Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
13295/21.7T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE
ENCERRAMENTO
ATIVO EM DINHEIRO
PARTILHA ENTRE OS SÓCIOS
Nº do Documento: RP2025071013295/21.7T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O apuramento de activo social após o encerramento da liquidação da sociedade não determina que se deva reabrir a matrícula da sociedade e eliminar a inscrição do encerramento da liquidação e da extinção da sociedade.
II - Sendo esse activo composto por dinheiro nada impede os sócios de o partilharem entre si directamente sem necessidade de nomeação de um liquidatário para o efeito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2025:13295.21.7T8PRT.A.P1


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SUMÁRIO:


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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:





I. Relatório:


O Condomínio do Edifício ..., contribuinte fiscal n.º ...84, com sede na Póvoa do Varzim, instaurou execução para pagamento de quantia certa contra A... Lda., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ...33, com sede em Braga.


No decurso das diligências para citação apurou-se que em data anterior à instauração da execução foi inscrito no registo o encerramento da liquidação da sociedade, pelo que a convite do tribunal a exequente requereu e o tribunal deferiu a habilitação, para com eles prosseguir a execução, dos sócios da sociedade, AA, contribuinte fiscal n.º ...35, residente em ..., ..., BB, contribuinte fiscal n.º ...38, residente em ..., Braga; e CC e DD, ambos filhos de EE (antigo sócio da sociedade) e menores à data da cessão de quotas e alteração do contrato de sociedade A..., Lda., em 06/01/1998.


Prosseguindo o processo e realizados actos de penhora e venda de um imóvel da sociedade, a dada altura o agente de execução elaborou «apuramento de responsabilidades/nota discriminativa» no qual, em resultado do excesso do produto da venda, indicou o valor de €58.676,77 a devolver ao executado.


A seguir lavrou cota com o seguinte conteúdo: «Verificada a certidão do registo comercial da sociedade A..., Lda., NIF ...33 constata-se que os sócios possuem a seguinte quota na sociedade - AA - 45%; - BB - 35%; - CC -10%; - DD - 10%. Pelo que, tendo em conta o saldo a devolver de 58.676,77€, cada sócio tem a receber o seguinte: - AA - 26.404,54€; - BB - 20.536,87€; - CC - 5.867,68€; - DD - 5.867,68€.»


Notificados, os sócios CC, DD, BB e AA, vieram declarar nada terem a opor à distribuição do saldo a devolver a cada um dos sócios nos termos referidos pelo agente de execução.


De seguida, o agente de execução notificou o Chefe do Serviço de Finanças de Braga 1 para nos termos do artigo 81º do CPPT, no prazo de 30 dias, reclamar o pagamento de dividas tributárias de que seja devedora a executada A..., Lda. e que não tenham sido reclamadas nem impugnadas.


O Serviço de Finanças remeteu ao agente de execução lista descritiva das dívidas tributárias de que a executada sociedade é devedora à Fazenda Nacional e que não foram reclamadas nem impugnadas, sendo que, posteriormente, nas execuções fiscais correspondentes, efectuou a penhora do remanescente necessário para o pagamento das dívidas exequendas.


Os sócios habilitados AA e BB apresentaram exposição requerendo que a dívida tributária reclamada pela Autoridade Tributária em nome da sociedade A..., Lda. seja declarada prescrita, nos termos do artigo 174º, nº 3 do CSC, que não seja efectuado o seu pagamento e que o valor remanescente, no montante de 58.676,77€, seja devolvido a cada um dos sócios, em conformidade com as quotas de cada um no capital social da sociedade.


O agente de execução e o Ministério Público pronunciaram-se no sentido do indeferimento.


Em 28.03.2025, o Mmo. Juiz proferiu a seguinte decisão:


«[…] Relativamente à declaração de prescrição da dívida tributária, tal como referiu o Ministério Público, não tem este Tribunal competência para apreciação do requerido.

Quanto ao cumprimento do art.º 81.º do CPPT, proceda-se conforme promovido, notificando-se o Sr. A.E. para que solicite à AT a apresentação de auto de penhora, efectuado nos processos de execução fiscal, das referidas quantias - caso o mesmo ainda não tenha sido apresentado.

