Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
143394/23.8YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
CONTRATO DE CONCESSÃO PARA EXPLORAÇÃO DE ESTACIONAMENTO AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RP20250224143394/23.8YIPRT.P1
Data do Acordão: 02/24/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO SINGULAR
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A competência de um tribunal – enquanto pressuposto processual - é a medida da sua jurisdição, a parte da jurisdição que a lei lhe assinala, tratando-se de determinar, quanto à competência em razão da matéria, em que tribunal é que a ação deve ser proposta, se num tribunal comum, se num tribunal de outra ordem jurisdicional.
II - Da concatenação do artigo 64º do Código de Processo Civil com o artigo 40º da Lei nº 62/2013, de 26.08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário) extrai-se um critério geral residual para a determinação do tribunal competente em razão da matéria, nos termos do qual todas as causas que não forem por lei atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência do tribunal comum.
III - Por mor da cláusula geral positiva plasmada no artigo 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos de Fiscais (aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19.02), os tribunais administrativos são, por via de regra, os materialmente competentes para a preparação e julgamento dos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, isto é, relações reguladas por normas de Direito Administrativo, em que pelo menos um dos sujeitos seja uma entidade pública ou entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido.
IV - Para além da referida cláusula geral positiva de atribuição de competência aos tribunais administrativos, o artigo 4º do referido Estatuto contém um elenco de matérias que, em concreto, se consideram ser da competência desses tribunais, nomeadamente quando estejam em causa “litígios que tenham por objeto questões relativas à validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”.
V - Por força do contrato de concessão que a autora firmou com a Câmara Municipal ... - nos termos do qual lhe foi cedida a exploração de zonas de estacionamento automóvel -, passou aquela a assumir a qualidade de concessionária de um serviço reconhecidamente de interesse público, atuando, nessa medida, em “substituição” da autarquia com os poderes inerentes que lhe foram concessionados.
VI - Independentemente da natureza jurídica que assumam os contratos ou acordos tácitos que se concretizam sempre que os utentes utilizam para estacionamento os espaços públicos concessionados à autora, tanto esta como os referidos utentes estão submetidos às regras do Regulamento Municipal que disciplina esses estacionamentos, e só por isso tem a demandante direito a cobrar as taxas de utilização fixadas nesse instrumento normativo (cfr. artigo 4º) e de exercer a respetiva atividade de fiscalização (cfr. artigo 7º do DL nº 146/2014, de 9.10, artigo 16º do Regulamento e cláusula 1ª do contrato de concessão).
VII - Por outro lado, tendo em conta que no âmbito do contrato de concessão a autora se vinculou expressamente ao cumprimento do aludido Regulamento de Estacionamento, recai sobre ela o ónus de conformar a sua atuação com o disposto nesse diploma e agir em consonância com os poderes que o mesmo lhe confere, nomeadamente na sua relação com os terceiros particulares que usufruem do estacionamento concessionado e como tal passam a estar sujeitos às suas respetivas regras e condições.
VIII - Desse modo, contendo tal Regulamento normas de direito público, que estabelecem o regime substantivo de tais contratos ou acordos tácitos, a execução dos mesmos cai no âmbito da previsão do disposto na alínea e) do nº 1 do citado artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, razão pela qual serão os tribunais administrativos os materialmente competentes para a preparação e julgamento de litígios emergentes da falta de pagamento da taxa (e não preço) devida pela utilização do estacionamento concessionado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 143394/23.8YIPRT.P1

Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Matosinhos – Juízo Local Cível, Juiz 2

Relator: Miguel Baldaia Morais

1º Adjunto Des. Jorge Martins Ribeiro

2º Adjunto Des. José Eusébio Almeida


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SUMÁRIO
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I. RELATÓRIO

“A..., S.A.” intentou a presente ação declarativa (que se iniciou como procedimento injuntivo) contra AA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €1.524,00, acrescida dos respetivos juros de mora vencidos e vincendos até efetivo pagamento.

Para substanciar tal pretensão alegou, em síntese, que se dedica, além do mais, à exploração e prestação de serviços na área do parqueamento automóvel, sendo que no âmbito dessa exploração, adquiriu e colocou, em vários locais da cidade de Matosinhos, máquinas para pagamento de estacionamento automóvel, com a indicação dos preços e condições de utilização dos mesmos.

