Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
355/22.6PAVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CASTRO
Descritores: CRIME DE NATUREZA SEMI-PÚBLICA
OFENDIDO
QUEIXA
FALTA
ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
NOVA APRECIAÇÃO
PRINCIPIO NE BIS IN IDEM
Nº do Documento: RP20250122355/22.6PAVFR.P1
Data do Acordão: 01/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADO PARCIALMENTE PROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Fundando-se o despacho de arquivamento na falta de queixa por parte do ofendido por crime de natureza semi-pública, tal não impede que os mesmos factos possam ser investigados noutro processo de inquérito e que por eles o arguido possa vir a ser acusado, se entretanto o ofendido, tempestivamente, veio a apresentar a respetiva queixa;
II - Nessas circunstâncias, não ocorre a violação do princípio ne bis in idem por via do caso decidido, na medida em que, com referência aos seus fundamentos, o despacho de arquivamento assentou em questão de procedibilidade não exaurida ao tempo e entretanto revertida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 355/22.6PAVFR.P1



Relator: José Castro.
1.ª Adjunta: Maria Deolinda Dionísio.
2.ª Adjunta: Carla Carecho.

Sumário (da responsabilidade do relator):

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Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
No âmbito do proc. comum singular n.º 355/22.6PAVFR, que corre termos no Juízo Local Criminal ... – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, em que é arguido AA, com sinais identificadores nos autos, efetuado o julgamento, a 28.06.2024 foi proferida sentença (cfr. a ref.ª 133847027) com o seguinte dispositivo (transcrição):

«DECISÃO
Nos termos expostos, decido:
1). Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), ambos do Código Penal, na pena de seis meses de prisão.
1º). Suspender a pena de prisão aplicada, pelo período de um ano, subordinada a regime de prova, assente em plano de reinserção social, com as seguintes obrigações e regras de conduta:
manter o tratamento e acompanhamento psiquiátrico que já efectua, submetendo-se, se necessário a internamento;
fixar domicílio em local certo e comunicar qualquer alteração;
requerer autorização ao tribunal para deslocações para o estrangeiro.
2). Condenar o arguido nas custas criminais do processo, fixando a taxa de justiça no mínimo legal – artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal –, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.»

