Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP00033475 | ||
| Relator: | SOUSA LEITE | ||
| Descritores: | ACIDENTE COMBOIO VEÍCULO AUTOMÓVEL PASSAGEM DE NÍVEL | ||
| Nº do Documento: | RP200202280131952 | ||
| Data do Acordão: | 02/28/2002 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recorrido: | T J OVAR 1J | ||
| Processo no Tribunal Recorrido: | 235/98 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
| Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO. | ||
| Área Temática: | DIR CIV - DIR RESP CIV. | ||
| Legislação Nacional: | CCIV66 ART486 ART508 N3 ART563. DL 156/81 DE 1981/09/06 ART2 N1 N2 ART4 ART7 ART9 ART10 N2 N3 N4 ART11 ART15 N4 ART22 B ART29 N1 N2. | ||
| Sumário: | Não se verificando por parte da REFER a omissão da prática de qualquer determinação que o legislador haja imposto relativamente às passagens de nível já construídas e utilizadas para o atravessamento da via férrea por veículos motorizados, não pode ela ser responsabilizada pelo acidente que, na passagem de nível de Ovar, ocorreu entre o comboio Alfa e um veículo automóvel que a atravessava. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto I – Na comarca de ............, Manuel .............., por si e em representação de sua filha menor Ana ........... intentou acção sumária contra Caminhos de Ferro Portugueses, EP, a que sucedeu posteriormente a REDE FERROVIÁRIA NACIONAL – REFER, EP, na qual peticionou o pagamento da quantia de esc. 89.597.700$00, correspondente aos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhes advieram de um acidente de viação, em que foi interveniente uma composição ferroviária propriedade da Ré e um veículo automóvel conduzido pelo cônjuge e mãe dos AA, que, ao pretender atravessar uma passagem de nível, foi colhida por aquela composição, tendo, de tal acidente, resultado o seu óbito, o qual é da exclusiva responsabilidade da Ré, em virtude da inexistência de condições de visibilidade, por falta de limpeza da vegetação que ladeia a via férrea, e de falta da sinalização devida. Contestando, a Ré veio impugnar o alegado pelos AA, referindo a culpa exclusiva da condutora do veículo automóvel na produção do acidente. Prosseguindo o processo os seus normais termos, a presente acção foi apensa à acção sumária n.º ...../.., pendente no mesmo tribunal, em que era A a ora Ré e demandada a Companhia de Seguros ..........., S A, na qualidade de seguradora do veículo automóvel interveniente no acidente. Realizada a audiência de julgamento conjunta, o tribunal respondeu à matéria de facto da base instrutória, pela forma que consta do despacho de fls. 88 a 95. Proferida sentença, a acção foi julgada improcedente, na parte respeitante aos ora AA, que, da mesma, apelaram, tendo, nas suas alegações, apresentado as conclusões que se juntam por fotocópia. Conclusões 56. Os Recorrentes consideram incorrectamente julgados os factos a que se reterem os quesitos 30°, 31 ° e 32°, tendo em conta que ficou provado que a condutora do veículo o parou antes de entrar na passagem de nível (cfr. resposta ao quesito 4° do processo n°235/98); que as respostas àqueles quesitos se estribaram exclusivamente nos depoimentos do condutor e maquinista do comboio; que o comboio, no momento do embate, se deslocava à velocidade de 140 Km/h. 57. Sendo notório ou, pelo menos, assim deveria ter sido presumido, que a condutora do veículo automóvel jamais teria reiniciado a marcha se não se tivesse previamente certificado, quando parou, que o poderia fazer com segurança. 58. Sendo igualmente notório ou, pelo menos, assim deveria ter sido presumido, que era manifestamente impossível, de acordo com a experiência e senso comum, que os ditos condutor e maquinista do comboio pudessem alguma vez testemunhar que a condutora do veículo automóvel não escutou nem olhou antes de atravessar a passagem de nível, ou seja. é manifestamente impossível que tivessem testemunhado o comportamento sensitivo, reflexo e intelectual, do foro estritamente pessoal, da condutora do veículo depois desta ter parado e antes de ter entrado na linha férrea 59. Aliás, as mesmas testemunhas afirmaram, perante a comissão a comissão de inquérito da DGTT. que se encontravam a cerca de 250/300 m do automóvel quando o avistaram, o que significa. atenta a velocidade em que seguiam. que não terão decorrido mais de 7 segundos até ao embate, o que, conjugado com a existência de vegetação que limitava a visibilidade. retorça ainda mais a impossibilidade de tais testemunhas poderem alguma vez testemunhar que a condutora do automóvel não olhou nem escutou antes de reiniciar a sua marcha. 