Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
70/23.3T8BAO.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
AQUISIÇÃO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
DEFEITOS DA COISA TRANSMITIDA
PRAZO DE CADUCIDADE
INDEMNIZAÇÃO POR MORA
Nº do Documento: RP2024052170/23.3T8BAO.P1
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Tendo-se julgado provado que, para aquisição de uma viatura da ré, a autora recorreu à Banco 1... (Banco 1...), com quem celebrou um contrato de locação financeira, não é possível afirmar a celebração de um singelo contrato de compra e venda entre a autora e a ré, revelando aquele facto a existência de relações contratuais mais complexas, envolvendo três partes, que desembocaram na celebração de um contrato de compra e venda entre a ré e a Banco 1... e num contrato de locação financeira entre esta e a autora.
II – A autora locatária não está impedida de invocar perante a ré vendedora os defeitos do veículo objecto da locação financeira, atento o disposto no artigo 13.º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho, que regula as relações entre o locatário e o vendedor ou empreiteiro.
III – O prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do CC é aplicável, por interpretação extensiva desta norma, a todas as acções fundadas na compra e venda de coisas defeituosas, designadamente à ação de indemnização baseada nos defeitos da coisa vendida, ainda que o respectivo pedido não contemple outros remédios, nomeadamente a reparação ou a substituição da coisa.
IV – Nos casos em que a venda de coisa defeituosa constitui, simultaneamente, um caso de incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação, como sucede quando a coisa vendida não tem as qualidades asseguradas pelo vendedor, o comprador tanto pode lançar mão dos artigos 798.º e 799.º, como dos artigos 913.º e seguintes do Código Civil. Mas tal opção não é possível fora destas situações.
V – Estando em causa a indemnização dos danos decorrentes da mora na entrega da coisa vendida, não tem aplicação o regime jurídico da compra e venda de coisas defeituosas, mas antes o regime geral da responsabilidade civil contratual.
VI – Ao contrário do que sucede com a acção de indemnização baseada no regime jurídico da compra e venda de coisa defeituosa, a acção de indemnização baseada nas regras gerais do incumprimento e cumprimento defeituoso da obrigação não está sujeita ao prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do CC, mas apenas ao prazo geral de prescrição de 20 anos.
VII – Independentemente de se entender que a obrigação de entrega do bem ao locatário financeiro cabe ao locador ou a o fornecedor, ninguém questiona que essa entrega não poderá ocorrer sem que o locador, depois de celebrar o contrato de compra e venda, a torne possível, seja autorizando o fornecedor a fazer essa entrega, seja fazendo-a ele mesmo, directamente ou por intermédio do fornecedor.
VIII – A mera privação da possibilidade de uso de um veículo automóvel é insuficiente para demonstrar a existência de um dano, pois este só se concretiza ao nível das privações concretas das vantagens que o mesmo proporciona. Mas não se exige a prova de um prejuízo concreto, sendo suficiente, para que se possa falar de um dano indemnizável, que se prove a utilização que era dada ou se pretendia dar a esse veículo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.n.º 70/23.3T8BAO.P1





Acordam no Tribunal da Relação do Porto




I. Relatório



A..., Lda., com sede na Rua ..., em ..., ..., intentou a presente acção declarativa comum contra B..., S.A., com sede na Estrada ..., Vale de ..., ..., concelho ....
Alegou, em essência, que comprou à ré dois camiões, que esta não lhos entregou nas datas acordadas, que um deles avariou várias vezes e que o atraso na entrega e a demora das reparações lhe causou danos patrimoniais.
Concluiu pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 30.975,87 €, acrescida de juros à taxa legal desde a citação e até efectivo e integral pagamento.
A ré apresentou contestação onde arguiu a incompetência do tribunal em razão do território, a caducidade prevista no artigo 921.º, n.º 4, do Código Civil (CC) e a prescrição do direito da autora, tanto nos termos do artigo 482.º como do artigo 498.º do CC. Mais alegou o contexto em que decorreu a entrega dos camiões e impugnou parcialmente os factos descritos na petição inicial.
Concluiu pugnando pela procedência das excepções invocadas e pela improcedência da acção.
A Autora apresentou resposta quanto à matéria de excepção, pugnando pela sua improcedência.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador – no qual foi julgada improcedente a excepção de incompetência territorial e se relegou para sede de sentença o conhecimento das excepções peremptórias de caducidade e de prescrição –, identificado o objecto do litígio, enunciados os temas da prova, apreciados os requerimentos probatórios e designada data para audiência de julgamento, que se veio a realizar, após o que foi proferida sentença, que termina com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julga-se a presente acção declarativa improcedente, em consequência declara-se verificada a excepção de caducidade, no que respeita ao pedido formulado tangente a imobilização ou indisponibilidade da coisa e perdas de exploração, decorrentes de reparação da coisa e, por não provado absolve-se a Ré B..., S.A., S.A. do demais contra si peticionado pela Autora A..., Lda.»
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Inconformada, a ré apelou da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«1-) O facto que a Recorrente considera ter sido mal julgado é o facto não provado A-).
2-) Este facto deveria ter sido julgado provado pela análise do depoimento da testemunha AA.
3-) O supra referido AA, descreve sem sombra de dúvidas a existência do acordo para a entrega do veículo até ao dia 30 de Junho de 2019.
4-) Da análise do depoimento da testemunha AA, conjugado com os documentos juntos pela Autora, nomeadamente o documento nº4, impunha-se que o facto julgado não provado A-) fosse julgado provado;
5-) Ao instaurar a acção a Recorrente não pretendia a reparação dos defeitos dos bens vendidos, mas sim, ser compensada pelos prejuízos causados.
6-) A Recorrente entende que o prazo de caducidade previsto no artº.917 do C. Civil se aplica às acções de anulação.
7-) Com efeito, a Recorrente não pretende a reparação dos defeitos ou a anulação do contrato, pretende ser ressarcido dos prejuízos causados.
8-) A acção de indemnização para ressarcimentos dos prejuízos causados, não está contemplada no artº.917 do C. Civil.
9-) A douta sentença, no entendimento da Recorrente fez uma interpretação errada do disposto no artº.917 do C. P. Civil.
10-) Uma correcta interpretação do disposto no artº.917 do C. Civil, julgaria a excepção da caducidade imprudente e a acção ser julgada procedente.
11-) Deve a douta sentença recorrida ser revogada e ser substituída, julgando-se a acção procedente, assim se fazendo Justiça».
A ré respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela total improcedência do recurso interposto.


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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, são as seguintes:
1. O erro no julgamento da matéria de facto no que concerne à al. a) dos factos julgados não provados.
2. O erro no julgamento da matéria de direito, designadamente no que concerne às seguintes questões:
- A caducidade do direito da autora;
- O direito da autora à indemnização dos prejuízos decorrentes da mora no cumprimento da obrigação de entrega de ambos os veículos (XX e ZM);
- O direito da autora à indemnização dos prejuízos decorrentes da demora nas reparações do veículo XX.

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III. Fundamentação
A. Os Factos
1. Factos julgados provados pelo tribunal a quo
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1) A Autora exerce a actividade de construção e conservação de vias, construção civil e obras públicas, entre outros.
2) A Ré exerce a actividade de comércio automóvel.
3) No dia 09 de Maio de 2019, Autora e Ré acordaram que a segunda entregaria a troco de contrapartida pecuniária, no valor de 110.000,00€, viatura automóvel pesado de mercadorias, marca SCANIA, modelo ..., ano de 2007, tipo 8x2, P. B. 32 toneladas, categoria: Estrada + Grua, com o chassis nº ...57, equipado com grua Palfinger ... e rádio comando, a que foi atribuída a matrícula ..-XX-...
4) Após insistência da Autora na entrega da viatura a Ré comunicou que “Da nossa parte em princípio” entregaria a mesma no dia 22.07.2019.
5) No dia 11.07.2019 foi atribuída matrícula à viatura referida em 3).
6) Para aquisição da viatura referida em 3) a Autora recorreu à Banco 1..., com quem celebrou denominado contrato de Locação Financeira.
7) A Banco 1... no dia 25.07.2019 comunicou à Ré autorização para entrega da viatura referida em 3) à Autora.
8) A Ré veio a entregar a viatura referida em 3) no dia 25.07.2019 e a Autora aceitou.
9) A Ré comprometeu-se a assegurar que o veículo com a matrícula ..-XX-.. beneficiava de uma garantia de 6 meses ou 20.000km de motor, caixa de velocidades, diferencial e da Grua Palfinger.
10) No dia 05.08.2019 a Autora comunicou à Ré que a viatura referida em 3) necessitava de reparação, ao abrigo de garantia dos seguintes problemas: Visor do nível do óleo hidráulico da grua perdia óleo; O primeiro macaco da grua tinha fuga de óleo.
11) A Ré mostrou disponibilidade para proceder a reparos no veículo referido em 3) no dia 20.08.2019, o que fez nesse mesmo dia e a Autora aceitou.
12) No dia 29.11.2019 acendeu a luz vermelha da pressão do óleo da viatura referida em 3), e nesse dia a Autora solicitou reparação à Ré informando que não conseguia “substituir o camião em certos trabalhos (que estava) a executar”.
13) A Ré respondeu à Autora, mediante escrito datado de 29.11.2019 que: “Dei indicação ao motorista para me ligar durante a semana que vem para agendarmos uma data precisa para a revisão/reparação do Camião…”.
