Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
530/22.3T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA ÂNGELA REGUENGO DA LUZ
Descritores: COMPARTICIPAÇÃO DO CRIME ENTRE ARGUIDO E ADVOGADO
ARTIGO 115.º
N.º 3
DO CÓDIGO PENAL
Nº do Documento: RP20250212530/22.3T9PRT.P1
Data do Acordão: 02/12/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: PROVIDO O RECURSO DO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Não se comprovando que o mandatário ao fazer constar as expressões constantes da peça processual e que configuram a factualidade indiciada, soubesse que afirmava ou propalava factos inverídicos, não tendo fundamento para, em boa-fé, reputar verdadeiros esses factos inverídicos não resulta dos autos que o crime foi praticado em comparticipação entre o recorrente e o seu advogado.
II - Pelo que, sendo este último o signatário do articulado, não podemos concluir pela falta de uma condição legal de procedibilidade, nos termos do artigo 115.º, n.º 3, do Código Penal, por não ter sido deduzida queixa contra aquele último, o que, a verificar-se, resultaria na extinção do procedimento criminal. Da acusação particular não se pode retirar a ilacção de que o advogado signatário soubesse que as expressões e imputações relatadas não correspondessem à verdade ou que aquelas tivessem sido, de algum modo, congeminadas num conluio entre mandante e mandatário.

(Da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 530/22.3T9PRT.P1

Acordam os Juízes da 1. º secção do Tribunal Da Relação do Porto

I - Relatório.

No processo comum 530/22.3T9PRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal do Porto - ..., foi proferido despacho com data de 28/08/2024, ao abrigo do preceituado no art.º 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d), do Código de Processo Penal, a rejeitar a acusação particular deduzida pela assistente, AA, contra o arguido, BB, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180º do Código Penal.

Desta decisão recorreu a assistente, motivando o recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

“(…)

I-) As expressões difamatórias constantes de uma peça processual, redigida por mandatário, não fazem do subscritor, automaticamente, corresponsável ou comparticipante no crime de difamação;

II-) Antes se exigindo que o signatário tenha consciência da falsidade das imputações que faz à contraparte, ou da gratuitidade de tais afirmações, e do dolo consubstanciado na pura intenção de ofender a honra e consideração;

III-) Não existe nos Autos qualquer referência à comparticipação criminosa do mandatário, signatário da peça difamatória;

IV-) O arguido não perseguiu a defesa de nenhuma causa legítima com as expressões difamatórias levadas por requerimento ao processo de promoção e protecção;

V-) Antes perseguindo uma causa ilícita e pérfida de afastar a mãe dos menores com manipulação que foi provada e sentenciada nos respectivos Autos;

VI-) Pelo que nem sequer pode invocar, e nem invocou, a necessidade de usar tais expressões para defesa de causa;

VII-) Pelo que deve ser pronunciado pelos crimes de que foi acusado;

VIII-) A decisão recorrida viola os artigos 150º, do CPC; 180º, do CP; e 311 do CPP.

Termos em que deve ser julgado procedente o recurso e revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que pronuncie o arguido pelos factos e integração jurídica com que foi acusado, (…)”

A Exma. Procuradora-Adjunta na primeira instância respondeu ao recurso, opinando no sentido de lhe ser negado provimento, mantendo-se a decisão recorrida, por em síntese entender que, as expressões imputadas à assistente, mesmo que fossem típicas nunca poderiam ser consideradas ilícitas, por serem indispensáveis à defesa da causa, correspondendo assim ao cumprimento do dever de recurso.

Remetidos os autos para este Tribunal da Relação, a Exma. Procurador-Geral, no parecer que emitiu, afastou-se da posição já assumida na primeira instância pelo Ministério Público, tendo aquele o seguinte teor (transcrição parcial):

“(…) Do nosso entendimento

Para o que interessa para a presente situação, refere o n.º 3 do art.º 311.º do CPP que, “Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) (…);

b) (…);

c) (…); ou

d) Se os factos não constituírem crime.”

A leitura que fazemos do preceito em causa é diversa daquele que nos parece fundar o entendimento vertido no despacho posto em crise.

Com efeito, entendemos que ao mencionar “Se os factos não constituírem crime”, pretende o legislador referir-se a casos em que a factualidade descrita na acusação não se mostra passível de preencher os elementos (objectivo/subjectivo) do tipo legal do crime que seja imputado ao arguido, ou de um qualquer outro crime.