60. Assim, as respostas aos quesitos 30°, 31° e 32º, porque assentes em incorrecto julgamento da matéria de facto, na opinião dos Recorrentes, não poderiam servir de base ao entendimento subjacente à douta Sentença recorrida - de que o acidente em causa se deveu a culpa exclusiva da condutora do veículo automóvel. 61. Os Recorrentes impugnam ainda a resposta ao quesito 35°, segundo a qual foi dado por provado que o maquinista do comboio reduziu a velocidade, tendo em conta, por um lado. as declarações prestadas pelo maquinista e condutor do comboio à comissão de inquérito da DGTT (cfr. docs. de fls. 113 e ss.) e, por outro, a resposta ao quesito 9°. 62. Por outro lado, verificou-se uma errónea apreciação da resposta ao quesito 33°, segundo a qual foi dado por provado que a 3,5 m do carril mais próximo, atento o sentido de marcha do automóvel, o comboio em causa era visível para a condutora do mesmo a uma distância de 400 m, já que essa visibilidade, ao contrário do que está subjacente à douta Sentença recorrida, era manifestamente insuficiente para garantir um mínimo de segurança na travessia da passagem de nível (cfr. o relatório da comissão de inquérito da DGTT , a fls. 113 e ss., o relatório da GNR, a fls. 129 e ss. os depoimentos gravados das testemunhas Jorge ........... - vide lado A da cassete I e, no lado B da mesma cassete, de 00 do contador ao n° 16, e Victor ......... - vide lado B da cassete I, do nº 17 até final, e lado A da cassete II). 63. Aliás, conforme os depoimentos gravados destas testemunhas (vide gravações aludidas), a visibilidade a 3,5 m tinha por ponto de referência a localização do condutor dentro do veículo automóvel e não a distância entre o carril mais próximo e o limite frontal desse mesmo veículo automóvel, sendo que, conforme decorre do manual de instruções do veículo sinistrado junto aos autos, entre o lugar de condutor e o limite frontal da viatura em causa distam cerca de 2m, e que, conforme fotografias juntas aos autos (cfr. fls. 121) e os referidos depoimentos gravados das testemunhas Jorge ............ e Victor ........... os limites exteriores laterais da composição ferroviária em causa extravasam cerca de 0,5 m para fora de cada um dos dois carris. 64. motivos estes pelos quais se afiguram incorrectamente julgados os factos a que se reterem os quesitos 8°, 13°, 14°, e, sobretudo. incorrecto o entendimento subjacente à douta Sentença recorrida de que a condutora do veículo automóvel dispunha de condições de visibilidade para fazer o atravessamento da passagem de nível em segurança. 65. Aliás, precisamente por falta dessa segurança é que, conforme resposta ao quesito 20°, foi dado por provada a interdição ao trânsito de veículos na passagem de nível em causa passados apenas oito dias em relação à data do acidente e que, conforme matéria de facto assente sob a alínea L, foi dado por provado que depois do acidente “sub judice” foram colocados dois sinais de perigo de aproximação de passagem de nível sem guarda, factos estes indevidamente omitidos na apreciação subjacente à douta Sentença recorrida. 66. Como omitida foi a resposta ao quesito 49°, segundo a qual, em 11.05.97, tinha ocorrido outro acidente na mesma passagem de nível, em tudo semelhante ao dos presentes autos, conforme resulta da análise da “participação de acidente de viação” junta aos autos a fls. 130, factos que, contudo, não mereceram da Recorrida qualquer atitude para evitar acidentes subsequentes. 