Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2205/21.1T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: ARROLAMENTO
DEFICIÊNCIA DA GRAVAÇÃO DA PROVA
RECURSO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO COM ALEGAÇÕES
Nº do Documento: RP202207132205/21.1T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Depois do encerramento da discussão em 1ª instância, as partes só podem apresentar documentos com as alegações de recurso e verificada que se mostre uma das seguintes situações excecionais (cfr disposições conjugadas dos artigos 423º, 425º e 651º nº1, do CPC):
a) ter ocorrido impossibilidade da sua apresentação até àquele momento (superveniência objetiva ou superveniência subjetiva);
b) ter-se tornado necessária a junção em virtude de o julgamento proferido em 1ª instância ter introduzido na ação um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional;
II - Não revela, por si só, aquela impossibilidade a mera junção de documento relativo a factos anteriores ao encerramento da discussão em 1ª instância.
III - Verificando-se deficiências na gravação da prova oralmente produzida (declarações e depoimentos) que a tornem impercetível (mesmo que, apenas, em parte), sendo a inquirição essencial para a apreciação do recurso, na parte referente à impugnação da decisão da matéria de facto, ficando o Tribunal da Relação impossibilitado de efetuar a reapreciação da prova pretendida pelo apelante, porquanto a mesma tem de ser feita com os mesmos elementos com que o tribunal recorrido se defrontou, não pode o recurso deixar de improceder, nessa parte, por nenhum erro na apreciação da prova poder resultar.
IV - Naquela situação, o apelante, que omitiu o dever de se certificar da conformidade da gravação com a prova produzida em audiência, que não arguiu (tempestivamente) a nulidade e que incumpriu, ainda, as completas especificações e demonstrações em que a impugnação da decisão da matéria de facto se funda, não pode, ante tais incumprimentos e omissões, deixar de ver a decisão da matéria de facto, baseada na livre convicção do julgador, fundada na apreciação conjunta e conjugada de toda a prova produzida, mantida;
V - Ao deferimento do arrolamento, medida cautelar de caráter conservatório, basta a alegação e prova de um juízo de verosimilhança quanto à existência de um direito de conteúdo patrimonial sobre bens em situação de perigo, associada a uma situação de justo receio de dissipação, extravio ou ocultação desses bens.
VI - Dependendo a reapreciação de mérito da alteração da decisão sobre a matéria de facto, mantida esta, fica, necessariamente, prejudicado o conhecimento daquela (nº2, do artigo 608º, ex vi da parte final, do nº2, do art. 663º, e, ainda, do nº6, deste artigo, ambos do CPC).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 2205/21.1T8PRT-A.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Local Cível do Porto –Juiz 3

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: Maria José Simões

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: AA
Recorrida: BB

BB requereu o presente procedimento cautelar contra AA, pedindo o arrolamento dos imóveis que identificou, alegando, para tanto, serem ambos parentes sucessíveis de CC e que esta outorgou a favor do requerido uma procuração com poderes para celebrar negócio consigo mesmo de todos os imóveis de que dispunha, tendo o requerido feito uso da procuração para realizar uma escritura de doação de um imóvel a seu favor. Mais alegou que à data em que foi outorgada a procuração, a referida parente comum sofria de demência, de tal forma que se encontrava incapaz de formar a sua vontade. Por último, alegou que o requerido tem vindo a exibir os terrenos a terceiros, havendo risco de extravio.
A providência cautelar requerida foi deferida e decretado o arrolamento.
No exercício do contraditório, deduziu o requerido oposição, defendendo-se por impugnação, ao negar factos alegados pela Requerente, e por exceção, ao invocar a falta de legitimidade da requerente, por CC o ter instituído, por testamento, como único e universal herdeiro, e a caducidade da providência.
A requerente exerceu o contraditório quanto à referida matéria de exceção, alegando ter tido conhecimento do testamento apenas com a notificação da oposição e que o mesmo é inválido, por à data em que foi outorgado, já a testadora se encontrava incapacitada de facto de entender o sentido da sua declaração, invocando estar em tempo para arguir tal invalidade.
Foi proferido despacho a apreciar a exceção dilatória da ilegitimidade ativa e julgada foi a requerente parte legítima.
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Procedeu-se à audiência final, com a observância das formalidades legais.
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Após, foi proferida a seguinte decisão final:
“Pelo exposto, julgo a oposição improcedente, mantenho a providência cautelar ordenada.
Custas a cargo do requerido.
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O Requerido apresentou recurso de apelação, pugnando por que, se anule o julgamento para que se proceda à gravação dos depoimentos das testemunhas que indica, cuja audição se mostra essencial para o conhecimento da impugnação da matéria de facto e que se mostram, em parte, impercetíveis, a fim de permitir a reapreciação pelo Tribunal de 2ª instância da matéria de facto e a revogação da decisão e, a final, se julgue procedente a oposição ao processo cautelar de arrolamento apresentado, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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A Requerente respondeu pugnando pela improcedência do recurso e por que se confirme a decisão recorrida, concluindo:
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Pugna o Requerido/Apelante por que seja recusada a, infundada, junção do referido documento, emitido a pedido da requerente, e consequentemente, se ordene o seu desentranhamento, condenando-se a requerente em multa, nos termos do artigo 543.º, nº 2 do CPC e do artigo 27.º, nº 1 e 3 do Regulamento das Custas Processuais,
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Pronunciou-se o Tribunal a quo no sentido de, por ter a gravação sido disponibilizada ao requerido em 21 de Abril de 2022 (ref. 435831204) e não haver sido arguida qualquer nulidade no prazo a que alude o nº4, do art. 155.º, quanto à anulação do julgamento e, ainda, no que respeita à junção do documento com as contra-alegações, ser a este Tribunal superior que cabe decidir tais questões.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1. Da questão prévia:
1.1- Da admissibilidade da junção do documento apresentado com as contra-alegações de recurso.
2. Da reapreciação da decisão da matéria de facto:
2.1- Da verificação do erro na apreciação da prova e consequências da deficiente gravação;
3. Da reapreciação da decisão de mérito:
3.1 - Se deve ou não ser mantida a providência cautelar especificada decretada: o arrolamento.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
São os seguintes os factos considerados provados com relevância para a decisão (transcrição):
1) CC faleceu no dia .../.../2020, no lugar de ..., ..., República Federativa do Brasil.
2) A requerente nasceu a .../.../1965, fruto da relação matrimonial entretanto dissolvida de seu pai, DD, e, sua mãe, EE, sendo esta natural do Rio de Janeiro, Brasil.
3) O pai da requerente DD (que também usava o nome de FF, uma vez ser natural do Brasil), é filho de GG e de HH.
4) O pai da requerente celebrou um novo matrimónio com II.
5) Em 5 de outubro 2013, o pai da requerente faleceu na freguesia ..., concelho do Porto.
6) A avó paterna da requerente, HH é filha de JJ que por sua vez era mãe de CC.
7) CC é irmã da avó paterna da requerente.
8) Não consta averbado no assento de nascimento de CC qualquer casamento civil ou católico.
9) A CC não teve filhos, nem tem ascendentes vivos.
10) CC desde há mais de 4 anos atravessava períodos de estado de demência, ficando, nesses períodos, incapaz de compreender ideias complexas, perdendo orientação espácio-temporal.
11) CC vivia sozinha, tendo sido auxiliada na gestão do dia à dia pelo filho da requerente.
12) A falecida CC não trabalhava, não tinha nem possuía atividade remunerada, subsistindo a expensas da sua reforma, de rendimentos prediais uma vez ser proprietária de vários prédios e arrendado, para o efeito, alguns deles.
13) Ultimamente, como consequência do agravamento do seu estado de saúde a falecida, vinha apresentando dificuldades em ler, escrever e compreender o que a rodeava.
14) Durante o decurso dos anos de 2017, 2018 e 2019 fechava-se na sua residência, entrando em pânico e sem ter capacidade para dali sair, sendo necessária a intervenção quer do corpo de Bombeiros, quer da Policia de Segurança Pública para repor a normalidade da situação.
15) Até à data do seu falecimento, CC passava por períodos em que ficava incapaz de se orientar no tempo, espaço.
16) Ocorriam situações em que mesma não ficava capaz de reconhecer a generalidade de familiares e amigos próximos.
17) Desconhecendo o conceito quantitativo de dinheiro e o seu respetivo valor.
18) Após período de ausência no Brasil, o requerido AA retornou a Portugal, em meados de outubro de 2018, por aqui ficando a residir durante cerca de 8 meses.
19) Durante esse período, fixou residência e hospedou-se na casa de CC.
20) No decurso de tal estadia do requerido em Portugal, a CC afastou-se de parte da família, designadamente a requerente.
21) O requerido, irmão da requerente, apoderou-se da confiança da CC, impedindo-a a de conviver regularmente com parte da família, designadamente com a requerente, recusava a abrir a porta a diversos familiares que a visitavam, sob pretexto de CC não os querer ver.
22) Sem qualquer aviso, a CC foi com o requerido para o Brasil em meados de julho do ano 2019, tendo embarcado com este, sem data de retorno e sem cuidar sequer de avisar parte da família, inclusive a requerente, até ao decesso daquela.
23) Até à data do seu falecimento, CC nunca mais pôde ser contactada por parte da família, inclusive pela requerente, uma vez não dispor a mesma de qualquer meio de contacto direto, nomeadamente, um telefone que possibilitasse aos seus familiares saber do seu paradeiro e bem-estar.
24) O requerido não cuidou de informar onde se encontrava CC, nem tão pouco informou sobre uma eventual data de retorno da requerida a Portugal, apesar da insistência dos seus familiares.