Ora, entendemos que esse não é o caso que se verifica nos presentes autos.

Com efeito, a factualidade vertida na acusação particular contém todos os elementos aptos ao preenchimento do crime de difamação, sendo que as considerações tecidas no despacho recorrido nos remetem para um entendimento que se prende, isso sim, com a ausência de indícios suficientes próprias das fases de inquérito e de instrução. Tal, de resto, é-nos evidenciado pela invocação da dificuldade em descortinar, numa peça subscrita por advogado, qual o grau de participação do arguido na mesma, nomeadamente quais as instruções que dera, se tivera conhecimento prévio do teor da peça a apresentar e se ao mesmo anuíra.

Ora uma tal argumentação é pertinente, não para ajuizar se a acusação é manifestamente improcedente, mas sim se existem provas suficientes da conduta que nela se imputa ao arguido. Tal é-nos igualmente evidenciado quando o tribunal, “adiantando-se” à produção da prova em fase de julgamento, descortina que o intuito do arguido não seria o de ofender, mas antes “esgrimir” argumentos num processo, referindo que nem mesmo as frases e adjectivos em causa seriam idóneos a ofender.

Sucede que, em nosso entender, estamos numa fase processual diversa e, não tendo o arguido requerido a abertura da instrução, apenas importaria cuidar de examinar se os factos descritos na acusação eram de molde ao preenchimento do tipo legal do crime de difamação, sendo que entendemos que o são, não se estando na presença duma qualquer acusação “inepta”.

Com efeito, e à semelhança do decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra por acórdão de 08/03/2017, no âmbito do processo n.º 734/15.5PBLRA.C1, e pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 11.05.2021, no âmbito do processo n.º 96/18.9PBVLS.L1-5, entendemos que “A irrelevância penal dos factos imputados ao arguido tem de ser manifesta, evidente, inequívoca, não bastando, assim, que a qualificação jurídica da factualidade da acusação seja meramente discutível, e discutida, por uma ou várias das correntes seguidas pela jurisprudência”, bem como que “Só, e apenas, quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la, pelo que, se a questão for juridicamente controversa, o juiz no despacho do artigo 311.º do C.P.P. não pode considerar a mesma manifestamente improcedente.

Termos em que ENTENDEMOS que o recurso merece provimento, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que determine a prolação de despacho que designe dia para julgamento”

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.o 2, do Código de Processo Penal, sem que tenha sido apresentada qualquer resposta ao parecer a que supra se alude.

Tendo sido colhidos os vistos, após o que o processo foi presente à conferência, de harmonia com o preceituado no art.º 419.º, n.º 3, al. c) do mesmo diploma, profere-se decisão.

II - Fundamentação.


1. Delimitação do objecto do recurso.

Sendo entendimento pacífico que o âmbito dos recursos é delimitado através das conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [como sucede, nomeadamente, nos casos previstos nos art.ºs 119.º, n.o 1; 123.º, n.o 2, e 410.º, n.o 2, als. a), b) e c), do Código de Processo Penal, e resulta do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República - I.ª Série-A, de 28-12-1995], no caso presente as questões a decidir são as seguinte:

A - saber se a acusação particular se revela manifestamente infundada por força da circunstância dos factos nela descritos não constituírem crime- art.º 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d) do C.P.P.;

B - saber se, tendo sido proferidas afirmações difamatórias em peça processual subscrita por mandatário judicial, é aplicável o princípio da indivisibilidade do direito de queixa, devendo esta ser dirigida também contra o advogado subscritor, sob pena de extinção do procedimento criminal por falta de uma condição de procedibilidade.

2. Da decisão recorrida.

O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):

«A assistente AA deduziu acusação particular contra o

arguido BB, melhor identificado a fls. 121, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180º do Código Penal.

A Digna Magistrada do Ministério Público não acompanhou a acusação particular

nos termos que constam do despacho de encerramento de inquérito de fls. 221 e vº e 229.


*

Decidindo.

A assistente imputa ao arguido a prática de factos que entende constituírem a prática de um crime de difamação, factos esses que constam dos pontos 2 da acusação particular deduzida, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

O crime de difamação é definido, no artigo 180º do Código Penal, nos seguintes termos:

«Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias».