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Na mesma sentença, a título de questão prévia, foi ainda decidido o seguinte (transcrição):
«Questão prévia
Da excepção de caso decidido:
Constatando-se que, quanto aos factos ocorridos no dia 14 de Dezembro de 2022, foi instaurado processo autónomo, que correu os seus termos na 2.ª Secção do DIAP ..., sob o n.º ..., processo este que foi objecto de despacho de arquivamento, por ausência de apresentação de queixa, no dia 9 de Janeiro de 2023, como resultava das cópias extraídas de tais autos e juntas de folhas 52 a 54, por despacho proferido no dia 17 de Junho de 2024, foi determinada a junção de certidão extraída daquele processo.
Ora, da certidão junta de folhas 106 a 109, extraída do processo de inquérito n.º ..., resulta que, efectivamente, no âmbito daqueles autos, foram denunciados e apreciados os factos também vertidos na acusação pública deduzida nos presentes autos e ocorridos no dia 14 de Dezembro de 2022.
Assim sendo, afigura-se que parte da conduta que ao arguido é imputada já foi definitivamente apreciada.
Senão vejamos.
Segundo resulta do enunciado fáctico descrito na hipótese acusatória, ao arguido é imputada, para além do mais, a prática de um crime de ameaça agravada contra a ofendida BB, no dia 14 de Dezembro de 2022, por lhe ter dirigido as seguintes expressões: «(…) eu sei onde trabalhas, onde andas, tem cuidado comigo, eu faço-te a folha, estás fodida. (…) estás marcada (…)».
Sucede, porém, que no âmbito do processo de inquérito n.º ..., ao arguido eram imputados os mesmos factos, nomeadamente que, na data em referência, teria dirigido à ofendida BB as seguintes expressões: «(…) Eu sei onde andas! Sei onde trabalhas! Tem cuidado comigo! Eu faço-te a folha! Estás fodida! (…) Estás marcada!» (cfr. auto de notícia datado de 15 de Dezembro de 2022, junto na aludida certidão a folhas 108).
Ora, tal processo findou por despacho de arquivamento, proferido no dia 9 de Janeiro de 2023, por se entender que estaria apenas em causa um crime de ameaça de natureza semi-pública e não ter sido apresentada queixa pela denunciante.
Tal despacho não foi objecto de impugnação.
Cumpre apreciar.
Nos termos que expressamente resultam do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa – que, como se sabe, conferiu dignidade constitucional ao basilar princípio do ne bis in idem -, “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
Pese embora a peremptória orientação constitucional, o certo é que, ao invés do que se dispunha no Código de Processo Penal de 1929, a lei adjectiva actualmente vigente, excepção feita à decisão penal que conheça do pedido cível (cfr. artigo 84.º do Código de Processo Penal), não contempla, nem no âmbito dos pressupostos, nem ao nível das consequências, o instituto do caso julgado.
Posto que o fundamento central do caso julgado justamente radica numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito em ordem a assegurar, ainda que com possível sacrifício da justiça material, a paz jurídica dos cidadãos, tem-se por certo o entendimento segundo o qual o “crime” deve considerar-se o mesmo quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e facto a julgar e ambos os factos tenham como objecto o mesmo bem jurídico ou formar, como acção que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico (neste sentido, Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, V.III, 1994, página 39).
Seguindo de perto as considerações a propósito expendidas no acórdão da Relação do Porto de 28 de Abril de 99 (CJ, Tomo II, página 237), dir-se-á que, num processo de estrutura acusatória, ao acusador caberá fixar o objecto do processo em termos que condicionarão a actividade substancial do juiz, narrando os factos que imputa ao arguido e procedendo ao respectivo enquadramento jurídico-penal.
Apurada que fique a identidade entre este thema probandum da acusação, de um lado, e o thema decidendum da decisão em confronto, é quanto basta para que haja de concluir-se pela verificação da excepção de caso julgado.
Todavia, no caso presente não estamos perante uma situação de caso julgado já que não foi ainda proferida qualquer decisão jurisdicional que conheça do mérito do objecto processual.
Ainda assim, parece consensual que o despacho final proferido pelo Ministério Público terá idêntico valor se não for atempadamente sindicado.
Com efeito, tal como se expendeu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26 de Outubro de 2016 (consultado no sítio da DGSI): «(…) - A decisão de arquivamento do Inquérito ao abrigo do art.277.º, n.º1, do C.P.Penal não tem natureza jurisdicional e, por conseguinte, não comporta a noção de “trânsito em julgado”, mas produz efeitos intra e extraprocessuais, pelo que decorridos os prazos para a sua impugnação, quer através da abertura da instrução quer da intervenção hierárquica, tem a força de “caso decidido” e, por conseguinte, nos termos do art. 29.º, n.º 5, da C.R.P, os factos dele objeto não podem, como foram, ser de novo valorados para efeito de poder ser o arguido, por eles, perseguido criminalmente, sob pena de “insuportável violação da paz jurídica e da segurança do cidadão” [neste sentido, v. Ac.R.Évora de 23/2/2016, relatado pela Desembargadora Maria Filomena Soares, in www.dgsi.pt].(…).».
Por conseguinte, o mesmo objecto processual apenas poderia ser apreciado com base no disposto nos artigos 279.º do Código de Processo Penal – “reabertura do inquérito”: 1 - Esgotado o prazo a que se refere o artigo anterior, o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento. 2 - Do despacho do Ministério Público que deferir ou recusar a reabertura do inquérito há reclamação para o superior hierárquico imediato. – e 449.º do Código de Processo Penal – (…) a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão; b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo; c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação; d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação. e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.os 1 a 3 do artigo 126.º; f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação; g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça. (…) –, ou seja, «(…) A reabertura do processo só pode ter lugar se “surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos” do despacho de arquivamento. A natureza da novidade dos “novos elementos de prova” é a mesma que caracteriza a novidade dos “novos factos ou meios de prova” do artigo 449, isto é, trata-se de factos que não eram conhecidos, nem podiam ser conhecidos pelo requerente, com a diligência devida. (…), in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Paulo Pinto de Albuquerque, Universidade Católica Editora, Lisboa 2007, página 712).
A questão que se colocará então será relativamente à factualidade directamente apreciada no âmbito do identificado processo de inquérito, por via do arquivamento por falta da queixa da ofendida.
Com efeito, em tal despacho, apenas se faz alusão a um crime de ameaça de natureza semi-pública, muito embora decorresse directamente do auto de notícia que deu início àquele processo que estaria em causa um crime de ameaça praticado contra um funcionário do Cartório Notarial ... e por causa do exercício das funções daquele funcionário [ainda que se entenda que tal crime tem, efectivamente, natureza semi-pública, não é essa a posição maioritária e parece não ter sido esse o entendimento subjacente ao despacho de arquivamento proferido, já que dele não consta qualquer referência ao artigo 155.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal].
Pois bem.
Afigura-se que, não obstante não se ter então cogitado a subsunção dos factos a um crime de ameaça agravada, nem se ter tentado apurar o incidente sumariamente descrito na aludida participação criminal, o certo é que então poderia ter sido conhecida e apreciada tal matéria, pelo que não pode deixar de se considerar, independentemente do enquadramento jurídico que se plasmou em tal despacho, que o arquivamento por extinção do procedimento criminal abarca toda a factualidade denunciada, inclusivamente a qualidade da denunciante.
Ademais, o facto de a ofendida ter sido ouvida nestes autos, no dia 7 de Fevereiro de 2023 (folhas 16) e ter declarado então desejar procedimento criminal contra o arguido, não invalida a circunstância de, naqueloutros autos, se ter decidido pela ausência de legitimidade do Ministério Público para a prossecução dos autos, tanto mais que a ofendida não reagiu àquela decisão, pelo que tal legitimidade se tem de considerar definitivamente decidida.
Sufragando este nosso entendimento, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19 de Março de 2014 (consultado no sítio da DGSI), sustentou-se:
Ancorado na estrutura acusatória do processo que enforma o nosso processo penal,[11] a proibição da dupla apreciação significa, numa primeira leitura, que ninguém pode ser julgado mais de uma vez e não, como por vezes é referido, que ninguém pode ser punido mais de uma vez.[12] Por isso esta garantia constitucional deve ser vista como da proibição da dupla perseguição penal do indivíduo, estendendose, portanto, não apenas ao julgamento em sentido formal,[13] mas, também, a qualquer outro acto processual que signifique uma definitiva assunção valorativa por parte do Estado sobre determinado facto penal, como seja o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público ou a decisão de não pronúncia pelo Juiz de Instrução Criminal[14] e a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento criminal ou por desistência da queixa.[15] Nesta perspectiva, a delimitação do objecto do processo pela acusação tem ainda como efeito que a garantia conferida pelo princípio ne bis in idem implique que se proíba a investigação e o posterior julgamento não só do que foi mas também do que poderia ter sido conhecido no primeiro processo. Na verdade, como refere Henrique Salinas, «a preclusão, contudo, não diz apenas respeito ao que foi conhecido, pois também abrange o que podia ter sido conhecido no processo anterior. Para este efeito, teremos de recorrer aos poderes de cognição do acto que procedeu à delimitação originária do processo, a acusação em sentido material, tendo em conta um objecto unitário do processo. Desde logo, como neste acto não existe qualquer limitação à qualificação jurídica dos factos no mesmo descritos, pode concluir-se que não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto, diversamente qualificados. De igual modo, neste acto podiam ter sido conhecidos factos que traduzem uma alteração, substancial ou não substancial, dos que nele foram incluídos, uma vez que, em qualquer dos casos, estamos ainda dentro dos limites do mesmo objecto processual. Por esta razão, não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto.»[16] O que se proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal, entendendo-se aqui por crime não um certo tipo legal abstractamente definido como crime mas, outrossim, um comportamento espácio-temporalmente determinado, um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo já objecto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare, mas independentemente do nomem iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado.[17] Quer dizer, o que verdadeiramente interessa é o facto e não a sua subsunção jurídica.”.
Por outro lado, conforme lembra Frederico Isasca, «o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados. Quer porque enquanto isoladamente considerados não seriam susceptíveis de se consubstanciarem como objecto de um processo. Quer porque a sua apreciação violaria frontalmente a regra ne bis in idem, entrando em aberto conflito com os fundamentos do caso julgado. Quer ainda porque, fornecendo o Código, como se demonstrou, todos os mecanismos necessários para uma apreciação esgotante do facto processual e portanto a possibilidade de se alcançar a verdade material e consequentemente uma justa decisão do caso concreto, far-se-ia responder o arguido pela negligência de outros na prossecução da justiça, ou pêlos inevitáveis vícios do sistema, acabando, em última análise, por frustrar totalmente as legítimas expectativas de quem foi julgado e sentenciado, comprometendo assim, inabalavelmente, o respeito pela própria dignidade c da pessoa humana.[18] O que releva para efeitos de consideração do caso julgado é, portanto, não o conceito normativo de crime mas antes uma certa conduta efectivamente levada a cabo, um acontecimento naturalístico vivenciado, em suma, real e historicamente ocorrido.[19]
Nesta ordem de ideias, não custa considerar que «o efeito consuntivo do caso julgado abrange todos os factos que, ainda que não constituam total sobreposição, hãose considerar-se englobados no recorte de vida anteriormente julgado, enquanto unidade de sentido.»[20] Vale dizer, portanto, que, o efeito consuntivo dar-se-á mesmo naquelas situações em que os factos integradores da conduta criminosa tenham mas não deveriam ter permanecido totalmente estranhas ao conhecimento do juiz que primeiramente dela conheceu.[21] E isso é assim tanto no caso da continuação criminosa como também, por maioria de razão, nos casos em que parte da conduta não foi conhecida pelo juiz mas, com a que foi, está coberta pelo mesmo e único dolo do agente.
Pelo exposto, decide-se não conhecer dos factos imputados ao arguido ocorridos no dia 14 de Dezembro de 2022 e objecto do despacho de arquivamento no âmbito do processo de inquérito n.º ..., por verificação da excepção do caso decidido.»

