Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
99/21.6TEPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCURSO ENTRE CULPA E RISCO
CULPA DO LESADO
Nº do Documento: RP2024031899/21.6TEPRT.P1
Data do Acordão: 03/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em ação emergente de acidente de viação, não se pode considerar cumprido o ónus de impugnação especificada previsto no art. 640.º/1 al. a) do CPC – que impõe a individualização pelo recorrente dos concretos pontos de facto incorretamente julgados – com o simples ataque genérico dirigido à motivação da decisão de facto constante da sentença no tocante à dinâmica do sinistro, alegando-se não poder ser dada como provada uma versão do mesmo, sem a individualização concretizada de cada um dos pontos de facto elencados na matéria de facto dada como provada na sentença relativamente a tal dinâmica.
II - De acordo com a interpretação atual do art. 505.º CC, é admissível o concurso entre a culpa do lesado e o risco inerente à utilização do veículo automóvel, de tal modo que a responsabilidade do detentor do veículo só é excluída quando o sinistro for devido exclusivamente (com ou sem culpa deste) ao lesado.
III - Não se tendo apurado qualquer atuação culposa do condutor do veículo, entende-se que o lesado – uma criança – provoca de forma exclusiva o acidente estradal ao efetuar a travessia da estrada, em correria, tendo o embate com o automóvel ocorrido, não com parte da frente (ou lateral frente) daquele – situação em que poderia questionar-se a atenção do condutor ao obstáculos que se lhe deparassem ou até a adequação da velocidade às caraterísticas do local - , mas já na parte traseira (lateral direita), junto ao rodado e respetivo guarda-lamas, o que concita a conclusão segundo a qual foi o peão que abalroou o automóvel e não o contrário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 99/21.6T8ETR.P1

Sumário do acórdão proferido elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
…………….
…………….
…………….



*


Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

Relatório

AUTOR: AA, menor, residente na Rua ..., ..., ..., aqui representado pelos seus pais.

RÉ: A..., S.A., (B...), com Sede, Av. ..., Lisboa.

Por via da presente ação declarativa, pretende o A. a condenação da Ré[1] a pagar-lhe a quantia de € 23.763,16, sendo € 3.763,16, a título de indemnização por danos patrimoniais e € 20.000,00, por danos não patrimoniais. Mais pretende juros moratórios desde a citação até integral pagamento, acrescidos de 5% desde o trânsito em julgado da sentença, nos termos do n.º 4 do art. 829.º-A do Código Civil. Inicialmente, formulou pedido de condenação no valor que viesse a ser apurado como compensação pelo dano biológico, dano estético e quantum doloris, tendo vindo a concretizar tal pedido por articulado de 7.6.2023 para a quantia de € 4.350,00.

Fundamentando tal pedido invocou acidente de viação – atropelamento – do qual foi vítima e que terá ficado a dever-se à condução do segurado da Ré que o atingiu quando o mesmo caminhava pela berma da rua. De tal sinistro resultaram lesões físicas para o A., mormente fratura da perna direita, as quais demandaram internamento hospitalar com posterior necessidade de aplicação de gesso. No acidente foram ainda danificados bens materiais do A., nomeadamente os óculos e vestuário. O A. sentiu dores e mantém sequelas em resultado daquelas lesões.

Entre o mais, já decidido nos autos, a Ré defendeu-se por impugnação, afirmando ter o sinistro sido causado pelo A. que, inesperadamente e a correr, surgiu de um caminho particular, sito à direita da rua por onde seguia o automóvel, assim iniciando a travessia desta rua, quando o veículo se achava a escassos quatro ou cinco metros de distância. O peão, de baixa estatura, atentos os seus sete anos de idade, não era visível para o condutor por se achar encoberto pelo muro e vegetação do imóvel localizado na esquina entre o caminho particular de onde provinha a criança e a rua por onde circulava o segurado da Ré. Os responsáveis pelo sinistro são, assim, os pais do menor pois permitiram que procedesse à travessia da estrada desacompanhado de um adulto. Refere, por isso, a presunção de culpa emergente do disposto no art. 491.º do Código Civil (CC).

Realizado julgamento, veio a ser proferida a sentença datada de 22.11.2023, julgando a ação improcedente e absolvendo a Ré do pedido.

De tal absolvição recorre o A., visando a sua revogação e a procedência da ação, com base nos argumentos que assim concluiu:
1. Consta do Ponto 9 dos fatos dado como provados:

(…)

2. Salvo melhor opinião, fica-se sem saber em que local se deu o embate entre o veículo e autor.

3. Até porque perante tal factualidade dada como provada, nos parece que afinal de contas, o embate foi no meio da via, o que não se pode concordar, nem faz qualquer sentido face às regras da experiência comum, simplesmente porque, como se diz na gíria «não bate a bota com a perdigota».

4. Partindo deste pressuposto – embate no meio da via -, viria o condutor com excesso de velocidade? Viria distraído com alguma coisa? O Autor aparece na estrada – no meio, supostamente – mas o carro não bate de frente ao mesmo?

