Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0410619
Nº Convencional: JTRP00036907
Relator: MACHADO DA SILVA
Descritores: RESCISÃO PELO TRABALHADOR
JUSTA CAUSA
NÃO PAGAMENTO DA RETRIBUIÇÃO
Nº do Documento: RP200405170410619
Data do Acordão: 05/17/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - A recusa de picar o ponto por parte do trabalhador não constitui fundamento legal para o não pagamento da retribuição.
II - O não pagamento da retribuição com aquele fundamento constitui justa causa de rescisão do contrato por parte do trabalhador.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

1. A.......... intentou a presente acção, com processo comum, contra B.........., pedindo que se condene esta sociedade a: 1) reconhecer a rescisão do contrato, por si efectuada, com justa causa e efeitos a partir de 4/9/02; 2) pagar-lhe uma indemnização de € 22.271,42; 3) reconhecer a desconformidade com a realidade da declaração aposta no impresso modelo 346 relativa à causa da cessação do contrato; 4) pagar-lhe a quantia de 9.163,39 euros relativa a remunerações devidas e não pagas; 5) pagar-lhe a quantia de € 837,21, a título de abono de deslocação; 6) pagar-lhe a quantia de € 7.776,26 referentes a diferenças no subsídio de alimentação entre Out. de 92 e Dez. de 01; e 7) pagar-lhe juros à taxa legal.
Alegou, em suma, que rescindiu o contrato de trabalho, sob invocação de justa causa, por carta datada de 2/9/2002 (com fundamento no não pagamento das retribuições de Maio a Agosto de 2002, das férias e do subsídio de férias de 2002, na não ocupação efectiva, na ausência (desde 7/02) de uma mesa ou cadeira para se sentar e no não pagamento do subsídio de deslocação desde Maio de 2002) ao que acrescem os créditos laborais peticionados.
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A ré contestou, argumentando, em suma, que fez um esforço de informatização dos seus serviços e de formação profissional (nesse contexto) a que o autor não foi receptivo. Acresce que determinou a picagem do ponto, o que o autor recusou, não sendo possível, por esse motivo, processar a retribuição do autor. Como o autor não sabia utilizar um computador foram-lhe atribuídas tarefas em consonância não lhe tendo sido retirada a secretária e a cadeira. Pagaram-lhe o subsídio de alimentação de acordo com a tabela em vigor anexa ao CCT que regula o sector. Por carta de 1119102, a ré informou o autor que não aceitava a rescisão e rescindiu ela própria o contrato por abandono do trabalho por parte do autor.
Concluiu pela improcedência da acção e deduziu reconvenção pedindo a condenação do autor no pagamento da quantia de € 2.345,96, acrescida de juros de mora, pelo período de aviso prévio em falta.
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Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e condenando a R.: a reconhecer a desconformidade com a realidade da declaração por si aposta no impresso modelo 346, relativo à causa da cessação do contrato; e a pagar ao autor as quantias de € 4.102,63 (quatro mil cento e dois euros e sessenta e três cêntimos), € 2.344,36 (dois mil trezentos e quarenta e quatro euros e trinta e seis cêntimos), € 837,21 (oitocentos e trinta e sete euros e vinte e um cêntimos) e de € 2.344,36 (dois mil trezentos e quarenta e quatro euros e trinta e seis cêntimos), respectivamente, a título das peticionadas remunerações base, férias e subsídio de férias, subsídio de deslocação e proporcionais, acrescidas de juros, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada prestação até efectivo pagamento, e de uma quantia a liquidar em eventual execução de sentença, no tocante ao subsídio de alimentação (após Jan. de 2002), no restante sendo a R. absolvida do pedido.
Mais se julgou improcedente o pedido reconvencional.
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Inconformado com esta decisão, na parte em que não reconheceu a justa causa para a rescisão co contrato de trabalho, dela recorreu o A., formulando as seguintes conclusões:
1. Resulta da matéria de facto assente que a Ré decidiu, em Maio de 2002, não mais pagar a remuneração, subsídio de deslocação e alimentação ao A.;
2. O que concretizou até à data em que o A. tomou a iniciativa de rescindir o contrato invocando justa causa.
3. A Ré não provou que tal facto não proviesse de culpa sua, pelo contrário, ficou provado que o fez com dolo directo, como retaliação pelo facto de o A. se ter recusado a marcar o ponto, invocando que estava dispensado disso pela própria Ré.