14) No dia 16 de Dezembro a viatura referida em 3) entrou na oficina da Ré para reparação.
15) Mediante escrito datado de 09.01.2020 a Autora comunicou, entre outros, à Ré o seguinte:
“Boa tarde BB,
Como sabe este assunto já se arrasta há imenso tempo e dada a discrepância nas informações prestadas por vós via telefónica com as informações obtidas pelo n/motorista que está desde a manha de hoje nas v/ instalações para levantar o camião ..-XX-.., decidi colocar-lhe por escrito.
1. O camião está na B... desde 16/12/2019, para efectuar as seguintes reparações ao abrigo da garantia:
- rotular direccionais – OK verificado;
- rolamento esquerdo do eixo morto e rotular – OK verificado;
- sapata esquerda perde óleo pelo interior (reincidência) – OK verificado;
- sapata direita encrava – OK verificado;
- agua e tubos do radiador – sistema do retarder perde agua – OK verificado;
- falta os suportes de borracha das tubagens do sistema de água – OK verificado;
- cabo de antena do radio – Ok verificado;
Buzina não funciona (reincidência) – OK verificado;
- agua no óleo do motor;
- pressão do óleo baixa (reincidência – ainda não resolvido!!;
- grua bloqueia ao esticar e encolher – OK verificado;
- esticador porta do condutor – OK verificado;
- Luzes médios queima lâmpadas;
- casquilhos do macaco de elevação da cabina (reincidência) – OK verificado;
- eixo direccional traseiro vira sozinho em andamento à ré.
2. foi dada conclusão da reparação relacionada com motor/radiador antes do natal. Por decisão nossa o camião permaneceu convosco, uma vez que teria de voltar na 2.ª semana de Janeiro para efectuar as restantes reparações.
3. Na ultima conversa que tivemos na passada 3.ª feira, foi certo que o camião estaria pronto 4.ª feira (ontem), sendo que o iríamos levantar hoje de manha
4. Até à presente hora (16:30) o nosso motorista continua a acompanhar a intervenção ao camião, que ainda não está concluído e algumas anomalias são reincidentes após a intervenção já feita por vós há meses.
Assim sendo, peço imensa atenção para a v/ para a conclusão dos trabalhos. De modo a entregar-nos amanhã até ao final da manhã o camião devidamente reparado, sob pena legitima de vos debitarmos o custo do tempo do nosso homem e camião parados (a partir do momento que o camião deveria ser entregue).”
16) A Ré entregou à Autora, que aceitou, a viatura referida em 3) reparada no dia 10 de Janeiro de 2020.
17) No dia 22.01.2020 o veículo referido em 3) apresentou avaria ao nível da centralina que faz a gestão do motor.
18) No dia 23 de Janeiro de 2020 a Ré informou a Autora que o veículo com a matrícula ..-XX-.. seria entregue no dia 27 de Janeiro de 2020 e que estavam a tentar resolver definitivamente o problema
19) No dia 13 de Janeiro a Ré informou a Autora que o veículo com a matrícula ..-XX-.. seria entregue no dia 19.02.2020, alertando que falariam na segunda feira seguinte “de forma a não haver enganos”.
20) A Ré entregou à Autora, que aceitou, a viatura referida em 3) no dia 26 de Fevereiro de 2020.
21) No dia 13 de Março de 2020 o veículo com a matrícula ..-XX-.. apresentou problemas e foi rebocado até à oficina da Ré.
22) Onde esteve em reparação até ao dia 31 de Março de 2020, tendo sido entregue à Autora que a aceitou.
23) No dia 06 de Maio de 2020 acendeu a luz de motor no quadrante da viatura referida em 3), no dia 7 de Maio entrou na Oficina da Ré para reparação e foi entregue reparado à Autora nesse mesmo dia, que a aceitou.
24) As reparações referidas em 22) e 23) foram realizadas sem custos para a Autora, por cortesia comercial da Ré.
25) No dia 18 de Novembro de 2019, Autora e Ré acordaram que a segunda entregaria a troco de contrapartida pecuniária, no valor de 40.000,00€, viatura automóvel pesado de mercadorias, marca Volvo, modelo ..., ano de 2009, P. B. 16 toneladas, categoria: Báscula+Grua, com o chassis n.º ...36, equipado com grua HIAB085+Báscula Vilateral Nova, com a matrícula ..-ZM-...
26) Mediante escrito datado de 18.11.2019, a Ré comprometeu-se a entregar o veículo referido em 25) entre os dias 15 de Janeiro e 30 de Janeiro de 2020 e a Ré a proceder ao pagamento de sinal no valor de 10.000,00€.
27) A Autora, mediante escrito datado de 20 de Novembro de 2019, comunicou, no mais, ao Réu “Informo que até 4.ª feira da próxima semana iremos proceder ao pagamento do sinal. Será necessário que a entrega da viatura seja feira até à última semana de Janeiro de 2020, dado que temos uma obra publica a começar no dia 3 de Fevereiro e necessitamos impreterivelmente deste equipamento a funcionar em obra (…)”
28) A Autora procedeu à entrega da quantia de 10.000,00€ no dia 30.12.2019.
29) Após solicitação da Autora em 13 de Fevereiro de 2020 a Ré informou que a entrega da viatura com a matrícula ..-ZM-.. seria em meados de Março.
30) A viatura com a matrícula ..-ZM-.. foi entregue à Autora no dia 03 de Abril de 2020.
31) As viaturas referidas em 3) e 25) após contabilizados custos operacionais, não concretamente apurados, permitia que a Autora auferisse ganhos diários, em montante não concretamente apurado.
32) A petição inicial deu entrada em juízo em 15.02.2023.
33) A Autora não interpelou, em momento prévio a 15.02.2023, a Ré para ressarcimento de danos causados pelo atraso na entrega das viaturas referidas em 3) e 25) e pelas paralisações para reparação da viatura referida em 3).
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2. Factos julgados não provados pelo Tribunal a quo
O tribunal recorrido julgou não provado que:
a) Foi combinado entre Autora e Ré que o veículo referido em 3) dos factos provados seria entregue até ao dia 30.06.2019.
b) Os problemas reportados pela Autora referente aos seguintes problemas: Visor do nível do óleo hidráulico da grua perdia óleo; O primeiro macaco da grua tinha fuga de óleo impediam a grua de operar e obrigaram à paralisação do veículo desde 05.08.2019 a 20.08.2019.
c) Autora e Ré acordaram a data de 16.12.2019 para solucionar o problema reportado em 12) atendendo às datas festivas e porque a Autora teria obras ou suspensas ou reduzidas a realizar.
d) A Autora tinha no período de Maio de 2019 e Abril de 2020 em curso a obra de sinalização temporária para beneficiação do pavimento A3 e A1, Àguas Santas, Santarém a Espinho.
e) A execução do acordo relativo à viatura volvo referida em 25) dos factos provados, designadamente com a colocação de báscula bilateral nova, aplicação de uma grua com extensões hidráulicas, pintura, contratação de empresa de carroçarias dependia de a Autora proceder ao pagamento da quantia de 10.000,00€ no dia 18.11.2019.
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3. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
a. Nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
Concatenando estes ónus, a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, com o ónus de alegar e formular conclusões consagrado no artigo 639.º do CPC, que impende sobre o recorrente independentemente do recurso visar a matéria de facto e/ou a matéria de direito, Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Coimbra 2020, pp. 196 e s.) sintetiza assim o sistema que vigora sempre que a apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
- O recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
- Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
- Relativamente aos factos cuja impugnação se funde em prova gravada, deve indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes (podendo proceder à transcrição dos excertos que considere oportunos);
- O recorrente deve ainda deixar expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No caso vertente, afigura-se de linear clareza que a recorrente cumpriu tanto os ónus primários consagrados nas diversas alíneas do n.º 1, do referido artigo 640.º, como o ónus secundário estabelecido na al. a), do n.º 2, do mesmo artigo, ao contrário do que é afirmado pela recorrida.
Na verdade, a recorrente indicou de forma expressa e discriminada, tanto na motivação como nas conclusões da sua alegação, os pontos de facto que considera incorretamente julgados (a alínea a) dos factos julgados não provados), indicou a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre esse ponto (julgar provado esse facto) e fundamentou a sua discordância na prova que descreve e analisa na referida alegação (o depoimento da testemunha AA e o documento n.º 4 da petição inicial). É, assim, inteiramente incompreensível a afirmação da recorrida de que a alegação da recorrente é inepta «por não concretizar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, bem como pelo facto de também não fazer referência aos concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação».
Acresce que a recorrente transcreveu a parte do depoimento da referida testemunha em que se baseia, mais indicando o minuto e o segundo do início e do fim desse excerto (8.15 a 16.18), o que se revela mais esclarecedor e útil do que as indicações cuja omissão foi assinalada pela recorrida – a data em que foi prestado o depoimento (que este tribunal facilmente verifica pela consulta das actas da audiência) e a indicação do início e do fim do depoimento (que em nada nos ajudaria a identificar os excertos em que a recorrente se baseia).
Nestes termos, nada obsta ao conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
b. Dispõe, por sua vez, o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC), designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas.
É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591), «o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância». De resto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720), o juiz deve «expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados».
Mas não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
No caso vertente, como vimos, o recorrente pugnou pela alteração da decisão no que respeita à factualidade descrita na al. a) dos factos julgados não provados.