5. Mas sim, atinge-o com a lateral de trás na perna direita. Então o Autor, estava de frente ou de lado?

6. Salvo melhor opinião, tais questões deveriam ter sido esclarecidas, tendo sido violado o princípio do dispositivo.

7. O Tribunal a quo, certamente por não ter ficado convencido com as versões apresentadas pelo condutor a sua acompanhante, oficiosamente, decidiu ouvir o menor (veja se o despacho proferido em audiência de discussão e julgamento datado de 11/07/2023)!

8. Após esta audição, o Autor, por considerar imprescindível para a descoberta da verdade material pediu que fosse realizada perícia ao modo de produção do sinistro automóvel; que foi, friamente indeferido.

9. Com a audição do menor – vítima do acidente – terá o tribunal a qual ficado satisfeito com a produção da prova?

10. O depoimento do autor, como adiante analisaremos, foi no sentido de definir o local do embate como a berma da estrada – ONDE TODAS AS TESTEMUNHAS DIZEM QUE ELE ESTAVA QUANDO O ABEIRARAM; porém o Tribunal não considerou isso como provado, absolvendo a Ré!

11. IMPUNHA que o Tribunal a quo realizasse todas as diligências de prova! Porque se impõe ao Tribunal a descoberta da verdade material em óbice aos princípios do inquisitório e do dispositivo!

12. Conforme consta do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo 4322/21.9T8LRA-A.C1 (…)

13. Assim, não se entende como se pode dar como provado que:

5- A ladear a habitação indicada em 3) existe um muro com altura de aproximadamente 1,50 metros e um gradeamento em metal implantado sobre o respectivo topo, com altura de cerca de 40 cm, possuindo esse prédio um logradouro na frente, onde se mostram implantadas plantas e arbustos;

6- Devido sobretudo ao ângulo recto que a via faz com o caminho aludido em 3), os condutores que circulassem na Rua ..., no sentido de marcha ..., tinham dificuldade de avistar o movimento de peões, e sobretudo de crianças, que transitassem no sobredito caminho particular em direcção à Rua ...;

7- De igual forma, qualquer condutor ou peão que circulasse no dito caminho tinha idênticas dificuldades de visibilidade para o trânsito que passava na Rua ..., nomeadamente no sentido de marcha ... – ...;

8- Não obstante, era possível aos peões provindos do mencionado caminho particular que pretendessem entrar na Rua ..., ou atravessá-la, avistar esta última rua, para ambos os lados e numa extensão de pelo menos 50 metros, caso parassem à entrada do mencionado entroncamento e olhassem para ambos os lados;

14. E não comprovado:

a) Que, no momento aludido em 9), o A. saía de sua casa (nº ...0 da Rua ...) e, como faz habitualmente, deslocava-se a casa da sua avó, sita no local indicado em 3);

b) Que, nesse momento, o A. caminhava na berma da rua, junto ao muro da casa nº ...9 da Rua ..., quando foi atingido pelo automóvel JF-..-.. que não deu a devida distância ao circular;

c) Que o embate se deu após a curva do muro da casa nº ...9;

15. Isto porque, conforme consta das fotografias números 3 e 4 junta aos autos com a contestação apresentada pela Ré, o muro é baixo e a grade é esburacada.

16. Tanto que, o Tribunal a quo nem sequer foi ao local!

17. Veja-se que na fotografia 4 junta pela Ré, pode-se visualizar uma criança pela mão e uma mulher adulta; e, o muro dá pela cintura da mulher adulta!

18. A carteira BB afirma igualmente, durante o seu depoimento, que o muro com grade não lhe passa o peito e que os arbustos sempre foram baixos (10:51-12:20m).

19. Reitera-se: a grade é esburacada e se nos colocarmos na posição do sentido da faixa de rodagem, o ângulo é bem visível, como se pode ver nas fotografias juntas pela Ré na sua contestação.

20. Até porque a casa n.º ...9 arredonda na curva; as regras da experiência comum dizem-nos que o entroncamento é bem visível para quem vem com a devida atenção na estrada e sem excesso de velocidade.

21. Quanto à dinâmica do acidente, o Tribunal a quo fundamenta-se no seguinte:

- Por outro lado, quanto ao motivo do atropelamento, foi também a própria vítima a declarar no hospital, no próprio dia dos factos, que saiu de casa da avó “a correr”, não se lembrando bem do que sucedeu a seguir, mormente “se embateu no carro ou se foi projectado” – cfr. relatório de urgência junto pelo A. sob a ref. 12528554 (doc. 5); - Daí que a versão apresentada em audiência pelo menor, a asseverar que, no momento do embate, seguia em passo vagaroso, não pôde convencer o tribunal; e como se pode dar como provado que:

5- A ladear a habitação indicada em 3) existe um muro com altura de aproximadamente - No mesmo sentido da versão apresentada pela Ré (e sustentada em audiência, detalhadamente, pelas testemunhas CC e DD, que seguiam na viatura automóvel) foi o testemunho de BB, funcionária dos CTT que contactou com o A. AA instantes antes do atropelamento, a qual, de forma plenamente isenta, deu conta de que o menor saiu a correr de casa da avó (onde ambos se encontravam) em direcção a casa da mãe, após o que a testemunha ouviu o estrondo do embate e se apercebeu que o menor havia sido atropelado;