E tal como promovido, como fiel depositário do remanescente existente nos autos, compete ao A.E. proceder à entrega do remanescente, nos termos do art.º 81.º do CPPT e confirmado por penhora nos processos de execução fiscal, podendo, oportunamente, os liquidatários requerer o que tiverem por conveniente nos respectivos processos de execução fiscal.

Mais dê conhecimento ao Sr. AE do teor do promovido: “(…) consta do registo comercial relativo à sociedade, sob o registo da Ap. .../20081120 - dissolução e encerramento da liquidação, que foi: “Declarada a dissolução e encerramento da liquidação no âmbito do procedimento administrativo de dissolução e liquidação, constante do Av.1 à insc. 1, não tendo resultado do processo nem sido comunicada à Conservatória a existência de activo e passivo a liquidar. Data da Decisão: Novembro 04 de 2008. Data do trânsito em julgado: 18 de Novembro de 2008”.

Ora, o imóvel pertencia à sociedade extinta, pelo que a entrega de eventual remanescente que não seja objecto de penhora pela AT, apenas poderá ser devolvido aos sócios depois do registo de liquidação adicional donde resulte a quantia que reverte a favor dos mesmos”.

Face ao exposto, indefere-se, por falta de fundamento legal, a pretensão dos executados habilitados.»

Notificados, os sócios AA e BB vieram requerer o seguinte esclarecimento: «quando no douto despacho datado de 28.03.2025 refere, na parte final do penúltimo parágrafo “registo de liquidação adicional donde resulte a quantia que reverte a favor dos mesmos”, deverá: a) tal ser entendido no sentido de ser necessário efectuar um registo comercial e, em caso afirmativo, mais se requer que se digne este douto tribunal clarificar em que termos e por quem deverá o mesmo ser promovido (não obstante e pese embora a conservatória do registo comercial seja do entendimento que tal registo não é possível realizar/efectuar, em virtude da extinção da sociedade); b) ou se deverá tal ser entendido no sentido de ser necessário efectuar pela Autoridade Tributária uma liquidação adicional de imposto».


Ainda no prazo legal e sem o anterior requerimento ter merecido despacho, o sócio BB veio interpor recurso de apelação do despacho de 28.03.2025, formulando as seguintes conclusões das alegações de recurso:


[…] 3. O presente processo de execução foi intentado contra a sociedade “A..., Lda.”, tendo o tribunal “a quo” verificado que a mesma se encontrava extinta desde 20.11.2008, com registo de dissolução e encerramento efectuado através da Ap. .../20081120.


4. Face à extinção da referida sociedade, a exequente deduziu incidente de habilitação dos sócios/liquidatários, sendo proferido despacho em 20.04.2022, que habilitou os sócios AA, BB, CC e DD, a prosseguirem na presente execução, ocupando a posição da sociedade executada A..., Lda.


[…] 8. O aqui recorrente, através de notificação datada de 05.02.2025, tomou conhecimento da nota discriminativa de despesas e honorários da Agente de Execução, na qual constava um saldo a devolver de 58.676,77€, a distribuir por cada sócio, nos seguintes termos: AA - 26.404,54€ (quota social – 45%); BB - 20.536,87€ (quota social – 35%); CC - 5.867,68€ (quota social – 10%); DD - 5.867,68€ (quota social – 10%).


9. Por notificação datada de 07.02.2025, a Agente de Execução notificou a Autoridade Tributária, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 81º do CPPT, a qual veio juntar aos autos a listagem das dívidas tributárias e os respectivos DUC’S para efeitos de pagamento, tendo a Agente de Execução notificado as partes para requererem o que tivessem por conveniente.


10. Em resposta, o aqui recorrente e o Executado AA, requereram que: a) fosse declarada prescrita, nos termos do artigo 174º, nº 3 do CSC, a dívida tributária reclamada, ao abrigo do artigo 81º do CPPT, nos presentes autos, pela Autoridade Tributária, em nome da sociedade “A..., Lda.”, e, consequentemente, não seja efectuado o pagamento dos DUCS remetidos à Exma. Sra. Agente de Execução e juntos aos autos com a referência 41702691; b) e que o valor remanescente, no montante global de 58.676,77 euros, referente ao produto da venda do bem imóvel adjudicado, nos presentes autos, fosse devolvido a cada um dos sócios, em conformidade com as quotas que cada um é detentor na referida sociedade, cabendo ao executado AA a quantia de 26.404,54 euros e ao executado BB a quantia de 20.536,87 euros.