Pressuposto é, pois, que a imputação do facto ou a formulação do juízo de valor seja feita perante terceiro, ainda que na presença do ofendido. É através do critério do destinatário que se distingue a difamação da injúria, na medida em que esta se verifica quando alguém «imputa factos a outrem, mesmo sob a forma de suspeita, ou lhe dirige palavras ofensivas da sua honra ou consideração» (artigo 181º do Código Penal).

No caso em apreço, a hipótese que importa considerar, é um requerimento, subscrito pelo ali mandatário do aqui arguido, no âmbito do processo de promoção e protecção nº 6818/20.0T8PRT-B, e em que eram requeridos os filhos menores da assistente e do arguido, e no qual se imputam factos e se fazem juízos de valor alegadamente ofensivos da honra de outrem, é dirigido a um terceiro, no caso concreto o Juiz encarregue do processo, pelo que sempre estaríamos perante um crime de difamação.

Assim, para além de uma eventual falta de condição legal de procedibilidade, por, nestas concretas circunstâncias, alguma jurisprudência entender que o Advogado subscritor do articulado também ter de ser acusado por existir uma situação de comparticipação criminosa (Ac. RC de 01/03/1989, CJ, tomo II, 1989, pág. 76), há que apurar se os factos descritos na acusação particular integram a prática de um crime de difamação.

O tipo legal de crime está integrado num capítulo que tem como epígrafe “Dos crimes contra a honra”.

O bem jurídico protegido, comum a todos os delitos agrupados no capítulo VI, do título I, do Livro II do Código Penal é a honra, enquanto bem jurídico de natureza pessoal, a relevar directamente do princípio da dignidade humana, cujo conteúdo básico se consubstancia na pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros, integrando uma dimensão social e uma individual, que se fundem numa pretensão de respeito, a implicar uma correlativa obrigação de abstenção (conduta negativa).

O bem jurídico honra configura-se assim como uma exigência de reconhecimento da dignidade moral da pessoa por parte dos outros.

A ilicitude material presente no tipo de crime considerado desenha-se, portanto, em termos de uma ofensa, de uma afectação na esfera dessa dignidade moral que inere a cada pessoa. O bem jurídico lesado pela difamação é, prevalentemente, a chamada honra subjectiva, isto é, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal. Não que se proteja a susceptibilidade pessoal de quem quer que seja, antes se tutelando a dignidade individual do cidadão.

Os elementos objectivos típicos do ilícito em causa estruturam-se em dois grandes

segmentos: um, o segmento da ofensa propriamente dita, que pode ser concretizado através: a) da imputação de facto ou formulação de juízo ofensivo da honra de outrem, ou b) reprodução de tal imputação lesiva da honra ou consideração do visado; o outro segmento, exige que as condutas descritas se façam por interposta pessoa.

O elemento subjectivo típico concretiza-se no dolo do agente, em qualquer das suas modalidades, estando completamente afastada a exigência do chamado dolo específico, basta para tanto a existência de um dolo genérico.

O crime de difamação configura-se como um crime de lesão ou de resultado, impondose considerar não apenas a aptidão da expressão proferida ou da imputação do facto ou factos para lesar o bem jurídico (na determinação da qual cumpre ao juiz interpretar o significado social da afirmação proferida ou do facto imputado, atento um amplo conjunto de circunstâncias internas e externas - grau de cultura dos intervenientes, valoração do meio, objectivos reconhecíveis da afirmação, etc. -) como a sua significação para o destinatário, que a entende como uma diminuição ou depreciação social (cabendo recurso a uma ideia de relatividade do crime em causa, que não prescinde da avaliação das circunstâncias do caso).

A protecção do direito fundamental ao bom nome e reputação está constitucionalmente consagrada no artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, em que a honra se traduz num bem jurídico multiforme, que mistura uma concepção fáctica, subjectiva e objectiva, com uma concepção normativa, pessoal e social, incluindo, desta forma, por um lado, o valor e dignidade pessoal e interior de cada indivíduo, e, por outro, a sua integração e consideração na comunidade em que se insere.

No caso do crime de difamação prevê-se que a imputação de factos e a formulação de juízos podem traduzir uma forma de ofensa da honra e consideração do visado.

Em todo o caso, a ordem jurídica acolhe os direitos ao bom nome e reputação de forma harmonizada e convergente, de tal modo que, entre outros, devem ser excluídos do seu âmbito de protecção os conteúdos que possam considerar-se de plano constitucionalmente inadmissível, mesmo quando não ressalvados na sua definição literal.