- Por outro lado, resulta das regras de experiência comum (corroboradas em audiência pela testemunha EE, perito averiguador) que o ângulo formado pelo entroncamento junto ao qual se deu o acidente impede uma boa visibilidade ao condutor que circule no sentido de trânsito do veículo JF, relativamente a quem provenha do caminho particular sito à direita, mormente se se tratar de uma criança de 7 anos de idade (cuja altura média não deverá ultrapassar 1,20 metros, ou seja, inferior à altura do muro da habitação junto à qual ocorreu o embate – cfr. facto provado sob o nº 5);

Das mesmas regras de experiência decorre que semelhante dificuldade existirá para quem circule no aludido caminho particular e se apreste a entrar na estrada principal, bem como se conclui que será possível perceber o trânsito que circula naquela artéria, e em vasta extensão, a quem pare à entrada do dito entroncamento;

22. Então, o Tribunal sustenta que o Autor vinha a correr e como tal é culpado do acidente, pelo que foi dito à entrada do Hospital pela mãe que nada viu, pois apenas chegou ao local do acidente depois do mesmo ter acontecido conforme consta na sentença. (01:07-01:14m).

23. Assim, como sustenta também no testemunho de BB, a Carteira, que segundo o Tribunal a quo, atestou que o Autor vinha a correr. (02:18-02:30m)

24. Não viu nada quanto ao acidente porque estava de costas para a rua (de frente para a casa da avó do menor, como a mesma afirma) mas sabe que o Autor ia a correr. (03:22-03:30m)

25. Não pode merecer credibilidade nem uma situação nem outra!

26. Primeiro porque a mãe nada viu; depois, porque tanto o autor com a sua mãe – sendo isso mais que notório para o homem medio – estavam em choque com o que aconteceu.

27. Quanto à dinâmica do acidente, o condutor do veículo disse que quando a GNR chegou os bombeiros já estavam com o menino e que depois de ocorrer o embate, ele e a namorada levaram o menino para a berma do lado direito, junto ao muro, ficando a namorada com o menino ao colo. (16:53)

28. Mas, a namorada do condutor, a testemunha DD, refere que o menino estava caído junto ao muro da casa n.º ...10:18- 10.22m), não obstante ter dito que o Autor «Deu um salto para a estrada» ( 01:22m) «galgou à estrada» (09.09m) o embate é no meio da estrada perto da tampa de saneamento (09.40m)

29. A via tem largura de 6 metros e configura-se numa reta de 50m – cfr fatos provados.

30. Olhando para as fotografias juntas com a contestação da Ré, qual a explicação para a tese de que o embate é na tampa de saneamento e depois vai a criança parar à berma? Claro excesso de velocidade e culpa do condutor, se enveredarmos por esta tese!

31. Mas urge questionar: Como é que uma criança, de acordo com as regras da experiência comum, vem a correr de um beco – se vem a correr vem no meio da estrada e como tal, cai por terra a tese de que o autor estava tapado pelo muro - e salta para o meio da estrada!?

Não merece credibilidade esta tese!

32. Ademais, tal sustentação peca por insipiente e insuficiente, sendo incapaz de dar certezas na descoberta da verdade material, limitando-se a imputar os factos à regras da experiência comum, mas sem sustentação clara!

33. Sendo a sentença nula por violação da alínea b) do n.º 1 do artigo 668 do CPC.

34. Até porque o depoimento do condutor CC é contraditório com o depoimento da testemunha DD que ia dentro do carro e com o do Autor; nem podemos deixar de dizer que o seu depoimento foi sendo dirigido pelo mandatário da Ré (A título de exemplo, o mandatário fazia as perguntas tendenciosas e a testemunha respondia, «pois» «era» - 06:56m)

35. E mais: o croqui da GNR foi feito tendo por base apenas o depoimento do condutor e das pessoas que ali estavam, como o mesmo refere no seu depoimento. (02:22-02:36m

36. O condutor repetiu que o salto dado pelo miúdo para a estrada porque vinha a correr para chamar a mãe e que conforme o viu na estrada, se desviou, embatendo a criança na porta de trás do carro, do lado direito, com o peito e que ao bater na viatura, a perna lhe entrou por baixo do carro e o carro lhe passou por cima. (05:27 - 06:15m); Dizendo que apanhou o miúdo quase ao pé de uma tampa de saneamento. (06:48-06:58m)

37. Depois, em clara contradição, disse que não bateu na criança com a parte da frente do carro, (06:15-06:42m) mas sim, que a roda de trás direita foi a que passou por cima do miúdo. (08:05-08:10m)

38. Mas, a namorada do condutor, a testemunha DD, refere que o menino caiu junto ao muro da casa n.º ...9 (10:18- 10.22m)

39. Olhando para as fotografias juntas com a contestação da Ré, qual a explicação para a tese de que o embate é na tampa de saneamento e depois vai a criança parara a berma? Claro excesso de velocidade e culpa do condutor, se enveredarmos por esta tese!