Inconformado com o assim decidido em relação a tal questão prévia, o Ministério Público interpôs recurso da sentença proferida (cfr. a ref.ª 16521630), apresentando em abono da sua posição as seguintes conclusões da motivação (transcrição):
«CONCLUSÕES:
1. O processo n.º ... foi arquivado por inadmissibilidade legal do procedimento, pelo que os factos que daí constam, respeitantes ao dia 14-12-2022, não chegaram a ser apreciados nesse processo, devido ao facto de a ofendida não ter apresentado queixa, direito esse que lhe assiste.
2. Em causa está um crime de natureza semipública (pelo menos assim foi entendido naqueles autos - processo n.º ...), pelo que é necessária a apresentação de queixa por parte das pessoas que para tal tenham legitimidade, neste caso a ofendida, nos termos e para os efeitos do artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal.
3. No âmbito do presente processo, a ofendida veio manifestar desejo de procedimento criminal, relativamente aos factos ocorridos a 14-12-2022, dentro do prazo de seis meses que dispõe para o efeito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 115.º, n.º, 1, do Código Penal, conforme consta do auto de declarações de 07-02-2023 respeitante ao presente processo.
4. Assim, e como os factos respeitantes ao dia 14-12-2022 não foram apreciados no âmbito do processo n.º ..., na medida em que o mesmo foi arquivado por uma questão procedimental, e já não substancial, não se verifica a existência de uma situação de caso decidido, violador do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, pelo que deverá o arguido ser condenado pela prática de dois crimes de ameaça agravada, previstos e punidos nos termos dos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, e já não apenas pela prática de um crime de ameaça agravada.
5. Os factos referentes ao dia 14-12-2022 (e que constam do ponto 4 e 5 da acusação: “A 14 de Dezembro de 2022, pelas 14h25, o arguido regressou àquele Cartório Notarial e, dirigindo-se mais uma vez à Sra. Notária Dra. BB, proferiu em voz alta e em tom sério as seguintes expressões: - “eu sei onde trabalhas, onde andas, tem cuidado comigo, eu faço-te a folha, estás fodida”.” “Em ato contínuo, o arguido empurrou-a contra o vidro e disse-lhe, em tom sério e em voz alta, “estás marcada””), deverão ser dados como provados, na medida em que foi produzida prova em sede de audiência de discussão e julgamento nesse sentido, a saber, as declarações da ofendida, BB, e das testemunhas CC, DD e EE.
6. O arguido deverá ser condenado, relativamente ao segundo crime de ameaça agravada, na pena de oito meses de prisão, e, em concurso efetivo, na pena de dez meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, subordinada a regime de prova, assente em plano de reinserção social (com as seguintes obrigações e regras de conduta: manter o tratamento e acompanhamento psiquiátrico que já efetua, submetendo-se, se necessário a internamento; fixar domicílio em local certo e comunicar qualquer alteração; requerer autorização ao tribunal para deslocações para o estrangeiro).

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida, condenando-se o arguido AA pela prática de dois crimes de ameaça agravada, previstos e punidos nos termos dos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), todos do Código Penal, na pena de dez meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, subordinada a regime de prova, assente em plano de reinserção social (com as seguintes obrigações e regras de conduta: manter o tratamento e acompanhamento psiquiátrico que já efetua, submetendo-se, se necessário a internamento; fixar domicílio em local certo e comunicar qualquer alteração; requerer autorização ao tribunal para deslocações para o estrangeiro), assim se fazendo
inteira e sã Justiça!».

O recurso interposto pelo Ministério Público foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cfr. despacho com a ref.ª 134754622).

O arguido AA, por seu turno, apresentou contra-alegações (cfr. a ref.ª 16831242), concluindo do seguinte modo (transcrição):

«CONCLUSÕES:
Primeira: A douta sentença, ora recorrida, deve manter-se, bem tendo decidido a Exma Senhora Juíza do Juízo Local Criminal ..., Juiz 2, ao não conhecer dos factos imputados ao arguido ocorridos no dia 14- 12-2022 e objeto de despacho de arquivamento no âmbito do inquérito nº ..., por verificação da exceção do caso decidido, porquanto os factos em apreciação nos presentes autos, relativos ao dia 14-12-2022, são os mesmos que foram denunciados e apreciados naquele processo.
Segunda: O processo (...) terminou por despacho de arquivamento, proferido no dia 9 de Janeiro de 2023, por se entender que estaria apenas em causa um crime de ameaça de natureza semi-pública e não ter sido apresentada queixa pela denunciante. Tal despacho não foi objeto de impugnação.
Terceira: Nos termos do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. E, não obstante não estarmos perante uma situação de caso julgado, pelo facto de não ter sido proferida qualquer decisão jurisdicional que conheça do mérito do objeto processual, o entendimento jurisprudencial dominante vai no sentido de que o despacho final proferido pelo Ministério Público tem idêntico valor, pois a decisão de arquivamento do inquérito proferida pelo Ministério Público, apesar de não se enquadrar na noção de trânsito em julgado, produz os mesmos efeitos, comportando a noção de caso decidido.
Quarta: Os factos objeto da decisão de arquivamento não podem, como foram, ser de novo valorados para efeito de poder ser o arguido, por eles, perseguido criminalmente, sob pena de violação da paz jurídica e da segurança do cidadão. E, a reabertura do processo só pode ocorrer surgirem novos elementos de prova, não conhecidos, que invalidem os fundamentos do despacho de arquivamento, o que não aconteceu nos presentes autos.
Quinta: O arquivamento por extinção do procedimento criminal abarca toda a factualidade denunciada, inclusivamente a qualidade da denunciante, e a delimitação do objeto do processo pela acusação tem ainda como efeito que a garantia conferida pelo princípio ne bis in idem implique que se proíba a investigação e o posterior julgamento não só do que foi mas também do que poderia ter sido conhecido no primeiro processo. A apreciação dos mesmos factos violaria frontalmente a regra ne bis in idem, bem como do caso julgado.
Sexta: A ser julgado pelos factos de 14-12-2022, estaria o arguido a ser penalizado pela negligência do sistema de justiça, sendo abalada a segurança na justiça, pelo que deve ser proferido Acórdão que julgue improcedente o presente recurso, mantendo a condenação do arguido/recorrente AA, por apenas um crime de ameaça agravada.
Termos em que, na confirmação da douta sentença recorrida, se fará a necessária
JUSTIÇA»

Neste Tribunal da Relação do Porto, por sua vez, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral-Adjunta emitiu o seguinte parecer (cfr. a ref.ª 18799465), cujo teor se transcreve parcialmente:
«[…]
Porém, apesar da assertividade desse recurso, discordamos da posição aí assumida, concordando com os argumentos que determinaram o despacho judicial em crise.
Temos que pensar em sede dos princípios enformadores do processo penal. A baliza do objecto processual está directamente ligada ao direito de defesa do arguido. Quando este é constituído enquanto tal, é obrigatoriamente informado dos factos concretos que lhe poderão ser imputados, e os elementos probatórios que sustentam tais factos, de forma a poderem sustentar a sua constituição como arguido.
No caso em apreço, o inquérito foi arquivado uma vez que, considerando-se estar em presença de um crime semi público, inexistia queixa quanto aos factos aí noticiados. No âmbito do segundo inquérito, considerou-se que a frase atribuída à queixosa, de forma habitualmente genérica, que “pretende procedimento criminal”, incluía, então, os factos antes relatados e constantes do inquérito arquivado, já que, aparentemente, ainda estava em tempo para exercer o direito de queixa.
O simples facto de, no inquérito arquivado, não se terem apreciado os elementos substantivos, já que foi um arquivamento “formal”, isso não significa que não produza efeitos na esfera jurídica, ao contrário do que defende o MP na primeira instância.
De facto, trata-se da tutela subjectiva do cidadão – eventual arguido - definida pelo objecto processual, que, no caso, eram os factos que teriam ocorrido no dia 14/12/22. O facto de o arquivamento não se ter debruçado sobre a questão da prática dos factos, ou da culpa do agente nessa prática, não retira efeito ao facto de o inquérito ter sido arquivado. O efeito de vinculação intraprocessual é também da responsabilidade do MºPº, vinculado que está ao princípio da legalidade na sua actuação.
Nas palavras de Damião da Cunha, in “Caso Julgado Parcial”, pág. 162, nota 172:” […]a doutrina nacional trilhou uma via própria que conduziu a admitir a força de caso julgado ao despacho de arquivamento; […] é fazer notar que, subjacente a esta ideia, está a garantia de “proibição“ de uma absolutio ab instantia em matéria de arquivamento. Para que tal desiderato materialmente se realize, é necessário, indiscutivelmente, que à decisão do MP seja atribuído aquele duplo efeito processual: de consumpção de poderes e de proibição de contradição – ou de regressão. Ora, esta conclusão relaciona-se com a própria compreensão da “paz jurídica” de que o arguido deve gozar[…] tal garantia opera não apenas quanto ao “concreto” crime que serviu de fundamento à intervenção do MP, mas no que toca a todos os hipotéticos crimes que seriam equacionáveis naquela “situação de facto” – objecto de investigação”.
Acrescenta o mesmo Autor: […]” Ora, o efeito preclusivo tanto se tem que dar por via “directa” (isto é, quando o MP conheceu, de facto, o crime) como por via “indirecta” (isto é, quando não tenha tido efectivo conhecimento, mas que a sua anterior decisão precluda aquele conhecimento posterior)”.