O Tribunal a quo fundamentou assim a sua decisão sobre este facto:
«Quanto aos factos provados 4) a 8) e o facto não provado a) a convicção do Tribunal ancorou-se na prova documental conjugada com a prova Testemunhal, tendo aqueloutra assumido uma maior preponderância.
(…)
Quanto ao demais, a Testemunha AA tentou fazer crer que existia um prazo certo acordado entre as partes para a entrega da viatura com a matrícula ..-XX-.., refere um prazo que se tinha “em mente”, querendo com isso fazer crer que havia um acordo entre Autora e Ré nesse sentido.
Porém compulsado o documento 2 junto com a petição inicial, não se afere que tenha sido plasmado um prazo, ao contrário do que sucedeu com a aquisição da viatura de marca Volvo (Vide documento 16 junto com a Petição Inicial) e analisado o teor dos documentos 4 e 5 (comunicações electrónicas) juntos com a petição inicial ressalta de modo claro que não houve acordo quanto à fixação de uma data de entrega.
Outrossim, extrai-se que a Autora insistiu pela entrega da viatura em apreço e a Ré referiu que ia fazer os possíveis para entregar o camião o mais rápido possível, como era do seu interesse. Acresce que o que se extrai dos aludidos documentos é plausível e concordante com as regras da experiência, tanto mais que a matrícula da viatura apenas foi atribuída em 11.07.2019 (cf. doc. 3 – certificado de matrícula - junto com a petição inicial e doc. 1 – declaração aduaneira de veículo- junto com a contestação) e havia uma terceira entidade envolvida na aquisição da viatura, por meio de denominado contrato de locação financeira (cf. documentos 2 e 3 juntos com a contestação, cuja falsidade não foi arguida).
Ou seja, a Testemunha AA tentou fazer vingar uma hipótese sem amparo no acordo escrito celebrado entre as partes, contra o que a própria verteu em comunicações que dirigiu à Ré.
Por outro lado, a Testemunha arrolada pela Ré BB, que aos costumes disse ser colaborador da Ré e ter tido intervenção directa no negócio dos autos, na qualidade de vendedor, de forma coerente, simples, plausível, sincera, espontânea e por isso neste conspecto credível, atestou que foi celebrado um acordo entre as partes, não foi estabelecida data certa para entrega, designadamente o dia 30.06.2019. Esclareceu ainda esta Testemunha que antes de se proceder à entrega que se efectivou em 25.07.2019 – como unanimemente aceite por todos e resulta do documento 6 junto com a Petição Inicial – havia questões laterais a tratar, tais como atribuição de matrícula e autorizações por parte de entidade terceira, e a Ré uma vez que necessitava do pagamento da totalidade do preço tentou cumprir com a entrega a que se comprometeu o mais rápido possível.
Portanto, conjugando as comunicações electrónicas a que se fez referência (cujo teor e autoria foram confirmados pela Testemunha AA), com o depoimento da Testemunha BB, que se teve por credível neste conspecto, tanto mais que amparado em prova documental, que não foi infirmada por outro meio de prova (documentos 2 e 6 junto com a petição inicial, documento 16 junto com a Petição Inicial, documentos 4 e 5 (comunicações electrónicas) juntos com a petição, doc. 3 – certificado de matrícula - junto com a petição inicial e doc. 1 – declaração aduaneira de veículo- junto com a contestação, documentos 2 e 3 juntos com a contestação), consideraram-se os factos em apreço como provados».
Verifica-se, assim, que Tribunal a quo fundamentou a sua decisão sobre o facto impugnado de forma coerente, clara e completa, permitindo compreender o iter cognoscitivo que conduziu a essa decisão, pelo que tal fundamentação dá integral cumprimento às exigências constitucionais e infra-constitucionais de fundamentação das decisões judiciais e satisfaz todas as finalidades destas exigências.
Acresce que esta apreciação da prova levada a cabo pela primeira instância encontra respaldo na avaliação que fazemos da prova produzida, tendo por base a audição integral do registo dos depoimentos invocados na decisão recorrida e na alegação da recorrente, conjugada com a análise dos documentos também aí mencionados.
Na verdade, a prova produzida não confirma a existência de um acordo entre as partes quanto à data da entrega do camião Scania até 30.06.2016, antes apontando no sentido da inexistência de uma data certa para essa entrega.
Como bem assinala a decisão recorrida, o acordo escrito subscrito pelas partes a respeito desse veículo, junto com a petição inicial como documento n.º 2, é omisso a respeito da data da sua entrega, em contraste com o que sucede com o acordo escrito celebrado entre as mesmas partes a respeito do camião Volvo, junto com a petição inicial como documento n.º 16, onde expressamente se estipula como prazo de entrega “entre o dia 15 a 30 de Janeiro de 2020”.
Também a correspondência electrónica a que respeita o documento 4 da petição inicial se revela totalmente inconcludente a respeito desse acordo. O que resulta dessa correspondência é que, por e-mail de 27.05.2019, o funcionário da autora AA contactou a ré “no sentido de perceber o prazo de entrega da Scania”, o que aponta no sentido de não ter sido previamente estipulado um prazo certo para esse efeito.
Nesse mesmo e-mail, o referido funcionário da autora esclarece que esta está “em vias de iniciar uma obra, no qual é imprescindível a utilização deste novo equipamento que está em fase de aquisição”, acrescentando o seguinte: “necessito comprometer-me com o nosso cliente, com o prazo que nos deu: 3 semanas no máximo para início deste trabalho”, no que se afigura ser uma alusão ao prazo acordado com o seu cliente e não ao prazo que teria sido acordado com a ré. Mas ainda que se entenda que o funcionário da autora se está a referir a um prazo “dado pela ré”, o contexto desta afirmação revela que aquele funcionário ainda procurava obter o acordo da ré quanto a esse prazo, e não que tal compromisso já tivesse sido assumido.
Para além do já exposto, resulta também do documento em análise que, no dia seguinte, o funcionário da ré, BB, respondeu que iria confirmar junto do chefe da oficina e que no dia seguinte lhe dava uma resposta concreta em relação à data da entrega, sem qualquer alusão a qualquer acordo prévio sobre essa data, antes sugerindo que a mesma estava por definir.
Na sua resposta de 05.06.2029, AA afirma o seguinte: “reitero o pedido de um compromisso vosso na entrega dentro do prazo que nos deu”. Mas se a parte final desta afirmação parece aludir à existência de um prazo – não revelando qual seja nem quando foi negociado –, a parte inicial sugere que a ré não chegou a comprometer-se com o mesmo, sendo pedido que assuma tal compromisso.
Nesse mesmo dia, BB responde o seguinte: “conforme a conversa telefónica de ontem, iremos tentar fazer os possíveis para entregar o camião no fim do mês”, ou seja, 30.06.2019, mas logo acrescentando que não pode garantir que irão cumprir com essa data. Mais uma vez, nada nos permite concluir pela existência de algum acordo quanto à data da entrega do veículo, pois “tentar fazer os possíveis para entregar o camião no fim do mês” não significa que houvesse um acordo previamente assumido nesse sentido.
Relativamente à prova testemunhal invocada na decisão recorrida e nas alegações das partes, suscita-se a questão da sua admissibilidade, por força do disposto no artigo 394.º, n.º 1, do CC, por estar em causa a prova de uma convenção adicional ao conteúdo do documento particular junto com a petição inicial sob o n.º 2.
Poderá questionar-se a aplicabilidade desta norma ao caso em apreço, tendo em conta que, como veremos melhor quando analisarmos a questão de direito, aquele documento diz apenas respeito às negociações iniciais mantidas entre as partes deste processo, que desembocaram na celebração ulterior de um contrato de locação financeira entre a autora e a Banco 1... e de um contrato de compra e venda entre esta e a ré.
Seja como for, a análise da referida prova testemunhal não contradiz a prova documental antes mencionada.
Em audiência de julgamento, o referido AA acabou por afirmar que a resposta de BB ao seu e-mail de 05.06.2029 constituiu a primeira vez em que a autora se comprometeu com a data de entrega. Contudo, como vimos, daquele e-mail não se extrai a celebração de um acordo quanto ao prazo de entrega, mas apenas a manifestação de que a ré iria fazer os possíveis para fazer a entrega nesse prazo, mas sem prestar garantia de que o faria.
É certo que, como se refere na decisão recorrida, a testemunha AA procurou demonstrar que existia um prazo certo acordado entre as partes para a entrega da viatura XX. Mas fê-lo, essencialmente, com base na correspondência electrónica já antes analisada e nos contactos telefónicos que terá estabelecido com a ré. Ora, para além de tudo quanto já ficou dito, a própria testemunha acabou por afirmar que não teve qualquer intervenção no negócio de aquisição do camião Scania, sabendo apenas o que lhe foi transmitido em reuniões, e que não teve acesso à documentação relativa ao leasing por via do qual foi financiada a aquisição do referido camião.
Em contrapartida, a testemunha BB afirmou ter acompanhado as referidas negociações, esclarecendo que não fazia sentido comprometerem-se com um prazo, visto que o camião vinha dos Países Baixos, tendo de ser “legalizado” e que a sua entrega à autora sempre dependeria de autorização da locadora financeira, a qual apenas ocorreu na data em que a entrega veio a ser concretizada, ou seja, 25.07.2019.
Este depoimento é corroborado pelos documentos relativos à importação do veículo em causa e ao leasing de que foi objeto, juntos com a contestação como documentos n.º 1 a 4 e com a petição inicial como documento n.º 6, e pelas regras da experiência comum.