40. Urge questionar: Como é que uma criança de 9 anos salta para o meio da estrada? Como é que uma criança, de acordo com as regras da experiência comum, vem a correr de um beco – se vem a correr vem no meio da estrada e como tal, cai por terra a tese de que o autor estava tapado pelo muro - e salta para o meio da estrada!? Não merece credibilidade esta tese!

41. Atentemos ao depoimento do Autor (e lembramos que foi oficiosamente que o Tribunal a quo o decidiu ouvir), que refere que ia a sair de casa da avó para ir para casa da mãe, saiu do caminho para a valeta e que o senhor veio e o atropelou. (01:22-01:33m) 42. Mais referiu perentoriamente que fez esse trajeto a caminhar e não a correr, (02:40-02:52m) dizendo que ia pela valeta e que ao virar no cruzamento, o carro vinha do seu lado direito (primeiro duvidou e disse esquerdo) e lhe apanhou o pé direito. (03:19-04:03m)

43. Aliás, o aqui Recorrente, confrontado com as fotos, indicou o lugar onde ocorreu o embate junto ao muro da casa n.º ...9 e disse que o carro ia «rente às casas». (04:56-05:17m) e (06:14-06:35m) e que o carro só lhe apanhou o pé direito (05:19-05:29m) e que estava numa posição de lado e que o «senhor do carro» ainda se tentou desviar dele. (09:33-09:55m)

44. E mencionou de forma bem clara, não obstante o mandatário lhe perguntar «se tinha falado com alguém, sic» para ver se o mesmo se contradizia, que quando viu o carro, este já vinha perto. Além disso, disse que o carro vinha depressa. (07:14-07:31m)

45. Também disse que, depois de lhe embater, o carro foi parar ao outro lado da rua e que as primeiras pessoas a irem ter com ele, depois do embate foram «a mulher que vinha no carro com ele», namorada do CC, depois o padrasto e a avó. (07:58-08:41m)

46. Ora seguindo a tese do AA vir a correr, o embate não seria de frente e não do lado direito?

A rua não se atravessa de frente?

47. Face ao exposto, a sentença enferme de nulidade ao abrigo artigos 195º, do CPC e 607.º e 615.º, n.º 1, al. d) do C.P.C. e o artigo 20º da CRP,

48. Mas, caso assim não se entenda, não pode prover a tese de que o Autor salta para o meio da estrada e é exclusivamente responsável pela produção do sinistro, mas sim, a tese de que o mesmo vem na rua, junto à casa n.º ...9 e é atropelado pelo condutor do veiculo que dá uma “guinadela” ao carro para se desviar e a roda de trás do carro bate-lhe na perna direita.

49. Com efeito, existe a obrigação de indemnizar por parte da seguradora, porque preenchidos os pressupostos patentes no artigo 483º do Código Civil. 50. Princípios jurídicos violados: princípio da imediação; princípio do dipositivo, princípio do inquisitório

51. Normas jurídicas violadas: artigos 264, n.º 3 do CPC artigo 490º do CPC nº1, artigo 411º do CPC.

Contra-alegou a Ré, opondo-se à procedência do recurso.

Objeto do recurso:

- da nulidade da sentença;

- da impugnação da decisão de facto e dos ónus decorrentes do disposto no art. 640.º CPC;

- da responsabilidade civil da Ré.

FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentos de facto

O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1- No dia 4 de julho de 2019, pelas 16:21 horas, CC conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula JF-..-.., a si pertencente, pela hemi-faixa de rodagem direita da Rua ..., em ..., no sentido de marcha ...;

2- A referida artéria possui dois sentidos de marcha;

3- Aquele condutor estava a passar junto ao número de polícia ...9, onde a referida artéria configura um entroncamento, posto que nela conflui, pelo lado direito, atento o sentido de marcha ..., o caminho particular denominado Caminho ..., ao fundo do qual reside a avó materna do A. AA;

4- Nesse local, a Rua ... desenvolve-se em reta com mais de 50 metros de extensão e a respetiva faixa de rodagem, constituída em alcatrão, apresenta uma largura de cerca de 6 metros, não sendo dotada de bermas nem de passeios para peões;

5- A ladear a habitação indicada em 3) existe um muro com altura de aproximadamente 1,50 metros e um gradeamento em metal implantado sobre o respetivo topo, com altura de cerca de 40 cm, possuindo esse prédio um logradouro na frente, onde se mostram implantadas plantas e arbustos;

6- Devido sobretudo ao ângulo reto que a via faz com o caminho aludido em 3), os condutores que circulassem na Rua ..., no sentido de marcha ..., tinham dificuldade de avistar o movimento de peões, e sobretudo de crianças, que transitassem no sobredito caminho particular em direção à Rua ...;

7- De igual forma, qualquer condutor ou peão que circulasse no dito caminho tinha idênticas dificuldades de visibilidade para o trânsito que passava na Rua ..., nomeadamente no sentido de marcha ... – ...;