11. Na decisão proferida em 28/03/2025, que ora se recorre, foi indeferida, por falta de fundamento legal, a pretensão dos executados habilitados e foi imposta aos sócios a realização do registo de liquidação adicional donde resulte a quantia que reverte a favor dos mesmos” (…).


12. Pese embora o despacho em causa pudesse à primeira vista parecer um pouco ambíguo, é inequívoco que determina a realização de algo que é legalmente inadmissível por falta de enquadramento legal, que é o registo da liquidação adicional, na medida em que a lei não prevê este registo, conforme infra demonstraremos.


13. Ora, a extinção da sociedade ocorrida em 20.11.2008, foi efectuada no âmbito do procedimento administrativo de dissolução e liquidação (registada pela Ap. ... de 20081120), não tendo resultado do processo nem sido comunicada à Conservatória a existência de activo e passivo a liquidar.


14. O bem imóvel adjudicado nos presentes autos, foi penhorado pela Fazenda Pública em 29/05/2008, cuja penhora foi registada pela AP....3 de 2008/05/29, o qual foi objecto de compra em processo de execução fiscal, registada pela AP. ...95 de 2010/01/13 e, posteriormente, a referida aquisição foi cancelada pela inscrição AP....17 de 03/12/2019, com fundamento na anulação da venda em sede de processo executivo.


15. Deste modo, o referido bem imóvel adveio, novamente, à propriedade da sociedade extinta, em 03/12/2019, com base na anulação da referida venda.


16. Verificou-se, assim, a existência de um activo superveniente à extinção da sociedade, o qual não foi sujeito a partilha entre os sócios da sociedade extinta, em sede da sua liquidação.


17. No caso em apreço, aquele activo superveniente já foi reduzido a dinheiro, faltando, agora, proceder à partilha do mesmo (saldo remanescente do produto da venda judicial do imóvel nestes autos de execução).


18. A existência de activo superveniente da sociedade extinta vem regulamentada no artigo 164.º do Código das Sociedades Comerciais.


19. Nestes termos, os antigos sócios adquirirem, por sucessão, os débitos e créditos da sociedade extinta.


20. Aqui chegados, concluímos que a única forma que a lei prevê para distribuir o produto da venda judicial do daquele imóvel pelos ex-sócios (activo superveniente à extinção) é a partilha adicional e não uma liquidação adicional, sendo certo que nem um, nem outro, está dependente de registo comercial.


21. A este propósito, dispõe o artigo 166º do Código das Sociedades Comerciais que “os actos relativos à sociedade estão sujeitos a registo e publicação nos termos da lei respectiva”, remetendo assim este normativo legal para o Código de Registo Comercial.


22. Assim, após análise dos artigos 3º, 9º, 10º e 15º do Código de Registo Comercial, verificamos que, após a extinção da sociedade, aquele normativo legal, não prevê a possibilidade de se requerer o “registo de liquidação adicional”, imposto aos executados, no despacho que ora se recorre e também não faz parte desse elenco, o registo de “partilha adicional”, o que nos leva a concluir que tais actos não estão sujeitos a registo, atento o principio da tipicidade.


23. Ora, o único acto de registo comercial que é possível após a extinção de uma sociedade é o regresso à actividade da sociedade extinta (vide artigo 3º, nº 1, alínea t) do Código de Registo Comercial), o que não é o caso dos autos.


24. Também nos parece evidente que existindo “activo superveniente” após a extinção da sociedade, não é possível fazer renascer uma sociedade extinta e requerer, junto da Conservatória do Registo Comercial, que seja ordenada a reabertura do procedimento administrativo para efeitos de registo de liquidação adicional/partilha adicional do património da sociedade extinta.


25. Nesta senda, atendendo ao estipulado pelo artigo 164.º do CSC e tendo em conta que o activo a partilhar é dinheiro, afigura-se ao aqui Recorrente que mesmo só poderá ser distribuído pelos sócios no âmbito do presente processo executivo.


26. bastando para tal a anuência de todos os sócios, sem necessidade de se realizar qualquer outro acto, máxime, partilha adicional através de documento particular autenticado ou acta, até porque, atenta a extinção da sociedade, tal acto não pode ser objecto de registo comercial.