Acrescenta que a ré é proprietária do veículo automóvel com a matrícula ..-..-VZ e, enquanto utilizadora do mesmo, estacionou esse veículo nos vários parques de estacionamento que a requerente explora na cidade de Matosinhos, sem ter procedido ao pagamento do tempo de utilização, conforme regras devidamente publicitadas no local, cifrando-se o valor em dívida no montante de €1.524,10, que a requerida, apesar das inúmeras insistências, se vem recusando a pagar.

Notificada a requerida deduziu oposição, na sequência do que foi o processo remetido ao tribunal recorrido, onde se determinou a notificação da requerente para juntar aos autos cópia do contrato de concessão celebrado com o Município ....

No seguimento dessa junção foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a questão da competência material do tribunal para a apreciação do litígio, tendo a requerente sustentado que essa competência se encontra atribuída aos tribunais comuns.

Conclusos os autos foi proferido despacho com o seguinte teor: «[o]s créditos da autora sobre a ré corresponderão ao valor que a mesma cobra pela exploração que lhe foi concessionada do espaço público (ou do estacionamento no espaço público), em termos e condições aprovada em caderno de encargos previamente aprovado pela entidade pública e sujeita a sua fiscalização, mediante uma compensação financeira e em “substituição” das competências, ou melhor, dos poderes públicos daquele Município, que se impõem aos particulares por via do ius imperium deste Município.

Veja-se, de resto, sem esquecer que a competência do Tribunal é aferida pelo pedido e causa de pedir apresentados na petição inicial (e não pela concreta defesa deduzida), que se se quiser questionar os termos como a exploração da autora foi feita, nas circunstâncias de tempo e espaço descritas no requerimento de injunção, invariavelmente, tal questão não pode deixar de radicar na interpretação do contrato de concessão, de natureza pública, que a autora celebrou com o Município e, nesse sentido, é manifesto que para tais casos a competência material se encontrará atribuída aos Tribunais Administrativos, nos termos do artigo 4.º n.º 1 alínea e) do ETAF (será aos Tribunais Tributários se, havendo uma afetação dos valores cobrados diretamente ao Município, por aí se considerar que estão em causa autênticas taxas municipais).

Por outro lado, a apreciação destes litígios não fica expressamente excluída do âmbito da Jurisdição Administrativa e Fiscal (cfr. artigo 4.º n.ºs 3 e 4 do ETAF a contrario sensu).

Pelo que, em nosso entendimento, procede a exceção dilatória da incompetência material deste Tribunal.

Em consequência, impõe-se declarar a incompetência, em razão da matéria, deste Juízo Local Cível para o julgamento da presente ação».

Inconformada com o aludido ato decisório veio a autora interpor o presente recurso, admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

a) Vem o presente recurso apresentado contra o Douto Despacho A Quo, que decidiu julgar a incompetência material do Juízo Local Cível de Matosinhos, para cobrança dos créditos da Autora A... SA.

b) No âmbito da sua atividade, a A. celebrou um contrato de concessão com a Câmara Municipal ..., através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina.

c) No seguimento deste contrato de concessão, a A... adquiriu e instalou em vários locais da cidade de Matosinhos, onerosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático.

d) Enquanto utilizadora do veículo automóvel ..-..-VZ, a Ré estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a A. explora comercialmente na cidade de Matosinhos, sem, contudo, proceder ao pagamento dos tempos de utilização, num total em dívida de € 1524,10 que a Ré recusa pagar.

e) Para cobrança deste valor, a Recorrente viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal.

f) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não de um encargo ou contrapartida com natureza fiscal ou tributária.

g) As ações intentadas pela A. contra os proprietários de veículos automóveis inadimplentes, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de ius imperii, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada.

h) A recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de

entidade pública, e sim com poderes de entidade privada, pelo que, e contrariamente ao entendimento do Tribunal “a quo”, o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de direito privado, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade contratual por incumprimento do contrato.

i) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto

- em virtude de não nascer de negócio jurídico - assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações.

j) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre o concessionário e o utente resulta de um comportamento típico de confiança.

q) A A... SA., não efetua atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade.

r) Nos termos do disposto no artigo 2º do DL 146/2014 de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas.

s) Os montantes cobrados pela A... SA., não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos.

t) Verificada a violação da obrigação contratual de pagamento do tempo de imobilização dos seus veículos, nos parqueamentos explorados pela A... SA., são os automobilistas posteriormente notificados para procederem ao pagamento omitido, sendo então cobrado o tempo máximo de utilização, por falta de referência concreta ao tempo efetivo de utilização.

u) Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária.

v) A A..., ao contrário o que vem referido na douta sentença, nunca atuou em substituição da autarquia, munida de poderes concessionados.

w) Fundamental é que a Recorrente carece, em absoluto, de poderes de autoridade, fiscalização ou ordenação efetiva, apenas podendo registar os incumprimentos de pagamento e tentar recuperar judicialmente, sem acesso direto a um título executivo, os valores que tiverem sido sonegados, em violação da relação contratual de confiança, pelos utentes.

x) Por tudo o que se alegou, mal andou o Tribunal “a quo” ao declarar-se incompetente em razão da matéria, pois, o Tribunal recorrido é o competente, motivo pelo qual foram violados, entre outros, os artigos 96º, al. a), 278º, Nr.1 al. a), 577º al. a) e 578º do CPC, quer o artigo 4º nr.1, al. e) do ETAF, quer ainda o artigo 40º da Lei 62/2013 de 26 de agosto.

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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Remetidos os autos a este Tribunal, foi proferida decisão singular que julgou improcedente o recurso.

Irresignada com essa decisão, veio a apelante apresentar a presente reclamação para a conferência, requerendo que seja proferido acórdão sobre a matéria da decisão.


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Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DA RECLAMAÇÃO

A questão a apreciar na presente reclamação traduz-se em saber se, in casu, o tribunal recorrido é, ou não, materialmente competente para a preparação e julgamento da presente ação.


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III. FUNDAMENTOS DE FACTO

A materialidade a atender para efeito de apreciação do objeto da presente reclamação é a que dimana do antecedente relatório, havendo ainda a considerar que entre a autora e o Município ... foi celebrado, em 17 de março de 2016, contrato denominado “de concessão, gestão, exploração, manutenção e fiscalização dos lugares de estacionamento pago na via pública e de dois parques públicos de estacionamento para viaturas”, no qual se lê, além do mais:

«(…) E pelo primeiro outorgante foi dito que em execução das deliberações da Assembleia Municipal e Câmara Municipal tomadas, respetivamente, em sessão extraordinária de quinze de dezembro de dois mil e catorze e reunião de três de novembro do ano findo, é celebrado o presente contrato que se regerá pelas cláusulas seguintes:

PRIMEIRA – O Município ... concede à sociedade representada pelo segundo outorgante a “Gestão, exploração, manutenção e fiscalização dos lugares de estacionamento pago na via pública e de dois parques públicos de estacionamento para viaturas”, de acordo com a cláusula 11.ª e Anexo I do caderno de encargos que me foi apresentado e fica a fazer parte integrante deste contrato;

SEGUNDA – O prazo de concessão é de dez anos, não renováveis, contado a partir de hoje;

TERCEIRA – A concessionária entregará trimestralmente ao Município o valor que resultar da aplicação da fórmula constante da cláusula 31.ª do caderno de encargos e de acordo com a proposta apresentada datada de três de Julho do ano findo;

QUARTA – O Município, por justificado interesse público e decorridos três anos e meio da data de início da concessão, pode proceder ao resgate da mesma, mediante aviso prévio, com pelo menos seis meses de antecedência.

QUINTA – O Município pode, mediante sequestro da concessão, tomar a seu cargo o desenvolvimento das atividades concedidas, designadamente nas situações previstas no Código dos Contratos Públicos, bem como adotar todas e quaisquer medidas que considere necessárias para a normalização da situação;

SEXTA – A concessionária não pode ceder, alienar, trespassar, ou por qualquer forma transmitir ou onerar, no todo ou em parte, a concessão sem prévia autorização do Município.