Assim,

Analisados os fundamentos do recurso, e os demais elementos processuais, não acompanhamos a posição do Magistrado do Ministério Público junto da 1ª Instância.
Pelo exposto, somos de parecer de que o Recurso deve ser julgado improcedente.»

Notificado nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 417.º do CPP, o arguido não apresentou resposta.

Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.

*
Conforme decorre do parecer proferido pela Exm.ª Sr.ª P.G.A. nos termos do art.º 416.º do CPP, esta não acompanhou o recurso interposto pela magistrada do Ministério Público junto do tribunal de 1.ª instância, pugnando pela manutenção do decidido, sem contudo desistir do recurso nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art.º 415.º do CPP.
Não obstante esta posição contraditória com aquela que foi assumida na peça recursória, o certo é que nem por isso o Ministério Público perdeu a legitimidade para recorrer ou interesse em agir (cfr. o art.º 401.º do CPP), conforme assim foi decidido no acórdão do TRP de 08.03.2017, proc. n.º 183/14.2PFPRT.P1, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
Tal assim é dada a natureza do parecer, enquanto intervenção autónoma quanto aos fundamentos do recurso ou da resposta por banda do P.G.A. junto do tribunal ad quem, que assim opina sem estar vinculado pelo sentido da posição expressa pelo magistrado do Ministério Público junto do tribunal de 1.ª instância, mas que também não compromete do ponto de vista processual o posicionamento já expresso na peça recursória por aquele sujeito processual. A diferença de visões acerca do mesmo objeto recursório, no que ao parecer concerne, ao fim ao cabo, visa apenas auxiliar o tribunal ad quem a decidir, desde que ali não se manifeste a vontade de desistir do recurso.
Assim, não obstante a Exm.ª P.G.A. não acompanhar o recurso interposto pelo Ministério Público, nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso em apreço.
***
FUNDAMENTAÇÃO
I - Questões a decidir em face do objeto do recurso
Antes de mais, cabe referir que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso [quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (cfr. o Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, publicado no DR I Série de 28.12.1995), os quais devem resultar diretamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum; a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito legal) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP)].
Nesta conformidade, as questões que se colocam são as seguintes:
i) Da verificação do caso decidido no âmbito do proc. de inquérito n.º ... e seus reflexos no âmbito dos presentes autos;
ii) Da alteração da matéria de facto (por inclusão nos factos provados ou não provados na matéria atinente ao dia 14.12.2022);
iii) Da qualificação jurídica dos factos atinentes ao dia 14.12.2022 (caso se tenham como provados);
iv) Da escolha e determinação concreta da pena atinente ao crime perpetrado a 14.12.2022 (caso seja procedente a impugnação factual), bem como determinação concreta da pena única resultante do concurso de crimes e eventual imposição de pena de substituição.

II – Apreciação das questões acima enunciadas
a) Com vista à apreciação das questões acima enunciadas cabe considerar que:
i) Nos autos de inquérito com o n.º ..., que correu termos na 2.ª Secção do DIAP ..., a 09.01.2023 foi proferido despacho de arquivamento com o seguinte teor (transcrição):
«Atendendo ao carácter semipúblico do crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, nºs 1 e 2 do CP e uma vez que a participante não exerceu, até ao momento, o direito de queixa, determino o arquivamento dos autos ao abrigo do disposto no artigo 277.º, n.º 1 do CPP.
[…].»
[Cfr. a certidão com a ref.ª 16319177].
*
ii) Aquando da sua inquirição no âmbito dos presentes autos a 07.02.2023, pela ofendida BB foi manifestado «Que deseja continuar com o procedimento criminal contra o suspeito» (desejo esse que abarcava também os factos alegadamente ocorridos a 14.12.2022 e sobre os quais nesse ato também lhe foram tomadas declarações [cfr. o auto de inquirição com a ref.ª 141344074].
*
iii) Na acusação deduzida nos presentes autos (cfr. a ref.ª 127171243) foram imputados ao arguido os seguintes factos e os seguintes crimes (transcrição):
«[…]
Entre os dias 27 de outubro de 2022, pelas 14h30 e 14 de novembro de 2022, pelas 14h00, o arguido AA, desagradado com a circunstância da Sra. Notária, Dra. BB ter prorrogado, por dez dias, o prazo para o ex-cônjuge do arguido pagar as tornas devidas, dirigiu-se ao Cartório Notarial sito na Praceta ..., em .... Aí chegado, o arguido, dirigindo-se à Sra. Notária, proferiu em voz alta e tom sério as seguintes expressões:
- “Se a minha ex-mulher não me pagar os 1.202 euros de tornas, que eu tenho direito, venho cá e pego fogo a esta merda toda” e “já estou a ver que você é amiga da advogada da minha ex-mulher”, batendo com a força a porta quando saia das instalações.
Nessa sequência, a 14 de Novembro de 2022, pelas 14h13 e 14h14, o arguido, utilizando o endereço electrónico AA..........@..... e tendo como destinatário a Sra. Notária, Dra. BB, titular do endereço electrónico BB.......@notarios.pt, escreveu e remeteu dois emails com as seguintes expressões: “Andas a brincar” e “De repente vem trovoada”.
A 14 de Dezembro de 2022, pelas 14h25, o arguido regressou àquele Cartório Notarial e, dirigindo-se mais uma vez à Sra. Notária Dra. BB, proferiu em voz alta e em tom sério as seguintes expressões:
- “eu sei onde trabalhas, onde andas, tem cuidado comigo, eu faço-te a folha, estás fodida”.
Em acto contínuo, o arguido empurrou-a contra o vidro e disse-lhe, em tom sério e em voz alta, “estás marcada”.
Fê-lo deliberada, livre e conscientemente, e com foros de seriedade, e por forma a perturbar-lhe o sentimento de segurança e a afectá-la na sua liberdade, bem sabendo que tais condutas são proibidas e punidas por lei.
Pelo exposto, cometeu o arguido, como autor, dois crimes de ameaça agravados, previsto e punível pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c) por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal.
[…]»
*

