Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3481/18.2T8STS-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: DECISÃO JUDICIAL
LAPSO CALAMI
RETIFICAÇÃO DE LAPSOS MATERIAIS
Nº do Documento: RP202404093481/18.2T8STS-B.P1
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Sendo manifesto o lapso de uma decisão judicial e requerendo a parte a rectificação desse lapso sem da decisão interpor recurso, precisamente por ele ser evidente, deve ser revogada a decisão que não se pronunciou sobre a existência do lapso, por entender estar esgotado o poder jurisdicional sobre a matéria.
II - Reconhecendo a existência do lapso invocado, deverá a Relação, nessas circunstâncias, proceder à rectificação da decisão que incluía o erro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 3481/18.2T8STS-B.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de S.Tirso - Juiz 2


REL. N.º 859


Juiz Desembargador Relator: Rui Moreira
1º Adjunto: Juiz Desembargador Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira
2º Adjunto: Juíza Desembargadora Anabela Dias da Silva


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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1. RELATÓRIO

Nos autos de insolvência respeitantes a AA, na sequência de requerimento do próprio insolvente e a propósito dos valores obtidos para a massa insolvente durante o período de cessão, veio o sr. fiduciário, em requerimento de 19/5/2023, informar que, desde o início desse período da cessão o insolvente lhe entregara 5.108,60€, que depositou na conta bancária da massa. Mais referiu que desde que foi decretada a insolvência (13/11/2018), durante o período de cessão (iniciado em 08/03/2019), prosseguiu uma execução contra o insolvente, à revelia do seu conhecimento, a favor da credora BB, o que permitiu que esta tenha embolsado indevidamente 4.223,37€, que se mantêm em seu poder e são devidos à massa. Esclareceu, todavia, que esse montante não satisfazia integralmente o crédito reconhecido a esta na insolvência.
Porém, acrescentou: “Haverá que ratear entre a BB e a outra credora nos presentes autos os montantes cedidos acrescidos do que está em poder da BB, previamente retiradas as custas, reembolsos e remunerações. (…)
Havendo na posse do fiduciário, como há, montantes suficientes para pagamento de custas, reembolsos e remunerações e pagamento do que é devido (após rateio) à outra credora, ir recuperar valores junto da BB para depois os entregar à mesma pessoa traduz-se numa operação inútil e que só acarreta demora para o processo. Pois basta dar por compensados os créditos dessa credora que devam ser pagos após rateio com as dívidas da mesma, enquanto devedora à massa.
Assim, bastará, em rateio, apurar quanto é que terá que ser entregue à outra credora, e entregar-lhe esse montante, e entregar à BB o diferencial entre o que ela já tem em seu poder e o valor em poder da massa insolvente que lhe cabe em rateio.
(…)
Mais se acresce que para liquidação total dos créditos e dívidas da massa insolvente, estima-se que o insolvente terá a entregar cerca de 3.727,40€, a saber:
Valor total apurado a entregar: 11.354,55€
Valor dos créditos (abatendo o valor já entregue à credora BB): 4.272,51€
Valor das custas: 3.166,88€
Valor das remunerações do fiduciário: 10% x 11.354,55€ + IVA = 1.396,61€
Valor para fazer face a todas as despesas: 4.272,51€ + 3.166,88 + 1.396,61€ = 8.836,00€
Valor entregue até à data: 5.108,60€
Valor em falta: 8.836,00€ - 5.108,60€ = 3.727,40€”
Notificada, veio a credora BB manifestar a sua concordância com tal exposição.
Pronunciando-se sobre o incidente que assim se desenvolvera, o tribunal proferiu a seguinte decisão:
“Concordando-se com os cálculos efetuados pelo Sr. Fiduciário em 19-05-2023, os quais obtiveram parecer favorável do Sr. Contador, tal como resulta da informação cotada de 12-07-2023, apurou-se a quantia de € 3.727,40 que incumbirá à credora BB entregar à fidúcia, a qual é necessária para assegurar a satisfação de todas as despesas e assegurar o rateio das quantias que excederam o rendimento indisponível, sem prejuízo de haver lugar à dedução da diferença entre a quantia de € 4.272,51 que recebeu no âmbito da penhora e o valor que lhe assista no âmbito das operações de rateio a efetuar, o que se determina.
Notifique, incluindo o Sr. Fiduciário para, no prazo de 10 dias, efetuar as operações de rateio com base nos cálculos efetuados em 19-05-2023, de modo a estabelecer o montante a entregar pela credora BB, uma vez efetuada a compensação do respetivo crédito com o que recebeu em excesso, e que a mesma deverá entregar à fidúcia.”