SÉTIMA – A retribuição auferida pela concessionária corresponderá ao total do produto recolhido através dos métodos de pagamento disponibilizados aos utentes no âmbito da Concessão incluindo o valor arrecadado com os “Avisos de Pagamento” ou outros métodos de pagamento voluntário que venham a ser implementados durante o prazo de vigência do contrato;

OITAVA – A concessionária deve manter ao seu serviço uma estrutura de pessoal técnico e administrativo que permita dar cabal satisfação e que possibilite a boa execução das obrigações por si assumidas no âmbito da concessão;

NONA – A concessionária fica sujeita à fiscalização do concedente, que pode, para o efeito, exigir as informações e documentos que considere necessários e a quem será facultado livre acesso a todas as infraestruturas e equipamentos afetos à concessão, bem como às instalações da concessionária;

DÉCIMA – A concessionária fica obrigada a observar as regras constantes do Anexo II relativas à exploração da concessão, bem como os deveres acessórios previstos nos Anexos III, IV, V e VI, todos do caderno de encargos;

DÉCIMA PRIMEIRA – No final da concessão reverterão para o Município, livre de quaisquer encargos, a totalidade dos bens afetos à concessão, fornecidos pela concessionária;

DÉCIMA SEGUNDA – Em tudo mais não previsto neste contrato ou no caderno de encargos, serão aplicadas as disposições do Código dos Contratos Públicos. (…)».


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IV. FUNDAMENTOS DE DIREITO

A reclamante insurge-se contra a decisão singular que considerou que o tribunal recorrido carece de competência em razão da matéria para a preparação e julgamento da presente ação, recuperando a mesma argumentação em que baseou a sua pretensão recursória.

Não se nos afigura, contudo, que a decisão sumária do relator mereça a censura que lhe vem apontada, posto que as questões que nela foram decididas obtiveram solução jurídica que reputamos acertada.

Como assim, renovamos e fazemos nossos os argumentos em que se ancorou tal ato decisório e que se passam a transcrever:

«A questão que é trazida à apreciação deste tribunal ad quem é a de saber se o tribunal recorrido é, ou não, dotado de competência ratione materiae para a preparação e julgamento da presente demanda.

Na espécie, o decisor de 1ª instância, convocando o disposto no art. 4º, nº 1, al. e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de fevereiro, doravante ETAF), afirmou a sua incompetência material por considerar que, perante os elementos objetivos da instância, a apreciação da questão submetida à sua apreciação não deixa de radicar na interpretação do contrato de concessão que a autora celebrou com o Município ..., o qual assume natureza de contrato de direito público.

É precisamente contra esse segmento decisório que se rebela a apelante sustentando que, ao invés do entendimento sufragado pelo juiz a quo, o aludido contrato não reveste natureza de contrato de direito público, sendo que a relação que se estabelece entre o concessionário e os utentes é uma relação contratual de direito privado, tendo a contrapartida a pagar ao concessionário natureza de um preço.

Que dizer?

É consabido que a competência de um tribunal – enquanto pressuposto processual - é a medida da sua jurisdição, a parte da jurisdição que a lei lhe assinala, tratando-se de determinar, quanto à competência em razão da matéria, em que tribunal é que a ação deve ser pro­posta, se num tribunal comum, se num tribunal de outra ordem jurisdicional.

Como tem sido enfatizado pela doutrina e jurisprudência pátrias[1], a apreciação de tal pressuposto processual (tal como os demais) é feita tendo por base a forma como o autor configura a sua ação, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, tendo-se ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo tribunal que relevem sobre a exata configuração da causa.

Em suma, para decidir qual das diversas normas definidoras dos critérios que presidem à distribuição do poder de julgar entre os diferentes tribunais, deve olhar-se aos termos em que a ação foi posta – seja quanto aos seus elementos objetivos seja quanto aos seus elementos subjetivos. A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da ação. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.

Como assim, será em função do modo como a causa é delineada na petição inicial, e não pela controvérsia que venha a resultar da ação e da defesa, que a competência do tribunal se averigua.