De igual modo, nem todo o comportamento incorrecto de um indivíduo merece tutela penal, devendo-se destrinçar as situações que traduzem, de facto, uma ofensa da honra de terceiros com dignidade penal, daquelas situações susceptíveis de revelar tão só indelicadeza, grosseirismo ou uma má educação do agente, sem repercussão relevante na esfera da dignidade ou do bom nome do visado.

Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem, de forma deselegante ou indelicada. Contudo, o direito não pode intervir sempre que a linguagem ou afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.

Por conseguinte, atentos os múltiplos factores que concorrem para a identificação das condutas ofensivas da honra, apenas nos casos concretos é possível discernir quais as palavras ou afirmações que, efectivamente, comportam uma carga ofensiva da honra de um indivíduo.

Para este efeito, cumpre considerar, não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstâncias envolventes, como seja, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são.

Revertendo ao caso dos autos, desde já se adiante que não se vislumbra que a conduta indiciada do arguido assuma dignidade penal, na perspectiva de ter sido proferida qualquer expressão, imputação ou juízo de valor criminalmente relevante, adequada a ofender a honra e consideração da assistente AA.

Há desde logo que atender ao disposto no nº 3 do artigo 154º do Código de Processo Civil nos termos do qual não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa.

Na verdade, as expressões em causa foram escritas e proferidas no âmbito de um

conflito de interesses submetido a apreciação judicial, envolvendo matéria de extrema

delicadeza, como sejam as responsabilidades parentais.

A contenda judicial, enquanto processo de partes, traduz necessariamente um litígio decorrente de posições conflituantes - se não houvesse litígio, não haveria processo - sendo infelizmente frequente o extremar de posições para além daquilo que a lógica e a razão permitiriam supor. Isto apesar de estarmos perante um processo de jurisdição voluntária, mas que não deixa de conceder aos progenitores a possibilidade de intervir no processo.

As partes procuram naturalmente acautelar da melhor forma possível as respectivas posições, tentando fazer valer aquilo que consideram ser o seu direito (neste sentido v. Ac. R.P. de 31/01/2007, publicado no sítio www.dgsi.pt).

No caso em apreço o que foi escrito, admitimos com excesso e até com adjectivação que nada interessa ou concretiza, é uma forma de alegar fundamentos para afastar um dos progenitores do exercício das responsabilidades parentais.

As expressões escritas mais não são do que uma sucessão de factos e de juízos de valor que não pode deixar de ser visto à luz do conflito de interesses que fundamenta o litígio, não apresentando aptidão difamatória.

Ora, a conduta indiciada do arguido, ainda que possa ter incomodado a visada e que seja adequada a tal, não assume a gravidade suficiente para merecer a tutela do direito penal, tanto mais quando a mesma é assumida no âmbito de uma querela judicial.

Acresce que sendo o texto da autoria do Advogado do arguido, mais difícil se torna saber o que foi transmitido pelo mandante e a forma como o mandatário decidiu articular o requerimento, que o arguido poderá nem ter chegado a ler/conhecer.

Em face do exposto, entendemos que os factos descritos não são passíveis de integrar a prática do crime de difamação.

Como resulta do disposto no artigo 311º, nº 2, al. a), do Código de Processo Penal “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”, encontrando-se previstas nas diversas alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal as situações em que a acusação se considera manifestamente infundada, sendo que, no caso, nos interessa a al. d) do citado preceito que considera a acusação manifestamente infundada se os factos não constituírem crime.

Assim, e sem necessidade de quaisquer outras considerações, e ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d), do Código de Processo Penal, decide-se rejeitar a presente acusação, por manifestamente infundada.


*

Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em três unidades de conta (artigo 515º, nº 1, al. f), do Código de Processo Penal).

(…)»

3. O caso concreto.

3.1. Em 05/04/2024, a assistente e ora recorrente deduziu acusação particular contra o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180.º do Código Penal, a qual foi não acompanhada pelo Ministério Público.