Pelo exposto, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto que, consequentemente, se mantém inalterada.

*

B. O Direito
1. O pedido indemnizatório deduzido pela autora assenta em duas causas de pedir distintas, como se assinala na decisão recorrida: por um lado, os prejuízos que aquela sofreu em virtude do atraso no cumprimento da obrigação da ré de lhe entregar os camiões; por outro lado, os prejuízos sofridos pela mesma autora por ter estado privada da utilização de um desses veículos durante as diversas reparações a que teve de ser sujeito.
A análise destas pretensões não pode, naturalmente, alhear-se da qualificação jurídica das relações estabelecidas entre as partes, como igualmente se refere na decisão recorrida. O tribunal a quo qualificou tais relações como contratos de compra e venda, sem que algumas das partes tenha suscitado alguma objecção. Tendo em conta a factualidade apurada, tal enquadramento não merece qualquer reparo no que concerne ao acordo estabelecido entre as partes relativamente ao veículo da marca Volvo com a matrícula ..-ZM-... Mas não podemos subscrever o entendimento preconizado na decisão recorrida relativamente ao veículo da marca Scania com a matrícula ..-XX-...
Ainda que o tenha feito de forma conclusiva e sem remeter para qualquer contrato escrito, o Tribunal a quo julgou provado que, “para aquisição desta viatura, a autora recorreu à Banco 1... (doravante Banco 1...), com quem celebrou denominado contrato de Locação Financeira” (cfr. ponto 6) dos factos provados), o que, de resto, foi aceite por ambas as partes. Mas tanto basta para que não se possa afirmar a celebração de um singelo contrato de compra e venda entre as partes deste processo. Este facto, conjugado com a restante matéria apurada, maxime a descrita no ponto 3), revela-nos a existência de relações contratuais mais complexas, envolvendo três partes, que desembocaram na celebração de um contrato de compra e venda entre a ré e a Banco 1... e num contrato de locação financeira entre esta e a autora.
A locação financeira é definida no artigo 1.º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho, na versão vigente desde 2008, como «o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados».
Assim, como se escreve no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06.10.2015 (processo n.º 2677/12.5TBFIG.C1, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode consultar igualmente a restante jurisprudência citada sem indicação da fonte), são os seguintes os elementos constitutivos do contrato de locação financeira:
(i) A indicação, pelo locatário ao locador, previamente à conclusão do contrato, da coisa a comprar ou a construir e do respectivo fornecedor;
(ii) O dever do locador de adquirir a coisa ao fornecedor;
(iii) O dever do locador de conceder temporariamente o gozo da coisa ao locatário;
(iv) A obrigação do locatário de pagar uma renda;
(v) A faculdade detida pelo locatário de adquirir a coisa locada no termo do contrato.
Parte da doutrina qualifica o contato de locação financeira como um contrato nominado misto de compra e venda e locação, onde sobressai uma feição financeira (Diogo Leite de Campos, Ensaio de Análise Tipológica do Contrato de Locação Financeira, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Vol. LXIII, págs. 74 e 75; António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 1998, pág. 553), mas outros preferem classificá-lo como uma união de contratos entre um contrato de locação e um contrato-promessa unilateral de venda (Rui Pinto Duarte, Escritos sobre leasing e factoring, 2001, Principia, S. João do Estoril, ..., p. 83; Raquel Tavares Reis, cit., p. 137).
De acordo com o acórdão já antes citado, embora tenha muitas similitudes com outras figuras contratuais, como a locação com opção de compra, a locação-venda e a venda a prestações com reserva de propriedade, a locação financeira apresenta alguns sinais distintivos, nomeadamente:
(i) A prevalência da função de financiamento, onde o lucro obtido emerge da remuneração desse financiamento e não da alienação do bem, que é eventual e feita por um valor residual mínimo e pré-fixado;
(ii) A estrutura trilateral da relação jurídica de locação financeira oposta à estrutura bilateral das restantes».
Ainda que a locação financeira seja um contrato bilateral, tem na sua génese esta relação trilateral entre o locador, o locatário e o fornecedor dos bens (cfr. acórdão do TRL de 13-02-1997, n.º convencional 0006972, rel. Américo Marcelino). Esta relação trilateral, bem como a sua conexão com os contratos (bilaterais) de locação financeira e de compra e venda ou empreitada celebrados no seu seio, são expressivamente descritas por Raquel Tavares dos Reis [Gestão e Desenvolvimento, 11 (2002) 113-165] da seguinte forma:
«Quando alguém necessita de um certo bem possui, essencialmente, três alternativas: comprá-lo com os seus próprios recursos, pagando imediatamente o preço correspondente; contrair um empréstimo que permita adquiri-lo; ou celebrar um contrato de locação financeira. Partindo desta ideia, podemos definir a locação financeira como o contrato pelo qual um sujeito, necessitando de um certo bem, em vez de o comprar ou de contrair um empréstimo que permita adquiri-lo, convenciona com um intermediário financeiro que este o adquira (ou faça construir) por sua indicação, com o compromisso de depois lhe ceder o respectivo uso, por um certo prazo e contra o pagamento de uma renda, podendo o primeiro optar pela compra do bem, no fim do contrato.
Normalmente, a operação que esta figura contratual encerra pressupõe a intervenção de três sujeitos: o fornecedor do bem (vendedor ou empreiteiro); o que o pretende utilizar; e aquele que financia a utilização. Mas é a relação contratual que se estabelece entre o financiador e o utilizador que recebe a denominação de locação financeira».
A relevância da referida relação trilateral é enfatizada por alguma doutrina, nomeadamente a italiana, quando afirma que a locação financeira tem uma dupla função de financiamento: financia a aquisição pelo locatário, mas também a correspondente alienação pelo fornecedor.
No caso em apreço, o acordo ou acordos celebrados entre a autora, a ré e a Banco 1... ostentam esta marca distintiva, como é corroborado pelo documento junto com a petição inicial sob o n.º 3, pelo que a autora ocupa a posição de locadora financeira do veículo e não a posição de compradora que, naturalmente é ocupado pela Banco 1....
2. Sem prejuízo da relevância prática deste diferente enquadramento jurídico, que melhor descreveremos infra, o mesmo não impede a autora locatária de invocar perante a ré vendedora os defeitos do veículo objecto da locação financeira, atento o disposto no artigo 13.º do diploma legal antes citado, que regula as relações entre o locatário e o vendedor ou empreiteiro, conferindo expressamente ao primeiro a faculdade de exercer contra o segundo todos os direitos relativos ao bem locado ou resultantes do contrato de compra e venda ou de empreitada.
Dito de outro modo, a autora está legitimada a lançar mão dos meios de tutela decorrentes do regime jurídico do contrato de compra e venda de coisas defeituosas.
Tal regime jurídico encontra-se previsto e regulado nos artigos 913º e seguintes do Código Civil.
A definição de coisa defeituosa é-nos dada pelo artigo 913.º, nos seguintes termos:
«1 – Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias à realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o descrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
2 – Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.»
Como observa Calvão da Silva (Responsabilidade Civil do Produtor, 1990, pp. 186 e ss.), na definição de coisas defeituosas há que destacar, por um lado, a sujeição do vício e falta de qualidades ao mesmo regime e, por outro, o carácter funcional das quatro categorias de vícios previstos no citado preceito:
- vício que desvalorize a coisa;
- vício que impeça a realização do fim a que a coisa se destina;
- falta de qualidades asseguradas pelo vendedor;
- falta de qualidades necessárias para a realização do fim a que se destina.
A coisa é defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme em relação ao que foi acordado. O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal de coisas daquele tipo, ao passo que a desconformidade representa uma divergência em relação ao fim acordado.
Os vícios e as desconformidades constituem, assim, o defeito da coisa. O citado artigo 913.º, n.º 1, fala de vício que desvalorize a coisa, o que se traduz na redução ou extinção do valor ou da utilidade da coisa vendida. Mas, para além da desvalorização, aquela norma alude também à inadequação da coisa ao fim a que se destina. A utilidade a retirar da coisa infere-se do contrato, e pode ser uma finalidade normal de coisas da mesma categoria (art. 913.º, n.º 2, do CC) ou uma aptidão particular, acordada de modo explícito ou implícito. Ou seja, a qualidade normal depreende-se do fim definido no acordo das partes e, quando este não existir, atende-se à função normal de coisas da mesma categoria, nos termos do artigo 913.º,n.º 2, do CC.
O defeito da coisa vendida só leva à aplicação do regime da venda de coisas defeituosas caso o comprador o desconheça sem culpa.
Atento o princípio da boa fé e o regime da responsabilidade civil, não se pode equiparar o comprador que desconhece o defeito, àquele que está consciente da situação, ou que dele não sabe por negligência. Deste modo a responsabilidade derivada da venda de coisas defeituosas só existe no caso de defeitos ocultos.
Defeito oculto é aquele que, sendo desconhecido do comprador, pode ser legitimamente ignorado, pois não era detectável através de um exame diligente. Já quando a desconformidade se puder revelar mediante um exame diligente, o defeito é aparente.
Por último, o defeito conhecido corresponde aos vícios da coisa que foram revelados ao comprador, tanto pela contraparte, como por terceiro, ou de que ele se apercebeu pela sua perícia.
