramente que não teve qualquer receio do arguido, pelo contrário, não convencendo sem mais o seu depoimento e outros de que, a partir desse momento, passou a ficar receoso.
Não obstante todas as vezes que o assistente se deslocou à clinica para resolver o diferendo, nenhum receio o assistente lhe mostrou naquela ocasião.
Socorrer-se o tribunal unicamente do depoimento do assistente para dar como provado os factos vertidos no ponto 21º seria o mesmo que acreditar nele para dar como demonstrado tudo o que de falso afirmou e as imagens desmentem.
Assim, dar-se-á como não provado o ponto 21º e não escrito o ponto 22º.
Por conseguinte, altera-se em conformidade a sobredita matéria de facto nos precisos termos referidos.
--
3ª Do preenchimento dos tipos de crime
Do que se vem dizendo, e como se antevê, alterada a matéria de facto provada, imediatamente se impõe concluir pela procedência do recurso à matéria de direito quanto ao preenchimento dos tipos legais de crime de injúria e ofensa à integridade física.
Do crime de injúrias
Por apelo à matéria de facto julgada provada, entendeu o tribunal a quo que se mostrava preenchido o tipo legal de crime de injúria, nos termos do art.181º, nº1, do Código Penal.
Contudo, alterada a matéria de facto provada, resta ter o arguido chamado o assistente de ladrão, mas sem que resultasse demonstrado que desse modo sabia e quis ofender a honra e consideração deste, ciente da proibição da sua conduta.
Posto isto, os factos assentes, agora reformulados, não são suscetíveis de integrar os elementos objetivos e subjetivos do referido crime de injúria, no qual incorre, no que ao caso interessa, “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração”.
A expressão ladrão dirigida ao assistente, como sobredito, no aludido contexto, não é objetivamente ofensiva da honra e consideração do comum dos cidadãos, não excedendo o comummente aceitável como exercício de qualquer liberdade de expressão, designadamente enquanto legitimo direito de crítica e indignação.
-
Do crime de ofensa à integridade física simples
Por apelo à matéria de facto julgada provada, entendeu o tribunal a quo que se mostrava preenchido o tipo legal de crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. no art. 143.º, n.º 1, do Cód. Penal.
Alterada a matéria de facto provada, os factos (reformulados) assentes não são suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do referido crime, no qual incorre, no que ao caso interessa, “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa”.
Trata-se da tutela do bem jurídico integridade física da pessoa humana, valor constitucionalmente consagrado no artigo 25º, n.º 1 da C.R.P., de acordo com o qual: “A integridade moral e física das pessoas é inviolável.”
O tipo legal em análise supõe, como afirma Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª Ed., pág. 299, “a produção de um resultado que é a ofensa do corpo ou da saúde, de outra pessoa, que tem de ser imputado à conduta ou à omissão do agente de acordo com as regras gerais de apuramento da causalidade”.
De resto, acrescenta a Autora, “o tipo legal do artigo 143º preenche-se através de uma ofensa no corpo ou na saúde, da vítima, independentemente da dor ou sofrimento causados (existe uma ofensa no corpo mesmo quando a vítima, mercê da ingestão em excesso de bebidas alcoólicas, não se encontra em condições de sentir qualquer dor)”. ... “Por ofensa no corpo entende-se todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante”.... “A ofensa ao corpo ou a lesão da saúde não podem ser insignificantes. A exclusão das lesões bagatelares do âmbito deste tipo legal de crime é imposta por critérios de natureza constitucional, como o princípio da dignidade do bem jurídico protegido e da necessidade da intervenção do direito penal e pelo próprio teor literal do tipo, uma vez que não se poderá considerar existente uma ofensa ao corpo ou à saúde, onde a lesão seja insignificante ou irrelevante. A relevância da lesão é avaliada por critérios objetivos, de acordo com um padrão objetivo médio”. ... “entre nós, entendem Leal Henriques/Simas Santos, artº 143º 226, que “o dano produzido pela ação do agente deve ser juridicamente apreciável, o que não acontece, por exemplo, com um beliscão, um resfriado ligeiro, uma dor de cabeça passageira”.
As lesões insignificantes estão excluídas do tipo penal, tendo em conta que os tipos penais não são neutros mas antes exprimem já, e de uma forma global, um sentido social de desvalor [9].
Com efeito, em face do princípio da subsidiariedade, vertido no artigo 18°, n.° 2 da CRP, a ofensa ao corpo ou à saúde prevista na norma do artigo 143°, n.°1 do CP deve ser determinada objetivamente e não pode ser insignificante, diminuta ou ligeira.
A este respeito cabe ainda lembrar o acórdão FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA de18-12-1991, publicado no DR nº 33/92 Iª SERIE A, de 08-02-1992, onde se sumariou: “Integra o crime do artigo 142.º do Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada, sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho”.
No caso em apreço, nada releva para o preenchimento do tipo em causa, a circunstância do arguido ter dado uma pancada na mão do assistente (ponto 8), já que esse facto não vem, nem vinha abrangido pela narração do dolo (ponto 9).
De qualquer modo, ainda que o arguido tivesse empurrado o assistente, não ficou comprovada a intenção de ofender a integridade física deste.
Assim, impõe-se considerar que a conduta do arguido não é suficiente para preencher materialmente o tipo legal do crime de ofensa à integridade física.
-
Por conseguinte, ao decidir como decidiu, por força da errado julgamento da matéria de facto (art.412º, do Código Processo Penal), o tribunal a quo não interpretou corretamente os normativos ínsitos nos art.s 143º, nº1 e 181.º, nº1, do Código Penal, dada a não subsunção da factualidade provada aos tipos legais de crime ali previstos.