Sobre este despacho, veio a credora BB apresentar requerimento, nos seguintes termos:
“(…)
2 – O valor que a credora recebeu no âmbito na penhora também não foi o de € 4.272,51 como referido no douto despacho supra aludido, mas sim o de € 4.223,37.
3 – O que resulta do requerimento do Sr. Fiduciário de 19/05/2023 é o seguinte:
- O valor dos créditos reconhecidos é de € 8.495,88 (€ 4.223,37 já recebidos pela credora ora exponente + € 4.272,51);
- O valor das custas é de € 3.166,88;
- O valor das remunerações do fiduciário € 1.396,61 (já com o IVA incluído);
O valor que é necessário para fazer face ao que há a pagar são €8.836,00 que corresponde à soma do valor em falta para satisfação integral dos créditos reconhecidos, valor em falta este que é de € 4.272,51, acrescido do valor necessário para pagamento das custas que é de € 3.166,88 e da quantia necessária para pagamento das remunerações do fiduciário que é de €1.396,61.
Deduzindo aos €8.836,00 a quantia de €5.108,60 que existe na conta da massa insolvente, resulta que o valor em falta é de €3.727,40 e que tem que ser entregue pelo insolvente e não pela credora ora exponente.”
Interpelado pelo tribunal, veio o sr. fiduciário afirmar “…que efetivamente compete ao insolvente a entrega da quantia de 3.727,40€.”
Foi então proferido o despacho recorrido, com o seguinte conteúdo:
“No caso vertente a credora BB pretende a reapreciação da decisão proferida em 11-09-2023, de modo a evitar a entrega da quantia de €4.272,51 que recebeu no âmbito da penhora indevidamente concretizada já depois da declaração da insolvência, com dedução do valor que lhe assista no âmbito das operações de rateio a realizar, divergindo o entendimento do Tribunal daquele defendido pelo Sr. Fiduciário no requerimento junto em 19-05-2023, no qual aquela credora se apoia, pretendendo esta que seja o insolvente a proceder à entrega à fidúcia da quantia de € 3.727,40, o que equivale à modificação daquela decisão.
Efetivamente, conforme se referiu, o Código de Processo Civil limita os poderes do Juiz, após proferida a sentença ou despacho, à possibilidade de retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, não tendo sido alegado nem se vislumbrando que a pretensão da referida credora seja enquadrável em qualquer daquelas previsões.
Como tal, e sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, indefiro o requerido pela credora BB, por falta de fundamento legal.”
É desta decisão que vem interposto recurso, pela credora BB, que concluiu alinhando as seguintes conclusões:
1 – Nos presentes autos, encontra-se reconhecido à ora Recorrente um crédito no montante de € 8.195,88 (Oito mil cento e noventa e cinco euros e oitenta e oito cêntimos), encontrando-se, também, reconhecido a CC um crédito de € 300,00 (Trezentos euros).
2 - Por carta datada de 27/10/2022, foi a ora Recorrente notificada para proceder à devolução à massa insolvente do valor que lhe foi pago após a declaração de insolvência, ou seja, € 5.932,72 ou para dizer o que tivesse por conveniente, porquanto o Sr. Fiduciário entendia que, após a declaração de insolvência havia sido indevidamente pago à Recorrente o referido valor, correspondente à soma de montantes que teriam sido indevidamente penhorados no vencimento do Recorrido no período de novembro de 2018 a maio de 2020 inclusive.
3 - E a Recorrente, em resposta à notificação que lhe fora efetuada, esclareceu que existiram valores indevidamente penhorados no vencimento do Recorrido após a declaração de insolvência deste, por virtude de o mesmo não ter dado a saber nos presentes autos a existência do processo executivo que sob o n.º 20632/16.4 T8PRT seus termos corria pelo Juiz 7 do Juízo de Execução do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, no qual a Recorrente é Exequente e o Recorrido é Executado.
Ora;
4 – A Recorrente não sabia que, por virtude da declaração de insolvência do executado, a execução deveria ter sido suspensa e deveria ter sido também suspensa a penhora de vencimento de AA, tendo a Recorrente recebido, após a referida declaração de insolvência e até novembro de 2019, a quantia global de € 4.223,37 e não o de € 5.932,72 conforme referido na notificação recebida do Tribunal e no requerimento do Sr. Fiduciário.