67. Ao contrário do que está subjacente à douta Sentença recorrida, dos autos resultam meios de prova que atestam que o acidente em causa se ficou a dever à falta de visibilidade da condutora do veículo automóvel (motivada pela existência de vegetação do lado direito da sua faixa de rodagem até ao limite da via férrea - vide factos assentes sob a al. M) e resposta ao quesito 2°), designadamente o relatório da GNR de ........, a fls. 129 e ss., no qual é afirmado que "...segundo esta Guarda apurou, os acidentes que ocorreram teria sido por falta de visibilidade dos condutores", referindo-se também ao acidente ocorrido em 11.05.97. 68. Assim e ao contrário do que se entende na douta Sentença recorrida, não pode resultar "...incontroverso que o acidente ficou a dever-se, exclusivamente. a culpa da condutora do XH”. 69. Ao contrário do que foi pressuposto na douta Sentença recorrida, a passagem de nível em causa não estava classificada como do "tipo D", atento o disposto no DL n° 156/81, de 9/6, mas (erradamente) como passagem de nível de "5ª categoria", à luz do DL n° 39780, de 21.08.195, atenta sua suposta utilização esporádica exclusivamente por veículos agrícolas (cfr. os referidos depoimentos gravados das testemunhas Jorge ......... e Victor ........, e docs. de fls. 113 e ss.), não tendo a Recorrida efectuado a sua reclassificação segundo os novos critérios introduzidos pelo DL n° 156/81, de 9/6. 70. Com efeito. está em causa uma errada classificação da passagem de nível em causa - por erro (exclusivamente imputável à Recorrida - vide respostas restritivas e negativas aos quesitos 39º, 40°, 41º, 45° e 46°) sobre os pressupostos de facto que lhe estariam subjacentes, e, consequentemente, a má sinalização da mesma e a inexistência de dispositivos de segurança adequados, tudo da responsabilidade da Recorrida, atentas, designadamente, as respectivas condições de visibilidade, o tráfego automóvel existente e a sua frequência, bem como o tipo, frequência e velocidade das composições ferroviárias que por lá passavam. 71. Sendo certo que, não obstante o artigo 2° n° 1 do DL n° 156/81, de 9/6, afirmar que a dita reclassificação deveria dar-se progressivamente por decisão do caminho de ferro (CF), é evidente que, além dessa disposição legal atribuir a correspondente responsabilidade ao CF, não desresponsabiliza a mesma entidade de adoptar, tão rápido quanto necessário, todas as medidas necessárias para evitar acidentes nas passagens de nível, particularmente no caso “sub judice”, em que, antes do acidente em causa, outro havia ocorrido nas mesmíssimas circunstâncias. 72. Sendo certo que, atendendo ao equipamento de que estava dotada a passagem de nível em causa, esta seria do tipo D, por força do disposto no artigo 9° do RPN, enquanto não se procedesse à sua reclassificação, desse facto decorre a obrigatoriedade, por parte dos CF, de pelo menos, assegurar a zona de visibilidade a que alude o artigo 11° do RPN (cfr. nos 5 e 6 deste preceito legal e 23° n° 1 a) e b) do RPN), o que não se verificou nos presentes autos tal como não se verificou que estivesse marcada no pavimento linha de paragem com a inscrição "STOP" a que alude o n° 4 do artigo 15° do RPN (já que se trata de uma estrada municipal). 73. Sendo certo que, nos termos da al. b) do artigo 22° do RPN, as passagens de nível do tipo D apenas podem estar desguarnecidas se equipadas de acordo com o estabelecido no RPN para o respectivo tipo. 74. Por outro lado, ao contrário do que se sustenta na douta Sentença recorrida, a passagem de nível em causa, caso tivesse sido oportunamente reclassificada, como deveria, por decisão dos CF, jamais sê-lo-ia como do tipo D, atentos os sinais dos autos e o disposto no artigo 10° do RPN - deveria ser do tipo A ou E, com a consequente obrigatoriedade de adopção do respectivo equipamento de segurança. prescrito nos nºs 1 e 2 do artigo 15° do RPN. 75. Por outro lado, é indubitável que da conjugação do disposto no nº1 do artigo 2° e no artigo 4º do DL n° 156/81, de 9/6, com o disposto nos artigos 9º e 11° do RPN jamais se pode extrair conforme se faz na douta Sentença recorrida que atentos os sinais dos autos, podia e não seria susceptível de qualquer censura a existência de uma passagem de nível que não dispondo de guarda, cancelas, barreiras, sinais luminosos ou sonoros de aviso de aproximação de comboios, que atravessa a linha do Norte, onde o tráfego ferroviário é intenso e onde circulam composições