De tal acusação particular, subscrita por mandatário forense, a agir em representação do ora arguido BB os seguintes factos:

“1 -Em 27 de outubro de 2021, o arguido, através do seu mandatário, deu entrada de um requerimento no Processo de Promoção e Protecção de Menores n. º6818/20.0T8PRT, que correu termos pelo Juiz 4 do Juízo de Família e Menores do Porto;

2- No qual, referindo-se à assistente, escreveu ou mandou escrever as seguintes expressões:

Ponto 5 – “Um caracter mentiroso e manipulador que caracteriza esta;

Ponto 10 – é pessoa que não aceita ser contrariada devido a um perfil egoísta e egocêntrico;

Ponto 11 e 12 – além de agredir violentamente o filho CC…ainda mente;

- demonstra demasiado egoísmo e insensibilidade;

- Prefere prosseguir um mundo de mentira;

Ponto 23 – Os efeitos nefastos dos seus comportamentos agressivos vêm causando nos seus filhos: - tornando-os violentos com os seus pares na escola, ao ponto do César ter já tentado agredir outras crianças com uma tesoura.”

Ponto 55 – Viu o seu filho CC no chão, com a mão em cima dele, agarrando este pela cabeça e batendo com a cabeça do CC no chão.

(…)

4- As expressões supra transcritas são gravemente ofensivas da honra e consideração da assistente;

5- E o arguido quis e conseguiu fazer essa ofensa,

6- Bem sabendo que tais afirmações e juízos eram falsos;

7- Quis transmitir aos intervenientes processuais e a toda a gente que viesse a ter conhecimento dos autos, designadamente ao juiz, do Processo, ao MP e à equipa técnica que acompanhava o processo;

8- Bem sabendo que tais afirmações e juízos não são verdadeiros e tinham como objectivo afastar os filhos da assistente;

9- Através da alienação Parental e manipulação dos filhos da assistente e do arguido;

10-

(…)

12- Tal atuação malévola do arguido acabou por ser detectada no referido processo de promoção e protecção, onde o arguido acabou por ser condenado em multa, e aí foi remetida certidão ao MP, por a mesma actuação do arguido poder integrar o crime de violência doméstica sobre os menores;

13- O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;

(…)

No despacho de saneamento do processo (decisão recorrida), o Exmo. Juiz a quo concluiu que a factualidade vertida nessa acusação não é suficiente para configurar o crime imputado à arguido, por não vislumbrar “que a conduta indiciada do arguido assuma dignidade penal, na perspectiva de ter sido proferida qualquer expressão, imputação ou juízo de valor criminalmente relevante, adequada a ofender a honra e consideração da assistente AA. (…) As expressões escritas mais não são do que uma sucessão de factos e de juízos de valor que não pode deixar de ser visto à luz do conflito de interesses que fundamenta o litígio, não apresentando aptidão difamatória.

(…) entendemos que os factos descritos não são passíveis de integrar a prática do crime de difamação.

Apreciando.

A - saber se a acusação particular se revela manifestamente infundada por força da circunstância dos factos nela descritos não constituírem crime- art.º 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d) do C.P.P.;

Apreciando a primeira das enunciadas questões, para o que seguimos, dada a sua pertinência, o teor do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no âmbito do processo n.º 430/15.3 GEGMR.G1, de 19-06-2017, acessível em www.dgsi.pt/jtrg).

Segundo diz o ilustre Germano Marques da Silva, a acusação traduz-se na formalização da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinados factos de natureza criminal com vista à sua condenação, pelo que a sua elaboração e apresentação em juízo é um pressuposto sem o qual se poderá levar aquele a julgamento. E é a partir da redacção de tal acusação que se define e fixa o objecto do processo[1] .

Face ao disposto no n. º 3 do art.º 285.ºdo C.P.P., é aplicável à acusação particular as exigências que decorrem do art.º 283.º, n. º 3, al. b), pelo que a mesma deverá conter, sob pena de nulidade, "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada...".

Remetida a acusação para julgamento, e sem que tenha sido requerida a fase de instrução, o juiz a quem for a mesma distribuída deverá proferir despacho nos termos do ao abrigo do disposto no art.º 311.º, n. º 2, al. a), tem a faculdade de “rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”.

Sendo que é o próprio legislador, no n. º3 do mesmo preceito, a identificar as situações em que a acusação é manifestamente infundada, isto é, quando:

“3 – Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.

Tendo o despacho recorrido rejeitado a acusação mercê de considerar que os factos que da mesma constam não constituem um crime de difamação, isto é, considerando-a manifestamente infundada, vejamos, tendo em mente as expressões que da mesma constam, se lhe assiste razão.