25) Nos dias que antecederam a viagem em questão e sem nunca em momento anterior ter demonstrado qualquer intenção junto dos seus familiares, a CC outorgou a favor do Requerido uma procuração que o possibilitava fazer negócio consigo próprio de todos os seus imóveis.
26) Feita a procuração e decorridos dias sobre a mesma ocorreu uma doação a favor do requerido sobre o imóvel descrito na Conservatória de Registo Predial 4301, sito na Rua ..., ..., da freguesia ..., Porto.
27) A requerida, além do imóvel já doado, possui, ainda, entre outros, os seguintes prédios:
A) Prédio Rústico, denominado por “...”, situado na Freguesia ..., Concelho de Santa Maria da Feira, composto por terreno de lavradio, confrontado a Norte com KK, a sul com LL, Nascente com MM e Poente com NN, melhor descrita na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e Automóvel de Santa Maria da Feira, sob o n.º ... e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...;
B) Prédio Urbano, situado em ..., Freguesia ..., Concelho de Santa Maria da Feira, composto por casa térrea com logradouro, confrontado a Norte com OO, a sul com PP, Nascente com estrada e Poente com CC, melhor descrito na Conservatória do Registo Predial, Comercial e Automóvel de Santa Maria da Feira, sob o n.º ... e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...;
C) Prédio Urbano, situado em ..., Freguesia ..., Concelho de Santa Maria da Feira, composto por casa térrea com logradouro, confrontado a Norte e Nascente com CC, a sul com a Rua ... e a Poente com caminho público, melhor descrito na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e Automóvel de Santa Maria da Feira, sob o n.º... e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...;
D) Prédio Rústico, denominado por “...”, situado na Freguesia ..., Concelho de Santa Maria da Feira, composto por terreno de Cultura, confrontado a Norte com Presa, a sul com QQ, Nascente com uma Rua e MM e Poente com ..., melhor descrito na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e Automóvel de Santa Maria da Feira, sob o n.º ... e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...;
E) Prédio Rústico, denominado por “...”, situado na Freguesia ..., Concelho de Santa Maria da Feira, composto por Mato ou Lameiro, confrontado a Norte com caminho e KK, a sul ... e RR, Nascente com SS e estrada e Poente com uma estrada e TT, melhor descrito na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e Automóvel de Santa Maria da Feira, sob o n.º ... e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...;
F) Prédio Rústico, situado em ..., Freguesia ..., Concelho de Santa Maria da Feira, composto por terreno a lavradio e pinhal, confrontado a Norte com UU, a sul com VV, a Nascente com uma estrada e Poente com ..., melhor descrito na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e Automóvel de Santa Maria da Feira, sob o n.º ... e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...;
G) Prédio Rústico, denominado por “...”, situado em ..., Freguesia ..., Concelho de Santa Maria da Feira, composto por Lavradio, cultura e Pinhal, confrontado a Norte com WW, a sul com XX, a Nascente com uma estrada e Poente com XX, melhor descrito na Conservatória dos Registo Predial, Comercial e Automóvel de Santa Maria da Feira, sob o n.º... e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ....
28) Já depois do falecimento de CC, o requerido retornou a Portugal e exibiu os terrenos a terceiros para venda.
29) Devido ao convívio do requerido com CC aquele não podia ignorar o estado de demência de que a mesma padecia.
30) A CC tinha outorgado testamento em 26 de Fevereiro de 2018 por via do qual legou a YY o imóvel descrito em 26).
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31) No dia 13 de Novembro de 2018, CC, no Cartório Notarial da Notária ZZ, declarou revogar qualquer testamento feito anteriormente.
32) Em 2 de Maio de 2019, CC outorgou testamento no Cartório Notarial da Notária AAA instituindo o requerido como o seu único e universal herdeiro.
33) A requerente propôs contra o requerido a ação que corre termos com o n.º12480/21.6T8PRT, pedindo, designadamente, que se declare a anulação da procuração referida na alínea 25) e a doação referida na alínea 26).
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1- Questão prévia:
1.1-Da admissibilidade de junção do documento com as alegações de recurso

Comecemos por analisar da admissibilidade da junção do documento oferecido pela apelada com a resposta que apresentou às alegações de recurso.
Junta a Apelada à referida resposta um documento – “Relatório Clínico” – sustentando que a sua admissibilidade resulta da impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso e que o mesmo corresponde a uma outra declaração da médica que acompanhou a Outorgante da procuração.
O apelante pugna por que seja recusada a junção do referido documento e se condene a requerente em multa, por à junção se opor a disciplina prevista no artigo 651.º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência, não se justificando a junção.
Cumpre apreciar da admissibilidade da junção do documento com a resposta às alegações de recurso.
Analisando as normas adjetivas que regulam tal matéria, constata-se que após o momento próprio de apresentação - cfr. art. 423º - e mesmo depois do encerramento da discussão em 1ª instância, as partes podem juntar documentos em determinadas circunstâncias.
Na verdade, desde logo, o art. 425º estatui que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
E consagra o nº1, do artigo 651º, que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.
Assim, depois do encerramento da discussão em 1ª instância as partes só podem juntar documentos cuja junção não tenha sido possível até àquele momento, no caso de recurso (art. 425º), sendo que apenas poderão juntar documentos, com as alegações de recurso, nas duas situações excecionais previstas nos citados artigos.
O que diz a letra do referido nº1, do artigo 651º foi reproduzido no Acórdão da Relação de Guimarães de 22/1/2015, processo 561/12.1TBMAR-A.G1[1] e no Acórdão da Relação de Lisboa de 19/1/2016, onde se refere que da conjugação dos referidos artigos resulta que a junção de documentos em fase de recurso só é admissível em duas situações, a saber: a) por se ter tornado necessária a junção em virtude do julgamento proferido em 1ª instância, face à “surpresa” da decisão proferida; b) por não ter sido possível a sua apresentação até ao encerramento da discussão em 1ª instância[2], afirmando-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 23/4/2025, Processo 1481/05 que o documento que a parte teve a possibilidade de juntar ao processo até ao encerramento da discussão em 1ª Instância, por ter sido do seu conhecimento e disponibilidade, não pode ser junto com a alegação de recurso[3].
Da análise conjugada do nº1, do art. 651º, com os artigos 425º e 423º resulta que a junção de documentos na fase de recurso, é admitida a título excecional, dependendo da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações:
1º - a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso (1ª parte do art. 651º);
2º - ter o julgamento de primeira instância introduzido na ação um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional (2ª parte do art. 651º).
Quanto à primeira situação, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objetiva ou superveniência subjetiva, sendo que:
- Objetivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado;
- Subjetivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado. Neste caso (superveniência subjetiva) é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante a caráter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefigurem como atendíveis. Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento[4].
Quanto à segunda situação, pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum[5].
Referindo ser legítimo às partes juntar documentos com as alegações quando a sua apresentação não tenha sido possível até esse momento (superveniência objetiva e subjetiva) quando se destinem a provar fatos posteriores aos articulados ou quando a sua apresentação apenas se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior ao julgamento de 1ª instância, sendo que nesse caso podem ser oferecidos em qualquer estado do processo, considera o Tribunal da Relação de Guimarães e também o da Relação de Lisboa dever ser recusada a junção de documentos para provar factos que já antes da decisão se sabia estarem sujeitos a prova, não podendo a surpresa quanto ao resultado servir de fundamento válido para a sua junção[6] [7].
A junção de documento apenas tornada necessária em virtude do julgamento proferido no tribunal da primeira instância, só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª instância, por esta se ter baseado em meio probatório não oferecido pelas partes ou em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam[8]. Assim, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma direta e ostensiva com a questão suscitada nos autos.
Destarte, “Em sede de recurso e como resulta da análise conjugada do disposto nos artigos 425º e 651º nº 1 do CPC é admitida a junção de documentos após o encerramento da discussão e às alegações de recurso:
- nas situações do artigo 425º do CPC, ou seja quando a junção não tenha sido possível até ao encerramento da discussão.
Impossibilidade fundada em superveniência do documento por referência ao encerramento da audiência em 1ª instância.
Superveniência objetiva se em causa estiver ocorrência superveniente a tal momento temporal. Superveniência subjetiva se em causa estiver o não conhecimento pela parte da ocorrência ou do documento em si em momento anterior. Sobre a parte recaindo o ónus de justificar por que antes não teve de tal conhecimento.
- nas situações em que tal junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artigo 651º nº 1 do CPC).
Necessidade justificada pela novidade da questão tratada na decisão e que assim não visa provar o que foi alegado nos articulados”[9].
Resulta pacífico na jurisprudência que: “I. Da leitura articulada dos artigos 651.º, n.º 1, 425.º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância. II. No que toca à superveniência, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito. III. Quando o acesso ao documento está ao alcance da parte, a instrução do processo com a sua apresentação é um ónus, devendo desconsiderar-se a inacessibilidade que seja imputável à falta de diligência da parte, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador. IV. No que toca à necessidade do documento, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento” [10].
Vista a lei e a interpretação que dela vem sendo feita pela Jurisprudência, vejamos os contornos de caso.
Invoca a apelante impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, sendo o documento uma outra declaração proferida pela médica que acompanhou a Outorgante da procuração que, embora com data de 26/4/2022, se refere a factos anteriores à data da audiência de julgamento.
Assim, não sendo objetivamente superveniente, desde logo, atenta a invocada data dos factos referidos no relatório clínico, a apelada não justifica, nem comprova, a superveniência (a objetiva nem a subjetiva), e, também, não ocorre nenhuma situação em que a junção do documento só face ao sentido da decisão se relevasse necessária.