5 - Uma vez que as únicas credoras nos presentes autos são a Recorrente e CC, no caso de o valor que a Recorrente tivesse que entregar à massa insolvente, tivesse que ser posteriormente pago à mesma, solicitou-se que a Recorrente fosse dispensada de efetuar previamente a entrega de tal montante à massa insolvente.
6 – A Recorrente já não tem na sua posse o valor que, sem qualquer culpa da sua parte, lhe foi entregue após a declaração de insolvência de AA, pelo que, se tivesse que efetuar a restituição do montante de € 4.223,37, apenas poderia fazê-lo em prestações mensais e sucessivas do valor de € 25,00, com acerto na última prestação.
7 – Opôs-se ao requerimento feito nos autos pelo insolvente no sentido de ao valor que o mesmo tem que entregar à massa insolvente, valor este correspondente a € 5.159,82 nos termos do relatório anual do fiduciário apresentado em 05/04/2022, a título de rendimentos por si auferidos que ultrapassem o equivalente a 1 (um) salário mínimo nacional por mês, no âmbito do benefício da exoneração do passivo restante, ser descontado o valor que lhe foi indevidamente penhorado.
Com efeito;
8- O requerido pelo insolvente não pode merecer acolhimento, porquanto o valor que o mesmo tem que entregar à massa insolvente foi calculado pelo Sr. Fiduciário com base no valor líquido recebido pelo insolvente, constante dos respetivos recibos de vencimento e o dito valor líquido resulta da dedução ao valor ilíquido, para além do mais, dos valores que foram penhorados no vencimento.
Isto Posto;
9 -Do requerimento do Sr. Fiduciário com a referência 44696099 apresentado nos autos em 14/02/2023, decorre que o mesmo aceita que o valor recebido pela ora Recorrente após a declaração de insolvência do Recorrido foi de apenas € 4.223,37 e que foi por força da conduta omissiva do Recorrido, que não deu a saber nos autos a existência da execução que sob o n.º 20632/16.4 T8PRT seu termos corria pelo Juiz 7 do Juízo de Execução do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que a Recorrente continuou a receber valores que foram penhorados no vencimento do Recorrido.
10 -Diz, ainda, o Sr. Fiduciário que as dívidas a pagar nos autos ( €8.195,88 e €300,00), bem como as custas e demais encargos a liquidar, são perfeitamente saldáveis com os valores que estão na posse da Recorrente Credora e da massa insolvente e sendo certo que o insolvente sempre terá que entregar à massa insolvente os rendimentos por si auferidos que ultrapassem o equivalente a um salário mínimo nacional por mês, sem poder beneficiar do desconto do valor que lhe foi indevidamente penhorado como o mesmo pretendia.
11 -Concluiu o Sr. Fiduciário, admitindo ser correto compensar a dívida em pagamento na insolvência com os montantes já recebidos pela Recorrente, notificar o insolvente para entregar à massa valor superior a € 3.000,00, montante suficiente para total pagamento das credoras, custas e demais encargos no processo, de forma a que, na posse de tal valor, se proceda a todos os pagamentos devidos, encerrando-se o processo com integral pagamento.
12 -Ou seja, para tudo ser liquidado, o insolvente já não teria que entregar à massa a quantia de € 5.159,82, mas apenas € 3.000,00 e tal euros.
13 -Mais tarde, mais precisamente no requerimento com a referência 45616327 apresentado em 19/05/2023, veio o Sr. Fiduciário:
A - Reiterar que a Recorrente continuou a receber valores provenientes da penhora do vencimento do insolvente por virtude de não ter sido dada a saber, pelo Recorrido, no processo de insolvência existência do processo executivo e da penhora;
B – Informar que desde o início do período da cessão até à data do requerimento, ou seja, 19/05/2023, o insolvente havia entregue ao fiduciário € 5.108,60 que estão na conta bancária da massa (O valor de € 5.108,60 já se encontrava referido no ponto 1 da proposta de rateio constante do requerimento apresentado pelo Sr. Fiduciário em 14/02/2023, com a referência 44696099).
C – Confirmar que a ora Recorrente recebeu indevidamente (porquanto a execução e a penhora deveriam ter sido suspensas e não o foram por culpa do insolvente) o valor de € 4.223,37 que se mantem em poder da Recorrente e é devido à massa, mas não satisfaz integralmente o crédito reconhecido à Recorrente na insolvência, que ascende ao montante de € 8.195,88.
D – O insolvente, somado o valor penhorado com o valor que foi entregue ao fiduciário nunca ficou desapossado de valores que ofendessem um salário mínimo nacional - que, por sentença, se excluiu da cessão – porquanto o que se ordenou que o insolvente entregasse foi o que excedia um salário mínimo nacional após todos os descontos efetuados pela entidade patronal.