O n. º3 do art. º311 do C.P.P. enumera, de modo claro e taxativo, as situações que permitem a ilação de se estar perante uma acusação manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição. E assim sendo, os poderes do juiz perante a acusação (pública ou particular), antes do julgamento, estão confinado, do ponto de vista material, à valoração jurídica dos factos tidos como suficientemente indiciados pelo acusador mas de modo muito restrito, pois que apenas a pode rejeitar quando for manifestamente infundada, ou seja, quando for inequívoco e incontroverso que os factos nela descritos não constituem crime, pelo que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade, de nada servindo recebê-la e fazer prosseguir o processo, sujeitando o arguido inutilmente a julgamento, quando ela está votada ao insucesso.

Neste sentido encontramos diversa jurisprudência e doutrina, sendo oportuno remetermo-nos aqui para o teor da nota 5 do art. º311, constante do Código de Processo Penal, Notas e Comentários, do Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Vinicio A.P:Ribeiro, este citando o A.R.L. de 16/05//2006[2]:

“4.2 – Conforme jurisprudência assente, manifestamente infundada é a acusação que, por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, por a insuficiência de indícios ser manifesta e ostensiva, no sentido de inequívoca, indiscutível, fora de toda a dúvida séria, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo a designação de julgamento flagrante violência e injustiça para o arguido, em clara violação princípios constitucionais»

Se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz no despacho do presente artigo não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente improcedente (neste sentido, cfr.v.g.AcR.P. de 11 de julho de 2012, Proc.1087/11.6PCMTS,P1, relatado por Maria Leonor Esteves)

Assim, por exemplo, o juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na alínea d) do n. º3 («Se os factos não constituírem crime») se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos constituem crime.

Como bem se escreve no sumário do AC. Da R.L de 2 de Dezembro de 2009, Proc.734/07.TAPDL.L1-3, Rel.Telo Lucas, «II – O despacho que rejeita a acusação que imputa ao arguido o crime de falsidade de testemunho por factos não constituírem crime, nos termos do art.311 n. º2, al.a) e n. º3, al. D) do Codigo de Processo Penal não pode ter como fundamento a opção por um determinado entendimento jurisprudencial sobre os elementos do crime. III – A acusação só pode ser rejeitada quando for evidente que os factos nela descritos ainda que viessem a ser provados não preenchem qualquer tipo legal de crime.»

(…)

E também não pode ser rejeitada a acusação com base numa interpretação divergente como se decidiu no AC.R.LL de 07/ de Dezembro de 2010, Proc.475/08.0TAAGH.L1, Rel.Vieira LAmin, e na CJXXXV, T V, pág.145, com o seguinte sumário:

«I – Quando o juiz rejeita a acusação por manifestamente infundada considerando que os factos não constituem crime mediante uma interpretação divergente de quem deduziu esta acusação viola o princípio do acusatório. II – Face a este princípio, ao proferir despacho a que alude o artº. 311 º, n. º2 do C.P.P., o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, ora os factos não constituírem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imutação efectuada. III – Uma opinião divergente, como a manifestada pelo Mmo. Juiz recorrido, apoiada numa análise do contexto em que ocorreram os factos, por muito válida que seja, não assegura o principio do acusatório(…)»

Também de acordo com o Acórdão da RE de 15 de outubro de 2013, proc.321/12.0TDEVR.E1, Rel por Ana Barata Brito:

«Os poderes do juiz (de julgamento) sobre a acusação, antes do julgamento, são limitados. II- O conceito de acusação manifestamente infundada, assente na atipicidade da conduta imputada, implica um juízo sobre o mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser, manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando o debate. III- Mas a alínea d), do n. º3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório; o tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime. IV- (…)»

Subsumindo-nos ao caso em apreço, remetido o processo para julgamento, sem ter havido instrução, o Exmo. Juiz a quo, ao proferir o despacho a que alude o elencado art.º 311.º, rejeitou a acusação particular, na qual a assistente imputa ao arguido a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180.º do Código Penal, considerando-a manifestamente infundada, por entender que a factualidade descrita, dado o contexto de conflito de interesses parentais em que se enquadrou, não apresenta tipicidade criminal.

Em causa está, pois, a previsão da al. d) do n. º 3 do art.º 311º, ou seja, os factos descritos na acusação não constituírem crime, o que se traduz numa das quatro situações em que a mesma é manifestamente infundada e, por isso, o juiz pode rejeitá-la sem violar o princípio do acusatório.