Nenhuma das supra referidas situações se verifica no caso. Não resulta invocada, nem provada, qualquer situação de impossibilidade, objectiva ou subjectiva, de apresentação do documento, anteriormente à fase de recurso, que mereça aqui acolhimento legal nem o julgamento da primeira instância introduziu qualquer elemento de novidade que pudesse tornar necessária a consideração de prova documental adicional, que até ao encerramento do julgamento em primeira instância se mostrasse inútil.
Na verdade, do facto de o documento poder não estar em poder da apresentante em data anterior à do encerramento do julgamento não decorre a impossibilidade da sua junção, sempre podendo a mesma ter diligenciado pela sua obtenção e apresentação atempada.
In casu, para além de se não verificar superveniência, nem objetiva nem subjetiva, nenhuma alegação foi feita nem prova foi oferecida de conhecimento superveniente, não se justificando a sua junção com a alegação de recurso.
Assim, sendo legalmente inadmissível, atento o disposto no nº1, do art. 651º, não se admite a junção do documento (um outro “relatório clínico”, impugnado), cujo desentranhamento e devolução à apresentante cumpre ordenar, o que se faz, condenando-se a apresentante na multa de 1 UC.
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2ª. Da reapreciação da decisão da matéria de facto
2.1- Da verificação do erro na apreciação da prova e consequências da deficiente gravação
Impugnada a decisão da matéria de facto cumpriria conhecer do objeto do recurso, reapreciando os concretos meios probatórios relativamente aos pontos de facto impugnados, como a lei impõe.
O nº1, do art. 662º, ao estabelecer que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, que vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto.
O âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, deve, pois, conter-se dentro dos seguintes parâmetros:
a)- o Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
b)- sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento;
c)- nesse novo julgamento o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Dentro destas balizas, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade.
Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova[11] (consagrado no artigo 607.º, nº 5) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem.
Com efeito, no vigente sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo adquirido no processo. O que é essencial é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado[12].A lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4).
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis[13].
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. Impõe-se-lhe, assim, que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação (seja ela a testemunhal seja, também, a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser, também, fundamentada).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados[14], devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância.
Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as testemunhas, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se também por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação.
Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos que não transparecem na gravação.
Em suma, o Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto se formar a convicção segura da ocorrência de erro na apreciação dos factos impugnados.
E o julgamento da matéria de facto é o resultado da ponderação de toda a prova produzida. Cada elemento de prova tem de ser ponderado por si, mas, também, em relação/articulação com os demais. O depoimento de cada testemunha tem de ser conjugado com os das outras testemunhas e todos eles com os demais elementos de prova, designadamente prova documental e, mesmo, pericial, que tenha sido produzida no processo, sendo que mesmo o resultado de perícia, expresso no relatório, é objeto de apreciação pelo juiz, segundo as regras da livre apreciação (decidir o julgador os factos em julgamento segundo a sua intima convicção, formada a partir do exame e avaliação de toda a prova produzida no processo e de acordo com a sua experiência de vida, socorrendo-se, para tanto de critérios objetivos). Assim, mesmo a prova perícial, para perceção e valoração de factos da causa carecidos de prova, perceção e apreciação a reclamar conhecimentos científicos, técnicos ou artísticos especiais,está, ela mesma, sujeita à livre apreciação do julgador que pondera o resultado a que a mesma chegou analisando todos os elementos fornecidos pela mesma conciliando-os com as demais provas produzidas.
Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjetivas - como a prova testemunhal e declarações de parte -, a respetiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e o tribunal de 2.ª instância só deve alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando, efetivamente, se convença, com base em elementos lógicos ou objetivos e com uma margem de segurança elevada, que houve erro na 1.ª instância.
Em caso de dúvida, deve, aquele Tribunal, manter o decidido em 1ª Instância, onde os princípios da imediação e oralidade assumem o seu máximo esplendor, dos quais podem resultar elementos decisivos na formação da convicção do julgador, que não passam para a gravação.
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Tendo presentes os mencionados princípios orientadores, vejamos se assiste razão ao Apelante, nesta parte do recurso que tem por objeto a impugnação da matéria de facto. Insurge-se o mesmo contra a decisão da matéria de facto, desde logo, por a prova que convoca, impor decisão diversa quanto aos pontos que refere. Assim não sucede, sendo, na verdade, admissível a prova testemunhal à matéria em causa na impugnação[15], evidentemente, não abrangida por documento que, quanto a ela, possa ter força probatória plena, bem considerado tendo sido, designadamente ao referir-se: “No que respeita à prova oferecida nesta fase, foi atendida e apreciada a prova documental, concretamente as fotografias (que não estão datadas), o documento intitulado “relatório clínico” relativo a uma consulta de 25 de Outubro de 2018 e emitido a 24 de Outubro de 2019, as peças processuais da acção que correu termos com o n.º21432/19.5T8PRT, uma carta cuja autoria é atribuída à inventariada, as fotografias de mensagens telefónicas, os documentos relativos à assistência e identificação de quem é mencionado como filho do requerido e neto do requerido. Foram ainda valoradas as três declarações emitidas pela PSP juntas pela requerente em audiência.
No que respeita às declarações de parte do requerido, uma vez em que a parte assume sempre na causa um interesse directo, tende-se sempre a apenas valorar as suas declarações se e na medida em que encontrem um mínimo de suporte noutros meios de prova merecedores de credibilidade. Em concreto, para além da falta deste suporte, as declarações do requerido foram merecedoras de reservas ante a contradição maior em que incorreu (o que aliás, foi transversal relativamente à prova pelo próprio oferecida): de facto, procurou durante todo o depoimento justificar a grande proximidade afectiva com a tia ao ponto de, logo que lhe foi comunicado que esta precisava de ajuda, “largar tudo”, regressar do Brasil e cá permanecer por oito meses; ora sustentando que, na verdade, a tia não precisava de ajuda alguma, descrevendo-a como pessoa perfeitamente autónoma e capaz.
No que respeita aos depoimentos das testemunhas, cumpre concretizar:
Foi sobretudo apreciado e valorado o depoimento da testemunha BBB, amiga da inventariada, que tendo sido ao longo de décadas amiga daquela e acompanhado esta com proximidade nos últimos anos de vida, depôs de forma espontânea e isenta, relatando com singular precisão episódios vários daqueles últimos anos, tais como a perda de objectos em casa por não saber onde os guardava, o dinheiro guardado debaixo do sofá quando dispunha de um cofre, o episódio da contagem do dinheiro que tinha em casa e que queria levar num saco para a missa, o de aguardar pelo dia seguinte confiando no filho da requerente para depositar tal valor sem duvidar deste nem ter alguma vez invocado que o dinheiro desapareceu (ao contrário do que referiu a testemunha Esperança da Gloria Ferreira invocando como fonte aquela testemunha), o de invocar não dispor de dinheiro e não ter diligência para ir ao banco levantar aguardando pelo referido sobrinho-neto, o período de evidente fraqueza por falta de alimentação a justificar que até a testemunha se oferecesse para a receber em causa, a evolução para um estado de total dependência em relação ao requerido, ficando ansiosa perante um mero atraso deste, quando era parente a quem mal antes se referia. Desta forma, apesar das afirmações genéricas iniciais quanto à capacidade da amiga, o seu depoimento assumiu relevo e credibilidade quando, afastada de tais afirmações, foi fazendo aqueles relatos em concreto.
Quanto ao depoimento de CCC, advogado e mandatário constituído pela inventariada na acção que correu termos com o n.º21432/19.5T8PRT, não se tem dúvidas que depôs de acordo com o que convictamente entende ser a verdade mas a descrição que fez, com referência às consultas e acompanhamento da inventariada, designadamente ao Cartório Notarial, não é concordante com o estado e natural postura daquela, tal-qual relatado pela referida testemunha BBB, desde logo quanto a, já no fim de vida, aparecer-lhe espontaneamente e sozinha no escritório (quando não era sequer comum apanhar um táxi e deslocar-se sem ser acompanhada).
O referido vale igualmente para a testemunha DDD, cabeleireiro e amigo do requerido: de facto, não se lhe pode apontar ter faltado à verdade mas o parco convívio com a inventariada, em torno da decisão de cortar o cabelo e do corte a fazer, não é bastante para suportar a formação do sentido da convicção relativamente aos factos controvertidos.
Quanto ao depoimento de EE, Mãe da requerente e do requerido, foi o mesmo desvalorizado ante a evidente animosidade para com aquela, com quem se percebeu que mantém uma relação de conflito há anos, para além da mesma contradição do discurso de que padeceram as declarações do requerido, tal-qual supra evidenciado.
Por último, quanto à EEE, seja pela maior proximidade que aquela mantinha com BBB, tal-qual a própria admitiu, seja pela espontaneidade desta última manifestada no relato de episódios concretos dos últimos anos da vida da inventariada, julgou-se que esta testemunha (que inclusive foi a ouvida último lugar) foi merecedora de maior credibilidade.
Assim, Os factos das alíneas 1) a 9), 25) (quando à procuração), 26) 27) e 30) resultam assentes pelos documentos juntos aos autos; (…).