E – A ora Recorrente é credora do insolvente e tem direito a receber os créditos verificados e graduados por sentença, deve à massa o que recebeu indevidamente, mas tem a receber da massa mais do que o que recebeu até agora indevidamente.
F – Motivo pelo qual, recuperar valores junto da Recorrente para depois os entregar à mesma, é uma operação inútil e que só acarreta demora para o processo.
G – Basta, em rateio, apurar quanto é que terá que ser entregue à outra credora, e entregar-lhe esse montante, e entregar à Recorrente o diferencial entre o que ela já tem em seu poder e o valor em poder da massa insolvente que lhe cabe em rateio.
H – Para liquidação total dos créditos e dívidas da massa insolvente, estima-se que o insolvente terá a entregar cerca de 3.727,40 €, a saber:
Valor total apurado a entregar: 11.354,55 €
Valor dos créditos (abatendo o valor já entregue à credora BB): 4.272,51€
Valor das custas: 3.166,88 €
Valor das remunerações do fiduciário: 10% x 11.354,55 + IVA = 1.396,61€
Valor para fazer face a todas as despesas: 4.272,51€+ 3.166,88+1.396,61€ = 8.836,00 €
Valor entregue até à data: 5.108,60€
Valor em falta: 8.836,00 € - 5.108,60€ = 3.727,40
Ou seja:
É possível efetuar-se o pagamento de todos os créditos reconhecidos e que são 2:
- O da Recorrente, no valor de € 8.195,88; e
- o de CC, no valor de € 300,00.
O valor global dos créditos reconhecidos é, assim, de € 8.495,88.
Como a Recorrente já recebeu € 4.223,37, só há que pagar a diferença entre € 8.495,88 e os ditos € 4.223,37. A referida diferença corresponde a € 4.272,51.
Destes € 4.272,51, € 300,00 serão liquidados à credora CC e os restantes € 3.972,51 à credora BB.
A credora BB, somando aos € 4.223,37 que já recebeu, os € 3.972,51 que irá receber, obtém a satisfação integral do crédito que lhe foi reconhecido, correspondente a € 8.195,88.
O valor entregue pelo insolvente ao fiduciário até à data corresponde a € 5.108,60
O valor das custas é de € 3.166,88.
O valor das remunerações do fiduciário, com IVA incluído, corresponde a € 1.396,61.
Havendo que pagar as despesas de € 4.272,51 + € 3.166,88 + € 1.396,61, o que perfaz um total de € 8.836,00, uma vez que o valor entregue pelo insolvente até à data corresponde a € 5.108,60, o insolvente tem que entregar a diferença entre o valor que há a pagar (€ 8.836,00) e o valor que até à data entregou ( € 5.108,60 ), ou seja, o insolvente tem que entregar € 3.727,40 ( € 8.836,00 - € 5.108,60).
Ora;
14 - Em 11/09/2023, foi proferido despacho nos autos nos seguintes termos: “Req. de 19/05/2023 e segs.: Concordando-se com os cálculos efetuados pelo Sr. Fiduciário em 19-05-2023 , os quais obtiveram parecer favorável do Sr. Contador, tal como resulta da informação cotada de 12-07-2023, apurou-se a quantia de € 3.727,40 que incumbirá à credora BB entregar à fidúcia , a qual é necessária para assegurar a satisfação de todas as despesas e assegurar o rateio das quantias que excederam o rendimento indisponível, sem prejuízo de haver lugar à dedução da diferença entre a quantia de € 4.272,51 que recebeu no âmbito da penhora e o valor que lhe assista no âmbito das operações de rateio a efetuar, o que se determina.
Notifique, incluindo o Sr. Fiduciário para, no prazo de 10 dias efetuar as operações de rateio com base nos cálculos efetuados em 19-05-2023, de modo a estabelecer o montante a entregar pela credora BB, uma vez efetuada a compensação do respetivo crédito com o que recebeu em excesso, e que a mesma deverá entregar à fidúcia.”
15 - Notificada deste último despacho, a Recorrente apresentou nos autos requerimento com a referência 46602393, em 25/09/2023, no qual requereu a correção do despacho proferido em 11/09/2023, porquanto o mesmo padece de manifestos lapsos.
Com efeito;
16 - O que resulta do requerimento do Sr. Fiduciário de 19/05/2023 é que quem tem que entregar € 3.727,40 é o insolvente e não a credora BB.