ferroviárias a velocidades na ordem dos 140 Km/h, e que é atravessada por veículos automóveis com bastante frequência, pudesse. ainda assim, não dispor sequer da zona de visibilidade que vem definida no artigo 11º do RPN. 76. Com efeito, jamais se poderia concluir que o legislador, com o disposto no n°1 do artigo 2º do DL n° 156/81, de 9/6, ao prescrever que a aplicação do disposto, entre outros, no artigo 11° do RPN, teria lugar progressivamente por decisão do CF, alguma vez permitisse ou legitimasse uma situação como aquela que está subjacente aos presentes autos, i. e., que alguma vez tivesse admitido a subsistência de uma passagem de nível com um elevadíssimo risco de acidente para os condutores rodoviários. 77. Mais, a douta Sentença recorrida omitiu o disposto no n°3 do artigo 9° do Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo dito DL n° 39 780, de 01.08.1954, segundo o qual a Recorrida "...adoptará, quer no material circulante, quer nas instalações fixas os dispositivos de segurança que a técnica ferroviária aconselhará...". 78. Assim, não só é errónea a pressuposição de que o acidente em causa se deu exclusivamente por culpa da condutora do veículo automóvel, como é indubitável que a Recorrida é responsável pela inexistência das necessárias condições de segurança na passagem de nível em causa, ao não agir com a diligência necessária e adequada para evitar o perigo motivado pela existência de tal passagem de nível nas condições que resultam dos autos, particularmente quando outro acidente havia ocorrido antes do acidente "sub judice", falta de condições essas que foram a causa do acidente, conforme, aliás. se reconhece no referido relatório da GNR. 79. Com a consequente obrigação de indemnização dos Recorrentes a cargo da Recorrida, nos tem1os por força, entre outros, do disposto nos artigos 483°, 486°, 487° n° 2, 493°, 495°, 496º, 500°, 501°, 503°, 506° e 562° e ss, do CC. 80. Assim, a douta Sentença recorrida interpretou e aplicou erradamente aos factos o disposto, entre outros, nos artigos 2° e 4° do DL n° 156/81, de 9/6, bem como o disposto nos artigos 11º, 13º, 22° e 24° n°1 do RPN, e nos artigos 483° e 503º nº 3 do CC. Nestes termos, nos melhores de Direito e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente Recurso, anulando-se a Douta Sentença recorrida e assim se fazendo inteira JUSTIÇA. Contra alegando, a recorrida pronunciou-se pela confirmação integral do decidido. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar. + + + + + + II – Nas conclusões apresentadas, os recorrentes começam por impugnar a decisão proferida pelo tribunal a quo, relativamente a alguns pontos da matéria de facto vertida na base instrutória.Assim, e antes de se proceder à análise do enquadramento jurídico da factualidade tida como provada, posto em crise pelos recorrentes, há que apreciar aquela suscitada impugnação, uma vez que, a ter lugar a sua procedência, óbvia e necessariamente que, decorrente de tal alteração, terá de ser proferida decisão diversa da prolatada, no que respeita à matéria de direito. + + + + + + III – Ora, convirá desde já salientar, que a alteração, por esta Relação, das respostas dadas à matéria de facto pelo tribunal recorrido, apenas pode ter lugar nos restritos termos consagrados no n.º 1 do art. 712º do CPC, ou seja, e na parte ora com relevância para o conhecimento do objecto do presente recurso, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de fundamento às respostas impugnadas, se tiver tido lugar a gravação dos depoimentos prestados, ou, ainda, se os elementos probatórios constantes do processo impuserem, irrefutavelmente, decisão diversa daquela que foi proferida – als. a) e b).Assim, os apelantes começam por alegar a ocorrência de incorrecto julgamento da matéria vertida nos arts. 30º), 31º) e 32º), tendo em consideração a resposta ao art. 4º) no processo n.º ...../.. e a circunstância das mesmas se terem estribado exclusivamente nos depoimentos do condutor e maquinista do combóio, o qual no momento do embate circulava à velocidade de 140 Km/h – conclusões 56ª) a 59ª). Com efeito, relativamente àquela questionada matéria, foram tidos como provados os seguintes factos: A condutora do XH, após ter parado, entrou na referida passagem de nível, com a intenção de a atravessar – (4º) da acção sumária n.