Quanto aos demais factos, cumpre sumariamente fazer notar o seguinte:
- No que respeita aos factos que assumem relevo para aferir da capacidade da inventariada (factos das alíneas 10., 13., 14., 15., 16., 17.), a prova produzida não foi bastante para inverter ou sequer abalar o juízo subjacente ao julgamento destes factos em sede de decisão que decretou a providência, julgando-se que, inclusive, resultou alicerçado pelo depoimento da testemunha BBB, tal-qual supra valorado, e o teor dos documentos intitulados “declaração” apresentados em audiência. A única prova apresentada que poderia reverter o sentido da convicção formada seria o relatório médico apresentado como documento n.º8 com a oposição, contudo, salienta-se, não é isento de dúvidas as circunstâncias da sua emissão (pois que se refere a uma consulta em Outubro de 2018 e é emitido em Outubro de 2019), e reporta-se a uma avaliação meramente clínica e não de psiquiatria forense, especialidade habilitada a avaliar a capacidade.
- O facto da alínea 11) foi também corroborado por BBB. (…) e de manter o juízo probatório subjacente ao julgamento do facto da alínea 29), tendo em conta a relação de proximidade estabelecida com a inventariada após regressar do Brasil, bem como o teor do documento intitulado “declaração” apresentado em audiência relativo ao auto de denúncia de 1 de Julho de 2019.
- Quanto ao facto da alínea 25), 2.º parte (manifestação prévia da vontade junto de outros familiares), não foram ouvidos quaisquer outros familiares da inventariada para além do requerente que pudessem infirmar o juízo subjacente ao julgamento do facto na decisão que decretou a providência.
- O facto da alínea 28), a prova agora oferecida a este facto – concretamente as declarações do requerido – não foi bastante para inverter ou sequer abalar o juízo subjacente ao julgamento deste facto em sede de decisão que decretou a providência.
Entende a Requerente/Apelada que bem se mostra decidida a matéria de facto e, na verdade, a força probatória plena dos documentos autênticos, restringe-se aos “factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo”, bem como aos “factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora” (1ª parte, do nº 1, do art. 371º, do Código Civil), sendo que os “meros juízos pessoais do documentador” constituem elementos sujeitos à livre apreciação do julgador, não havendo limitação de prova.
Com efeito, estatui o referido preceito:
Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.”
“O valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou se contém no documento, mas somente aos factos que se referem praticados pela autoridade ou oficial público respetivo (ex. procedi a este ou àquele exame), e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas perceções da entidade documentadora. Se, no documento, o notário afirma que perante ele o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o outorgante o disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coação, ou que o ato não seja simulado”[16] .
Deste modo, a força probatória conferida a documento autêntico não abrange a veracidade das declarações emitidas pelos outorgantes e neles atestadas nem abrange os demais factos, que do documento constando, não respeitem a factos praticados e/ou atestados com base nas perceções da entidade documentadora[17].
Factos que se prendem com a integridade mental da outorgante, como os concretamente objeto da impugnação da decisão da matéria de facto:
que a falecida “desde há mais de 4 anos atravessava períodos de estado de demência, ficando, nesses períodos, incapaz de compreender ideias complexas, perdendo orientação espácio-temporal”; “vivia sozinha, tendo sido auxiliada na gestão do dia à dia pelo filho da requerente”; “como consequência do agravamento do seu estado de saúde a falecida, vinha apresentando dificuldades em ler, escrever e compreender o que a rodeava”; “durante o decurso dos anos de 2017, 2018 e 2019 fechava-se na sua residência, entrando em pânico e sem ter capacidade para dali sair, sendo necessária a intervenção quer do corpo de Bombeiros, quer da Policia de Segurança Pública para repor a normalidade da situação”; “até à data do seu falecimento, CC passava por períodos em que ficava incapaz de se orientar no tempo, espaço”; “ocorriam situações em que mesma não ficava capaz de reconhecer a generalidade de familiares e amigos próximos, desconhecendo o conceito quantitativo de dinheiro e o seu respetivo valor”; “nos dias que antecederam a viagem em questão e sem nunca em momento anterior ter demonstrado qualquer intenção junto dos seus familiares, a CC outorgou a favor do Requerido uma procuração que o possibilitava fazer negócio consigo próprio de todos os seus imóveis”; devido ao convívio do requerido com CC aquele não podia ignorar o estado de demência de que a mesma padecia”;
não estão abrangidos pela força probatória plena do documento autêntico em causa, antes estão sujeitos à livre apreciação do julgador, podendo ser objeto de prova testemunhal.
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Ao proceder-se à audição da prova produzida oralmente em audiência de julgamento e gravada a fim de reapreciar a decisão quanto aos pontos impugnados, constatamos que, na verdade, como conclui o apelante, as deficiências da gravação que a tornam impercetível.

2.1 - Da deficiente gravação da prova oralmente produzida e das suas consequências na reapreciação da decisão da matéria de facto

Constata-se, como o próprio recorrente refere nas alegações de recurso, estarem os depoimentos impercetíveis, o que prejudica e, mesmo, impede a apreciação da impugnação da matéria de facto.
E perante a impossibilidade de aceder a todas as provas acessíveis ao Tribunal de 1ª instância, para, então, se poder aferir do acerto da decisão da matéria de facto, nos termos supra expostos, não pode, por facto imputável a quem se pretende fazer valer da gravação, dado nada se ter apresentado, no momento próprio a suscitar, deixar de improceder esta parte do recurso.
Na verdade, como já se decidiu no Ac. desta Relação de 24/9/2020, proc. nº. 4704/12.7TBMTS.P1, em que a ora Relatora foi adjunta:
I- A Lei 41/2013 de 26/06 (que aprovou o novo CPC) introduziu uma relevante alteração no regime de arguição da falta ou deficiência da gravação, expressamente determinando que esta tem de ser invocada no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada – vide artigo 155º nº 4 do CPC. Disponibilização que deve ocorrer no prazo de dois dias a contar do respetivo ato.
II- Porque a disponibilização da gravação deve ocorrer no prazo de dois dias [e salvo se esta disponibilização não respeitar este prazo, caso em que a parte deverá suscitar tal questão perante o tribunal a quo] recai sobre a parte o ónus de neste prazo e sempre até aos 10 dias subsequentes requerer a entrega da gravação e verificar a regularidade da mesma, para que e sendo o caso, no mencionado prazo de dez dias possa arguir a respetiva nulidade.
Assim não o fazendo violará o dever de diligência que sobre si recai, com a consequência de ver precludido o direito a arguir a nulidade decorrente deste vício.
III- Na medida em que esta falta cometida pode influir no exame da causa [como sempre o será quando a parte invocar que tal vício obsta ao exercício do seu direito de impugnação da matéria de facto que pretende exercer], configura a mesma uma nulidade secundária.
Nulidade que assim deverá ser arguida perante o tribunal a quo para que desde logo e sendo verificada, possa ser sanada mesmo antes de serem os autos remetidos em recurso”.
Aí se fundamenta, com a nossa inteira concordância, que “A Lei 41/2013 de 26/06 (que aprovou o novo CPC) introduziu uma relevante alteração no regime de arguição da falta ou deficiência da gravação, expressamente determinando que esta tem de ser invocada no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada – vide artigo 155º nº 4 do CPC (diploma legal a que faremos referência, salvo se em contrário for expressamente indicado).
Gravação esta que deve ser disponibilizada às partes no prazo de dois dias a contar do respetivo ato (nº 3 do mesmo artigo).
Na medida em que esta falta cometida pode influir no exame da causa [como sempre o será quando a parte invocar que tal vício obsta ao exercício do seu direito de impugnação da matéria de facto que pretende exercer], configura a mesma uma nulidade secundária.
Para o efeito dispondo a parte dos já referidos 10 dias (nº 4 já referido) quando logo no ato se não aperceba da deficiência de gravação. Dez dias contados desde a disponibilização da gravação [sendo disponibilização, diferente de entrega, já que esta pressupõe uma atuação do interessado que promove a entrega e aquela respeita a um ato da secretaria que coloca a gravação disponível à parte que na mesma esteja interessada para lha entregar se esta o requerer] esta a ocorrer no prazo máximo de dois dias, tal como decorre do já referido nº 3 do artigo 155º.
Ao remeter o legislador a arguição da falta ou deficiência da gravação para o regime das nulidades (nulidades secundárias, cujo regime está regulado nos artigos 195º e segs. do CPC) resulta do artigo 199º que a mesma deverá ser arguida logo no ato, se de tal se aperceber a parte. Ou então, a partir do momento em que tomou conhecimento da mesma, ou dela pudesse conhecer agindo com a devida diligência (vide nº 1 deste artigo 199º).
Porque a disponibilização da gravação deve ocorrer no prazo de dois dias [e salvo se esta disponibilização não respeitar este prazo, caso em que a parte deverá suscitar tal questão perante o tribunal a quo] recai sobre a parte o ónus de neste prazo e sempre até aos 10 dias subsequentes requerer a entrega da gravação e verificar a regularidade da mesma, para que e sendo o caso, no mencionado prazo de dez dias arguir a respetiva nulidade.
Assim não o fazendo violará o dever de diligência que sobre si recai, com a consequência de ver precludido o direito a arguir a nulidade decorrente deste vício.
Nulidade que assim deverá ser arguida perante o tribunal a quo para que desde logo e sendo verificada, possa ser sanada mesmo antes de serem os autos remetidos em recurso.
Preceitua o nº 3 do artigo 199º - artigo que regula as regras gerais da arguição destas nulidades secundárias – que se o processo for expedido em recurso antes de findar o prazo para a arguição da nulidade (o já referido de 10 dias), poderá a arguição ser feita perante o tribunal superior, contando-se o prazo desde a distribuição.
Porém e pela natureza da nulidade em causa, entende-se claramente afastada esta opção. Basta para tanto atentar no facto de após o encerramento da audiência de discussão e julgamento, ser o processo concluso para proferir sentença no prazo de 30 dias.