8- Não obstante, era possível aos peões provindos do mencionado caminho particular que pretendessem entrar na Rua ..., ou atravessá-la, avistar esta última rua, para ambos os lados e numa extensão de pelo menos 50 metros, caso parassem à entrada do mencionado entroncamento e olhassem para ambos os lados;

9- No apontado circunstancialismo, quando circulava em frente à casa com o número de polícia ...9, e no momento em que estava prestes a passar pelo sobredito caminho particular, situado à sua direita, o condutor do JF foi surpreendido pelo aparecimento súbito do menor AA, nascido em ../../2012, o qual, vindo sozinho a correr do referido caminho particular (proveniente da casa da avó), de zona mais próxima ao muro mencionado em 5), iniciou a travessia da Rua ... da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha ..., sem ter olhado para ambos os lados da Rua ..., de modo a certificar-se de que podia efectuar o atravessamento sem perigo;

10- O condutor do JF ainda desviou a trajetória do veículo para a sua esquerda, porém não lhe foi possível evitar o embate entre a lateral traseira direita do JF, junto ao rodado e respetivo guarda-lamas, e o pé e perna direitos do sobredito menor, o que ocorreu junto à tampa de saneamento existente naquele entroncamento (no lado direito do sentido de trânsito do automóvel);

11- Antes de sair do referido caminho particular, o A. AA não era avistável para o condutor do JF, pois o menor tinha apenas 7 anos de idade (e altura correspondente) e estava encoberto pelo muro e respetivo gradeamento da casa com o nº de polícia ...9;

12- Após o embate, o A. AA ficou caído no chão junto ao muro da casa nº ...9, a chorar compulsivamente;

13- O A. deu entrada no Centro Hospitalar de Aveiro no dia 4 de julho de 2019, com fratura dos ossos da perna direita e feridas abrasivas no tornozelo e pé homolateral;

14- Esteve internado no hospital até dia 13 de julho seguinte, mantendo seguimento em consulta externa de ortopedia;

15- Durante o internamento, houve a formação de bolhas na parte posterior da perna, o que lhe causou dores, tendo-lhe sido feito penso na extensão de toda a perna;

16- Ficou com perturbações no sono, sonhando constantemente com o sinistro automóvel, bastante desanimado e com medo;

17- Deixou de brincar com os seus amigos durante o período de imobilização;

18- Após a alta médica do Hospital de Aveiro, o A. manteve gesso e necessidade de fazer penso diariamente;

19- Foi a consulta de ortopedia nos dias 28 de agosto, 18 de setembro e 16 de outubro de 2019;

20- O A. consegue correr e saltar sem limitações;

21- Mantém marcha normal sem claudicação, consegue apoiar-se em bicos de pés e sem alteração da força muscular;

22- É autónomo nas atividades da vida diária;

23- Apresenta esporádicos episódios dolorosos na perna direita, despertados pelos esforços e quando mantém a mesma posição durante períodos prolongados;

24- Em termos de sequela, apresenta cicatriz nacarada na transição entre os terços proximal e médio da face medial da perna, com 8,5 cm por 1 cm;

25- A consolidação médico-legal das lesões foi fixável em 13 de janeiro de 2020;

26- O período de défice funcional temporário total fixável em 10 dias;

27- O período de défice funcional temporário parcial fixável em 184 dias;

28- Quantum doloris fixável em 4/7;

29- Défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 1 ponto;

30- Dano estético permanente fixável no grau 1/7;

31- Devido ao atropelamento, os óculos de ver do A. foram partidos, tendo a mãe do mesmo gasto € 250,00 na aquisição de óculos novos;

32- A título de tratamentos e medicamentos, o Hospital de Aveiro cobrou à mãe do menor a quantia global de € 3.463,16, que ainda se mostra por pagar;

33- Do acidente em questão resultou que o A. ficou com o vestuário que usava então destruído, nomeadamente as calças, camisola e roupa interior, e perdeu as sapatilhas;

34- Entre a Ré “A..., SA” e CC foi celebrado um contrato de seguro, em vigor à data mencionada em 1), relativamente ao carro ali indicado, titulado pela apólice nº ...62, nos termos constantes da apólice junta pela Ré em sede de contestação, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.

Considerou não provados os factos seguintes:

a) Que, no momento aludido em 9), o A. saía de sua casa (n.º ...0 da Rua ...) e, como faz habitualmente, deslocava-se a casa da sua avó, sita no local indicado em 3);

b) Que, nesse momento, o A. caminhava na berma da rua, junto ao muro da casa n.º ...9 da Rua ..., quando foi atingido pelo automóvel JF-..-.. que não deu a devida distância ao circular;

c) Que o embate se deu após a curva do muro da casa nº ...9;

d) Que o A. ficou com pavor a carros e de andar sozinho na estrada;

e) Que o A. não pode correr como os outros meninos da sua escola, como tanto gostava;

f) Que não consegue jogar à bola, como até então fazia com muito prazer;

g) Que o vestuário e o calçado mencionados em 33) tinham o valor de € 50.