27. Assim, após o cumprimento do disposto no artigo 81º do CPPT, o saldo remanescente do produto da venda do imóvel, deverá ser entregue aos sócios, na condição de cada um declarar nos autos que nada tem a opor a que aquele valor seja distribuído mesmos em conformidade com a quota social que cada um deles era detentor à data da extinção da sociedade, a saber: AA (45%), BB (35%), CC (10%) e DD (10%).


28. A este propósito, importa referir que os sócios já manifestaram nos autos que nada têm a opor que o saldo remanescente seja distribuído pelos ex-sócios de acordo com a quota social que cada um era detentor à data da extinção da sociedade.


29. Mercê de todo o exposto, o despacho recorrido viola as normas constantes nos arts. 164.º, 156º e 166º do Código das Sociedades Comerciais e ainda dos artigos 3º, 9º, 10º, 15º do Código de Registo Comercial.


30. Assim sendo, a decisão recorrida é ilegal ao impor aos executados o registo da liquidação adicional, quando esta não está legalmente prevista, devendo a decisão ser substituída por outra que defira a entrega aos sócios do saldo remanescente em conformidade com a quota social que cada um era detentor à data da extinção da sociedade, bastando para tal a expressa concordância de todos os sócios a manifestar nos presentes autos, sem necessidade de registo, porque inexigível.


Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, revogado o despacho proferido em 28.03.2025, …, devendo ser substituído por outro que defira a entrega aos sócios do dinheiro remanescente depositado nos autos, em conformidade com a quota social que cada um era detentor à data da extinção da sociedade, bastando para tal a expressa concordância daqueles a manifestar nos presentes autos, sem necessidade de registo, porque inexigível, fazendo-se, assim, a acostumada Justiça!


Não consta que tenha sido apresentada resposta.


Após os vistos legais, cumpre decidir.





II. Questões a decidir:


As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se tendo o encerramento da liquidação da sociedade executada sido inscrito no registo o remanescente do produto da venda de um imóvel da executada pode ser restituído já aos respectivos sócios ou isso apenas pode ter lugar se e depois de estes «registarem a liquidação adicional donde resulte a quantia que reverte a favor dos mesmos».





III. Fundamentação de facto:


Importam para a decisão a proferir os factos processuais que consta do relatório.





IV. Matéria de Direito:


Na presente execução para pagamento de quantia certa foi vendido um imóvel que pertencia à sociedade comercial devedora (rectius, que foi penhorado antes da extinção da sociedade à qual pertencia, e, apesar de ter sido vendido numa execução fiscal, em virtude da anulação dessa venda tornou à titularidade da respectiva proprietária, a sociedade então já extinta).


O produto dessa venda permitiu pagar o crédito da exequente e as custas da execução, havendo ainda um remanescente a devolver à executada.


Uma vez que em virtude do encerramento da respectiva liquidação a sociedade já havia sido extinta (mesmo antes da instauração da execução, motivo pelo qual esta correu já contra os sócios), coloca-se a questão de saber se para restituir esse remanescente aos sócios na proporção da respectiva quota no capital social da sociedade é necessário estes reinscrevam no registo comercial a liquidação da sociedade e demonstrem que no resultado da liquidação a distribuir cabe esse montante.


A decisão recorrida entendeu que sim, mas cremos não dever acompanhar tal decisão.


As sociedades apenas existem como tais, isto é, como entidade dotadas de personalidade jurídica, a partir da data do registo definitivo do contrato através do qual são constituídas (artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais). No outro polo, as sociedades extinguem-se, cessando a respectiva personalidade jurídica, personalidade judiciária e capacidade de gozo, com o registo do encerramento da respectiva liquidação (artigo 160.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais).


A extinção da sociedade caracteriza-se por dois momentos fundamentais: a dissolução e a liquidação.


A primeira consiste na circunstância que determina a entrada da sociedade de imediato em processo de liquidação, não obstante a sociedade conservar a personalidade jurídica e, em regra, continuarem a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas (artigo 141.º e seguintes, e 146.º do Código das Sociedades Comerciais). O contrato que deu origem à sociedade e mesmo a sociedade não se extinguem ipso iure com a dissolução. A dissolução modifica o estado da sociedade, a qual entra em liquidação, a caminho da extinção.