iv) Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
«FUNDAMENTAÇÃO
Matéria de facto provada
Da acusação pública:
Da discussão da causa resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. Em data não concretamente apurada, entre os meses de Maio e Novembro de 2022, pelas 14h00, o arguido AA, desagradado com a circunstância da Sra. Notária Dra. BB ter prorrogado o prazo para a ex-cônjuge do arguido pagar as tornas devidas, dirigiu-se ao Cartório Notarial, sito na Praceta ..., em ....
2. Aí chegado, o arguido, dirigindo-se à Sra. Notária, proferiu em voz alta e tom sério as seguintes expressões: «Se a minha ex-mulher não me pagar as tornas a que eu tenho direito venho cá e pego fogo a esta merda toda! Já estou a ver que você é amiga da advogada da minha ex-mulher! Se a minha ex-mulher não pagar, vais pagar!»; batendo com a força a porta quando saía das instalações.
3. Nessa sequência, a 14 de Novembro de 2022, pelas 14h13 e 14h14, o arguido, utilizando o endereço electrónico AA..........@..... e tendo como destinatário a Sra. Notária, Dra. BB, titular do endereço electrónico BB.......@notarios.pt, escreveu e remeteu dois emails com as seguintes expressões: «Andas a brincar» e «De repente vem trovoada».
4. O arguido actuou deliberada, livre e conscientemente, com foros de seriedade e de forma a perturbar o sentimento de segurança da ofendida e a afectá-la na sua liberdade, bem sabendo que tais condutas são proibidas e punidas por lei.
*
Mais se provou com relevância para a determinação da sanção aplicável:
5. À data dos factos o arguido já havia sido julgado e condenado:
no âmbito do processo comum colectivo n.º ..., do Juízo central criminal ... – Juiz 3, por decisão proferida no dia 2 de Novembro de 2017, transitada em julgado no dia 12 de Abril de 2018, na pena de um ano e três meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada à obrigação de pagar à lesada a fixada indemnização, pela prática, no ano de 2015, de um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 109/09, de 15 de Setembro; e na pena única de duzentos e cinquenta dias de multa, à taxa diária de € 7, pela prática, no ano de 2015, de um crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito, previsto e punido pelo artigo 225.º, n.º 1, do Código Penal, de um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal. A pena de prisão foi declarada extinta em 12 de Julho de 2019. A pena de multa foi substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade e, perante o incumprimento do condenado, por decisão transitada em julgado no dia 16 de Setembro de 2022, foi convertida em prisão subsidiária, declarada extinta, no dia 10 de Outubro de 2022, pelo pagamento.
no âmbito do processo comum singular n.º …, deste Juízo local criminal ... – Juiz 2, por decisão proferida no dia 30 de Outubro de 2019, transitada em julgado no dia 19 de Novembro de 2019, na pena de cento e cinquenta dias de multa, à taxa diária de € 6, pela prática, no dia 4 de Abril de 2015, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal. Tal pena de multa foi substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade.
6. Após os factos, o arguido foi novamente julgado e condenado, no âmbito do processo comum singular n.º …, do Juízo de competência genérica de Espinho, por decisão proferida no dia 5 de Março de 2024, transitada em julgado no dia 15 de Abril de 2024, na pena de duzentos dias de multa, à taxa diária de € 8,50, pela prática, no dia 4 de Abril de 2015, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
7. Oriundo de uma estrutura familiar de nível socioeconómico médio, AA é o mais novo de dois irmãos.
8. Do seu processo de desenvolvimento, reconhece aos seus progenitores (pai peixeiro e mãe doméstica) uma atitude esforçada no sentido de lhe garantir, a si e aos seus irmãos, condições de sobrevivência, as quais, segundo recorda, seriam ajustadas às necessidades.
9. AA integrou o sistema de ensino, concluindo com dezassete anos o 9.º ano, altura em que abandona o ensino regular e ingressa na via profissionalizante na área de cortiça, na qual laborou cerca de 26 anos.
10. Refere ter sido despedido ilegalmente, encontrando-se em litígio com a entidade patronal.
11. Em termos afectivos, aos dezoito anos de idade, inicia relação de namoro com FF, também com dezoito anos, vindo o casal a contrair matrimónio em 1997, tendo desta união dois filhos, actualmente com 27 e 23 anos, com os quais o arguido não mantém qualquer contacto, há, pelo menos, dois anos.
12. O casal manteve-se a viver em ..., em habitação cedida pelo pai do arguido, correspondendo à morada dos autos.
13. Separados desde Novembro de 2014, tendo o divórcio ocorrido em Maio de 2015, o arguido mantém residência na anterior morada de família, tendo a ex-mulher e os filhos alterado a sua residência para outra localidade.
14. O arguido refere que, decorrente do quadro de separação, ultrapassou uma fase pessoal de maior desorientação psico-emocional de pendor depressivo, justificando sujeição a avaliação psiquiátrica e consequente indicação de terapêutica medicamentosa, o qual refere manter.
15. À data dos factos do presente processo, bem como no presente, AA mantinha residência na morada dos autos, correspondendo a habitação propriedade do seu pai, na qual o arguido habita juntamente com a nova companheira, GG (em união de facto há cerca de quatro/cinco anos), correspondendo a uma vivenda, com adequadas condições de habitabilidade, situada em zona rural da freguesia ..., em meio social não conotado com problemáticas sociais.
16. No meio de residência, ao arguido é reconhecido um comportamento algo impulsivo.
17. A situação económica do arguido é caracterizada pelo próprio como controlada, sendo a sua subsistência assegurada por trabalhos pontuais de caracter informal (biscates) que refere efectuar no sector da pintura de construção civil e jardinagem, indicando auferir uma média de € 400 mensais, beneficiando também de rendimento social de inserção, no montante de € 230 mensais.
18. O arguido reconhece que as principais despesas são suportadas pela sua actual mulher, auxiliar num lar de idosos.
19. O presente processo não constitui o primeiro confronto de AA com o sistema de justiça, tendo sido acompanhado na Equipa da DGRSP de ... em anteriores processos por crimes de violência doméstica e falsificação.
20. Verbaliza desconforto com a situação jurídica em que se encontra, mostrando-se reactivo quanto à existência do presente processo.
21. O arguido vem sendo seguido no Serviço de Psiquiatria do CH... desde 06.03.2018, por “perturbação depressiva major”, com traços de personalidade maladaptativos - elevado neuroticismo.
22. Fez tratamento no Hospital de Dia (internamento parcial no período diurno), admitido para tratamento diário combinado, psicoterapia de grupo e psicofarmacologia de 10/09 até 13/12/2019.
23. Manteve, apesar das várias intervenções terapêuticas, queixas de desinteresse pela vida, cansaço, falta de iniciativa, queixas de dificuldade em em viver sem companheira, manifestando com frequência estado emocionais de raiva, alexitimia e ruminação.
24. Têm sido tentadas várias estratégias terapêuticas, em várias modalidades, mantendo o arguido acompanhamento especializado em psiquiatria e tratamento farmacológico.»