º 235/98. A Maria ........... fez entrar o XH na referida passagem de nível, sem escutar e sem olhar previamente e sem se certificar, antes de assim entrar, de que não se aproximava qualquer combóio e de que não havia risco de colisão – - (30º), (31º) e (32º), constando da respectiva fundamentação, que tais respostas se fundaram nos depoimentos prestados pelo condutor e pelo maquinista do combóio – vide fls. 89 e 93. Todavia, não constando dos autos aqueles indicados depoimentos, vigora, na sua total plenitude, o princípio da livre apreciação da prova pelo tribunal – art. 655º, n.º 1 do CPC -, estando, portanto, precludida, a esta instância de recurso, toda e qualquer possibilidade de sindicar as questionadas respostas. Mas, a alegação dos recorrentes da impossibilidade daqueles depoentes terem percepcionado a factualidade antecedentemente enunciada, em consequência da vegetação que lhes limitava a visibilidade e da velocidade a que circulava a composição rodoviária, pode ser facilmente contrariada pela circunstância de que, tendo ficado provado que a percepção da composição ferroviária pelo veículo automóvel atingia a distância de 400m – (33º) e (42º) – aqueles depoentes podiam, sem sombra de dúvida, ter vislumbrado o arranque instantâneo daquele veículo, após ter parado, pensamos nós pela diferença do piso que cobre as vias rodoviárias e as passagens de nível, arranque esse só justificável pela falta de visualização do tráfego ferroviário, mas, competindo, como se referiu, ao tribunal recorrido, a aferição da credibilidade dos depoimentos perante o mesmo prestados, não podemos pôr em crise, através de meras presunções naturais, manifestamente ilidíveis através da prova testemunhal - RLJ 122º/223 e 123º/60 -, a convicção formada pelo julgador sobre o conteúdo de tais depoimentos. Questionam, igualmente, os recorrentes a resposta dada ao art. 35º), face às declarações prestadas à comissão de inquérito e à resposta ao art. 9º) – conclusão 61ª). Porém, desde já se esclarecem os apelantes, que o apurado em sede de inquérito da DGTT, não reveste qualquer força probatória em sede jurisdicional e, embora as conclusões do mesmo possam ser juntas aos autos em qualquer estado do processo – art. 525º do CPC – a sua utilização, como meio probatório, obviamente sujeito à livre apreciação do tribunal, deve, como elemento de esclarecimento do julgador, no que respeita ao apuramento da verdade material, ser confrontado, no momento processual próprio – audiência de julgamento -, com a prova testemunhal produzida sobre os factos relativamente aos quais tais conclusões se prendem directamente, de tal decorrendo que a sua relevância é nula, no que respeita à sua utilização por esta instância de recurso, para os efeitos do art. 712º, n.º 1, al. b) do CPC. Por outro lado, e no que diz respeito a uma eventual contradição entre as respostas aos arts. 9º) e 35º), ainda que, como tal, os apelantes não hajam qualificado aquela sua apontada discordância, relativamente à resposta dada pelo tribunal ao último daqueles indicados artigos, dir-se-á, desde logo, que o primeiro refere-se à velocidade de que vinha animada a composição ferroviária, enquanto que, o restante reporta-se aos procedimentos de emergência levados a cabo pelo seu condutor, no sentido de tentar a sua imobilização, o que, convenhamos, se traduz na descrição de factos distintos e diversos, ainda que inseridos num mesmo processo dinâmico, de que infelizmente resultaram as trágicas consequências descritas nos autos. Alegaram também os apelantes a errónea resposta do tribunal à matéria dos arts. 8º), 13º), 14º) e 33º), perante o já antecedentemente referenciado relatório da comissão de inquérito, o relatório da GNR e os depoimentos gravados das testemunhas Jorge .......... e Vítor ......... – conclusões 62ª) a 64ª). Ora, no que diz respeito ao valor probatório do relatório da comissão de inquérito, já sobre o mesmo nos pronunciamos em momento anterior. Por seu turno, o relatório das autoridades policiais que os recorrentes invocam, diz respeito a duas participações referentes a dois acidentes ocorridos na referida passagem de nível, pelo que, não se verificando o circunstancialismo referido no n.