Só após esta e respetiva notificação, correndo o prazo para a interposição do recurso e subsequente prazo para as contra-alegações.
Tanto é quanto baste para concluir pela inviabilidade de a expedição do processo em recurso poder ocorrer antes do referido prazo ter decorrido.
A justificar o entendimento que cremos maioritário de ter sido afastada a possibilidade de a arguição da nulidade da gravação – ao contrário do que na vigência do anterior CPC chegou a ser defendido – ser invocada apenas em sede de recurso[18].
Antes se defendendo que a mesma deve ser arguida perante o tribunal a quo para que desde logo e sendo verificada, possa ser sanada mesmo antes de serem os autos remetidos em recurso.”.
Assim, constituindo a deficiência da gravação dos depoimentos prestados em audiência uma irregularidade que pode influir no exame e na decisão da causa, devendo tal nulidade ser arguida pela parte, no prazo de 10 dias a contar da disponibilidade dos registos pelo tribunal, nos termos do nº4, do artº 155º, bem se conhece, também, a posição assumida jurisprudencialmente no sentido de, no entanto, poder o tribunal da Relação, “conhecer oficiosamente dessa nulidade, ao abrigo do artº 9º do DL nº 39/95, de 15.2 e do artº 156º, “in fine” do CPC”, dado que este artigo “não se encontra revogado (expressamente) pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, que aprovou o atual CPC, nem de forma tácita pelo preceituado no art.º 155º do mesmo código, constituindo, pelo contrário, aquele normativo um “caso especial em que a lei permite o conhecimento oficioso” (da nulidade processual) a que alude o art.º 196.º, in fine, do atual CPC”, Ac. RG de 28/3/2019, proc. 3268/17.0T8BRG.G1[20].
Ora, assim não se entende, considerando-se que os interesses que estão em causa são interesses eminentemente privados, das partes, na repetição dos depoimentos deficientemente gravados, relacionados com o direito ao recurso, certo sendo que ao próprio direito de recorrer, são impostos limites, não sendo um direito absoluto, e bem podendo a parte não o exercer.
Nada permite considerar serem interesses públicos, na descoberta da verdade material, que estão em jogo, estando-o, tão só, o direito da parte ao duplo grau de jurisdição quanto à decisão da matéria de facto, sendo à reapreciação fáctica que se destina a gravação, já que a prova foi produzida, em audiência contraditória, perante o julgador em 1ª instância, que bem a ouviu, com imediação (a ele se não destinando a gravação).
Não estando, diretamente, interesses de ordem pública em causa, mas, primordialmente, particulares, não cabe conhecer oficiosamente da nulidade, a qual tinha de ser suscitada, pelo interessado, no momento próprio, querendo, e não o tendo sido, precludido se mostra o direito à sua arguição.
Com efeito, pode a Relação ordenar, oficiosamente, a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que tal se mostre (no seu, fundado, entendimento, e após audição da prova gravada), essencial ao apuramento da verdade, de molde a poder formar a sua autónoma convicção face à globalidade da prova relevante, no contexto da impugnação da decisão de facto, mas já o não pode se nenhuma razão houver para afirmar tal essencialidade, existindo, como no caso, tão só, meras opiniões e convicções da parte interessada. Esta, a pretender impugnar a decisão de facto, devia ter atuado no sentido de arguir a nulidade em causa e o não fez.
Assim, a Relação pode ordenar, por sua iniciativa, a repetição das provas que se encontrem impercetíveis, sempre que isso se revele, no seu entendimento, essencial ao apuramento da verdade, mas já o não pode fazer se nenhuma justificada razão existir para tal, mas mero interesse do apelante.
E, sem ouvir os depoimentos, não estão reunidas as condições para se poder proceder à análise da prova, segundo o princípio da livre apreciação das provas, fixado no nº1, do art. 655º, não podendo, por isso, o Tribunal da Relação modificar o julgado em 1.ª instância, antes, na improcedência da impugnação, tem de manter o decidido.
Não se trata de dar prevalência a soluções de justiça material sobre a formal, pois que no processo, há já uma convicção formada sobre a substância e nada justifica a necessidade de formação de uma outra.
Não é a reapreciação essencial ao apuramento da verdade material, nada nos permitindo concluir pela necessidade ou conveniência da repetição da prova, e precludido está já para as partes o direito de arguirem o vício, por extemporaneidade.
Não havendo, no caso, dúvida de que a gravação dos depoimentos e declarações prestados se mostra impercetível, sendo a sua audição essencial para apreciação do recurso da matéria de facto, pois só revisitada a prova produzida se poderia apreciar da existência de erro na sua apreciação, nenhuma alteração à decisão da matéria de facto pode ser introduzida.
Ora, destinando-se a gravação a possibilitar a reapreciação da prova no recurso e sendo, até, o próprio direito de recorrer, que envolve interesses particulares, limitado, não satisfazendo o recorrente os ónus impostos para a impugnação da matéria de facto nunca esta pode ser reapreciada, improcedendo esta parte do recurso, dada a não demonstração do invocado erro.
Impugnada a matéria de facto, na reapreciação desta, a modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, mas somente se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente (admitido) impuserem diversa decisão (cfr. nº 1 do artigo 662ºdo CPC).
E cabe ao tribunal da Relação formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou que se mostrem acessíveis, sendo o princípio da livre apreciação das provas, como vimos, a base da decisão, quando, como no caso, estão em causa documentos sem valor probatório pleno, relatórios periciais, depoimentos das testemunhas e declarações de parte (cfr. art.os 341º. a 396º. do Código Civil e nº4 e 5 do art. 607.º e n.º3, do art. 466.º, do CPC).
Importa, ainda, considerar que é ónus do recorrente apresentar a sua alegação, com conclusões, a indicar os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – nº1, do artigo 639º -, estas a delimitar o objeto do recurso, conforme estatui o n.º 3 do artigo 635º. Analisadas as conclusões formuladas pelo recorrente, resulta que o mesmo, invocando erro na apreciação da prova, pretende a alteração da decisão da matéria de facto quanto aos factos provados – itens 10, 11, 13, 14, 15, 16, 17, 25, 28 e 29 - e para justificar o erro de julgamento convocou prova gravada, depoimento das testemunhas e de parte.
Ora, os depoimentos apontados pelo apelante são de muito difícil audição e, mesmo, parcialmente inaudíveis, conforme verificámos pela audição da gravação.
Só a total percetibilidade da prova gravada que o recorrente invoca nos permitiria apreciar se a decisão recorrida merece crítica e formar a nossa livre convicção, certo sendo, ainda, incumbir ao recorrente invocar, motivar e demonstrar o erro na apreciação da prova que imputa à decisão recorrida e ele próprio alude a serem os depoimentos impercetíveis.
Como se entendeu no citado Ac. da TRL de 30/05/2017, “Sendo a inquirição (parcialmente impercetível) essencial para a apreciação do recurso na parte em que ocorre impugnação da decisão de facto, fica o Tribunal da Relação impossibilitado de efetuar a reapreciação da prova pretendida pelo apelante porquanto a reapreciação da prova tem de ser feita com os mesmos elementos com que o tribunal recorrido se defrontou.” (negrito nosso).
Uma vez que a nulidade da deficiente gravação não foi, tempestivamente suscitada para que pudesse ser conhecida e sanada, impossibilitado está este Tribunal de efetuar a reapreciação da prova e, consequentemente de conhecer da impugnação da matéria de facto.
Assim, resultando deficiências na gravação da prova, traduzidas em impercetíveis declarações e depoimentos (mesmo que apenas parcialmente) e sendo a inquirição essencial para a apreciação do recurso na parte em que ocorre impugnação da decisão de facto, ficando o Tribunal da Relação impossibilitado de efetuar a reapreciação da prova pretendida pelo apelante, porquanto tem de ser feita com os mesmos elementos com que o tribunal recorrido se defrontou, o apelante, que não arguiu, tempestivamente, a nulidade e incumpriu as especificações e demonstrações em que funda o recurso, não pode, ante tal incumprimento, deixar de ver improceder o recurso, nessa parte, não cabendo anular o julgamento.
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3. Da reapreciação da decisão de mérito:
3.1 - Do preenchimento dos requisitos da medida cautelar decretada: o arrolamento.

Procedimentos cautelares são instrumentos processuais destinados à obtenção de uma providência ou medida para acautelar a eficácia da decisão judicial a proferir numa causa. São a vertente adjetiva das medidas cautelares, conjunto de atos processuais tendentes à obtenção da pretensão de direito material deduzida, sendo esta a providência (pedido) que é solicitada para acautelar o direito material a definir na causa (a ação principal).
Destinam-se a garantir a utilidade prática da ação principal. São garantia do direito à efetiva tutela jurisdicional, que se visa obter com o processo principal, evitando danos, que possam advir da demora, para o efeito útil da ação. São, pois, instrumentos de eficácia do processo principal. Recorre-se às providências cautelares quando a regulação dos interesses não pode aguardar pela decisão definitiva, sendo necessária, para assegurar a utilidade da decisão final e a efetividade da tutela jurisdicional, uma composição provisória do litígio, que vai acautelar a situação até à decisão definitiva.
O processo cautelar é o instrumento de preservação do fim do processo – tutela jurisdicional do caso concreto. É “…na expressiva síntese de CALAMANDREI, “garantia da garantia”, caracterizando-se a sua natureza por uma dupla instrumentalidade”, tendo por fim a proteção da garantia, isto é, através da sua garantia, do seu fruto (a providência cautelar), garantir a produção do efeito útil final – a decisão da ação principal[21].