Nos termos gerais, cabe ao comprador a prova do defeito, uma vez que a existência daquele é um facto constitutivo do seu direito, cabendo-lhe igualmente demonstrar a gravidade do defeito, i. é, a sua susceptibilidade para afectar o uso ou de causar uma desvalorização da coisa (artigo 342.º, n.º 1, do CC), presumindo-se a culpa do vendedor se a coisa entregue padecer de defeito (artigo 799.º, n.º 1, do CC).
Para proteger o comprador de coisa defeituosa, o mencionado artigo 913.º, n.º 1, manda observar, com as necessárias adaptações, o prescrito na secção relativa aos vícios de direito (artigo 905.º e ss.).
Nos artigos seguintes, o legislador prevê uma série de outros meios de tutela do comprador de coisa defeituosa.
O artigo 921.º regula a denominada garantia de bom funcionamento, erigindo uma responsabilidade sem culpa do vendedor, mas que só vale com respeito aos deveres de reparar a coisa e de proceder à sua substituição, não valendo relativamente às restantes pretensões edilícias (cfr. Pedro Romano Martinez, Contatos em Especial, 2.ª ed., Universidade Católica Editora, Lisboa, 1996, p. 133).
Por fim, como vem sendo entendido pela doutrina e pela jurisprudência, o regime da compra e venda de coisas defeituosas não afasta a possibilidade de o comprador lançar mão do regime geral do incumprimento ou cumprimento defeituoso das obrigações.
Assim, podemos dizer que a lei concede ao comprador de coisa defeituosa os seguintes direitos:
- Direito à anulação do contrato, por erro ou dolo, verificados os respectivos requisitos de relevância exigidos pelos artigos 251.º a 254.º;
- Direito à redução do preço, quando as circunstâncias do contrato demonstrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por um preço inferior (artigo 911.º);
- Indemnização do interesse contratual negativo (ou seja, do prejuízo que o comprador sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato), cumulável com a anulação do contrato e com a redução ou minoração do preço (artigos 908.º, 909.º e 911.º, por força do artigo 913.º);
- Direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário, e esta tiver natureza fungível, a sua substituição (artigo 914.º, 1.ª parte), independentemente de culpa do vendedor se este tiver obrigado a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, quer por convenção das partes, quer por força dos usos (artigo 921.º);
- Indemnização pelo interesse contratual positivo, cumulável com a reparação ou a substituição da coisa, mas que pode ser exercido sem fazer valer outros remédios;
- Direito de resolução do contrato, nos termos gerais.
A este respeito, vide o acórdão do STJ de 27-11-2008 (proc. n.º 08B3603, rel. Oliveira Rocha).
No presente caso, tendo já obtido a reparação do veículo XX, voluntariamente realizada pela ré, a autora pretende obter uma indemnização pelos danos decorrentes da privação do veículo durante os períodos em que decorreu essa reparação.
Está, assim, em causa uma indemnização pelo interesse contratual positivo (aquela que diz respeito aos prejuízos sofridos pelo facto de o contrato não ter sido cumprido ou ter sido cumprido defeituosamente e que visa colocar o contraente adimplente na situação em que estaria se o contrato tivesse sido integralmente cumprido) que, como vimos, é cumulável com a reparação ou a substituição da coisa, podendo ser igualmente exigida isoladamente, sem se fazer valer outros remédios.
Entendeu o tribunal a quo que esta pretensão está sujeita aos prazos de caducidade previstos no artigo 917.º do CC. Em abono da tese aí preconizada, a decisão recorrida citou Calvão da Silva (Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, Coimbra, 1994, p. 413), transcrevendo o seguindo excerto: «Apesar do art. 917º ser omisso, tendo em conta a unidade do sistema jurídico no que respeita ao contrato de compra e venda, por analogia com o disposto no artº. 1224º, dever-se-á entender que o prazo de seis meses é válido não só para interpor o pedido judicial de anulação do contrato, como também para intentar qualquer outra pretensão baseada no cumprimento defeituoso. De facto, não se compreenderia que o legislador só tivesse estabelecido um prazo para a anulação do contrato, deixando os outros pedidos sujeitos à prescrição geral de 20 anos (art. 309º); por outro lado, tendo a lei estatuído que, em caso de garantia de bom funcionamento, todas as acções derivadas do cumprimento defeituosos caducam em seis meses ( artº. 921º, nº4), não se entenderia muito bem porque é que, na falta de tal garantia, parte dessas acções prescreveriam no prazo de vinte anos; além disso, contando-se o prazo de seis meses a partir da denúncia, e sendo esta necessária em relação a todos os defeitos (artº. 916º), não parece sustentável que se distingam os prazos para o pedido judicial; por último, se o artº. 917º não fosse aplicável, por interpretação extensiva, a todos os pedidos derivados do defeito da prestação, estava criado um caminho para iludir os prazos curtos”.
Citou igualmente dois arestos do Supremo Tribunal de Justiça, de 2007 (onde, por sua vez, é citada outra doutrina e diversa jurisprudência) e de 2023.
É contra este entendimento que se insurge a recorrente, afirmando que os aludidos prazos de caducidade apenas se aplicam às acções de anulação, estando as acções de indemnização excluídas do âmbito de aplicação dessa norma. Mas, para além de uma estrita interpretação literal do artigo 917.º do CC, a recorrente não aduz qualquer argumento para sustentar a sua tese.
Em contrapartida, a tese sufragada na decisão recorrida recolhe o apoio maioritário da doutrina e da jurisprudência, não se vendo razões válidas para nos afastarmos do mesmo.
Para além dos argumentos citados na decisão recorrida, Calvão da Silva acrescenta o seguinte (Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança, Almedina, 2002, pp. 74-75): «Na verdade, seria incongruente não sujeitar todas as acções referidas à especificidade do prazo breve para agir que caracteriza a chamada garantia edilícia desde a sua origem, pois, de contrário, permitir-se-ia ao comprador obter resultados (referidos aos vícios da coisa) equivalentes, iludindo os rígidos e abreviados termos de denúncia e caducidade. Ora, em todas as acções de exercício de faculdades decorrentes da garantia, qualquer que seja a escolhida, vale a razão de ser do prazo breve (cfr. também o n.º 2 do art. 436.º): evitar no interesse do vendedor, do comércio jurídico, com vendas sucessivas, e da correlativa paz social a pendência por período dilatado de um estado de incerteza sobre o destino do contrato ou cadeia negocial e as dificuldades de prova (e contraprova) dos vícios anteriores ou contemporâneos à entrega da coisa que acabariam por emergir se os prazos fossem longos, designadamente se fosse de aplicar o prazo geral da prescrição (art. 309.º); transcurso prazo breve e razoável, há-de proteger-se a legítima confiança de vendedores (e revendedores) em que os negócios sejam definitivamente válidos e cumpridos e não entorpeçam o giro comercial».
No mesmo sentido, na jurisprudência, a título de mero exemplo, vide os acórdãos do STJ, de 05.05.2022 (proc. n.º 1608/20.3T8AMT-A.P1.S1, rel. Catarina Serra), de 11.07.2023 (proc. n.º 1499/21.7T8PVZ.P1.S1, rel. Jorge Dias), de 14.09.2023 (proc. n.º 2111/21.0T8STB.E1.S1, rel. Ana Paula Lobo) e de 12.10.2023 (proc. n.º 13330/17.3T8LSB.L2.S1, rel. Nuno Ataíde das Neves).
Nestes termos, o prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do CC é aplicável, por interpretação extensiva desta norma, à ação de indemnização baseada nos defeitos da coisa vendida, ainda que o respectivo pedido não contemple outros remédios, nomeadamente a reparação ou a substituição da coisa, como ocorre no presente caso.
Sucede que, como dissemos anteriormente, o regime da compra e venda de coisas defeituosas não afasta a possibilidade de o comprador lançar mão do regime geral do incumprimento ou cumprimento defeituoso das obrigações, como é generalizadamente aceite na doutrina e na jurisprudência.
Como se afirma no ac. do STJ, de 13.02.2014 (proc. n.º 1115/05.4TCGMR.G1.S1, rl. Salazar Casanova), pode haver uma venda de coisa defeituosa sem que haja cumprimento defeituoso da obrigação, como sucede quando o vendedor entrega a coisa devida, mas esta sofre dos vícios referidos no artigo 913.º do CC, tal como pode haver cumprimento defeituoso da obrigação sem haver venda de coisa defeituosa, como sucede quando a coisa vendida está isenta de qualquer vício ou desconformidade, mas alguma das partes não cumpre ou cumpre defeituosamente o programa negocial.
Mas a venda de coisa defeituosa pode constituir simultaneamente um caso de cumprimento defeituoso ou, mais do que isso, de verdadeiro incumprimento da obrigação, como sucede quando a coisa vendida não tem as qualidades asseguradas pelo vendedor; neste caso, «não haverá apenas venda de coisa defeituosa, no sentido que os artigos 913.º e segs atribuem a essa figura; haverá ao mesmo tempo uma vicissitude mais grave, que é o cumprimento defeituoso da obrigação (ou a falta qualitativa de cumprimento da obrigação), previsto no artigo 799.º do Código Civil (“Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda. A Exceção do Contrato não Cumprido”, Antunes Varela, C.J.,1987, 4, pág. 21/35)».
Como escreve o autor acabado de citar, «[h]á venda de coisa defeituosa sempre que no contrato de compra e venda, tendo por objecto a transmissão da propriedade de uma coisa, a coisa vendida sofrer dos vícios ou carecer das qualidades abrangida no art. 913,° do Código Civil, quer a coisa entregue corresponda, quer não, à prestação a que o vendedor se encontra vinculado.