Apurou-se a quantia de € 3.727,40 que incumbirá ao insolvente entregar à fidúcia, a qual é necessária para assegurar a satisfação de todas as despesas e assegurar o rateio das quantias que excederam o rendimento indisponível.
O que resulta do requerimento do Sr. Fiduciário de 19/05/2023 é que a quantia de € 4.272,51 não é a que a credora BB recebeu no âmbito da penhora, mas sim o valor em falta para integral pagamento dos créditos reconhecidos, abatido o valor de € 4.223,37 que a credora BB já recebeu.
E estamos perante manifestos lapsos passíveis de ser corrigidos.
17 - Até porque, o referido douto despacho começa por dizer:“ Concordando-se com os cálculos efetuados pelo Sr. Fiduciário em 19-05-2023, os quais obtiveram parecer favorável do Sr. Contador, tal como resulta da informação cotada de 12-07-2023 (…)”, mais dizendo no início do segundo parágrafo: “Notifique, incluindo o Sr. Fiduciário para, no prazo de 10 dias, efetuar as operações de rateio com base nos cálculos efetuados em 19-05-2023 (…)”
18 - Ora, salvo lapso manifesto, não é possível dizer-se que se concorda com os cálculos efetuados pelo Sr. Fiduciário em 19-05-2023 e ordenar que sejam efetuadas as operações de rateio com base nos cálculos efetuados em 19-05-2023 e, simultaneamente, dizer-se que desses cálculos resultam coisas completamente diferentes do que nos mesmos é dito, ou seja, dizer-se que desses cálculos resulta uma quantia de € 3.727,40 a restituir pela credora BB, que esta recebeu a quantia de € 4.272,51 no âmbito da penhora.
Sucede que;
19 - Em 30/10/2023, o Tribunal proferiu o seguinte despacho:
“ Req. de 22-09-2023 e segs.:
Decorre do disposto no art.º 613.º, n.ºs 1 a 3 do Código de Processo Civil que, uma vez proferida sentença ou despacho, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Juiz quanto à matéria da causa, podendo apenas retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença.
As situações passíveis de determinar tais intervenções por parte do Juiz estão previstas nos arts. 614º e 616º do mesmo diploma.
No caso vertente a credora BB pretende a reapreciação da decisão proferida em 11-09-2023, de modo a evitar a entrega da quantia de € 4.272,51 que recebeu no âmbito da penhora indevidamente concretizada já depois da declaração de insolvência, com dedução do valor que lhe assista no âmbito das operações de rateio a realizar, divergindo o entendimento do Tribunal daquele defendido pelo Sr. Fiduciário no requerimento junto em 19-05-2023, no qual aquela credora se apoia, pretendendo esta que seja o insolvente a proceder à entrega à fidúcia da quantia de € 3.727,40, o que equivale à modificação daquela decisão.
Efetivamente, conforme se referiu, o Código de Processo Civil limita os poderes do Juiz, após proferida a sentença ou despacho, à possibilidade de retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, não tendo sido alegado nem se vislumbrando que a pretensão da referida credora seja enquadrável em qualquer daquelas previsões.
Como tal, e sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, indefiro o requerido pela credora BB, por falta de fundamento legal.(..)
Ora;
20 - É com este despacho proferido em 30-10-2023 que a ora Recorrente não se conforma. Com efeito;
21 - A pretensão da recorrente enquadra-se no disposto no n.º 1 do art.º 614.º do C. P. Civil que dispõe que: “ Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do art.º 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes.”
E o que a Recorrente pretendia com o seu requerimento era exatamente a correção do despacho proferido em 11/09/2023.
Como é que é possível que o Tribunal no seu despacho de 11/09/2023 diga que concorda com os cálculos efetuados pelo Sr. Fiduciário em 19/05/2023 e ordene a notificação do Sr. Fiduciário para efetuar as operações de rateio com base nos cálculos efetuados em 19-05-2023 e agora, no despacho de 30-10-2023 chega ao ponto de afirmar o seguinte: “ (…) divergindo o entendimento do Tribunal daquele defendido pelo Sr. Fiduciário no requerimento junto em 19-05-2023, no qual aquela credora se apoia, pretendendo esta que seja o insolvente a proceder à entrega à fidúcia da quantia de € 3.727,40 (…).”
Então agora o Tribunal já não concorda com os cálculos efetuados pelo Sr. Fiduciário no requerimento por este apresentado em 19/05/2023?!?!?!?!
22 - E os € 5.159,82 que o insolvente tem que entregar à massa insolvente nos termos do relatório anual do fiduciário de 05/04/2022 também desaparecem?