Nos termos do disposto no art. 639.º, n.º 1, CPC, deve o recorrente, nas conclusões recursivas, indicar, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão sendo as conclusões que, de acordo com os nºs 3 e 4 do art. 635.º, delimitam o objeto do recurso.

Iniciam-se as alegações de recurso pela menção de que, ao não se pronunciar o Tribunal pela prova por inspeção ao local requerida pelo A., a sentença padece de nulidade, nos termos dos arts. 607.º e 615.º, n.º 1 d) do CPC (alude-se, ainda, ao art. 20.º da Constituição, norma que, contudo, não contém, em si, qualquer referência a este tipo de nulidade, não se articulando no recurso de forma alguma esta referência ao Texto Fundamental com as demais regras processuais e sua relação com os autos concretos).

Nas conclusões de recurso, o recorrente indica duas situações de nulidade da sentença: a que decorreria supostamente do art. 668.º, n.º 1 al. d) CPC e a que defluiria do disposto nos art. 195.º, 607.º, 615.º 1 d) do CPC, mas sem que aí explicite como fundamento de tal invalidade a ausência de decisão sobre tal pretenso pedido de prova.

Impõe-se, desde logo, observar não se ver a que respeito é invocado o disposto no art. 668.º, norma relativa à reforma dos acórdãos e não à invalidade da decisão, crendo nós dever-se tal referência a lapso.

Depois, as conclusões de recurso amalgamam as menções a nulidades do procedimento processual – art. 195.º - e a nulidades do ato decisório, mormente à regra do art. 615.º/1/d, relativa à omissão de pronúncia.

Supondo que, na sequência das alegações de recurso, se pretende nestas conclusões retomar a alegação de nulidade da sentença com que se inicia o corpo alegatório, sempre diremos não proceder a pretendida nulidade.

O art. 608.º, n.º 2 CPC, impõe se resolvam na sentença todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, mas já Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol., V, p. 143) explicitava que “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação” não significa considerar todos os argumentos jurídicos ou soluções plausíveis de direito, pela simples razão de que o julgador não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art. 5.º, n.º 3).

Embora Anselmo de Castro (Direito Processual Civil, Vol. II, p. 142) estenda a noção de questões a todas as vias de fundamentação jurídica que as partes tenham exposto, a jurisprudência tem seguido o caminho indicado pelo primeiro jurista. Veja-se, por ex., o ac. STJ, de 3.10.2017, Revista n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1 - 1.ª Secção: A expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia.

Também assim o Ac. STJ, de 12.10.2017, Revista n.º 235/07.5TBRSD.C1.S1 - 7.ª Secção: Não incorre em vício de omissão de pronúncia o acórdão da Relação que deixou de apreciar um dos argumentos aduzidos pela recorrente em benefício da pretendida modificação da matéria de facto.

Ora, a não realização de um meio de prova não torna nula a sentença por omissão de pronúncia posto que se não contam entre as questões a resolver na sentença a decisão sobre meios de prova. Tal decisão ocorrerá no decurso da instrução dos autos, constituindo a eventual omissão sobre um meio de prova requerido, quando muito, uma nulidade processual a invocar perante o Tribunal que omite pronúncia, nos termos do art. 195.º CPC, mormente na diligência em que tal omissão ocorre (durante a audiência de julgamento) ou no prazo de 10 dias a contar da mesma.

Não tendo a parte, em devido tempo, confrontado o Tribunal a quo com a ausência de decisão sobre o meio de prova que pretendia ver realizado, consistirá tal omissão numa nulidade procedimental atacável nos termos do art. 199.º CPC, no tempo e modo que daí decorrem.

Por outra parte, e neste caso concreto, é abusiva a referência à omissão deste meio de prova, argumentando o A. que o solicitou quando se verifica que, na realidade, o não fez, tendo sido, ao invés, a Ré a suscitá-lo na sua contestação de 7.5.2021.

É, pois, improcedente a arguição de nulidade da sentença.

No que tange à impugnação da decisão de facto, impõe o art. 640.º, n.º 1 al. c) CPC que, entre as especificações a constar das alegações (corpo alegatório e conclusões[2]), se inclua a indicação da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre a decisão de facto impugnada.

Na situação dos autos, o recorrente parece colocar em causa os seguintes pontos de facto dados como provados e não provados: 5 a 8 provados [conclusão 13] e a) a c) não provados (conclusão 14).

Porém, não indica com exatidão quais os factos que, em seu entender, pretende ver dados como não provados (os pontos 5 a 8?) e/ou como provados [os pontos a), b) e c)?].

Acaso pretenderá se dê como apenas como não provado o que consta provado em 5 a 8? É que, neste caso, subsistem os pontos de facto provado em 9 a 11 os quais constituem, afinal, a descrição factual que importa para apreciação relativa à dinâmica do sinistro e estes factos não se acham impugnados pelo recorrente.

Pretende o recorrente também ver dado como provado o que consta das als. a) a c) não provadas? Isto é, que o sinistro se terá dado como descreve na pi – quando o menor circulava de sua casa (n.º ...0 da Rua ...) para a casa da sua avô?