O cumprimento defeituoso da obrigação verifica-se não apenas em relação à obrigação da entrega da coisa proveniente da compra e venda, mas quanto a toda e qualquer outra obrigação, proveniente de contrato ou qualquer outra fonte.
E apenas se dá quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito».
Nos casos em que a venda de coisa defeituosa constitui simultaneamente um caso de incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação, o comprador tanto pode lançar mão dos artigos 798.º e 799.º, como dos artigos 913.º e seguintes do Código Civil, conforme já antes afirmámos.
Ora, ao contrário do que sucede com a acção de indemnização baseada no regime jurídico da compra e venda de coisa defeituosa, a acção de indemnização baseada nas regras gerais do incumprimento e cumprimento defeituoso da obrigação não está sujeita ao prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do CC, mas apenas ao prazo geral de prescrição de 20 anos (cfr. ac. do TRL, de 21.10.2021, proc. n.º 1/21.5T8PDL.L1-6, rel. Nuno Lopes Ribeiro).
Mas, recorde-se, esta opção do legislador só é possível na situação descrita, ou seja, quando a venda de coisa defeituosa traduza, simultaneamente, um incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação.
No caso concreto, não se duvida de que estamos perante uma venda de coisa defeituosa, pois o camião evidenciou vícios que impediam a realização do fim a que é destinado (e que, naturalmente, o desvalorizavam). Mas os factos apurados não permitem afirmar qualquer desconformidade entre as qualidades desse veículo e as que haviam sido asseguradas pelo vendedor – pesado de mercadorias, marca SCANIA, modelo ..., ano de 2007, tipo 8x2, P. B. 32 toneladas, categoria: Estrada + Grua, equipado com grua Palfinger ... e rádio comando. Diferente seria se, por exemplo, o camião entregue não estivesse equipado com a grua ou se, por alguma razão, não tivesse aptidão para realizar o fim a que se destina – cfr. ponto 3) dos factos provados.
Nestes termos, os factos alegados pela autora e julgados provados a respeito dos defeitos do camião Scania não configuram uma desconformidade entre a coisa encomendada e a coisa entregue, mas apenas vícios desta, pelo que a autora não optou, nem poderia optar, pelo regime geral da responsabilidade contratual, sendo aplicável ao caso o regime jurídico das compra e venda de coisa defeituosa, como decidiu o tribunal a quo.
Assim sendo, ao pedido de indemnização baseado naqueles defeitos é aplicável o prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do CC.
Resulta dos factos provados que, por diversas vezes, a autora denunciou defeitos no camião e que, de todas essas vezes, a ré procedeu à sua reparação, tendo entregue o camião reparado à ré, pela última vez, em 07.05.2020.
Verificando-se que esta acção foi intentada em 15.02.2023, é manifesto que já haviam decorrido muito mais de seis meses sobre as referidas denúncias, mesmo tendo em conta a suspensão dos prazos, prevista na legislação especial, justificada pela pandemia de Covid-19, pelo que já havia caducado a acção de indemnização com base nos respectivos defeitos.
Pelo exposto, importa manter a decisão que declarou procedente a excepção de caducidade no que respeita ao pedido de indemnização dos danos decorrentes da demora da reparação dos referidos defeitos.
3. Mas já vimos que o pedido indemnizatório deduzido pela autora não assenta apenas nesta causa de pedir, mas também nos prejuízos que a autora sofreu em virtude do atraso no cumprimento da obrigação da ré de lhe entregar os camiões.
A decisão recorrida, embora comece por distinguir a reclamação da “indemnização decorrente do atraso na entrega das viaturas” da reclamação dos “danos decorrentes da imobilização e falta de disponibilidade de uma delas, por força das reparações a que a mesma foi sujeita na decorrência do aparecimento de problemas”, e embora afirme que “no primeiro caso não há dúvidas que estamos perante a alegação do cumprimento defeituoso da prestação do contrato de compra e venda”, ao passo que “no segundo caso, estamos perante a alegação de compra e venda de coisa defeituosa”, parece admitir a sujeição de ambas as situações ao regime jurídico do contrato de compra e venda de coisas defeituosas, inclusivamente ao prazo de caducidade antes referido.
Decorre da exposição antecedente que este entendimento não pode ser sufragado. Com efeito, o não cumprimento do prazo de entrega das coisas vendidas nada tem que ver com a existência de defeitos, sejam eles vícios ou desconformidades, pelo que nem sequer se coloca a questão de o comprador poder fundamentar a acção indemnizatória no respectivo regime jurídico.
Como se escreve no ac. do TRL, de 21.10.2021, já antes citado, «[t]ratando-se do incumprimento da obrigação de entrega da coisa vendida, emergente do art. 882º do Código Civil, o comprador responde, nos termos gerais do art. 798º, pelos prejuízos causados ao vendedor, presumindo-se a sua culpa ex vi dos nºs 1 e 2 do art. 799º do mesmo Código.
E aqui não existe para o comprador qualquer prazo de caducidade da acção respectiva, mas, tão só, o prazo ordinário de prescrição do direito à indemnização, prazo que, como é evidente, não surge polemizado.
Nesse sentido, veja-se Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III, pg. 32: A obrigação de entrega da coisa vendida está sujeita ao prazo ordinário de prescrição de vinte anos (art. 309º).
A discussão doutrinária e jurisprudencial (por todos, veja-se Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, pg. 218) relativamente à aplicabilidade do prazo de caducidade previsto no art. 917º do Código Civil a todas as acções conferidas ao comprador, englobando para além da anulação, a redução do preço, a reparação ou substituição e a indemnização, não se mostra aplicável ao caso, na medida em que tal discussão apenas se insere no âmbito do regime da denúncia de defeitos da coisa vendida, não de incumprimento da obrigação principal de entrega da coisa».
O raciocínio assim expendido a respeito da falta de entrega da coisa é inteiramente aplicável à existência de mora nessa entrega (cfr. artigo 804.º do CC), pelo que importa afirmar sem tibiezas a inaplicabilidade do prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do CC ao pedido indemnizatório baseado na mora.
Também não podemos subscrever a decisão recorrida na parte em afasta a existência de mora na entrega do veículo XX no instituto da excepção de não cumprimento do contrato, desde logo porque esta excepção não é de conhecimento oficioso e não foi invocada pela ré. Por isso, não é estranho que a matéria apurada nem sequer contenha elementos suficientes para se aferir a verificação dos pressupostos da excepção de não cumprimento do contrato, desde logo o prazo de pagamento do preço do camião e a data em que o mesmo foi efectuado.
O que foi alegado pela ré e consta dos factos provados é que apenas no dia 25.07.2019 a Banco 1... lhe comunicou a autorização para a entrega da viatura à autora (cfr. ponto 7) e não que aquela entidade bancária apenas lhe tenha pago o preço nesse dia, como parece entender o tribunal a quo ao afirmar que “a obrigação da Autora apenas foi cumprida igualmente em 25.07.2019”, embora sem chegar a especificar a que obrigação se está a referir.
De todo o modo, perante o facto descrito no ponto 7, tendo em conta que a referida Banco 1... outorgou um contato de locação financeira com a autora e um contrato de compra e venda com a ré, ambos tendo como objecto o já referido camião XX, nos moldes antes explicitados, é manifesto que a ré não incorreu em mora, conclusão que se manteria ainda que a recorrente tivesse logrado provar o facto por si impugnado (isto é, que foi combinado entre autora e ré que o referido veículo seria entregue até ao dia 30.06.2019).
A propósito das consequências, sobre os direitos e obrigações recíprocos do locador financeiro e do locatário financeiro, da não entrega do bem locado pelo fornecedor, Raquel Tavares Reis (cit., pp. 138, 140 e 141) escreve o seguinte:
«Põe-se (…) o problema da validade de cláusulas segundo as quais o incumprimento da obrigação de entrega do bem locado pelo fornecedor não responsabiliza o locador financeiro; antes pelo contrário, obriga o locatário financeiro a proceder ao pagamento das rendas devidas, não podendo resolver o contrato de locação financeira.
Determinado sector doutrinal defende que não impende sobre o locador financeiro a obrigação de entrega material do bem ao locatário financeiro, estando apenas obrigado a celebrar o negócio aquisitivo e a permitir que o bem venha a ser entregue ao locatário financeiro nas condições acordadas entre este e o fornecedor, aduzindo-se que, segundo a intenção das partes, tal obrigação não cabe na esfera contratual do locador financeiro, o qual cumpre o contrato quando celebra o negócio aquisitivo e posteriormente possibilita a cedência do gozo do bem, justamente porque desempenha única e exclusivamente uma função de intermediário financeiro.
Outra posição entende que a assimilação da locação financeira à locação em geral conduz a que se conceba a obrigação de conceder o gozo da coisa como a principal obrigação do locador financeiro, não podendo conceder-se o gozo da coisa sem a entrega (instrumental) da mesma ao locatário, daí que a obrigação de entrega da coisa recaia sobre o locador financeiro.
Recaindo a obrigação de entrega da coisa ao locatário sobre o locador financeiro, este tanto pode cumpri-la directamente (se tiver a coisa em seu poder) como valendo-se da cooperação do fornecedor (estipulando com o fornecedor que a entregue directamente ao locatário financeiro e com este que a receba directamente daquele), sendo esta a praxis negocial.