º 3 do art. 151º do CE, sempre será inócuo todo e qualquer valor que lhes pretenda ser atribuído. E, por outro lado, no que diz respeito ao deprecado depoimento das testemunhas indicadas – vide fls. 155 e 158 -, torna-se totalmente despicienda de utilidade a audição dos meios fonográficos onde os mesmos foram vertidos. Com efeito, e independentemente da aplicabilidade ou inaplicabilidade, nesta instância de recurso, do preceituado no n.º 5 do art. 690º-A do CPC, na redacção do DL n.º 183/2000, de 10/08, ou do estatuído na anterior redacção do n.º 2 do mesmo normativo processual, dado o teor dos arts. 7º e 8º daquele decreto-lei, sempre, porém, se torna de todo em todo irrelevante a apreciação casuística dos deprecados depoimentos, uma vez que, conforme decorre da fundamentação de fls. 92 a 95, as respostas positivas e negativas àqueles questionados artigos da base instrutória, tiveram por fundamento, não só o depoimento daquela indicada testemunha Vítor ........, como também os de outras testemunhas, pelo que, conforme consta da acta de audiência de julgamento de fls. 81 e segs., tendo os ora recorrentes prescindido da gravação da audiência, que antecedentemente haviam solicitado, inverifica-se a situação prevista na al. a) do n.º 1 do art. 712º do CPC. Improcedem, portanto, todas as apontadas conclusões dos recorrentes, no que concerne à alteração da matéria da facto tida como provada pelo tribunal recorrido. + + + + + + IV – Assim, há a considerar como provados, os seguintes factos:“Em ../../.., pelas 07h50, na rua da ............, ao km ........, ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de passageiros, matrícula XH-..-.., pertencente e conduzido por Maria .............., que circulava no sentido nascente -- poente, e o combóio Alfa n.º...., pertencente à então denominada CP, conduzido por Nelson .........., que tinha saído do Porto e se dirigia a Lisboa – (A), (F) e (10º). Como consequência desse embate, faleceu aquela Maria ........, que havia nascido em 23/03/62 – (B). A Maria ............ dirigia-se para o seu trabalho na empresa .........., na zona industrial de ....... – ( C ). Para seguir para o seu trabalho, a Maria .......... costumava a seguir pela EN n.º....., sentido norte - sul, e, chegada à rua da ............, que se situava à direita, virava para esta rua, sentido nascente - poente, constituindo este caminho o percurso mais curto para chegar à ........... e que era efectuado por outros trabalhadores dessa mesma empresa – (D) e (E). Na mencionada rua da ......., ao citado km ........, existia uma passagem de nível que atravessa a via férrea, sem guardas, cancelas, barreiras ou sinais, luminosos ou sonoros, de aproximação de comboios, passagem de nível essa que, à data do embate, se destinava a permitir o atravessamento da via férrea das viaturas que circulassem na via pública – (H) e (I). A via que atravessa essa passagem de nível havia sido alargada – (39º). Nessa mesma passagem de nível existia, no dia e no momento do embate, um sinal de STOP, uma cruz de Santo André e um sinal de PARE, ESCUTE E OLHE, sinais esses que estavam colocados à distância de cerca de 3,5m do carril mais próximo e que eram visíveis a mais de 100m, para a condutora do XH – (J), (43º) e (44º). A mencionada passagem de nível era visível na estrada, a cerca de 700m, para os condutores rodoviários – (34º). Depois de ocorrido o embate, foram colocados dois sinais de perigo de aproximação de passagem de nível sem guarda e foi retirado o sinal de STOP, tendo tal passagem de nível sido interditada ao trânsito de veículos em 30/05/97, servindo actualmente apenas para o trânsito de peões – (L), (N), (20º) e (21º). Pelo menos nas margens da linha férrea, à data do mencionado embate, havia vegetação espontânea e do lado direito da faixa de rodagem da rua aludida em (A), atento o sentido nascente - poente, à aproximação da passagem de nível referida em (H), existia vegetação – (M), (2º), (3º), (4º), (6º) e (7º). A 3,5m do carril mais próximo, atento o sentido de marcha do XH, o comboio n.