O insolvente também não tem que os entregar?
23 - A Recorrente não pretende a modificação da decisão de 11/09/2023, pretende a correção de tal despacho em consonância com o requerimento do Sr. Fiduciário de 19/05/2023 ao qual o Tribunal expressamente aderiu, porquanto aquele despacho padece de lapsos manifestos, que se enquadram na previsão do n.º 1 do art.º 614.º do C. P. Civil.
24 -Termos em que, deve o despacho recorrido ser revogado, ordenando-se a correção do despacho proferido pelo Tribunal em 11/09/2023, ordenando que o Sr. Fiduciário efetue as operações de rateio com base nos cálculos efetuados no requerimento por este apresentado em 19/05/2023 de acordo com os quais se apurou a quantia de € 3.727,40 que incumbirá ao insolvente entregar à fidúcia, a qual é necessária para assegurar a satisfação de todas as despesas e assegurar o rateio das quantias que excederam o rendimento indisponível.
25 – O Tribunal a quo violou o disposto no artigo 614.º do Código de Processo Civil, que interpretou e aplicou nos termos constantes do despacho recorrido e que deve ser interpretado e aplicado nos termos constantes do presente recurso.
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O insolvente apresentou resposta ao recurso, defendendo a confirmação da decisão recorrida, sustentando que o presente recurso se dirige à decisão de 11/9/2023, relativamente á qual sempre será extemporâneo.
O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e com efeito suspensivo.
Foi depois recebido nesta Relação.
Cumpre decidir.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 639º e 635º nº 4, do C.P.Civil.
Tais conclusões suscitam as seguintes questões:
- se o requerimento da credora, tendente à rectificação do despacho de 11/9/2023 , perante o erro de que este padece, deveria ter sido decidido e não rejeitado com o argumento de ofensa a extinção do poder jurisdicional;
- se o despacho de 11/9/2023 deve ser sujeito a rectificação, devendo esta ser ordenada ao tribunal recorrido, ou se pode ela ser determinada nesta instância de recurso, sendo caso disso.
*
Para a decisão da questão enunciada, importa ter pressente o teor dos actos processuais anteriormente descritos.
Além destes, resulta dos autos que, no relatório anual apresentado em 5/4/2022, o sr. fiduciário prestou a seguinte informação: “Com o início do período de cessão de rendimentos, em 08/03/2019, foi notificado o devedor pelo Administrador de Insolvência, Dr. DD, dos deveres que lhes estão incumbidos no espaço temporal de cinco anos.
Assim determina a sentença que tem de proceder à entrega ao fiduciário do valor que exceder 1 (um) salários mínimos nacionais por mês.
O insolvente remeteu ao fiduciário cópia dos seus recibos de vencimento de março 2021 a fevereiro 2022.
Após análise da documentação enviada, o insolvente auferiu em média 1.101,65€/mês, pelo que nos meses do ano 2021 excede o valor fixado em 436,65€ e no ano de 2022 excede em 396,65€.
Assim, o insolvente tem a quantia de 5.159,82€ (10x436,65€ + 2x396,65€) a entregar à massa insolvente.”
À apresentação deste relatório, sobreveio o despacho de 12/5/2022, que, a este respeito, decidiu: “Notifique-se o insolvente, na pessoa do(a) Ilustre Mandatário(a) e diretamente, por carta registada, com aviso de receção, para, no prazo de 10 [dez] dias, entregar o montante solicitado pelo(a) Exm(a) Sr(a) Fiduciário(a).”
*
O anteriormente descrito, constante do relatório e, nos mesmos termos, das próprias alegações de recurso, permitem a identificação da substância do problema, segundo o que se passa a descrever:
Terão que ser satisfeitas as seguintes parcelas:
Custas – 3.166,88€
Fiduciário – 1.396,61€
Recorrente - 8.195,88€
CC – 300,00€
Total – 13.059,37€
Para satisfazer estes valores a pagar pela insolvência, o fiduciário dispõe, em caixa, de 5.108,60€.
Esse valor servirá, antes de mais, para pagamento das Custas – 3.166,88€ - e da remuneração do Fiduciário – 1.396,61€. Tais despesas ascendem a um total de 4.563,49€.
Ou seja, do dinheiro em caixa, sobram 545,11€ (5.108,60 – 4.563,49)
E haverá que pagar os créditos verificados, de 300,00€ e de 8.195,88€.