No entanto, relida a acusação particular constata-se que, em termos de descrição de factos, dela consta que, nas circunstâncias de tempo e lugar mais aí descritas, o arguido, referindo-se à Assistente, escreveu no articulado: " Um caracter mentiroso e manipulador que caracteriza esta;(…) devido a um perfil egoísta e egocêntrico;(…) além de agredir violentamente o filho CC…ainda mente; demonstra demasiado egoísmo e insensibilidade;- Prefere prosseguir um mundo de mentira; (…) Os efeitos nefastos dos seus comportamentos agressivos vêm causando nos seus filhos: - tornando-os violentos com os seus pares na escola, ao ponto do César ter já tentado agredir outras crianças com uma tesoura(…) Viu o seu filho CC no chão, com a mão em cima dele, agarrando este pela cabeça e batendo com a cabeça do CC no chão.(…) 4- As expressões supra transcritas são gravemente ofensivas da honra e consideração da assistente;5- E o arguido quis e conseguiu fazer essa ofensa,6- Bem sabendo que tais afirmações e juízos eram falsos;7- Quis transmitir aos intervenientes processuais e a toda a gente que viesse a ter conhecimento dos autos, designadamente ao juiz, do Processo, ao MP e à equipa técnica que acompanhava o processo; 8- Bem sabendo que tais afirmações e juízos não são verdadeiros e tinham como objectivo afastar os filhos da assistente;(…)12- Tal atuação malévola do arguido acabou por ser detectada no referido processo de promoção e protecção, onde o arguido acabou por ser condenado em multa, e aí foi remetida certidão ao MP, por a mesma actuação do arguido poder integrar o crime de violência doméstica sobre os menores; 13- O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;…”

Ora, constata-se que a decisão recorrida face à factualidade descrita na acusação, não negando a potencialidade difamatória, em abstracto, das expressões utilizadas mas fazendo uma interpretação das circunstâncias que as rodearam – a litigância existente no quadro de um processo de promoção e protecção de menores - formula um juízo prévio que, em concreto, arreda aquela potencialidade, antecipando a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, juízo aquele que de modo algum se sustenta numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada, o que se revela claramente violador do princípio do acusatório.

Ao contrário do que a juiz a quo considerou, não basta a constatação e existência de um qualquer conflito de interesses para afastar a aptidão difamatória das expressões utilizadas. Tal aptidão terá que ser apreciada em concreto e perante toda a prova a produzir em audiência de julgamento.

Por conseguinte, não deveria o juiz a quo ter rejeitado a acusação, não se podendo considerar esta manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – pois que a mesma contém a narrativa dos factos consubstanciadores do tipo de ilícito criminal que imputa ao arguido, estando indicados os elementos objectivos e subjectivo do tipo legal do crime de difamação assim como o preceito legal do art.º180 do Código Penal.

Em conclusão, o despacho recorrido viola o princípio do acusatório, o que, «per se» reclama pela sua revogação.


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Cumpre agora aferir da segunda questão suscitada.

B - saber se, tendo sido proferidas afirmações difamatórias em peça processual subscrita por mandatário judicial, é aplicável o princípio da indivisibilidade do direito de queixa, devendo esta ser dirigida também contra o advogado subscritor, sob pena de extinção do procedimento criminal por falta de uma condição de procedibilidade.

Nesta sede, concordando com o mesmo, socorremo-nos do douto Acórdão da Relação de Coimbra, proc.365/10.6T3OBR.C1, relatado por José Eduardo Martins[3] que refere:

Está em causa a imputação da prática de crimes contra a honra, consideração e bom nome das pessoas por meio de peça processual subscrita por Advogado.

(…)

O princípio da indivisibilidade da queixa significa, simplesmente, que a queixa deverá ser apresentada contra todos os comparticipantes conhecidos.

Não há dúvidas de que o sistema penal português consagrou o chamado princípio da indivisibilidade, ao referir que “O não exercício do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa” – n.º 2, do art.º 115º, do Código Penal.

O princípio está consagrado porque “Em matéria criminal não se pode escolher quem deve ser perseguido em caso de comparticipação; o que está em causa é o crime” - Maia Gonçalves in “Código Penal Português”, 13ª ed., pg. 391.

Este princípio da indivisibilidade da queixa - e da acusação – tem como objectivo evitar que o titular do direito de queixa escolha apenas um dos comparticipantes, perdoando aos demais, caso em que a perseguição teria então mais natureza pessoal do que em razão do crime praticado.