Permite assegurar a validade e eficácia da decisão através da adoção de medidas (providências) que atuam ao nível da realidade prática por forma a preservar, acautelar, o efeito útil a produzir pela ação principal. A decisão cautelar não traduz, em regra[22], uma antecipação da decisão principal (embora casualmente possa, conduzir à produção de alguns dos efeitos próprios desta). Antes tem uma natureza preventiva, pois visa acautelar e prevenir que, no período que decorre entre o momento em que a providência é proposta e aquele em que a decisão da ação principal produz efeitos, não ocorra situação que inviabilize a utilidade da mesma.
Destinam-se a tutelar o efeito da ação, a assegurar o direito à efetiva tutela jurisdicional, isto é, a garantir o efeito útil da ação principal que vai regular definitivamente o direito.
No caso, estamos perante um procedimento cautelar especificado - arrolamento, sendo esta uma providência de garantia que tem a finalidade garantir a realização de uma prestação e assegurar a sua execução, destinando-se a evitar o extravio, a ocultação ou a dissipação de bens, móveis ou imóveis ou de documentos que, para o efeito, são descritos, avaliados e depositados.
O arrolamento é uma medida de carácter conservatório que pode apresentar-se sob duas vertentes: como medida destinada a assegurar a manutenção de certos bens litigiosos, enquanto a titularidade do direito sobre eles estiver em discussão na ação principal; como medida destinada a garantir a persistência de documentos necessários para provar a titularidade do direito sobre as coisas arroladas, a discutir na ação principal[23].
Constituem requisitos do decretamento da medida de arrolamento:
i) ser o requerente titular de um direito, certo ou eventual, sobre os bens a arrolar;
ii) haver justo receio de extravio, ocultação ou dissipação desses bens[24].
O procedimento cautelar comum de arrolamento, a que alude o artº 403º, tem como requisito a verificação de um justo receio por parte do requerente quanto ao extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, sendo dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas, sendo que esta providência pode ser requerida por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos, devendo, de acordo com o artº 405º, nº 1, fazer prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação; se o direito relativo aos bens depender de ação proposta ou a propor, tem o requerente de convencer o tribunal da provável procedência do pedido correspondente[25].
O arrolamento visa acautelar ou salvaguardar a específica e justificada situação de perigo ou receio relacionada com o extravio, ocultação ou dissipação de bens ou documentos, traduzindo este o periculum in mora especifico deste procedimento cautelar[26].
No caso, decretado o arrolamento, temos que o requerido, se apresentou a exercer o contraditório subsequente ao decretamento da providência, apresentando oposição ao arrolamento decretado.
Fê-lo, ao abrigo do artigo 372º, aplicável por força e nos termos do nº 1, do art. 376º, que consagra a aplicabilidade subsidiária das regras do procedimento cautelar comum às providências nominadas, que tem a epígrafe “Contraditório subsequente ao decretamento da providência” consagra, no nº 1, que “Quando o requerido não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, é-lhe lícito, em alternativa, na sequência da notificação prevista no nº 6, do art. 366º (que, também, por exigência do contraditório tem de ser pessoal):
a) Recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou…;
b) Deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução…”.
Na verdade, a fase que se segue à referida notificação visa permitir o exercício do contraditório pelo requerido, sendo que:
i) O recurso é a via de impugnação da decisão que não traduz introdução de dados inovadores; não influencia na base em que ela assentou, apenas sendo revelada discordância relativamente ao próprio ato em si.
ii) A oposição é o meio de defesa destinado a trazer para a lide factos novos ou meios de prova não valorados pelo tribunal, tendentes a afastar os fundamentos que levaram a que a providência fosse decretada ou a determinar a sua redução. Com este incidente, vem facultar-se ao requerido a possibilidade de, em momento posterior, deduzir a defesa que ficou privado de exercer, como vimos, por razões procedimentais e de celeridade (relacionadas com o fim e a eficácia da providência), no decurso do procedimento cautelar e antes da sua decisão (intercalar) influenciando o sentido da decisão (definitiva) do processo cautelar[27]. Prevêem-se, como fundamentos únicos de dedução de oposição, a invocação de novos elementos de decisão – novos factos ou novos meios de prova - não anteriormente conhecidos e considerados pelo tribunal, e que tenham a potencialidade de, uma vez provados, levarem à alteração, pelo mesmo órgão judicial, da decisão, provocando o afastamento ou a redução da medida cautelar decretada “com base em novos elementos de prova ou em novos factos, que são agora carreados para os autos pelo oponente e com os quais o Tribunal antes não pôde contar. Ou seja, com a dedução da oposição o que se abre é uma nova fase processual, dominada pelo princípio do contraditório, em que se procura reequilibrar a posição de ambas as partes, dando possibilidade ao requerido, não ouvido anteriormente, de alegar factos e produzir meios de prova que não foram tomados em atenção aquando do deferimento da providência”[28].
Com a oposição pretende-se alterar a base da decisão e, através dessa modificação, alterar o próprio conteúdo da mesma. Possibilita-se, assim, que se reponha o contraditório, permitindo-se que o requerido influencie, em todos os seus elementos - factos, prova e direito -, a decisão definitiva (do procedimento) e relevante que surge a final, fruto da comparticipação inovadora de ambas as partes. “A utilidade desta comparticipação, se é visível no tratamento da matéria de direito, alertando o juiz para a verificação ou não de determinados requisitos de ordem legal, mais se revela aquando da produção e valoração de meios de prova destinados à formação da convicção do juiz acerca dos pressupostos de facto de que depende o deferimento ou indeferimento da pretensão”[29].
À oposição, limitada, pelo art. 372º, nº 1, al. b), à alegação de novos factos ou à apresentação de novos meios de prova, segue-se, no cumprimento do contraditório, a notificação do requerente e - com aproveitamento (na medida em que não haja redução de garantias) da atividade probatória já, antes, produzida - a produção da nova prova, em audiência final.
No caso, ao constatar ter-lhe sido imposta uma decisão cautelar proferida sem contraditório, o requerido, com vista a que a decisão se não tornasse definitiva, optou por este meio de defesa ao seu dispor, na viabilização do contraditório: deduzir oposição.
E, nas circunstâncias do caso, proferida a decisão e improcedendo a impugnação da matéria de facto, verifica-se que provado se mostra, em termos sumários, o invocado receio de dissipação dos bens e por não ter o requerido logrado abalar a convicção em que assentou o juízo probatório subjacente ao julgamento da factualidade selecionada como relevante para o decretamento da providência, mantendo-se verificados os pressupostos do arrolamento, não se pode a decisão recorrida deixar de se manter.
Assim, dependendo a reapreciação de mérito da alteração da decisão sobre a matéria de facto, mantida esta fica, necessariamente, prejudicado o conhecimento daquela (nº2, do artigo 608º, ex vi da parte final, do nº2, do art. 663º, e, ainda, do nº6, deste artigo).
Sempre se dirá, contudo, que, como se deixa claro no Ac. da RG de 28/6/2018, proc. 96/18.9T8CBC-A.G1, em que a ora relatora foi adjunta, a lei prevê duas modalidades distintas de arrolamento: o arrolamento geral, supra referido (cfr. arts. 403º e ss.), o caso, e o especial (v. art. 409º), sendo que este caracteriza-se por o periculum in mora não ser elemento constitutivo do arrolamento, pelo que, contrariamente ao que acontece naquele, o requerente do arrolamento está dispensado do ónus da alegação dos factos consubstanciadores desse periculum e da prova indiciária dos mesmos.
E como aí se refere “importa ter presente que estamos no âmbito de uma providência cautelar, as quais se destinam apenas a compor provisoriamente um litígio decorrente de um prejuízo que a demora que a composição definitiva desse litígio seria suscetível de provocar na parte cuja situação jurídica merece ser acautelada ou tutelada.
Conforme pondera Marco Carvalho Gonçalves, “o caminho para a obtenção de uma decisão judicial definitiva é, por via de regra, longo, sinuoso e moroso. Com efeito, pode suceder que, por motivos relacionados com a excessiva litigância judicial ou com a própria complexidade da causa, o período de tempo que medeia entre a propositura da ação e o trânsito em julgado da sentença que ponha termo definitivo ao litígio não se compadeça com a necessidade de acautelar a satisfação do direito do autor” já que “a demora natural do processo institucionalizado” é apto “a anular todo o efeito útil da sentença, por mais certa e definitiva que a sentença seja, e por mais contraditório que tenha sido o processo, prejudicando, por conseguinte, quem dele se serve”, sendo neste contexto que surgem precisamente as providências cautelares, “enquanto medidas de natureza sumária e urgente, que visam antecipar o efeito útil do reconhecimento de um direito”, ou como diz o art. 2º, n.º 2 do CPC, “acautelar o efeito útil da ação”, neutralizando os prejuízos que possa advir para o interessado na tutela do seu direito em consequência de demora normal e inevitável do processo.
Assim é que as providências cautelares visam a composição provisória de um determinado conflito, decorrente do prejuízo que a demora na decisão da causa e na composição definitiva provocaria na parte cuja situação jurídica merece ser acautelada ou tutelada, ou, como diz o n.º 1 do art. 362º do CPC, têm por finalidade específica evitar “lesão grave e dificilmente reparável”.
Do que se acaba de dizer decorre que, salvo os casos enunciados na lei, tratando-se de decisões provisórias, as providências cautelares são necessariamente dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado, a instaurar ou já instaurada (art. 364º, n.º 1 do CPC), onde se vai decidir, em definitivo, o litígio, caducando essas decisões provisórias nos casos enunciados no n.º 1 do art. 373º”.