b) Do putativo efeito de caso decidido por via do despacho de arquivamento proferido no proc. de inquérito n.º ...:
Entendeu o tribunal a quo não conhecer dos factos alegadamente praticados pelo arguido AA no dia 14.12.2022 por entender que, como decorrência do princípio ne bis in idem (cfr. o n.º 5 do art.º 29.º da CRP) e em ordem a preservar a sua paz jurídica, no âmbito dos presentes autos não poderia ser criminalmente perseguido por tais factos na medida em que os mesmos dizem respeito à participação que deu origem ao processo de inquérito n.º ..., o qual foi encerrado por despacho de arquivamento por a ofendida ali não ter manifestado o desejo de procedimento criminal, considerando ali o M.P. que o crime em causa teria natureza semipública (apesar de se tratar de um crime de ameaça agravada).
Quid Iuris?
Dispõe o n.º 5 da Constituição da República Portuguesa que «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime».
Por sua vez, dispõe o n.º 1 do art.º 4.º do Protocolo Adicional n.º 7 (à CEDH), de 22.11.1984 (em vigor na ordem internacional desde 01.11.1988 e ratificado por Portugal a 27.09.1990) que «Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infração pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado.»
Ora, o caso julgado é a «insusceptibilidade de impugnação de uma decisão (despacho, sentença ou acórdão) decorrente do seu trânsito em julgado […]. O caso julgado traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário. O caso julgado torna indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo tribunal, ou seja, o conteúdo da decisão deste órgão. […] estas decisões tornam-se irrevogáveis devido ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz» (Miguel Teixeira de Sousa, in ESTUDOS SOBRE O NOVO PROCESSO CIVIL, 2.ª edição, Lex, Lisboa 1997, pág. 567).
Ademais, «O caso julgado é uma exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, […] obsta a que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir. Ele é, por isso, expressão dos valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica» (Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 568), sendo aliás um princípio constitucional implícito [cfr. o ac. do TC n.º 352/86, de 16.12.1986 (publicado no Diário da República, Série II, de 04.07.1987, pág. 8297)], como decorrência da caracterização dos tribunais como órgãos de soberania (cfr. o art.º 202.º, n.º 1, da CRP) e do facto das suas decisões serem obrigatórias para todas as entidades públicas (incluindo naturalmente para outros tribunais) e privadas (cfr. o art.º 205.º, n.º 2, da CRP).
Como salienta o Professor Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, III, Lisboa, Verbo, 1994, pág. 34), a existência de caso julgado preclude a possibilidade de novo julgamento sobre o mesmo crime, configurando-se como um pressuposto negativo do procedimento.
Ao contrário do que sucedia com o seu antecessor, o Código de Processo Penal vigente não contém qualquer norma expressa sobre o caso julgado penal, sendo certo que o art.º 2.º do DL n.º 78/87, de 17.02, procedeu a uma revogação global do Código de Processo Penal aprovado pelo D.L. n.º 16 489, de 15 de fevereiro de 1929.
É evidente que a circunstância de a lei adjetiva penal vigente não regular o caso julgado não significa que o processo penal prescinda daquele instituto, consabido que nesta concreta área do direito se sente com muito maior intensidade e acuidade a necessidade de proteção do cidadão contra situações decorrentes da violação do caso julgado, instituto que também encontra fundamento num postulado axiológico, qual seja o da justiça da decisão do caso concreto, para além de outros, com destaque para a garantia da segurança e da paz jurídicas.
O instituto encontra, todavia, regulamentação implícita no código vigente. É esta a conclusão a que se chega conjugando os artgs 397.º, n.º 2; 399.º; 400.º; 411.º; 427.º; 432.º; 438.º; 447.º, n.º 1; 449.º, n.º 1; 467.º; 492.º e 498.º, n.º 3, todos do CPP.
Segundo Frederico Isasca (in Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Coimbra, Almedina, 1992, pág. 227), «ao consagrar desta forma, indirecta mas unitária, o caso julgado, o legislador não só pôs termo à complexa regulamentação que o instituto encontrava no Código de 1929, como deixou à doutrina uma maior elasticidade na sua construção.»
Deste modo, quer se considerem aplicáveis, com as necessárias adaptações, as normas que regem o caso julgado civil (Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 35), quer se recorra aos princípios enformadores das normas que regiam o instituto no âmbito do Código de Processo Penal de 1929 (cf. a motivação do Assento do STJ n.º 2/93, de 27 de janeiro, publicado no Diário da República, I Série-A, de 10 de março de 1993), sempre se terá de concluir que há lugar ao funcionamento do caso julgado quando se verifique identidade do facto e de sujeitos constantes de uma decisão irrevogável sobre a mesma questão ou, na expressão de Frederico Isasca (ob. cit., pág. 228), quando se esteja perante o mesmo objeto processual.
Conforme já expresso, a Constituição consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, ao dispor no seu artigo 29.º, n.º 5, que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime.
A lei fundamental ao referir-se ao duplo julgamento e ao mesmo crime carece, contudo, de interpretação, a qual, conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 1978, págs. 21 e 55), deverá ter em especial atenção que os preceitos constitucionais não podem ser considerados isoladamente e interpretados a partir de si próprios, devendo assim considerar-se as conexões de sentido que se estabelecem entre os seus preceitos, bem como a arquitetura sistemática de cada divisão da Constituição. Por outro lado, certo é também que a tarefa interpretativa dos preceitos constitucionais não prescinde igualmente de uma visão global dos ramos de direito em que se projetam e que pretendem nortear.
Assim, seguindo o Ac. do STJ de 15.03.2006 (disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 05P4403), diremos, quanto à expressão julgado mais do que uma vez, que a lei fundamental, ao aludir ao duplo julgamento, não pode ser entendida no seu estrito sentido técnico-jurídico, tendo antes de ser interpretada num sentido mais amplo, de forma a abranger não só a fase processual do julgamento, mas também outras situações análogas ou de valor equivalente, designadamente aquelas em que num processo é proferida decisão final, sem que, todavia, tenha havido lugar àquele conhecido ritualismo.
É o que sucede com a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento ou por desistência de queixa, situações em que, obviamente, o respetivo beneficiário não pode ser perseguido criminalmente pelo crime ou crimes objeto da respetiva declaração de extinção da responsabilidade criminal.
Este era o sentido, aliás, expressamente inserto no Código de Processo Penal de 1929 (cfr. o art.º 149.º) que textualmente estabelecia que «Quando por acórdão, sentença ou despacho, com trânsito em julgado, se tenha decidido que um arguido não praticou certos factos, que por eles não é responsável ou que a respectiva acção penal se extinguiu, não poderá contra ele propor-se nova acção penal por infracção constituída, no todo ou em parte, por esses factos, ainda que se lhe atribua comparticipação de diversa natureza.»
Relativamente ao inciso mesmo crime também se verifica que tal não deve nem pode ser interpretado no seu estrito sentido técnico-jurídico.
É que o termo crime tem, por um lado, como referente, a ação ou omissão previamente declarada punível e cujos pressupostos devem estar fixados em lei anterior, ou que seja considerada criminosa segundo os princípios gerais de direito internacional comummente reconhecidos (cfr. o art.º 29.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição); por outro lado, a conduta do agente que se torna como referência (n.º 4 do citado normativo); e, por outro ainda, o ato praticado pelo agente e que é objeto de sentença condenatória (cfr. art.º 27.º, n.º 2).
Assim, crime significa, aqui, um comportamento de um agente espácio temporalmente delimitado e que foi objeto de uma decisão judicial, melhor, de uma sentença ou de decisão que se lhe equipare.
Entender o termo crime empregue no n.º 5 do art.º 29.º da Constituição como referência a um determinado tipo legal, a uma certa e determinada descrição típica normativa de natureza jurídico-criminal, seria esvaziar totalmente o conteúdo do preceito, desvirtuando completamente a sua ratio e em frontal violação com os próprios fundamentos do caso julgado. Um tal entendimento, traduzir-se-ia numa insuportável violação da paz jurídica e da segurança do cidadão, ao ponto de afetar e destituir de sentido – ao esvaziar todo o conteúdo útil do caso julgado – a própria estrutura acusatória em que assenta o nosso direito processual penal. Seria permitir – o que é inaceitável – que aquele que, por exemplo, foi julgado e condenado por ofensa à integridade física grave (cfr. os artgs 143.º e 144.º do Código Penal), pudesse, pelos mesmos factos, ser segunda vez submetido a julgamento e eventualmente condenado por homicídio se a vítima, entretanto, viesse a falecer em virtude das lesões sofridas pela agressão (cfr. o art.º 131.º do Código Penal).
O termo crime não deve pois ser interpretado literalmente, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível a determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar.
O que o artigo 29.º, n.º 5, da CRP, proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objeto do processo possa fundar um segundo processo penal.
Também o TEDH, depois de algumas derivações mais normativistas, decidiu harmonizar o conceito de mesmo crime (no caso Sergey Zolotukhin c. Rússia, em 2009) no sentido de admitir a ocorrência de bis in idem quando houver coincidência total ou parcial entre os factos, i. e., quando o conjunto de factos sejam idênticos (os mesmos factos) ou substancialmente idênticos (tal jurisprudência viria a ser sucessivamente mantida noutros arrestos, mantendo-se estável desde então).
Fixado o sentido do termo crime, convirá agora precisar o que se deve entender por comportamento referenciado ao facto, como expressão da conduta penalmente punível, consabido que o instituto do caso julgado só funciona quando existe identidade de facto e de sujeitos constantes de uma decisão irrevogável sobre a mesma questão ou, por outras palavras, o que se deve entender por mesmo objeto processual.
À luz do que ficou dito, decorre que o conteúdo e limites do caso julgado só podem ser fornecidos pelo objeto do processo; sendo o objeto do processo o mesmo, estaremos perante a exceptio judicati, caso contrário não ocorrerá violação do princípio in bis in idem.
Ora, comportamento referenciado ao facto, como expressão da conduta penalmente punível, não pode deixar de ser o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação e julgamento de um tribunal. Daqui resulta que todos os factos praticados pelo arguido até decisão final e que diretamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido haverão de ser considerados como fazendo parte do objeto do processo.
Deste modo, de acordo com esta visão naturalística, ter-se-á de concluir que ainda que aqueles não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, certo é não poderem ser posteriormente apreciados, já que a sua apreciação violaria frontalmente a regra ne bis in idem, entrando em aberto conflito com os fundamentos do caso julgado.
Tal asserção não encerra em si mesma qualquer hipostasia, já que o nosso processo penal, como é sabido, tendencialmente fornece todos os mecanismos necessários para uma apreciação esgotante do facto processual e, portanto, a possibilidade de se alcançar a verdade material e, consequentemente, uma justa decisão do caso concreto. Aliás, a não ser assim, far-se-ia responder o arguido pela negligência de outros na prossecução da justiça, ou pelos inevitáveis vícios do sistema, acabando, em última análise, por se frustrarem as legítimas expectativas de quem foi julgado e sentenciado, ou viu a sua responsabilidade criminal extinta por decisão judicial, comprometendo assim, inabalavelmente, o respeito pela própria dignidade da pessoa humana e pelos tribunais (cfr. Frederico Isasca, ob. cit., págs. 228 e 229).
Pronunciando-se sobre esta concreta problemática, obviamente, à luz das disposições legais constantes do Código de Processo Penal de 1929, sem prescindir, porém, de uma visão global sobre o assunto, expressamente refere o Professor Cavaleiro de Ferreira [in Curso de Processo Penal (1958), III, págs. 52 e53] que «Os “mesmos factos” nos artigos 149 e 150, serão ainda idêntico facto quando a identidade real não for total, mas apenas parcial. E é de inferir que similar identidade parcial se deve admitir quanto ao artigo 148 e ainda relativamente ao caso julgado condenatório.»
Para se dar conta da extensão do caso julgado, em função da identidade do facto, nos dois processos, a doutrina gizou alguns critérios de definição de facto, sob este ponto de vista processual. Para uns o facto seria equivalente a crime; a noção de facto, do ponto de vista do direito penal, seria a mesma.
Não é de aceitar esta orientação, pois que, como já referimos, o facto é de considerar, processualmente, como um evento naturalístico, objeto de investigação e de prova. Acresce que a lei é unívoca ao impedir nova apreciação dos mesmos factos, seja qual for a qualificação jurídica que lhes é atribuída.
O mesmo autor acrescenta ainda que «a extensão do caso julgado obedece ao princípio de evitar a renovação de processos relativamente a factos que já poderiam ter sido apreciados judicialmente, o que importa é partir da própria lei positiva e esta oferece-nos base orientadora para uma solução.
A identidade parcial pode verificar-se de modo que o facto, objecto de novo processo, seja mais restrito do que o facto apreciado por sentença transitada em processo anterior. Em tal caso, nenhuma dificuldade surge: todo o facto trazido de novo perante a jurisdição cabe no interior do facto apreciado.
E mesmo a hipótese inversa, aquela que consideram os artigos 149 e 150, do Código de Processo Penal; os factos trazidos ao novo processo vão além, porque só em parte coincidem com o facto já julgado.
De comum, para fundamentar naturalisticamente a identidade, deve atender-se aos factos praticados, ou seja, à acção. Podem variar as circunstâncias, os elementos acidentais da actividade que constitui objecto do processo, mas não a própria acção. E por isso haverá caso julgado material quando se acusa em novo processo pela mesma acção, embora acrescida de novas circunstâncias, embora seja diferente o evento material que se lhe segue, embora seja diversa a forma de voluntariedade (dolo ou culpa)».
E no mesmo sentido, fazendo porém apelo a um critério não coincidente, já que não naturalístico, mas essencialmente normativo, especialmente no que concerne à problemática atinente aos poderes cognitivos do juiz, pronunciou-se o Professor Eduardo Correia (in Caso Julgado…, págs. 304 e ss.), obviamente, também à luz da lei adjetiva de 1929.
Referiu aquele insigne Professor que o objeto ao qual é mister pôr o problema da identidade do facto como pressuposto do caso julgado há de ser o próprio conteúdo da sentença, não só nos expressos termos em que é formulada, mas ainda naqueles até onde se podia e devia estender o poder cognitivo do tribunal. A força consumptiva de uma sentença relativamente a futuras condenações e processos há de ser medida pelos devidos limites do seu objeto, ou seja, estender-se até onde o juiz tenha o poder e o dever de apreciar os factos submetidos ao seu julgamento.
Deste modo, aquilo que, devendo tê-lo sido, não se decidiu diretamente, tem de se considerar indiretamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tomar-se como decidido tacitamente.
O juiz tem, pois, de estender a sua atividade cognitiva até onde pode e deve. E é pelos limites deste dever de cognição que se deve medir o âmbito do conteúdo da sentença e, portanto, os termos da sua força consumptiva relativamente a futuras acusações. A esta luz, o problema de saber os limites da eficácia do caso julgado em matéria penal está, assim, logicamente condicionado por este outro de determinar até que ponto pode e deve ir a atividade cognitiva do juiz.
E mais adiante, ao debruçar-se sobre o conteúdo e âmbito do facto como pressuposto do caso julgado e da atividade cognitiva do juiz relativamente a situações de continuação criminosa, referiu que «se algumas actividades que fazem parte da continuação criminosa foram já objecto de sentença definitiva, ter-se-á de considerar consumido o direito de acusação relativamente a quaisquer outras que pertençam a esse mesmo crime continuado, ainda que elas de facto tivessem permanecido estranhas ao conhecimento do juiz. (…) Se o juiz se convence, na verdade, de que tais actividades constituem tão só elementos de um crime continuado, que já foi objecto de um processo, será forçado a concluir que elas deveriam ter sido aí apreciadas. Ainda, pois, que o não tivessem sido, tudo se passa como se assim fosse, estando, por isso, consumido e extinto o direito de as acusar e podendo-se opor sempre ao exercício da respectiva acção penal a excepção ne bis in idem.»
Todavia, no que ao crime continuado concerne, a disposição do n.º 2 do art.º 79.º do CPP (na redação introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04.09), abre uma exceção ao estipular que «Se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior», dando assim expressa guarida legislativa a solução preconizada no anterior quadro legislativo por jurisprudência que se vinha paulatinamente sedimentando nos nossos tribunais superiores (cfr., por exemplo, os acs do STJ de 04.07.1990, in CJ, XV, 3, 25; e de 04.11.1992, in CJ, XVII, 5, 5).
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Aqui chegados e tomando em conta estas considerações atinentes ao caso julgado e aplicando tais princípios, com as necessárias adaptações, ao caso dos autos (pois não está em causa um ato jurisdicional, mas um despacho de arquivamento proferido noutro processo pelo M.P.), sinteticamente cabe referir o seguinte:
Conforme assim se entendeu na sentença recorrida, para o efeito de se evitar a dupla perseguição criminal pelos mesmos factos, o que releva é a identidade factual em ambos os processos e não a sua qualificação jurídica, ou, numa expressão, o que releva é o mesmo pedaço de vida.
O objeto dos presentes autos, tal como definido pela acusação, abarca dois conjuntos de factos, uns alegadamente ocorridos em outubro/novembro de 2022 e outros alegadamente ocorridos a 14.12.2022 (dizendo assim respeito a outros tantos crimes, na aceção que já vimos), sendo certo que no processo de inquérito n.º ... estava em causa o grupo de factos alegadamente ocorridos a 14.12.2022.
Isto significa que o objeto dos presentes autos, sendo mais vasto, abarca também a totalidade dos factos participados e que deram origem aos autos de inquérito n.º ....
Ademais, para o que ora releva, não cabe discutir da bondade do entendimento vertido no despacho de arquivamento proferido no processo de inquérito n.º ... (de que os factos participados integram a alegada prática de crime semipúblico), reportados ao mesmo conjunto de factos alegadamente ocorridos a 14.12.2022, os quais constituem uma unidade de sentido quer do ponto de vista temporal quer do ponto de vista de tal alegada atuação se subordinar a uma mesma resolução criminosa por banda do agente.
Além disso, há também identidade subjetiva em ambos os processos, pois o visado em ambos é o arguido AA.
E, conforme aduziu o tribunal a quo, é também certo que, não sendo o despacho de arquivamento um ato jurisdicional, não faz caso julgado (dentro e fora do processo), mas pode fazer caso decidido (justamente para preservar a paz jurídica do visado, como decorrência do comando constitucional ínsito no n.º 5 do art.º 29.º da CRP).
Também é certo que o despacho de arquivamento proferido pelo M.P. no âmbito do proc. n.º ... não foi impugnado por quem de direito, seja hierarquicamente seja por via de requerimento para abertura de instrução (cfr. os artgs 278.º e 287.º do CPP) e, dado que as razões aduzidas para o arquivamento dizem respeito a questão de procedibilidade do procedimento criminal (falta de legitimidade do M.P. para a ação penal por falta de queixa), nunca se colocaria a hipótese de reabertura do inquérito nos termos do art.º 279.º do CPP (dispõe o n.º 1 de tal preceito o seguinte: «Esgotado o prazo a que se refere o artigo anterior, o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento»).
Todas estas premissas foram consideradas na sentença recorrida, mas o tribunal a quo desconsiderou que a razão subjacente ao despacho de arquivamento proferido naquele processo de inquérito assentou numa questão de procedibilidade não exaurida, isto é, à data, revertível.
Com efeito, à data, mesmo partindo do entendimento que o crime ali em causa tem natureza semipública, a ofendida ainda estava em tempo de apresentar a respetiva queixa.
É certo que no atual CPP deixaram de existir as modalidades de arquivamento provisório e definitivo estabelecidas no DL n.º 35007 e o caso dos autos não se enquadra na previsão legal do n.º 1 do art.º 279.º do CPP, mas, dada a precipitação temporal daquele despacho de arquivamento, com referência aos seus fundamentos, o caso decidido, ao fim ao cabo, subordinou-se àqueles – e só àqueles - concretos fundamentos para arquivar.
Na verdade, «Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: O caso julgado incide sobre decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão» (Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., págs. 578 e 579).
Não subsistindo os fundamentos em que assentou aquele despacho de arquivamento, visto que a ofendida, nestes autos, a 07.02.2023 manifestou o desejo de procedimento criminal também quanto ao sucedido a 14.12.2022 (logo, dentro do período temporal a que se reporta ao art.º 115.º, n.º 1, do Código Penal), nada impedia que aqueles factos aqui fossem considerados no inquérito, por eles fosse o arguido acusado e – assim determinado o objeto processual – sobre eles houvesse a obrigação de o tribunal a quo se pronunciar na sentença recorrida.
Com efeito, «[…] casos há, porém, em que o impedimento é provisório, não obstando a uma nova investigação. No exemplo mais simples, se o MP arquivar o inquérito por falta de queixa (art. 49.º), nada impedirá que o ofendido supere essa deficiência, desde que o faça dentro dos prazos previstos para o efeito, dando origem a um novo processo» (João Conde Correia in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, 2.ª ed., pág. 1074, Almedina, fev. de 2022).
É justamente o caso dos autos, daí que proceda o argumento aduzido pelo recorrente a respeito da questão enunciada em II-i), devendo ser revogada a sentença nessa parte em conformidade.
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Por via do entendimento expresso na sentença recorrida não consta da motivação de facto o acontecimento referente ao dia 14.12.2022, nem dela foram retiradas as necessárias consequências jurídicas.
Não obstante, nem por isso ocorre nulidade da sentença por força do disposto no art.º 379.º, n.º 1, als a) e c) do CPP.
Vejamos porquê.
Prescreve esse preceito legal, na parte que para aqui interessa, o seguinte:
«1 – É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
[…]
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
[…].»