No nosso caso, temos uma situação em que se discute a eventual comparticipação criminosa (artigo 26.º, do CP), entre o advogado subscritor da peça dita injuriante e o respectivo mandante. Estando em causa a prática de actos por advogado, importa fazer algumas considerações sobre o mandato.

O mandato é um contrato de prestação de serviços «pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra.» (artigo 1157.º, do Código Civil).

Como todos sabem, a advocacia tem um estatuto e regulamentação próprios que se sobrepõem ao regime do mandato consagrado no referido código.

O mandato judicial configura-se como um contrato atípico que se rege, no essencial, pelas normas do Estatuto da Ordem dos Advogado.

O advogado, como mandatário judicial, pratica actos jurídicos, não em nome próprio, mas por conta do mandante, tendo em conta, regra geral, a factualidade narrada pelo cliente, como bem resulta da resposta ao recurso trazida aos autos pelo Ministério Público.

Pois bem, segundo a normalidade do desenvolvimento processual, para haver comparticipação num crime de difamação, numa peça processual, é necessário que exista um acordo prévio, mesmo que tácito, entre mandatário e mandante, para afirmar ou propalar factos inverídicos, ou seja, o conhecimento e vontade de realização do facto anti-jurídico, com consciência da ilicitude.

O mandatário forense, de acordo com as regras próprias da deontologia profissional, escreve na peça processual os factos que lhe são transmitidos pelo seu cliente, convencido de que correspondem à verdade. Este é o princípio que deve estar subjacente na análise da questão. Os princípios da boa-fé e da colaboração entre os intervenientes processuais impõem tal premissa, sob pena de se tornar perverso, à partida, o acesso aos Tribunais, sem prejuízo da necessidade de estar atento a eventuais desvios que, justamente devido à sua natureza, devem ser alegados e provados e não tomados aprioristicamente.

Não subscrevemos, pelo exposto, e salvo o merecido respeito, a orientação de que, se numa peça processual, não tiver sido alegado que o advogado agiu no convencimento de que os factos que lhe foram relatados pelo cliente correspondem à verdade, a responsabilidade criminal será de imputar a ambos, existindo, dessa forma, comparticipação criminal (divergimos, portanto, do Acórdão deste TRC, de 9/11/2011, Processo n.º 4130/09.5TACSC.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Luís Ramos, e aderimos à posição expressa, na mesma data, no Acórdão deste TRC, Processo n.º 129/10.7TATMR.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Luís Teixeira). (…)”

Debruçando-nos sobre o caso em apreço constata-se que a denunciante não faz qualquer alusão à actuação do mandatário do arguido aquando da redacção do articulado que dá azo à acusação particular. Em momento algum é alegado que aquele, ao transferir para a peça processual as expressões a que supra se alude, soubesse que afirmava ou propalava factos inverídicos, não tendo fundamento para, em boa-fé, reputar verdadeiros esses factos inverídicos. E assim sendo, não resultando dos autos que o crime foi praticado em comparticipação entre o ora recorrente e o seu mandatário, sendo este o signatário do articulado, não podemos concluir pela falta de uma condição legal de procedibilidade, nos termos do artigo 115.º, n.º 3, do Código Penal, por não ter sido deduzida queixa contra aquele último, o que, a verificar-se, resultaria na extinção do procedimento criminal. Não é o caso pois que da acusação particular não se pode retirar a ilacção de que o advogado signatário soubesse que as expressões e imputações relatadas não correspondessem à verdade ou que aquelas tivessem sido, de algum modo, congeminadas num conluio entre mandante e mandatário.

Pelo que se conclui pela inexistência de qualquer situação de comparticipação que reclamasse a extinção da responsabilidade criminal, ao contrário do que resulta “entrelinhas” do despacho recorrido.

III - Dispositivo.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto pela assistente AA, revogando-se o despacho recorrido o qual, descidos os autos à primeira instância, deverá ser substituído por despacho de recebimento da acusação particular, seguindo-se os demais termos do processo.

Sem custas.

Elaborado e revisto nos termos legais – art. º 92 n. º4 do C.P.P.

Data e assinaturas no topo do documento.



Porto, 12/2/2025.

Maria Ângela Reguengo da Luz
Paula Natércia Rocha
Pedro Vaz Pato

_________________________________
[1] cfr. in Curso de Processo Penal, III, 2.ª Edição, Revista e actualizada, pág. 113;
[2] Proc.836/2006-5, relatado por Margarida Blasco)
[3] Disponível in www.dgsi.pt/jtrc.nsf;