Nestes casos, explicam, o fornecedor é auxiliar do locador financeiro no cumprimento da obrigação de entrega (artigo 800º do Código Civil) e o locatário financeiro recebe a coisa em nome próprio e em nome da sociedade locadora: em nome próprio, porque esse direito lhe advém do contrato de locação financeira; em nome da sociedade locadora, porque esta, tendo direito à entrega da coisa por força do contrato de compra e venda, lhe conferiu mandato para esse efeito».
Independentemente de se entender que a obrigação de entrega do bem ao locatário financeiro cabe ao locador ou a o fornecedor, ninguém questiona que essa entrega não poderá ocorrer sem que o locador, depois de celebrar o contrato de compra e venda, a torne possível, seja autorizando o fornecedor a fazer essa entrega, seja fazendo-a ele mesmo, directamente ou por intermédio do fornecedor.
Dito de outro modo, o fornecedor apenas poderá proceder à entrega do bem ao locatário financeiro depois de o locador o ter autorizado ou o ter mandatado para esse efeito.
No caso concreto, estando provado que apenas no dia 25.07.2019 a locatária financeira Banco 1... comunicou à ré a autorização para entrega da viatura XX, é manifesto que esta não poderia incorrer em mora antes desta data, sem prejuízo da responsabilidade que possa ser assacada à referida locadora.
Nestes termos, ainda que com argumentos distintos, concordamos com a decisão recorrida quando aí se afirma que a ré não incorreu em mora na entrega da viatura XX.
4. O mesmo não podemos afirmar relativamente à viatura ZM.
A respeito desta viatura, a decisão recorrida começa por afirmar que as partes acordaram que a ré a entregaria entre os dias 15 de Janeiro e 30 de Janeiro de 2020 e que a autora procederia ao pagamento de sinal no valor de 10.000,00€ (devendo-se a manifesto lapso a indicação de que seria a ré a proceder ao pagamento do sinal).
Afirmou de seguida que o sinal foi pago no dia 30.12.2019 e que a entrega dia viatura ocorreu no dia 03.04.2020.
Mas nenhuma conclusão extraiu daqui quanto à mora, limitando-se a afirmar que a prestação se mostra cumprida, pelo que não tem aplicação o regime da impossibilidade parcial da prestação, mais acrescentando que «[n]ada se apurou quanto ao prazo de cumprimento de cada uma das obrigações, sendo, porém, indicativa a circunstância de a Autora apenas ter entregue a quantia de 10.000,00€ em 30.10.2019, de que as partes não terão sido fixados prazos diferentes, o que se conclui», no que parece ser mais uma alusão ao regime da excepção de não cumprimento do contato.
Contudo, tendo-se julgado não provado que a execução do acordo relativo à viatura Volvo, designadamente a colocação de báscula bilateral nova, aplicação de uma grua com extensões hidráulicas, pintura e contratação de empresa de carroçarias, dependia de a autora proceder ao pagamento da quantia de 10.000,00€ no dia 18.11.2019 (cfr. al. e) dos factos não provados) não vemos como se possa apelar aqui à excepção de não cumprimento do contrato. Também não vislumbramos que pertinência possa ter a invocação do regime da impossibilidade parcial de cumprimento.
O regime aplicável é, claramente, o da mora, previsto nos artigos 804.º e seguintes do CC.
Nos termos do disposto no artigo 804.º, n.º 2, do CC, o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.
Por sua vez, o artigo 805.º, n.º 1, do mesmo código, preceitua que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir. Porém, nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo artigo, há mora do devedor, independentemente de interpelação, se a obrigação tiver prazo certo, se a obrigação provier de facto ilícito ou se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
No presente caso, a obrigação de entregar o veículo ZM tinha prazo certo: como consta do ponto 26) dos factos provados, a ré comprometeu-se a entregar o referido veículo entre os dias 15 de Janeiro e 30 de Janeiro de 2020 (e a autora comprometeu-se a proceder ao pagamento de um sinal no valor de 10.000,00 €), mas essa entrega apenas ocorreu no dia 3 de Abril desse ano, ou seja, dois meses e 3 dias depois do último dia do prazo acordado entre as partes (não obstante a autora ter pago o sinal no dia 20.12.2019, como consta do ponto 28) dos factos provados, sendo certo que não ficou estabelecida qualquer dilação mínima entre o pagamento do sinal e a entrega do camião).
Nestes termos, a ré constitui-se em mora desde o dia 1 de Fevereiro de 2020, nos termos do artigo 805.º, n.º 2, al. a), do CC.
A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, conforme preceitua o artigo 804.º, n.º 1, do CC.
Cabe, naturalmente, à autora o ónus de provar a existência de danos, a par dos restantes pressupostos da responsabilidade civil, com excepção da culpa, a qual se presume, por força do disposto no artigo 799.º do CC. Para além desta presunção de culpa, cremos não suscitar dúvidas a ocorrência de um facto ilícito, traduzido na violação do dever específico de prestar decorrente do contrato de compra e vendas celebrado entre as partes, pelo que nos ocuparemos apenas da ocorrência de danos e do nexo causal entre estes e aquele facto ilícito.
A este respeito provou-se que as viaturas referidas em 3) e 25), após contabilizados custos operacionais não concretamente apurados, permitiam que a autora auferisse ganhos diários em montante não concretamente apurado.
Entendemos que está, assim, demonstrada a existência de um dano, na medida em que a privação do uso do veículo ZM entre o dia 1 de Fevereiro e o dia 3 de Abril de 2020, sequente ao não cumprimento do prazo de entrega acordado, impediu que a autora pudesse auferir os aludidos ganhos diários.
Contrariando esta conclusão, poderia argumentar-se que apenas se provou que a disponibilidade da viatura em causa permitia, em abstracto, que a autora auferisse ganhos diários, não se tendo demonstrado, em concreto, que a autora teria auferido esses ganhos se tivesse a viatura à sua disposição nos dias em causa.
Esta questão remete-nos para a problemática da privação do uso de veículo automóvel enquanto dano indemnizável, a qual vem sendo debatida na doutrina e, sobretudo, na jurisprudência há anos (ou mesmo décadas), sobretudo a propósito dos danos emergentes de acidentes de viação, mas em termos inteiramente aplicáveis ao nosso caso, sem que se tenha logrado alcançar a uniformidade ou, sequer, um consenso alargado, não obstante a evolução jurisprudencial registada.
Ainda que com alguns matizes ou nuances, cremos poder agrupar os diferentes posicionamentos sobre esta matéria em três grupos essenciais.
Uma jurisprudência que cremos ser, neste momento, claramente minoritária entende que a privação do uso de um veículo só é indemnizável se o lesado alegar e provar que a mesma lhe casou um prejuízo ou dano concreto – um dano emergente ou um lucro cessante –, não havendo lugar a indemnização se apenas se prova aquela privação. Neste sentido, vide os acórdãos do STJ, de 05.07.2007 (proc. n.º 07B2111), de 30.10.2008 (proc. n.º 07B2131) e de 08.05.2013 (proc. n.º 3036/04.9TBVLG.P1.S1).
Nos antípodas desta situa-se a jurisprudência que considera suficiente, para que haja lugar à obrigação de indemnizar, a demonstração da simples privação do uso, ainda que nada se prove a respeito da utilização que seria dada ao veículo em causa. Neste sentido vide: os acórdãos do STJ, de 05.07.2007 (proc. n.º 07B1849), de 12.01.2010 (proc. n.º 314/06.6TBCSC.S1), de 16.03.2011 (proc. 3922/07.2TBVCT.G1.S1) e de 10.01.2012 (proc. n.º 189/04.0TBMAI.P1.S1); o ac. do TRE, de 14.01.2021 (proc. n.º 879/17.7T8EVR.E1); os acórdãos do TRL, de 04.10.2007 (proc. n.º 3077/2007-6), de 18.09.2007 (proc. n.º 6066/2007-1) e de 27.02.2014 (proc. n.º 889/11.8 TBSSB.L1-6); os acórdãos do TRC, de 20.03.2007 (proc. n.º 226/04.8TBFND.C1), de 25.01.2005 (proc. n.º 3498/04) e de 06.06.2006 (proc. n.º 1605/06).
Em defesa desta tese, diz-se o seguinte no ac. do STJ de 12.01.2010, acima citado (rel. Paulo Sá): «O proprietário privado por terceiro do uso de uma coisa tem, por esse simples facto e independentemente da prova cabal da perda de rendimentos que com ela obteria, direito a ser indemnizado por essa privação, indemnização essa a suportar por quem leva a cabo a privação em causa. A privação do uso do veículo constitui um dano indemnizável, por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e caber ao proprietário optar livremente entre utilizá-lo ou não, porquanto a livre disponibilidade do bem é inerente àquele direito constitucionalmente consagrado (art. 62.º da CRP)»
No mesmo sentido, Abrantes Geraldes (Temas da Responsabilidade Civil, I Vol. – Indemnização do Dano da Privação do Uso, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2005, pp. 57 e s.) afirma que «o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, do mesmo modo que confere ao proprietário o direito de não usar. A opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afectada pela privação do bem. Neste contexto, sendo a disponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excepcionalmente, perante um quadro factual mais complexo, será possível afirmar que a paralisação não foi causa adequada de danos significativos merecedores da ajustada indemnização».