4. O ónus da prova de falta de culpa recai sobre a Ré (art. 799°, n° 1 do Cód. Civil); não se tendo apurado se a recusa do A. em marcar o ponto era ou não legítima, esse non liquet de facto terá de ser julgado contra a Ré;
5. O não pagamento da retribuição (deliberado e por tempo indeterminado) como coacção para um comportamento, pondo em causa a sobrevivência do trabalhador, toma praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
6. O comportamento da Ré, inserido num contexto de redução de efectivos (ponto 32), de retirar ao A., chefe administrativo, o seu posto de trabalho (remetendo-o para "secretárias disponíveis designadamente por baixa dos trabalhadores que as utilizam" (ponto 25), constitui uma atitude gravemente atentatória da dignidade do trabalhador que (mesmo que não tivesse autonomia como causa de rescisão) sempre justificaria, à exaustão, a rescisão do contrato com justa causa.
7. Deve a sentença recorrida ser parcialmente revogada e substituída por outra que dê provimento ao pedido de declaração do despedimento por iniciativa do A. com justa causa, atribuindo-lhe a indemnização correspondente.
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Nesta Relação, o Ex.mo Sr. Procurador da República emitiu o seu douto parecer, no sentido do provimento do recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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2. Factos provados ( na 1ª instância):
1) A ré dedica-se à indústria metalúrgica, na construção de portas de garagem, grades de separação, resguardos de banho e outros;
2) O autor, que começou a exercer as suas funções na sede da ré na Rua..... no Porto, foi admitido ao serviço desta, em Janeiro de 1984, para, sob as suas ordens e direcção, exercer as funções de chefe administrativo;
3) O autor auferia a retribuição mensal de € 1.172,18, acrescida de um subsídio de alimentação (a este propósito, a ré pagou-lhe a quantia mensal de 5.000$00, de Out. de 92 a Maio de 98, e de 7.000$00, de Jun. de 98 a Dez. de 2001);
4) Em 1987, a ré transferiu as suas instalações para ....., V. N. de Gaia, autor inclusive;
5) A ré, para compensar o autor das despesas com o transporte para as novas instalações, atribuiu-lhe um subsídio de transporte correspondente a 43 Km diários percorridos em veículo próprio e retribuídos cfr. a função pública;
6) Em Setembro de 2001, a gestão do estabelecimento da ré foi entregue a C.......... (a gestão diária passou a ser exercida pelo Sr. Dr. D..........);
7) No Porto, o autor entrava às 9 h e saía às 18h 30 m ( almoço das 12 h às 14 h), de 2ª a 6ª feira;
8) Em ...... os funcionários do escritório entravam às 8 h 30 m e saíam às 18 h (almoço entre as 12 h e as 13 h 30 m), de 2ª a 6ª feira,
9) O autor, por causa da sobredita mudança e para o compensar pela deslocação, iniciava o trabalho às 10 h e saía às 18 h (intervalo para almoço entre as 12 h e as 14 h 30 m), de 2ª a 6ª feira;
10) A ré informatizou os seus serviços administrativos e deu formação, nessa área, aos seus funcionários levando a efeito diversas sessões com esse objectivo;
11) O autor não foi receptivo à sobredita intenção da ré (formação e esclarecimento sobre o novo sistema informático) e não assinou a convocatória para esse efeito (doc. de fls 34),-
12) O autor recebeu a comunicação a identificar o novo gestor e a esclarecer o regime de faltas - cfr. consta dos docs. juntos aos autos a fls 35, 36 e 37 (tomou conhecimento assinando o doc. respectivo);
13) O autor nada percebe de informática e não sabe trabalhar com um computador;
14) Os serviços administrativos da ré passaram a estar informatizados em pleno a partir de Janeiro de 2002 e pouco restava que dispensasse o uso do computador (manualmente só o registo de letras, arquivo e conferência de facturas e contas correntes);
15) Neste contexto, as tarefas que o autor desempenhava (designadamente, lançamento de docs.) passaram a ser feitas através de meios informáticos e este ficou sem serviço para realizar (mostrou renitência ao desempenho das sobreditas tarefas manuais);
16) A ré determinou que os seus funcionários procedessem ao registo das suas entradas e saídas - cfr. consta das ordens de serviço n°s 2/2001 (fls 38), 7/2002 (fls 39), de que o autor não quis tomar conhecimento - cfr. fls 40 e 8/2002 (fls 41);
17) A ré fez afixar um comunicado, com data de 5/612002 - cfr. doc. junto aos autos a fls 42 (alertava, além do mais, para a picagem correcta do relógio de ponto);