Para Raúl Ventura, in Dissolução e Liquidação das Sociedades. Comentário das Sociedades Comerciais, 4.ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 1993, pág. 16-17, a dissolução é a «modificação da relação jurídica constituída pelo contrato de sociedade, consistente em ela entrar na fase de liquidação. Como modificação, a dissolução é um efeito e não um fato jurídico. Modificação e não extinção. A sociedade, como relação e como pessoa colectiva, não se extingue quando se dissolve. Outros factos jurídicos deverem produzir-se para a que extinção se verifique.».


A liquidação, para além de ser um estado ou situação jurídica da sociedade, consiste no conjunto de actos que têm por objectivo apurar o activo e o passivo social, converter o activo em valores líquidos para pagar o passivo pelo qual aquele responda e para cujo pagamento seja suficiente, e, se houver e na medida em que houver, proceder à entrega do restante aos sócios a título de reembolso das entradas efectivas e de distribuição de lucros, se for o caso.


Segundo Menezes Cordeiro, in Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2011, pág. 1150, a liquidação, é o «conjunto de actos que visam pôr termo ao modo colectivo de funcionamento do Direito, perante uma pessoa colectiva. Em termos práticos, a liquidação implica o levantamento de todas as situações jurídicas relativas à sociedade em liquidação, a resolução de todos os problemas pendentes que a possam envolver, a realização pecuniária (se for o caso) dos seus bens, o pagamento de todas as dívidas e o apuramento do saldo final, a distribuir pelos sócios».


No caso, segundo consta do registo comercial da sociedade, esta foi objecto de um procedimento administrativo de dissolução e liquidação, no qual foi tomada a decisão de declarar a dissolução e o encerramento da liquidação, não tendo resultado do processo nem sido comunicada à Conservatória a existência de activo e passivo a liquidar. Em consequência foi registada a dissolução e o encerramento da liquidação e posteriormente mesmo cancelada a matrícula da sociedade.


O regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, não prevê a reabertura do procedimento administrativo após a constatação da existência de activo e/ou passivo supervenientes.


Uma vez que se trata de um procedimento administrativo da competência do Conservador do Registo Comercial, parece que uma vez inscrito em definitivo o encerramento da liquidação e cancelada a matrícula da sociedade o Conservador deixa de ter competência para qualquer acto relativo à sociedade no âmbito do referido regime. Essa competência pressupõe, com efeito, a existência de uma sociedade comercial matriculada e a necessidade de espelhar no respectivo registo a situação da sociedade, o que não sucede quando esta já foi extinta em definitivo. Afastada a possibilidade de o registo de encerramento da liquidação e de cancelamento da matrícula vir a ser anulado por via de qualquer acção de registo, baseada em vícios próprios desse registo, para a Conservatória do Registo Comercial a situação daquela sociedade está encerrada em definitivo.


O que sucede, então, vindo a apurar-se supervenientemente a existência de activo ou passivo?


Existem várias modalidade de liquidação, sendo comum a distinção entre a liquidação extrajudicial, a liquidação administrativa e liquidação judicial. Os artigos 146.º e seguintes referem-se à liquidação extrajudicial, isto é, à liquidação que é realizada pelos próprios sócios, através da figura do liquidatário, em conformidade com as regras estabelecidas no contrato de constituição da sociedade ou, supletivamente, das regras estabelecidas nestas normas legais, na parte em que as mesmas não são imperativas.


O regime da liquidação do activo superveniente está regulado no artigo 164.º do Código das Sociedades Comerciais.


Nos termos do n.º 1, verificando-se, depois de encerrada a liquidação e extinta a sociedade, a existência de bens não partilhados, compete aos liquidatários propor a partilha adicional pelos antigos sócios, reduzindo os bens a dinheiro, se não for acordada unanimemente a partilha em espécie.


Como se vê, a norma não impõe a reabertura do procedimento de liquidação através do qual a sociedade foi liquidada e extinta, antes institui um regime de procedimento que podemos qualificar de abreviado e que consiste apenas nos actos indispensáveis (estritamente, os que forem necessários) para a entrega aos antigos sócios da sociedade extinta do activo social que se apurou existir apenas depois do encerramento da liquidação.