º..... era visível para a Maria .......... a uma distância de 400m – (33º) e (42º). No momento do embate, o comboio Alfa n.º...... deslocava-se à velocidade de 140km/h – (9º). A Maria .......... fez entrar o XH na passagem de nível sem escutar e sem olhar previamente e sem se certificar, antes de assim entrar, de que não se aproximava qualquer comboio e de que não havia risco de colisão – (30º) a (32º). O maquinista do comboio n.º...... fez emitir, nesse mesmo comboio, sinais acústicos, ao aproximar-se da passagem de nível, e, ao aperceber-se da entrada e ocupação da via férrea pelo XH, accionou de imediato o sistema de frenagem por forma e evitar a colisão, e reduziu a velocidade – (35º), (36º) e (38º). O XH foi arrastado pelo comboio n.º ....., o qual pertencia à CP, estando afecto à sua actividade, utilizando-o no seu interesse e segundo as suas conveniências para transporte rápido, colectivo e regular de passageiros e mercadorias entre Porto e Lisboa, no âmbito da sua actividade de exploração comercial e industrial dos caminhos de ferro portugueses – (11º) e (12º). Antes do acidente dos autos, ocorreu um outro acidente, em 11/05/97, na mesma passagem de nível – (49º). No dia seguinte ao do acidente, o local foi inspeccionado pela DGTT – (51º). O A era casado com a Maria ......... desde 08/04/89, e a A era filha de ambos – (O) e (P). A Maria ....... era uma pessoa alegre, bem disposta, com grande afecto ao seu marido e filha – (22º). À data do acidente, a Maria .......... auferia a quantia mensal líquida de esc. 107.422$00, com a qual contribuía para a economia doméstica e para o sustento e educação de sua filha – (23º) e (24º). Os AA sofreram profunda angústia, dor e sofrimento, em consequência do falecimento da Maria ........., tendo o A ficado perturbado psicologicamente com a morte da mesma, perturbação essa que ainda hoje se mantém – (25º) a (27º). Do embate resultou a destruição do XH, que, nessa data, tinha o valor comercial de esc. 2.000.000$00 – (28º) e (29º)”. + + + + + + V – O acidente a que se reportam os autos, traduzido no embate duma composição ferroviária num veículo automóvel que transpunha uma passagem de nível, no que respeita ao ressarcimento pela CP, hoje denominada REFER, dos danos do mesmo decorrentes, enquadra-se no âmbito da responsabilidade civil extracontratual – art. 508º, n.º 3, parte final, do CC. Por outro lado, e uma vez que ficou provado que a aludida passagem de nível não se encontrava equipada com barreiras, nem dispunha de qualquer sinalização luminosa ou sonora – (H) e (I) -, a responsabilidade da entidade a quem compete o serviço ferroviário nacional, apenas pode ter lugar no caso do acidente em causa ter resultado, como consequência directa e necessária, do incumprimento de qualquer dever geral, que, por força das normas legais em vigor, sobre aquela impendesse, já que, conforme decorre do preceituado no art. 29º, n.º s 1 e 2 do Regulamento das Passagens de Nível (RPN), aprovado pelo art. 1º do DL n. º 156/81, de 09/06, diploma vigente à data do acidente, a priori, tal responsabilidade, quando decorrente de acidentes verificados em passagens de nível com a indicada natureza, encontra – se excluída. Com efeito, sendo tal passagem de nível qualificada como do tipo D, no âmbito do RPN – art. 9º -, a que correspondia um regime de protecção de 5ª categoria no domínio da vigência do RPN 57 – art. 4º -, apenas no caso de ter sido omitida pela Ré a prática de qualquer acto que lhe estivesse legalmente imposto, acto esse que, em tese ideal, seria susceptível de obstaculizar à ocorrência do evento, poderá então configurar-se a existência de tal responsabilidade, a título de omissão – arts. 486º e 563º do CC. Ora, nas suas conclusões, os apelantes começam por fundar a responsabilidade da Ré, na falta de reclassificação da passagem de nível em causa - conclusões 69ª) a 71ª). Na verdade, tendo resultado provado que a velocidade instantânea da composição ferroviária, no momento do acidente, era de 140 km/h – (9º) -, a referida passagem de nível teria de ser reclassificada como do tipo A ou B, e, consequentemente, dotada de barreiras completas ou de meias barreiras – arts. 9º e 10º, n.