18) O autor recusou-se a proceder à picagem do relógio de ponto (em Março de 1999 picou o cartão -cfr. fls 47) não o tendo feito designadamente nos meses de Jan., Fev., Março e Abril de 2002 (fls 43 a 46);
19) O autor argumentava, para a sobredita conduta, que a ré o tinha, em tempos, dispensado dessa obrigação;
20) Para saber se o autor se encontrava ao serviço a ré, dado que o autor não marcava o ponto, teria que controlar directamente a sua entrada, saída e presença na empresa (mesmo sem marcação do ponto a ré não estava impedida de processar o salário do autor);
21) Dada a não marcação do relógio de ponto a ré remeteu ao autor a missiva que se encontra junta aos autos a fls 48 (registada com AR - cfr. fls 52 e 53) à qual anexou as três ordens de serviço acima referidas (fls 49, 50 e 51);
22) A ré processava o vencimento dos seus funcionários recorrendo aos cartões de marcação do relógio de ponto designadamente o sistema informático processava os salários levando em conta a informação contida na marcação electrónica desse relógio;
23) A partir de Maio de 2002, porque o autor não procedia à marcação do relógio de ponto, a ré não mais lhe pagou a remuneração e os subsídios de deslocação e de alimentação tendo o autor endereçado à ré a missiva que se encontra junta aos autos a fls 6 (com data de 25/6/02) a reclamar o pagamento dos quantitativos então em débito;
24) As instalações da ré em ..... estiveram em obras entre Abril e Setembro de 2002 tendo, durante as mesmas, sido necessário proceder a adaptações dos serviços administrativos com deslocações designadamente do mobiliário e dos funcionários;
25) Neste contexto, a secretária e a cadeira que o autor utilizava no 1° andar do edifício foram transferidas para o rés-do-chão, por altura do mês de Julho de 2002, passando a secretária referida a ser utilizada por um outro funcionário de nome E.......... (não obstante, o autor sempre poderia recorrer a secretárias disponíveis designadamente por baixa dos trabalhadores que as utilizavam);
26) Nos serviços administrativos da ré outro funcionário de nome F.......... tinha poderes de direcção;
27) À missiva do autor, com data de 25/6/2002, a ré respondeu - cfr. consta do doc. junto aos autos a fls 56 e 57;
28) À carta do autor a rescindir o contrato (cfr. fls. 7 a 9) a ré reagiu cfr. consta dos docs. juntos aos autos a fls 61 a 64 (invocou, além do mais, o abandono do trabalho);
29) A ré emitiu o modelo 346 - cfr. doc. junto aos autos a fls 10;
30) A ré remeteu ao autor a missiva que se encontra junta aos autos a fls 65 (regularização de valores);
31) A partir de 16/8/02 a ré concedeu férias ao autor, não lhe pagou o subsídio de férias e as férias e nada lhe pagou a título de proporcionais;
32) A ré chegou a ter cerca de 200 trabalhadores ao seu serviço (com a nova gestão estes são cerca de 120).
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Fixação da matéria de facto:
A matéria de facto supra transcrita, tal qual foi decidida na 1ª instância, não foi impugnada pelas partes nem enferma dos vícios previstos no art. 712º do CPC, pelo que se aceita e mantém.
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3. Do mérito.
O recorrente suscita uma única questão: a existência de justa causa para a rescisão do contrato de trabalho por ele promovida, restringindo o objecto do recurso a um único fundamento: o não pagamento das remunerações.
Na verdade, um dos comportamentos da entidade patronal susceptível de constituir justa causa para o trabalhador rescindir o contrato laboral é a "falta culposa do pagamento pontual da retribuição na forma devida" (art. 35º, nº 1, a), do DL 64-A/89, de 27 de Fevereiro).
Tal conduta da entidade patronal permite ao trabalhador fazer cessar imediatamente o contrato de trabalho, para além de lhe conferir o direito de exigir a indemnização a que refere o art. 36º do mesmo diploma. Facilmente se compreende a justificação da atribuição aos trabalhadores desses direitos, considerando -a natureza da falta, violadora da principal obrigação do empregador, e lesante de valioso interesse do trabalhador, aquele que lhe permite fazer face às suas mais prementes necessidades.
No entanto, a lei não se satisfaz com o puro e simples incumprimento desta obrigação. Mais exige que o incumprimento seja imputável à entidade patronal, a título de culpa, e que, na situação concreta, não seja exigível ao trabalhador a manutenção do vínculo. (arts. 35º, nºs 1, a), e 4, e 12º, nº 5, do DL 64-A/89).