Na lógica intrínseca da sentença – mercê do entendimento vertido a propósito da aludida questão prévia – o tribunal a quo não omitiu nenhum dos elementos a que se reporta a al. a) do n.º 1 do preceito citado, nem mesmo se absteve de se pronunciar em relação a todas as questões que lhe cumpria conhecer.
Como assim, não estamos no plano da nulidade da sentença recorrida, mas no plano do seu mérito quanto à decisão da questão prévia atinente ao não conhecimento dos factos ocorridos a 14.12.2022 por suposta violação do princípio ne bis in idem.
Prendendo-se com o seu mérito, a consequência do entendimento expendido supra neste aresto quanto a tal questão será assim o da revogação da sentença naquele segmento.
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De todo o modo, não ocorrendo a nulidade da sentença proferida pelo tribunal a quo, nem ocorrendo qualquer um dos vícios a que aludem as diversas alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, o certo é que inexiste decisão proferida pela 1.ª instância quanto aos factos imputados ao arguido alegadamente ocorridos a 14.12.2022 – que fazem parte do objeto do processo tal como definido pela acusação -, o que significa que o recorrente não poderia, nesta fase, impugnar a matéria de facto a eles atinentes, por falta de objeto recursório.
Como tal, os autos deverão regressar à 1.ª instância de modo a que se profira nova sentença que expressamente se pronuncie sobre aqueles factos (no sentido da prova ou não prova dos mesmos), proceda à respetiva qualificação jurídica e profira decisão de absolvição ou de condenação quanto a eles (neste caso, com a escolha da pena a impor, com a sua determinação da concreta e, se as penas impostas tiverem a mesma natureza, com a determinação concreta da pena única resultante do concurso de crimes).
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III – Das custas
Dispõe o art.º 513.º do CPP o seguinte:
«1. Só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1ª instância e decaimento total em qualquer recurso.
2. O arguido é condenado em uma só taxa de justiça, ainda que responda por vários crimes, desde que sejam julgados em um só processo.
3. A condenação em taxa de justiça é sempre individual e o respetivo quantitativo é fixado pelo juiz, a final, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais.
4. […]».