“Acresce, ainda, que atentas as suas finalidades específicas e o seu caráter provisório e urgente, as providências cautelares baseiam-se num juízo sumário e perfunctório (summario cognitio) do direito que se visa acautelar, sendo suficiente para que a providência possa ser deferida “a probabilidade séria da existência do direito” - o denominado fumus boni iuris -, isto é, um juízo de mera aparência do direito que se visa acautelar (arts. 365º, n.º 1, 368º, nº1, 302º, n.º 1 e 405º, n.º 1 do CPC).
Por outro lado, fundando-se as providências cautelares na necessidade de evitar grave lesão e dificilmente reparável àquele direito decorrente da demora na tutela da situação jurídica, as mesmas destinam-se a obviar ao denominado “periculum in mora”, de onde decorre que este periculum é um elemento constitutivo da providência requerida, pelo que a sua inexistência obsta ao decretamento daquela, carecendo esse periculum de ser apreciado igualmente de acordo com a summario cognitio.
Neste sentido, conforme pondera Teixeira de Sousa, “uma das consequências da summaria cognitio é o grau de prova que é suficiente para a demonstração da situação jurídica que se pretende acautelar ou tutelar provisoriamente. Uma prova strictu sensu (ou seja, a convicção do tribunal sobre a realidade dessa situação) não seria compatível com a celeridade própria das providências cautelares e, além disso, repetiria a atividade e a apreciação que, por melhor se coadunarem com a composição definitiva da ação principal, devem ser reservadas para esta última. É por isso que as providências cautelares exigem apenas a prova sumária do direito ameaçado, ou seja, a demonstração da probabilidade séria da existência do direito alegado, bem como do receio da lesão. As providências só requerem, quanto ao grau de prova, uma mera justificação, embora a repartição do ónus da prova entre o requerido e o requerente observe as regras gerais (art. 342º, n.ºs 1 e 2 do CC)
Assim é que, especificamente no que respeita à providência cautelar especificada de arrolamento, o n.º 1 do art. 405º do CPC é expresso em estabelecer incumbir ao requerente dessa providência fazer prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação, devendo ainda, caso o direito relativo aos bens depender de ação proposta ou a propor, convencer o tribunal da provável procedência do pedido correspondente.
Resulta do que se vem dizendo que (…), para ser decretada a presente providência cautelar de arrolamento, em termos de ónus da prova quanto aos factos alegados pela apelada em que esta alicerça o direito que se arroga titular sobre os bens que pretende ver arrolados e quanto aos factos em que sustenta o “periculum in mora” que para tanto aduziu, a lei basta-se com uma “summario cognitio”, não exigindo, por conseguinte, que o tribunal adquira o grau de convicção quanto à verificação desses factos próprio da ação principal.
Ao decretamento do arrolamento, a lei basta-se que a apelada (art. 342º, n.º 1 do CC) faça prova da “provável existência do direito” que se arroga titular sobre aqueles bens, ou seja, que alegue e prove factos que tornem provável ou verosímil”, sendo “suficiente a mera aparência no que diz respeito à titularidade desse direito.
Também quanto ao periculum in mora, porque o justo receio de extravio ou dissipação dos bens a arrolar é uma conclusão de facto, não obstante seja necessário que a apelada alegue e prove factos que demonstrem que tal receio é sério e real, a lei basta-se com a provável verificação desses factos”.
Basta para o deferimento da medida de caráter conservatório que é o arrolamento a formulação de um juízo de verosimilhança quanto à existência atual ou futura de um direito de conteúdo patrimonial sobre bens em situação de perigo, associada a uma situação de justo receio de extravio do bem ou documento[30] .
A prova indiciária dos factos não exige que o tribunal adquira o grau de certeza quanto à verificação dos mesmos, porquanto o juízo probatório a fazer é de mera verificação da verosimilhança de ocorrência dos mesmos, ou seja, que a prova sumária produzida quanto àqueles permita concluir que existe uma probabilidade séria em como esses concretos factos efetivamente aconteceram.
Mostrando-se preenchidos os requisitos do decretamento da medida de arrolamento – a probabilidade de existência de direito relativo aos bens arrolados e o justo receio de extravio, tem de se manter a providência decretada.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pelo apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
*
III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
*
Custas pelo apelante, pois que ficou vencido – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 13 de julho de 2022
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
Fernanda Almeida
Maria José Simões
______________
[1] Acórdão da Relação de Guimarães de 22/1/2015, processo 561/12.1TBMAR-A.G1.dgsi.net
[2] Acórdão da Relação de Lisboa de 19/1/2016, CJ, 2016, 1º, 62
[3] Acórdão da Relação de Lisboa de 23/4/2025, Processo 1481/05, dgsi.net
[4] Cfr., neste sentido, Ac. RC de 24/3/2015, proc. 4398/11.7T2OVR-A.P1.C1, in dgsi.net
[5] Ac. RC de 18/11/2014, proc. 628/13.9TBGRD.C1 e da RP de 26/9/2016, proc. 1203/14.6TBSTS.P1, ambos in dgsi.net, citados in Abílio Neto Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição revista e ampliada, março de 2017, Ediforum
[6] Ac. RG de 3/3/2016, proc. 7109/15, in dgsi.pt
[7] Ac. RL de 17/3/2016: CJ, 2016, 2º, 81
[8] Ac. RG de 24/4/2014, proc. 523/11.6TBCBT.G1, in dgsi.pt
[9] Ac. RP de 20/9/2021, proc.12347/18.5T8PRT.P1, em que a ora relatora foi adjunta.
[10] ac. do STJ de 30.4.2019 (relatora: Catarina Serra), in dgsi.pt
[11] Acórdãos RC de 3 de Outubro de 2000 e 3 de Junho de 2003, CJ, anos XXV, 4º, pág. 28 e XXVIII 3º, pág 26
[12] Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 348.
[13] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, vol II, pag.635.
[14] Acórdão da Relação do Porto de 19/9/2000, CJ, 2000, 4º, 186 e Apelação Processo nº 5453/06.3
[15] Sendo a matéria impugnada a seguinte, constante dos factos provados: “10) CC desde há mais de 4 anos atravessava períodos de estado de demência, ficando, nesses períodos, incapaz de compreender ideias complexas, perdendo orientação espácio-temporal.
11) CC vivia sozinha, tendo sido auxiliada na gestão do dia à dia pelo filho da requerente.
13)Ultimamente, como consequência do agravamento do seu estado de saúde a falecida, vinha apresentando dificuldades em ler, escrever e compreender o que a rodeava.
14)Durante o decurso dos anos de 2017, 2018 e 2019 fechava-se na sua residência, entrando em pânico e sem ter capacidade para dali sair, sendo necessária a intervenção quer do corpo de Bombeiros, quer da Policia de Segurança Pública para repor a normalidade da situação.
15) Até à data do seu falecimento, CC passava por períodos em que ficava incapaz de se orientar no tempo, espaço.
16) Ocorriam situações em que mesma não ficava capaz de reconhecer a generalidade de familiares e amigos próximos.
17) Desconhecendo o conceito quantitativo de dinheiro e o seu respetivo valor.
25) Nos dias que antecederam a viagem em questão e sem nunca em momento anterior ter demonstrado qualquer intenção junto dos seus familiares, a CC outorgou a favor do Requerido uma procuração que o possibilitava fazer negócio consigo próprio de todos os seus imóveis”.
“28) Já depois do falecimento de CC, o requerido retornou a Portugal e exibiu os terrenos a terceiros para venda.
29) Devido ao convívio do requerido com CC aquele não podia ignorar o estado de demência de que a mesma padecia”.
[16] Pires de Lima e Antunes Varela in CC Anotado, vol. I, p. 327/328 em anotação ao artigo 371º
[17] Ac. RP de 7/2/2022, proc. 207/19.7T8MLD.P1, in dgsi.pt
[18] Vide neste sentido CPC Anot. Lebre de Freitas, edição Coimbra Editora, Vol. I, p. 311 em anotação ao artigo 155º; Abrantes Geraldes in Recursos no Novo CPC, ed. 2014, p. 136.
[19] Na jurisprudência, vários têm sido os arestos que sobre esta questão têm sido proferidos, dos quais faremos uma breve resenha, elucidando o que se nos afigura ser o entendimento maioritário quanto à posição por nós assumida:
- Assim no TRP, vide Ac. de 30/04/2015, Relator José Amaral; Ac. 17/12/2014, Relatora Judite Pires; Ac. de 13/02/2014, Relator Aristides Rodrigues de Almeida, no qual e fazendo uma análise comparativa entre o novo e o anterior regime, se pode ler no respetivo sumário:
“I - Na vigência do anterior CPC a irregularidade da gravação dos meios de prova prestados na audiência constituía uma nulidade processual secundária, que devia ser arguida no prazo de 10 dias a contar do dia em que a parte interveio no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, desde que, neste último caso, devesse presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou podia ter tomado conhecimento dela, agindo com a necessária diligência.
II - A parte goza da faculdade de minutar as suas alegações de recurso até à data limite para a sua apresentação e, como tal, pode aperceber-se da falha da gravação apenas nesse último momento, razão pela qual podia invocar a irregularidade apenas nas alegação de recurso, exceto se se demonstrasse que teve conhecimento do vício mais de dez dias antes do termo desse prazo.
III - O art. 155.º do novo CPC consigna agora de forma expressa que o prazo de arguição do vício da deficiência da gravação é de 10 dias a contar da disponibilização da gravação, a qual, por sua vez, deve ocorrer no prazo de 2 dias a contar da realização da gravação.”