Se assim é, qual a prova em que se baseia para entender dar como provados estes factos? É que, quanto à prova, as alegações de recurso limitam-se a enfatizar pormenores dos quais não extrai qualquer conclusão no sentido dos factos que pretende ver demonstrados ou não demonstrados: que a grade que acompanha o muro da casa com o n.º 19 (visível nas fotos 3 e 4 juntas com a contestação e também no link geográfico do local[3]) é esburacada, pelo que o entroncamento com a rua que se localiza à direita (atento o sentido de marcha do automóvel) é visível (pontos 36 a 39), assim se ficando sem saber se, afinal, a criança provinha dessa rua que entronca com a Rua ... ou se, ao invés, circulava na berma, vindo do n.º ...0 da mesma rua.

Por outra parte, o mesmo recurso questiona, a esmo, a prova em que o tribunal a quo alicerçou a sua convicção [pontos 43 a 53 – o ponto 54 volta a mencionar a nulidade da sentença por referência a uma norma (art. 668.º/1 b) CPC) que nada tem a haver com tal invalidade – e pontos 56 a 79], questionando a credibilidade dos depoimentos e a sua concatenação entre si, mas sem indicar quais os factos concretos que pretende dar como provados.

Já no ponto 80, que se inicia com a indicação caso assim se não entenda (sem que se compreenda qual o entendimento expressado antes que, quanto a factos, deva ficar dado como provado), então deverá dar-se como provada a tese de que o A. vem na rua (provindo do n.º ...0 e pela berma?), junto à casa n.º ...9, e é atropelado pelo veículo cujo condutor, numa guinadela, se desvia (desvia-se de quê e para onde?), batendo-lhe com a roda de trás do carro (do lado direito, presume-se).

Além de não se especificarem os factos que pretendem sejam dados como provados (ou não provados), ponto por ponto, mesmo a entender-se que, afinal, se pretende ver dada como provada uma tese (e não a demonstração casuística do que foi a realidade histórica do evento) e que esta é, afinal, a constante dos factos não provados de a) a c), ou mesmo que se pretenda apenas dar como não provados os factos dados como provados em 5 a 8, a verdade é que também não se indica no recurso, para cada ponto concreto, qual a prova em que o mesmo assenta, elencando-se a esmo toda a prova em que assenta a motivação de facto da primeira instância, apenas com o fito de, pela negativa, afirmar não poder da mesma extrair-se o que concluiu o tribunal recorrido, mas sem a concretização, positiva, do que dela resulta, afinal, em abono do que consta dos pontos a) a c) não provados.

Ora, para que este tribunal pudesse, com seriedade, debruçar-se sobre a matéria de facto, impunha-se que o recurso indicasse, quanto à prova, quais os exatos factos que deveriam ser dados como provados – os dos pontos a) a c) não provados?) – e que, além disso, especificasse, quanto a cada um deles (e quanto aos pretendidos dar como não provados), a prova da qual resulta a sua demonstração (ou a sua impugnação) ou seja, e em concreto, os testemunhos (com indicação da exata passagem da gravação – art. 640.º, n.º 2 a) CPC ) que afirmaram provir o menor do n.º ...0 da Rua ..., em direção à casa da avô, caminhando pela berma (do lado direito, atento o sentido de marcha do automóvel?) onde teria sido atingido pelo automóvel.

Dito de outro modo: ao invés de apenas desconstruir o raciocínio pelo qual enveredou a sentença recorrida, ao dar como provada determinada matéria (a dinâmica do sinistro), impunha-se que o recorrente, pretendendo ver como não demonstrados determinados factos ou ver como provados factos distintos, indicasse com exatidão quais os factos em apreço, sendo que os indicados, concernentes à configuração do local, podem bem ser dispensados, considerando os que se deram como demonstrados relativamente à forma como ocorreu o acidente, constantes dos pontos 9 a 11, não impugnados. Impunha-se que o recorrente indicasse, em concreto, quais os factos individualizados concernentes à dinâmica do sinistro (para além dos constantes dos pontos 5 a 8, relativos à configuração do local) que deveriam considerar-se como não provados. Mais se impunha, quanto aos factos pretendidos ver dados como provados – os relativos à versão da A. – a indicação das passagens concretas de depoimentos individualizados donde resultasse a demonstração positiva do conteúdo das als. a) a c) dadas como não provadas.

Nada disso foi efetuado no recurso apresentado que, assim, no tocante à impugnação da decisão de facto, se rejeita de imediato.

Com efeito, em ação decorrente de acidente de viação, não pode se considerar cumprido o ónus de impugnação especificada expressamente previsto no art. 640.º/1 al. a) do CPC – que impõe a individualização pelo recorrente dos concretos pontos de facto incorretamente julgados – com o simples ataque genérico dirigido à motivação da decisão de facto constante da sentença no tocante à dinâmica do sinistro, alegando-se não poder ser dada como provada uma versão do mesmo, sem a individualização concretizada de cada um dos pontos de facto elencados na matéria de facto dada como provada na sentença relativamente a tal dinâmica e que se pretende sejam dados como não provados ou lhes seja conferida outra redação, a qual também não surge mencionada.