Acontece que, embora por razões indevidas, a ora recorrente, titular de um crédito de 8.195,88€, já recebeu 4.223,37€. Note-se que o sr. fiduciário, apesar de referir ser este o montante recebido pela credora, depois confunde este valor com outro, de € 4.272,51.
Assim, importa pagar 300,00€ a CC e 3.972,51€ à apelante, porquanto dos 8.195,88€, já recebeu 4.223,37€.
Os 300,00€ serão pagos a CC, dos 545,11€ que sobraram do dinheiro em caixa. E ainda sobram 245,11€ para entregar à apelante.
Assim, para que tudo fique pago, faltam 3.727,40€ (8.195,88 = 4.223,37€+ 245,11€+3727,40€).
Ou seja, satisfazendo todas as despesas da insolvência e ainda o crédito de CC por inteiro (300,00€), fica ainda pago em parte o crédito da apelante, conservando ela o valor de 4.223,37€, que já recebeu antecipadamente, por via de uma execução que, embora indevidamente, continuou, e recebendo ainda os 245,11€ que sobram do montante que o fiduciário tem em caixa.
O que falta obter, para a insolvência, são 3.727,40€, que se destinam a ser entregues à credora ora apelante, mas isto desde que lhe seja assegurado conservar os 4.223,37€, que já recebeu e recebendo ainda os 245,11€ que sobram.
Assim, não é certo notificar a própria apelante para que entregue à fidúcia 3.727,40€, quando é ela própria que tem a receber esse valor. E só esse, desde que, como se disse antes, lhe seja permitido conservar aqueles montantes acima referidos. Pelo contrário, se tivesse de entregar à fidúcia qualquer montante, isso só iria acrescer o valor do seu próprio crédito, que depois a fidúcia haveria de lhe voltar a entregar.
Daí o acerto da explicação do sr. fiduciário, e o desacerto da interpelação da credora BB para ser ela a entregar os 3.727,40€ que são o valor que falta entregar-lhe precisamente a ela.
Note-se que não se justifica fazer intervir na equação a circunstância de se prever que a credora CC receba o seu crédito de 300,00€ por inteiro, estando em risco o de BB não o receber, pois os 3.727,40€ em falta faltam, exactamente, para completar o seu crédito. Por um lado, o rateio do existente em caixa, para reduzir aqueles 300,00€, redundaria numa bagatela face à exiguidade desse crédito. Por outro, a própria apelante não se insurge contra isso, não o incluindo no objecto do recurso.
Chegámos, pois, à conclusão de que, tal como o fiduciário anunciou, faltam à massa 3.727,40€, que se destinam à satisfação do crédito de BB.
Acontece que, tal como o Sr. Fiduciário anunciou no relatório anual de 2022, da documentação enviada, o insolvente auferiu em média 1.101,65€/mês, pelo que nos meses do ano 2021 excede o valor fixado em 436,65€ e no ano de 2022 excede em 396,65€.
Assim, o insolvente tem a quantia de 5.159,82€ (10x436,65€ + 2x396,65€) a entregar à massa insolvente.”
Com este pressuposto, o tribunal decretou “Notifique-se o insolvente, na pessoa do(a) Ilustre Mandatário(a) e diretamente, por carta registada, com aviso de receção, para, no prazo de 10 [dez] dias, entregar o montante solicitado pelo(a) Exm(a) Sr(a) Fiduciário.”
Verifica-se, entretanto, que não são precisos os 5.159,82€, mas apenas os 3.727,40€. Daí a conclusão do sr. fiduciário, de que se notifique o devedor para pagar esse valor, já que antes não cumpriu a notificação para entrega daqueles 5.159,82€ e se verificou, entretanto, não ser preciso a totalidade deste capital.
Acontece, porém, que o devedor suscitou outra questão: o recebimento pela credora BB, por via da execução que prosseguiu indevidamente, dos acima referidos 4.223,37€. Parece, por via disso, querer dizer que não terá de pagar aqueles 3.727,40€, pois que já lhe foram retirados
No entanto, o que se verifica é que, no âmbito da decisão de deferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante lhe foi fixado como rendimento indisponível para a cessão um valor equivalente ao de um SMN por mês.
Ora o devedor não veio sequer alegar que a continuidade da execução afectou que mantivesse à sua disposição, durante o período de cessão, fundando nisso qualquer pretensão de não pagamento dos 3.727,40€, que ainda lhe cabe pagar e que é um valor até inferior àquele outro de 5.159,82€ que reteve para isso e que devia ter entregue à fidúcia, aliás em cumprimento de um despacho de 12/5/2022, que também não foi impugnado por recurso.