Tais actos são apenas os necessários para a distribuição do activo em espécie ou, se não for acordada pelo conjunto dos sócios essa forma de distribuição, os actos indispensáveis para converter em dinheiro o activo e depois o entregar aos antigos sócios. Pela própria natureza das coisas, sendo o activo constituído já por dinheiro, não há absolutamente nada mais a fazer para além da sua distribuição pelos sócios.


É certo que a norma atribui a competência para fazer a distribuição ao liquidatário. No entanto, parece que nada impede que sendo os actos a praticar tão simples que os próprios sócios os possam fazer eles mesmo por acordo ou não havendo sequer quaisquer actos a praticar, designadamente porque o activo é dinheiro que está confiado a uma entidade que é quem o vai entregar aos antigos sócios, a distribuição possa prescindir da nomeação de liquidatário (neste sentido, p. ex., Carolinha Cunha, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, coord. Jorge M. Coutinho de Abreu, Vol. II, 3.ª edição, 2021, pág. 825, em anotação ao artigo 164.º, dizendo que para a partilha ou divisão do activo «os sócios … podem ou não dispensar a intervenção do liquidatário»).


A afirmação da decisão recorrida de que o remanescente «apenas poderá ser devolvido aos sócios depois do registo de liquidação adicional donde resulte a quantia que reverte a favor dos mesmos», não tem pois cobertura legal porque o artigo 164.º do Código das Sociedades Comerciais não o exige de todo e o Código do Registo Comercial parece não o consentir sequer (excepto em consequência da anulação do registo do encerramento da liquidação em acção de registo).


Também não colhe a ideia avançada pelo MP na promoção que deu origem à decisão recorrida da necessidade de acautelar o interesse de eventuais credores não satisfeitos.


Não existe notícia da existência de credores nessas condições. A AT apresentou-se como credora e promoveu já a penhora do activo na medida do necessário à satisfação do seu crédito tributário, pelo que nessa parte é a penhora que impede a partilha pelos sócios, os quais deverão exercer na execução tributária os meios de defesa que já adiantaram nos autos ter para opor a esse direito de crédito.


A prevenção dos direitos dos eventuais credores não pode prescindir da sua actuação concreta para alcançar esse desiderato. Não havendo norma legal que imponha um dever de actuação oficioso nesse sentido por parte da entidade que tiver à sua disposição o activo a partilhar, por força do princípio do dispositivo terão de ser os próprios credores a accionar os meios de tutela provisória dos seus direitos de crédito, sendo certo que a lei não estipula o dever de praticar actos de divulgação pública da existência do activo para que eventuais credores possam tomar conhecimento dele.


Acresce que o presente processo já constitui uma vantagem para os eventuais credores que normalmente não existe, sobretudo nos casos de dissolução e imediato encerramento da liquidação.


Com efeito, a haver passivo, ele será também um passivo superveniente na acepção do artigo 163.º do Código das Sociedades Comerciais, ou seja, um passivo que não foi satisfeito ou acautelado nos actos de liquidação que determinaram a extinção da sociedade. Nesse caso, nos termos do n.º 1 dessa norma, os antigos sócios respondem pelo passivo «até ao montante que receberam na partilha». A distribuição a realizar no presente processo torna certo o que cada um dos sócios recebeu e a medida da sua responsabilidade pelo passivo insatisfeito, dispensando outra prova por parte dos eventuais credores.


Em suma, a decisão recorrida deve ser revogada, deferindo-se o requerido pelos sócios.





V. Dispositivo:


Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, autorizando a entrega aos antigos sócios da sociedade, na proporção da respectiva quota no capital social, do remanescente do produto da venda realizada nos autos de imóvel pertencente à sociedade, com excepção apenas da parte que foi objecto de penhora pela Administração Tributária.


Não há lugar ao pagamento de custas pelo recurso porque estas eram responsabilidade do recorrente (critério do proveito), estavam confinadas à taxa de justiça pela interposição do recurso (não houve resposta às alegações de recurso) e o recorrente beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa da taxa de justiça.



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Porto, 10 de Julho de 2025.






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Os Juízes Desembargadores

Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 898)

1.º Adjunto: João Venade

2.º Adjunto: Ana Vieira














[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]