Assim, impõe-se a absolvição do arguido na parte crime, ficando prejudicado o recurso sobre a medida e taxa diária da pena de multa, bem assim o vício de nulidade da sentença por constatada falta de fundamentação da pena única emergente do cúmulo jurídico (arts. 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a), e nº2, do Código Processo Penal.
--
4º Do pedido indemnização civil
A fls. 210 e ss., com base nos dois ilícitos criminais, deduziu o assistente BB, pedido de indemnização cível contra o arguido, peticionando a quantia de €5000,00 a título de danos não patrimoniais e €800,00, de danos patrimoniais, quantia acrescida de juros de mora legais, desde a notificação até integral pagamento (fls. 210 e ss).
Na sentença recorrida o arguido foi condenado a pagar ao demandante cível a quantia de €3000,00 (três mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até integral pagamento.
Contudo, alterada a matéria de facto, inclusivamente quanto aos pontos 21 e 22 dos factos provados, é inquestionável a não verificação da ilicitude e culpa da sua conduta, donde a absolvição do arguido na parte cível.
Estatui o n.º1 do artigo 377.º do Código de Processo Penal no sentido de que “a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n.º3 do artigo 82.º”.
Na interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º7/99 (D.R. I Série A, n.º179, de 03-08-1999) que uniformizou jurisprudência: “Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º1 do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual”.
Ora, no caso dos autos, não existindo responsabilização criminal do demandado pela prática de qualquer ilícito criminal, como não se verifica qualquer outro facto ilícito capaz de fundamentar a indemnização civil reclamada nesse pressuposto (art.483º, do Código Civil), impondo-se retirar as devidas consequências da alteração da matéria de facto em relação a toda a decisão – art. 403º, nº3, do Código Processo Penal.
Pelo, exposto, impõe-se a absolvição do arguido/requerido no tocante ao pedido de indemnização civil.
-
Consequentemente impõe-se a absolvição do arguido/requerido no tocante a custas.
***
3. DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
a) negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público;
b) conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido e em consequência:
c) modificando a matéria de facto nos termos sobreditos;
d) absolver inteiramente o arguido dos crimes de injúria e ofensa à integridade física, bem assim do pedido de indemnização civil e custas pelo(a)s quais vem condenado.
-
Sem custas.
Notifique.
(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).
-
Porto, 19.10.2022
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro
Carla Oliveira
______________
[1] Diploma a que se referem os normativos legais adiante citados sem indicação da respetiva origem.
[2] Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP – Ac. do Plenário da Secção Criminal n.º 7/95, de 19-10-95, Proc. n.º 46580, publicado no DR, I Série-A, n.º 298, de 28-12-95, que fixou jurisprudência então obrigatória (É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito) e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos arts. 379.º, n.º 2, e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.
O STJ apenas pode sindicar a existência de eventuais nulidades, insanáveis, ou por omissão ou excesso de pronúncia, ou de produção de prova, ou meios de obtenção de prova, proibidos por lei (art. 410.º, do CPP) – cfr. STJ 2016-11-23 (PIRES DA GRAÇA) in www.dgsi.pt
[3] Cfr. Ac. do STJ de 22/10/99 in BMJ 490, pág. 200.
[4] Ac. STJ 19/07/2006 (Oliveira Mendes) in www.dgsi.pt.
[5] Paulo Saragoça da Matta in “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.
[6] O que é ofensivo da honra e consideração alheia não é aquilo que o é para o concreto ofendido, mas sim o que é considerado como tal pela generalidade das pessoas de bem de um certo país e no contexto sócio-cultural em que os factos se passaram, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento – cfr. RE 20.05.2014 (Alberto João Borges), RG 30.09.2019 (António Teixeira) www.dgsi.pt
[7] Ao direito penal não cabe a tarefa de prever e regular todos os comportamentos incorretos ou menos próprios, no sentido de estender a sua intervenção a todos os casos em que se mostrem ultrapassados os limites traçados pela boa educação e pelas regras de cortesia. A tutela penal deve estar reservada a comportamentos graves, violadores do mínimo de respeito ético, cívico e social, que a generalidade das pessoas, num determinado contexto histórico e geográfico, considera imprescindível ao relacionamento em sociedade - cfr. AcRP de 14-03-2007 (www.dgsi.pt). Nem todo o facto que perturba ou humilha cabe na previsão dos artigos 180º e 181º do Código Penal, tudo dependendo da intensidade da ofensa ou perigo de ofensa, havendo que reconhecer existir uma linha demarcativa, mais ou menos nítida, através da qual se podem excluir certos comportamentos, sem mais, na medida em que claramente estão aquém da antijuridicidade. A ofensa merecedora da tutela penal radica num sentir comum que reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites de convivência com os outros. Tais limites como que se acham inseridos num «código de conduta» de que todos são sabedores, o qual reflete o pensamento próprio da comunidade e que, por isso, é por todos reconhecido ou, pelo menos, pela maioria. Do elenco desses limites ou normas de conduta fazem parte as «regras» que estabelecem «a obrigação e o dever» de cada cidadão se comportar relativamente aos demais com um mínimo de respeito moral, cívico e social, que não se confunde com educação ou cortesia, e do qual não fazem parte os comportamentos indelicados ou mesmo boçais, não devendo nem podendo o direito penal proteger as pessoas face a meras impertinências – cfr. AcRP de 14-03-2007 (www.dgsi.pt) e Oliveira Mendes (in Tutela Penal do Direito à Honra, pgs. 37 a 39).
[8] Exige-se a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração – cfr. AcRG de 18-11-2002 (in www.dgsi.pt.jtrg1061/02.1) e AcRE de 02-07-1996 (CJ, 1996, 4º, 295).
[9] Figueiredo Dias in “Direito Penal”, 2004, pág. 277,