Exige-se, assim, a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- A falta de pagamento da retribuição devida (elemento objectivo).
- A existência de nexo de imputação desse incumprimento a culpa da entidade patronal. (elemento subjectivo),
- que o comportamento da entidade patronal origine situação de imediata impossibilidade de manutenção do vínculo contratual, tornando, por parte do trabalhador, inexigível o continuar ligado à empresa a que está vinculado.
No caso concreto, é pacífico que se verifica o requisito objectivo, ou seja, que a R., a partir de Maio de 2002, não mais pagou ao recorrente as remunerações mensais.
No tocante ao segundo requisito, a existência de culpa no não pagamento das remunerações, contrariamente à decisão recorrida, entendemos que a resposta deve ser afirmativa.
A culpa da recorrida no não pagamento pontual das retribuições devidas ao A. não foi por ela afastada, conforme lhe competia (art. 799º, nº 1, do CC), antes se revelando intensa e carecida de qualquer justificação.
Por um lado, o sistema informático introduzido, tal como ficou provado, não impedia o processamento das retribuições devidas ao trabalhador, ainda que este não usasse o relógio de ponto.
Por outro lado, sendo a retribuição a única fonte de rendimento do trabalhador e a sua garantia de subsistência e do seu agregado familiar, justificativa da existência de uma especial tutela jurídica – continuando a ser devida relativamente a certos períodos em que não há trabalho efectivo (férias, feriados e faltas justificadas) – tal protecção mais se acentua, quando,como sucede no caso concreto, em que ao trabalhador, tendo prestado serviço efectivo, é-lhe, no entanto, retirada a remuneração devida, com fundamento no não cumprimento de uma formalidade interna, ainda que constante de uma ordem da entidade empregadora.
Tal decisão da R. representa uma violação directa dum princípio constitucional, enunciado no art. 59º, nº 1, alínea a), da Constituição, (“todos os trabalhadores têm direito à retribuição do trabalho...”), violando igualmente o disposto no art. 19º, alínea b), da LCT (que contempla o dever de pagar ao trabalhador a retribuição...).
Mais grave ainda: a decisão da R., ao determinar, em relação ao A., a perda de retribuição, traduz afinal a aplicação de uma sanção disciplinar abusiva, quer por não contemplada na LCT (cfr. art. 27º, nº1) quer por não ter sido precedida de procedimento disciplinar (cfr. art. 31º).
Sendo certo que a conduta do recorrente, ao desobedecer a ordens legítimas da recorrida, integrava uma infracção disciplinar, nos termos do art. 20º, nº 1, alínea c), da LCT, aliás reiterada, incumbia àquela o exercício do poder disciplinar sobre o trabalhador, dentro dos limites legais.
Tal seria a conduta adequada de um empresário “normal”.
Optando a recorrida pela via da acção directa, ilícita, decretando a perda da retribuição devida, sem dificuldade se conclui que tal conduta da R. em relação ao A. atingiu-o na sua honra e dignidade profissional, em grau elevado, bem justificando a rescisão por ele assumida.
Na verdade, o recorrente ocupava dentro da empresa recorrida uma posição que tem de ser considerada como quadro superior, de muita responsabilidade e confiança – “desde 1984 era chefe de serviço administrativo”.
Aquela perda da retribuição, conjugada com a retirada pela R. ao A. da secretária e cadeira que utilizava – medida esta também claramente atentatória do seu brio profissional – devem ser consideradas globalmente, aliás tomadas no mesmo período de tempo, entre Abril e Setembro de 2002, por forma a concluir pela gravidade de tal comportamento da R., impossibilitando a manutenção do vínculo laboral.
Nos termos dos arts. 36º e 13º, nº 3, da LCCT, a rescisão do contrato de trabalho com justa causa confere ao recorrente o direito a uma indemnização, no montante de € 22.271,42 ( € 1.172,18 x 19 anos de antiguidade até à data da cessação ).
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4. Atento o exposto, e decidindo:
Acorda-se em conceder provimento ao recurso e, revogando a sentença recorrida, na parte ora impugnada, declara-se com justa causa a rescisão promovida pelo A., condenando-se a R. a pagar-lhe a indemnização de € 22.271,42 (vinte e dois mil duzentos e setenta e um euros e quarenta e dois cêntimos).
Custas pela recorrida.
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Porto, 17 de Maio de 2004
José Carlos Dinis Machado da Silva
Maria Fernanda Pereira Soares
Manuel Joaquim Ferreira da Costa