º s 2, 3 e 4 do RPN. Porém, e como decorre do art. 2º, n.º 1 do DL n.º 156/81, tal reclassificação não se processava de imediato, e automaticamente, já que, em consequência da necessidade de efectivação das necessárias obras, a mesma dependia da competente autorização, casuística, da entidade ministerial que tutelava a empresa Ré e do Ministério das Finanças – n.º 2 do normativo citado -, mantendo-se, portanto, e relativamente às passagens de nível existentes, a classificação que lhe correspondia ao abrigo do referido diploma – art. 4º -, sendo certo, por outro lado, que, por falta de elementos, não se pode, inclusive, questionar, se, na linha ferroviária em causa, seria ou não, até permitida, a existência de passagens de nível – art. 7º da RPN. E, se, embora a apontada reclassificação da passagem de nível onde ocorreu o funesto acidente a que se reportam os autos, teria, obviamente e em princípio, contribuído para a sua inverificação, também não sofre dúvidas que não impendia sobre a Ré qualquer imperativo legal que lhe impusesse tal obrigação, já que aquele acto reclassificativo, embora condicionado à sua prévia apresentação por parte da recorrida, dependia, única e exclusivamente, de decisão ministerial, e portanto de terceiros, não podendo, por outro lado, assacar-se à mesma qualquer falta de diligência na suscitação do referido problema perante as instâncias da tutela, face aos acidentes ocorridos na via em causa, uma vez que, apenas resultou provada a ocorrência de um, cerca de 11 dias antes – (49º) -, o que convenhamos, dada a consabida burocracia que sempre rodeia a tomada de tais resoluções, constitui um período temporal muito diminuto para a formulação de um eventual “estudo” sobre as medidas a tomar. Alegam, igualmente, os recorrentes que foi omitida pela recorrida a criação da zona de visibilidade, bem como inexistia no pavimento a inscrição de STOP – conclusões 72ª) e 73ª). Com efeito, junto das passagens de nível do tipo D, onde se processasse trânsito de veículos motorizados, foi imposta a criação de uma zona de visibilidade, determinável de acordo com fórmulas legalmente fixadas, cuja manutenção era conferida à Ré, no caso de inércia dos proprietários dos respectivos terrenos – art. 11º do RPN. Porém, e tal-qualmente se verificou quanto à já aludida reclassificação das PN existentes, também no que se refere à norma respeitante à criação da referida zona de visibilidade, a sua entrada em vigor foi suspensa – art. 2º, n.º 1 do DL n.º 156/81. E, no que se reporta à inexistência de sinalização no pavimento, sempre se dirá que, embora haja sido legalmente determinado que o desguarnecimento das PN do tipo D, apenas deveria ter lugar no caso daquelas se encontrarem equipadas de acordo com o estabelecido para as PN daquele tipo, e, dentro do referido equipamento, se inserir, no caso de se tratar de estradas nacionais ou municipais, a marcação no pavimento de uma linha de paragem com a inscrição STOP – arts. 15º, n.º 4 e 22º, al. b) do RPN -, na situação em presença, não foi alegado que o local onde se situa a passagem de nível se integre em qualquer estrada municipal, dado que, pelo contrário, a sua identificação pelos apelantes na p.i., como rua da Navega, faz presumir a sua integração na zona metropolitana da cidade de Ovar, para além de poder ser questionado se a colocação do aludido sinal de paragem obrigatória ser da competência das entidades rodoviárias ou das empresas ferroviárias. Não se verifica, portanto, que, por parte da recorrida, haja sido omitida a prática de qualquer determinação que o legislador haja imposto, relativamente às passagens de nível já construídas, e utilizadas para o atravessamento da via férrea por veículos motorizados. Improcedem, assim, todas as conclusões dos apelantes. + + + + + + VI – Perante todo o exposto, decide-se julgar improcedente o recurso interposto e, em consequência, confirma - se a bem elaborada sentença apelada.Custas pelos apelantes, sem prejuízo do apoio judiciário concedido. PORTO, 28 de Fevereiro de 2002 José Joaquim de Sousa Leite António Alberto Moreira Alves Velho Camilo Moreira Camilo |