Os factos a considerar são, assim, os elencados na sentença recorrida.

Fundamentos de direito

O sucesso do recurso, no que tange à alteração da sentença, no sentido da procedência do pedido formulado pelo A., dependeria de eventual a alteração da factualidade dada como provada, não tendo sido bem-sucedida, como vimos, a impugnação da factualidade demonstrada e não demonstrada.

Aliás, mesmo a considerar-se cumpridas as formalidades relativas à impugnação da factualidade dada como provada (os impugnados pontos 5 a 8) – o que não sucedeu– ainda teríamos como provado o que consta dos pontos 9 a 11 cujo conteúdo aponta claramente para a contribuição exclusiva do menor na eclosão do sinistro de que foi vítima, conteúdo que não foi, circunstanciadamente, impugnado pelo recorrente.

Assim, é de manter a sentença recorrida no tocante à fundamentação de direito – segmento da decisão não colocado em causa pelo recurso – a qual assente na culpa exclusiva do menor no sinistro que o vitimou e na contribuição exclusiva deste para o mesmo.

Afirma-se ali:

«o A./ peão AA violou inequivocamente, dessa forma, o art. 101.º, 1, C. Estrada, segundo o qual “os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente”.

Ora, mesmo face à interpretação atualista do art. 505.º CC[4] - que admite a concorrência entre o risco do veículo (art. 503.º CC) e a culpa do sinistrado (art. 483.º/1 e 487.º CC), mormente em caso de vítimas consideradas vulneráveis (como é o caso das crianças) -, sempre teríamos excluída a responsabilidade da Ré porquanto o facto do lesado se releva aqui como causa exclusiva do acidente.

Atente-se, desde logo, ao facto de o menor, com idade já superior a sete anos à data do sinistro, ser já suscetível de juízo de imputabilidade (art. 488.º CC).

Depois, o sinistro foi por si exclusivamente causado, uma vez que esta é uma daquelas situações em que, estando em causa uma criança, a mesma provoca o acidente estradal, ao efetuar a travessia da estrada, em correria , tendo o embate ocorrido, não com parte da frente (ou lateral direita/frente) do veículo – situação em que poderia questionar-se a atenção do condutor ao obstáculos que se lhe deparassem ou até a adequação da velocidade às caraterísticas do local - , mas já na parte traseira (lateral direita) do veículo (matéria não impugnada), junto ao rodado e respetivo guarda-lamas, o que concita a conclusão segundo a qual foi o peão que abalroou o automóvel e não o contrário.

Por esta razão, é de manter a sentença recorrida.

DISPOSITIVO

Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e manter a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.




Porto, 18.3.2024.
Fernanda Almeida
Jorge Martins Ribeiro
Carlos Gil
_________________
[1] Inicialmente, a ação foi instaurada também contra terceira pessoa que foi absolvida da instância por despacho de 6.12.2021.
[2] Cfr. Ac. STJ, de 8.2.2024, Proc. 7146/20.7T8PRT.P1.S1: I – O ónus do artigo 640.º do CPC não exige que as especificações referidas no seu n.º 1 constem todas das conclusões do recurso; II – É admitir que as exigências das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo. 640.º, em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações.
[3] 21 Rua ... - Google Maps
[4] Sobre o sentido desta interpretação e sua importância na responsabilidade civil decorrente de sinistros estradais, com referência a vasta doutrina e jurisprudência, podem ver-se, entre outros, v.g., o ac. STJ, de 5.5.2022, Proc. 4573/17.0T8BRG.G1.S1, acs. STJ, de 30.11.2022, Proc. 1896/20.5T8FNC.L1.S1, de 16.11.2023, Proc. 849/20.8T8PRT.P1.S1. Desta Relação e secção, ac. de 12.9.2022, Proc. 2223/20.7T8VLG.P1 (em cujo sumário, a ora relatora consignou: I - Nos termos do art. 505.º CC, a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo. II - Os beneficiários preferenciais desta responsabilidade são os peões, os ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, carecendo de especial proteção a este nível as crianças, os idosos e outros indivíduos frágeis, estando afastado o risco próprio do veículo se o acidente resultar unicamente do comportamento do próprio lesado, culposo ou não (v.g. o peão atravessa a rua a correr ou fora da passadeira ou quando o semáforo está vermelho para ele). III - Quando se não trate de situação de vulnerabilidade, há que avaliar as circunstâncias de cada sinistro para verificar se a culpa do lesado foi grave ou o único fator do acidente, situação que o ordenamento francês apelida de faute inexcusable, entendida esta como a conduta intencional de gravidade excecional que expõe o seu autor, sem razão justificada, a um perigo do qual deveria ter estado ciente. IV - Encontrando-se o peão a 10 metros de distância da passadeira e sendo noite, avançando repentinamente para o interior da faixa de rodagem, em passo acelerado, sem se certificar do trânsito que se fazia na via, está afastada a responsabilidade pelo risco do veículo atropelante que, circulando a não mais de 40 Kms/hora, foi surpreendido pelo peão na via.).