Por isso, é inequívoco que, tal como referiu o sr. fiduciário, cabe ao devedor pagar 3.727,40€.
A questão que se coloca de seguida é se existe algum obstáculo de índole processual, designadamente a extinção do poder jurisdicional subjacente à prolação do despacho de 11/9/2023, que impeça a imposição ao devedor de uma tal obrigação e que, pelo contrário, imponha à credora BB a obrigação de entregar à fidúcia o montante de €3.727,40. E, sucessivamente, se é extemporâneo o recurso do despacho de 30/10/2023.
A resposta tem de ser negativa.
Com efeito, é óbvia a nulidade em que incorreu o despacho de 11/9/2023: por um lado, o tribunal diz que concorda com os cálculos apresentados pelo fiduciário; por outro, interpreta-os erradamente (coimo resulta da demonstração supra exposta) e conclui que quem deve entregar à fidúcia os 3.727,40€ é a credora e não o devedor, a contrario da conclusão do próprio fiduciário.
Esta decisão, por ser contraditória nos seus precisos termos, padeceria de nulidade, nos termos do art. 615º, nº 1, al. c), do CPC. E assim poderia a ora recorrente, dela interpondo recurso, arguir tal nulidade, tal como dispõe o nº 4 desse mesmo art. 615º, do CPC.
Todavia, entendeu a ora apelante que essa incongruência é tão evidente que só poderia resultar de lapso, pois que o tribunal diz que concorda com a repartição de entradas e saídas das contas apresentadas pelo fiduciário, mas depois acaba por concluir em divergência para com estas. Ao que acresce que tais contas se mostram acertadas, como acima se demonstrou. E, por isso, requereu que o tribunal identificasse e corrigisse essa divergência, como se de um mero lapso se tratasse.
Acontece, porém, que o tribunal, apesar de ter ouvido novamente o fiduciário, que se pronunciou pelo acerto da reclamação de BB, acabou por não se pronunciar sobre a existência, ou não, do lapso invocado, afirmando, no despacho recorrido, não dever pronunciar-se sobre a matéria, por se encontrar extinto o seu poder jurisdicional.
Nesta situação, entendemos não estarmos perante a hipótese prevista no art. 617º, nº 1, in fine, do CPC, que impede o recurso do despacho que indefira um pedido de reforma ou de arguição de nulidade da sentença, quando isso seja suscitado no âmbito de um recurso. Daí a admissibilidade do presente recurso.
Ora, assumindo tal recorribilidade, resta reconhecer que se verificou o lapso invocado, pois que, como acima se demonstrou, mostra-se acertados os cálculos apresentados pelo fiduciário, mostra-se em dívida para com a fidúcia, por parte do devedor/insolvente o valor de 3.727,40€ ( não sendo necessário que entregue o remanescente até ao total de 5.159,82€ que reteve para isso e que devia ter entregue à fidúcia, aliás em cumprimento do despacho de 12/5/2022) e já que não se mostra que o valor já recebido pela credora, de 4.223,37€ tenha ofendido quaisquer interesses da fidúcia ou sequer o direito do insolvente, por ter este disposto, ao longo do tempo por que prosseguiu a execução que proporcionou a obtenção destes 4.223,37€, de um rendimento mensal inferior ao valor de um SMN, que foi o que lhe foi fixado como rendimento indisponível para a sessão.
Por consequência, cumprirá revogar o despacho recorrido, que terá de se substituir por outro que, reconhecendo a existência de lapso manifesto na decisão de 11/9/2023, em cumprimento do regime do art. 665º, nº 2 do CPC, proceda à sua rectificação, aceitando por bons os cálculos apresentados pelo fiduciário, em 19/5/2023 e determine ao devedor insolvente a entrega de 3.727,40€, o que a si compete, e não à credora BB.
Conceder-se-á, pois, provimento à presente apelação, com a inerente revogação do despacho recorrido.
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Sumário:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em conceder provimento ao presente recurso, com o que, revogando a decisão recorrida, a substituem por outro que reconhece a existência de lapso manifesto na decisão de 11/9/2023 e, em cumprimento do regime do art. 665º, nº 2 do CPC, opera a sua rectificação, aceitando por bons os cálculos apresentados pelo fiduciário, em 19/5/2023, determina ao devedor insolvente a entrega de 3.727,40€ (três mil setecentos e vinte e sete euros e quarenta cêntimos).

Custas pelo apelado.

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Porto, 9 de Abril de 2024
Rui Moreira
Alberto Taveira
Anabela Dias da Silva