Não tendo sido o arguido a interpor o presente recurso, tem-se entendido que não deverá ser condenado no pagamento de taxa de justiça, pois, para além não de não ter decaído totalmente, o decaimento total a que se reporta o preceito acima citado apenas diz respeito ao recurso interposto pelo próprio arguido (neste sentido, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da república e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Vol. II, 5.ª ed. atualizada, pág. 832, nota 8, Universidade Católica Editora, junho de 2023).
O recorrente (M.P.), por seu turno, está isento do pagamento de custas [cfr. o art.º 522.º, n.º 1, do CPP, e o art.º 4.º, n.º 1, al. a), do RCP, aprovado pela Lei n.º 34/2008, de 26.02].
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DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes desembargadores subscritores, desta 4.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público pelo que:
A - revogam a sentença proferida quanto à questão prévia atinente ao não conhecimento dos factos alegadamente ocorridos a 14.12.2022 por suposta violação do princípio ne bis in idem, os quais deverão ser oportunamente conhecidos de mérito por integrarem o objeto do processo tal como definido pela acusação; e,
B – em consequência, determinam que o tribunal a quo – se possível pela mesma Mm.ª juíza – profira nova sentença em que aprecie os factos imputados na acusação ao arguido e alegadamente ocorridos a 14.12.2022, nos termos que constam da fundamentação deste aresto, seguindo-se depois os demais tramites legais até final.
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Sem tributação nesta instância recursória (cfr. o ponto III da «FUNDAMENTAÇÃO»).
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Registe e notifique (art.º 425.º, n.ºs 3 e 6, do CPP).

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Porto, 22 de janeiro de 2025.
(Texto processado por computador, composto e revisto pelo 1.º signatário)

Os Juízes Desembargadores,

José Castro (relator)
Maria Deolinda Dionísio (1.ª adjunta)
Carla Carecho (2.ª adjunta)

(Assinaturas eletrónicas no canto superior esquerdo da 1.ª página)