- No TRL vide Ac. de 19/05/2016, Relator Jorge Leal e Ac. 30/05/2017, Relator Luís Filipe de Sousa em cujo sumário se pode ler: “I-A deficiência da gravação de inquirição de testemunha tem de ser arguida pela parte no tribunal a quo, no prazo de dez dias a partir do momento em que a gravação é disponibilizada (Artigo 155º, nº4, do Código de Processo Civil).
II-Decorrido esse prazo sem que seja arguido o vício em causa, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida nas alegações de recurso.”;
- no TRC, vide Ac. de 10/07/2014, Relator Teles Pereira;
- no TRG, vide Ac. de 12/03/2015, Relatora Helena Melo; Ac. 11/09/2014, Relator Heitor Gonçalves;
- No TRE vide Ac. de 12/10/2017, Relator Vítor Sequinho dos Santos.
Vide ainda Ac. de 05/05/2016, Relator Canela Brás (neste se fazendo também ua resenha histórica das posições antes assumidas no âmbito do anterior CPC) no qual e ainda que neste se tenha defendido ser de contar o prazo dos 10 dias apenas após a disponibilização – entendida a disponibilização como “entrega” da gravação ao interessado que invoca a nulidade da gravação - retirando à parte o ónus de requerer essa mesma entrega da gravação dentro do prazo do artigo 155º nºs 3 e 4 a contar do fim da audiência, do que discordamos, seguiu o entendimento de que a nulidade tem de ser arguida nos 10 dias subsequentes, afastando assim a possibilidade de tal nulidade ser arguida em sede de alegações de recurso da decisão final.
[20] Aí se considera “Assim se decidiu também no Ac. RL de 12/11/2013 (também disponível em www.dgsi.pt) no qual se considerou que “…as anomalias na gravação das provas se podem considerar como uma irregularidade especial a que se aplica um regime de igual modo especial e particularmente expedito e oficioso, que de resto se impõe à luz do manifesto interesse de ordem pública que visa alcançar-se com a gravação da audiência. A especialidade mais saliente deste regime legal traduz-se justamente na circunstância da Relação poder ordenar por sua iniciativa a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que isso se revele, no seu entendimento, essencial ao apuramento da verdade; no seu entendimento, sublinhe-se, que não no da parte apelante, necessário se mostrando que para formar a sua convicção, a Relação proceda à prévia audição da gravação…”.
Há, de facto, um claro interesse púbico nesta matéria (e não apenas interesses privados, das partes, na repetição dos depoimentos deficientemente gravados), ligado ao duplo grau de jurisdição, que visa a descoberta da verdade material, e que ficaria comprometida pela negligente gravação da prova, tarefa cuja realização não cabe às partes mas ao tribunal.
Ora, os interesses de ordem pública em questão exigem, em nosso entender, a possibilidade de conhecimento oficioso da nulidade em apreciação.
Por isso, cremos que foi de caso pensado que o legislador de 2013 manteve plenamente em vigor o art.º 9.º do DL n.º 39/95, de 15-02, o qual, lido conjugadamente com o citado artº 196º (parte final) do CPC, permite que a nulidade do ato de gravação deficiente seja de conhecimento oficioso pelo tribunal – quer na primeira, quer na segunda instância.
Assim sendo, à luz do disposto, conjugadamente, no artº 9.º do DL n.º 39/95, e nos artºs 195.º n.º 1, 196.º “in fine”, e 662.º n.º 2 al. c), todos do CPC, e vista a filosofia que subjaz a este novo Código - dando prevalência a soluções de justiça material em detrimento da mera justiça formal -, é de perfilhar o entendimento jurisprudencial no sentido de as anomalias na gravação da prova consubstanciarem uma irregularidade especial, com aplicação de um regime também especial, particularmente expedito e oficioso, justificado por um interesse de ordem pública, que visa alcançar-se com a gravação da audiência, permitindo a efetivação do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto.
Nesse âmbito, pode a Relação ordenar, oficiosamente, a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que tal se mostre, no seu entendimento, após audição da gravação, essencial ao apuramento da verdade, de molde a poder formar a sua autónoma convicção face à globalidade da prova relevante, no contexto da impugnação da decisão de facto.
Se o recurso assenta, desde logo, na impugnação da decisão de facto, com invocação de provas gravadas, e o tribunal de recurso não logra ter acesso a parte desses meios de prova, por inaudibilidade da gravação, impossibilitando uma decisão conscienciosa da impugnação e, por consequência, do recurso, deve este tribunal, oficiosamente, socorrendo-se dos dispositivos legais aludidos, anular o julgamento, na parte afetada, e a decisão recorrida, com vista ao suprimento do vício existente.
Continua a manter acuidade nesta matéria o decidido no Ac. STJ de 16/12/2010 (disponível em www.dgsi.pt), de que o “…art. 9.º do DL 39/95, de 15-02, aponta no sentido de se poder considerar as anomalias na gravação das provas como uma irregularidade especial, a que se aplica um regime de igual modo especial e particularmente expedito e oficioso, que de resto se impõe à luz do manifesto interesse de ordem pública que visa alcançar-se com a gravação da audiência (…).
A especialidade mais saliente deste regime legal traduz-se, justamente, na circunstância de a Relação poder ordenar por sua iniciativa a repetição das provas que se encontrem imperceptíveis, sempre que isso se revele, no seu entendimento, essencial ao apuramento da verdade (…).
A inaudibilidade de um ou mais depoimentos – facto que sempre terá de ser constatado pela 2.ª instância – equivale praticamente, quando esteja em causa reapreciar as provas em sede de apelação, à inexistência da prova produzida; e se a inaudibilidade for influente no exame da causa, ela é impeditiva da real concretização do duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto (que, no caso, foi precisamente o direito que os recorrentes pretenderam exercer na apelação levada à Relação) (…).
Sem ouvir os depoimentos e proceder à sua análise crítica, segundo o princípio da livre apreciação das provas fixado no art. 655º n.º 1 do CPC, a Relação não pode optar com inteira segurança por manter ou modificar o julgado em 1.ª instância…”.
No mesmo sentido se pronunciou também o citado Ac. RL de 12/11/2013, no qual se refere que “Em conformidade, cabe a este Tribunal proceder à reapreciação da prova, com a mesma amplitude de poderes que tem a 1.ª instância, fazendo assim, de forma autónoma, o seu próprio juízo de valoração, que pode ser igual ou diferente do já produzido, procedendo à análise crítica das provas indicadas como fundamento da impugnação, quer testemunhal, quer documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível.
Configura-se, deste modo, que para tanto, deverá este tribunal ter acesso à prova produzida, na exata medida da sua produção, habilitando-o com todos os elementos probatórios que foram, ou podiam ter sido atendidos, por disponíveis, para a formulação da necessária convicção autónoma, sem prejuízo da maior ou menor abrangência da reapreciação a realizar…”.
Ora, na senda da jurisprudência citada, concordamos – à luz do disposto nos artºs 9.º do DL n.º 39/95, 195º nº 1, 196º parte final, e 662º, nº 2, al c), todos do actual CPC, e vista a filosofia que lhe está subjacente, dando prevalência a soluções de justiça material -, que as anomalias na gravação das provas produzidas consubstanciam uma irregularidade processual especial, a que se deve aplicar também um regime especial, que se impõe à luz do manifesto interesse de ordem pública que visa alcançar-se com a gravação da audiência.
Assim sendo, é nosso entendimento que pode a Relação ordenar, por sua iniciativa, ou seja, oficiosamente, a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que isso se revele, no seu entendimento, após audição da gravação, essencial ao apuramento da verdade, de molde a poder formar a sua autónoma convicção, mesmo que se mostre já precludido para as partes o direito de arguirem o vício existente, nomeadamente por extemporaneidade (como aconteceu, no caso dos autos).
Reportando-nos agora novamente ao caso dos autos, como se referiu acima, não há dúvida de que a gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas se mostram imperceptíveis (dado o ruído de fundo existente na gravação), sendo a audição daqueles depoimentos essencial para apreciação do recurso da matéria de facto, de que a recorrente lançou mão.
Ou seja, temos como seguro que, dada a relevância daquelas provas (registadas em gravação inaudível), a sua reapreciação é essencial ao apuramento da verdade material, não podendo neste momento este tribunal de recurso aceder ao que foi afirmado, para poder exercer plenamente a sua função de reapreciação da prova.
Resta pois determinar, oficiosamente, a repetição daqueles depoimentos, de molde a suprir a impercetibilidade existente, anulando-se, em conformidade, o julgamento, bem como a sentença subsequentemente proferida” .
[21] Lucinda D. Dias da Silva, Processo Cautelar Comum, Princípio do Contraditório e dispensa de audição prévia do requerido, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 113.
[22] Cfr, contudo, o art. 369º, do Código de Processo Civil, com a epígrafe “Inversão do contencioso
[23] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 496
[24] Ac. RP de 8/3/2021, proc. 342/20.9T8PVZ-A.P1, in dgsi.pt
[25] Ac. RC de 18/2/2021, proc. 27/21.9T8SEI.C1, in dgsi.pt
[26] Ac. RL de 24/9/2020, proc. 13254/19.0T8SNT.L1-2, in dgsi.pt
[27] Cfr. Ac. RP de 15/7/2009, proc. 822/08.4TJPRT-A.P1, in www.dgsi.net
[28] Ac.RP de 13/1/2009, proc. 0827226, in www.dgsi.net
[29] GERALDES, António S. Abrantes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Vol., 3ª ed. (5. Procedimento Cautelar Comum), Coimbra, Almedina, p. 230.
[30] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, vol. I, pág. 498