Segundo o ac. do TRP, de 10.01.2022 (proc. n.º 8064/18.4T8SNT.P2, rel. Miguel Baldaia de Morais), é esta a tese com «maior acolhimento na doutrina, que vem sustentando ser essa a posição que melhor tutela a lesão dos interesses do proprietário de um veículo que se vê privado de extrair dele todas as vantagens e utilidades que o seu uso lhe proporciona, não podendo deixar de reconhecer-se como lesiva do seu património a perda, em si mesma, da possibilidade de continuar a usufruí-lo, por facto ilícito de um terceiro, durante o período de tempo em que tal se verificar». Neste sentido cita: Júlio Gomes, O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, 1998, págs. 274 e seguintes e, do mesmo autor, Custo das reparações, valor venal ou valor de substituição?, in Cadernos de Direito Privado, nº 3, págs. 62 e seguintes; Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, vol. I - Indemnização do dano da privação do uso, 3ª edição, págs. 72 e seguintes; Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, págs. 297 e seguinte; Américo Marcelino, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 6ª edição, págs. 359 e seguintes.
Enquadrada nesta jurisprudência, hodiernamente maioritária, que não exige a prova de prejuízos concretos e efectivos, surgiu uma posição intermédia, que julga insuficiente a alegação e prova da paralisação do veículo para que se possa falar de um dano indemnizável, considerando essencial a demonstração da utilização que vinha sendo dada ou que se pretendia dar ao mesmo, de onde se possa inferir a frustração de um propósito real de utilização do veículo, ainda que para lazer do proprietário ou de terceiros. Nas palavras de Graça Trigo (Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Universidade Católica Editora, 2015, p. 60), «[a]o lesado pede-se apenas a prova que utiliza habitualmente a viatura na sua vida diária, presumindo-se que, da respetiva privação, derivem danos efetivos». Neste sentido, vide: os acórdãos do STJ, de 26.05.2009 (proc. n.º 09A0531), de 25.05.2018 (proc. n.º 2172/14.8TBBRG.G1.S1) e de 17.06.2021 (proc. n.º 879/17.7T8EVR.E1.S1); os acórdãos do TRC, de 16.03.2016 (proc. n.º 288/14.0T8LRA.C1) e de 07.09.2021 (proc. n.º 1022/20.0T8LRA.C1); os acórdãos do TRP, de 27.01.2020 (proc. n.º 944/18.3T8PFR.P1), de 10.01.2022 (proc. n.º 602/20.9T8AGD.P1).
Esta é, segundo o ac. do STJ, de 17.06.2021, acima citado, a posição tendencialmente maioritária na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.
Em defesa desta tese, escreve-se o seguinte no último dos acórdãos do TRP antes citados (rel. Manuel Domingos Fernandes):
«A questão da ressarcibilidade da “privação do uso” não pode ser apreciada e resolvida em abstracto, aferida pela mera impossibilidade objectiva de utilização da coisa.
Na verdade, uma coisa é a privação do uso e outra, que conceptualmente não coincide necessariamente, será a privação da possibilidade de uso.
Uma pessoa só se encontra realmente privada do uso de alguma coisa, sofrendo com isso prejuízo, se realmente a pretender usar e utilizar caso não fosse a impossibilidade de dela dispor.
Não pretendendo fazê-lo, apesar de também o não poder, está-se perante a mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica, que, só por si, não revela qualquer dano patrimonial indemnizável.
É que bem pode acontecer que alguém seja titular de um bem, móvel ou imóvel, e apesar de privado da possibilidade de os usar durante certo tempo, não sofra com isso qualquer lesão por não se propor aproveitar das respectivas vantagens ou utilidades, como pode suceder com o dono de um automóvel que o não utiliza ou utiliza em circunstâncias que uma certa indisponibilidade não afecta, ou com o proprietário de um terreno que lhe não dá qualquer utilização.
Bastará, no entanto, que a realidade processual mostre que o lesado usaria normalmente a coisa, para que o dano exista e a indemnização seja devida.
Por isso se tem entendido que não basta a simples privação, em si mesma, sendo necessário ainda que se alegue e prove a frustração de um propósito de proceder à utilização da coisa, demonstrando o lesado que a pretenderia usar, dela retirando utilidades que a mesma normalmente lhe proporcionaria, não fora a privação dela pela actuação ilícita de outrem, o lesante.»
Perscrutando os diferentes entendimentos supra expostos, cremos que a primeira das teses em confronto é tributária de uma visão demasiado restritiva, ou mesmo redutora, do conceito de dano, cingindo-o, na sua vertente patrimonial, a um reflexo meramente orçamental ou contabilístico do acto lesivo.
Em contrapartida, a segunda das teses expostas parece focar-se apenas na ilicitude do acto – isto é, na violação do direito subjectivo de propriedade, por via da afectação, ainda que abstracta, da dominialidade plena inerente a esse direito – desconsiderando a efectiva existência de um dano, equiparando-o à – ou diluindo-o na – própria ilicitude.
Julgamos que esta tese não encontra apoio seguro na nossa lei civil, que erige a ilicitude e o dano como pressupostos distintos da responsabilidade civil, que prevê a possibilidade de dispensa do primeiro (nos casos expressamente consagrados de responsabilidade por factos lícitos), mas que nunca abdica da existência e da prova do segundo. Somos, mesmo, tentados a afirmar que esta consumpção ou absorção do dano pela ilicitude vai ao arrepio da própria evolução doutrinal do instituto da responsabilidade civil, cada vez mais fundada no dano, ao ponto de alguns autores falarem de uma transição do princípio do acto ilícito baseado na culpa para o do acto prejudicial focado em danos.
Neste sentido, Paulo Mota Pinto (Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. I, Coimbra Editora, 2008, pp. 594/596, apud ac. do TRP de 10.01.2022, acima citado) afirma que «o dano só se concretiza ao nível das privações concretas das vantagens que a coisa proporciona e não antecipadamente ao nível da perturbação (ilícita) das possibilidades abstractas de uso que resultam para o proprietário derivadas do «jus utendi et fruendi» inerente ao direito de propriedade. Sustenta este autor que “O dano da privação do gozo ressarcível é, assim, a concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo, e não logo qualquer perda da possibilidade de utilização do bem – a qual (mesmo que resultante de uma ofensa directa ao objecto, e não apenas de uma lesão no sujeito) pode não ser concretizável numa determinada situação”».
A última das teses supra expostas está isenta das críticas apontadas às restantes: não ignora nem é insensível aos prejuízos associados à frustração das utilidades que determinado bem propicia, ainda que essa frustração não se traduza numa perda de rendimentos ou num custo acrescido para o proprietário, mas não abdica da existência de um dano fundante da responsabilidade do lesante.
Nestes termos, aderimos inteiramente a essa tese, na esteira da jurisprudência maioritária no STJ.
Voltando ao caso concreto, tendo-se provado que a autora adquiriu o camião ZM (e o camião XX) para os utilizar na actividade com escopo lucrativo a que se dedica, a sua privação configura um dano indemnizável, ainda que não se apure um concreto dano emergente ou lucro cessante.
Sucede que, apesar de provado o dano, não se apurou o seu valor, pois não ficou demonstrado o valor dos ganhos diários que cada uma das viaturas em causa permitia à autora auferir.
Nestes casos, permite a lei – artigos 661.º do CPC e 565.º do CC – que o tribunal relegue para momento posterior a fixação do quantum indemnizatório, condenando naquilo que se vier a liquidar posteriormente.
O n.º 3, do artigo 566.º, do CC, prevê também a possibilidade de o tribunal fixar uma indemnização com base na equidade. Contudo, esta faculdade refere-se apenas aos casos em que o valor do dano, para além de não estar determinado, seja indeterminável («Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos»). Os danos indeterminados mas determináveis, como sucede com o dano em apreço, submetem-se ao regime do artigo 661.º do CPC. Neste sentido, Vaz Serra, em comentário ao Ac. STJ, de 6 de Março de 1980, RLJ, Ano 114, p. 287 e 288.
Impõe-se, deste modo, alterar o decidido pela primeira instância a este respeito.
5. Em síntese conclusiva, entendemos dever manter a decisão recorrida na parte em que:
- Declarou a caducidade da acção no que respeita ao pedido de indemnização dos danos decorrentes da privação do veículo XX durante os períodos em que o mesmo foi sujeito a reparações;
- Julgou improcedente a acção no que respeita ao pedido de indemnização dos danos decorrentes da mora na entrega do veículo XX.
E entendemos que deve ser alterada a decisão recorrida no que respeita ao pedido de indemnização dos danos decorrentes da mora na entrega do veículo ZM, condenando a ré a pagar à autora o valor, que se vier a liquidar posteriormente, correspondente aos ganhos que a disponibilidade desse veículo teria permitido à autora auferir entre os dias 1 de Fevereiro e 3 de Abril de 2020.
Em face desta alteração, importa condenar ambas as partes nas custas, tanto da acção como da apelação, na proporção de ¾ para a autora recorrente e de ¼ para a ré recorrida (artigo 527.º do CPC).
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IV. Decisão
Pelo exposto, na procedência parcial da apelação, os juízes do Tribunal da Relação do Porto condenam a ré a pagar à autora o valor correspondente aos ganhos que a disponibilidade do veículo Volvo com a matrícula ZM teria permitido a esta auferir entre os dias 1 de Fevereiro e 3 de Abril de 2020 e mantêm a absolvição da ré do restante pedido.

Custas da acção e da apelação por ambas as partes, na proporção de ¾ para a autora recorrente e de ¼ para a ré recorrida.

Registe e notifique.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 21 de Maio de 2024
Relator: Artur Dionísio Oliveira
Adjuntos: João Ramos Lopes
Alexandra Pelayo