Como se notou, através da presente ação pretende a autora obter a condenação da ré no pagamento da contrapartida pecuniária devida em resultado de ter estacionado o seu veículo automóvel em área de parqueamento que aquela explora na cidade de Matosinhos.

Aqui chegados, urge determinar qual o tribunal competente ratione materiae para a preparação e julgamento da presente demanda, sendo que a questão radica em dilucidar se essa competência incumbe aos tribunais judiciais (como advoga a apelante) ou então aos tribunais administrativos, como foi entendimento do tribunal a quo.

Prescreve, desde logo, o art. 211.º, nº 1 da Constituição da República que «os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais». Por seu turno, de acordo com o nº 3 do art. 212.º da Lei Fundamental «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

Determina ainda o art. 64º do Cód. Processo Civil e bem assim o art. 40º da Lei nº 62/2013, de 26.08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), que são da competência dos tribunais judiciais, na ordem interna, em razão da matéria, as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Da concatenação dos citados normativos, pode, pois, extrair-se um critério geral residual para a determinação do tribunal competente em razão da matéria, nos termos do qual todas as causas que não forem por lei atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência do tribunal comum.

Porque assim, à luz de tal critério, haverá que apurar se alguma lei estabelece jurisdição especial para a ação que vai propor-se: se tal existir, a ação deverá ser intentada ante essa jurisdição; no caso contrário, deverá a causa ser proposta perante o tribunal comum.

Portanto, a competência do foro comum só pode afirmar-se com segurança depois de se ter percorrido o quadro dos tribunais de outras ordens jurisdicionais e se ter verificado que nenhuma disposição da lei submete a ação em vista à jurisdição de qualquer tribunal especial. Daí que a afirmação da incompetência em razão da matéria do tribunal comum implique necessariamente a identificação de um normativo que atribua o conhecimento da causa em apreço a outra ordem jurisdicional.

A este propósito, dispõe o art. 1º, nº 1, do ETAF que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais», norma esta que reproduz, assim, a regra adrede consagrada na Lei Fundamental.

O segmento normativo transcrito incorpora uma cláusula geral positiva de atribuição de competência aos tribunais administrativos para apreciação dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, que constitui, deste modo, a regra básica sobre a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos com os demais tribunais. Por conseguinte, os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas são, em regra, julgados nos tribunais administrativos, embora venha sendo objeto de discussão na doutrina a questão de saber se a reserva material de jurisdição que é atribuída, pelo citado art. 212º, nº 3 da Constituição, aos tribunais administrativos é ou não absoluta, isto é, se somente os tribunais administrativos poderão julgar questões de direito administrativo e se estes tribunais apenas podem julgar questões dessa natureza[2].

Portanto, a definição do âmbito da jurisdição administrativa assenta num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas”, critério esse que, na esteira da casuística do Tribunal Constitucional[3] e bem assim do Tribunal de Conflitos[4], não assume caráter absoluto, impeditivo da atribuição aos tribunais comuns de competências em matéria administrativa (é o caso, por exemplo, das expropriações), ou, em sentido contrário, de atribuição à jurisdição administrativa de competências em matérias de direito comum.

À luz dos citados normativos, o conceito de relação jurídica administrativa assume-se como decisivo para determinar a competência material dos tribunais administrativos, conceito esse que a doutrina tem procurado densificar, defendendo-se maioritariamente que o mesmo deverá ser entendido no sentido tradicional de relação jurídica de direito administrativo, regulada por normas de Direito Administrativo, e que serão aquelas em que “pelo menos um dos sujeitos seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”[5].

No entanto, para além da referida cláusula geral positiva de atribuição de competência aos tribunais administrativos, o ETAF contém no nº 1 do seu art. 4º um elenco de matérias que, em concreto, se consideram ser da competência dos Tribunais Administrativos, sendo que quando estejam em causa ações relativas a contratos, como é o caso, releva especialmente a norma inserta na al. e).

É precisamente nesta área dos litígios relativos a contratos que se operam os maiores desvios ao enunciado critério material geral de delimitação da competência dos Tribunais Administrativos, sendo de sublinhar que a interpretação doutrinal e aplicação jurisprudencial que vem sendo feita do ETAF, mormente da citada alínea e) do nº 1 do seu art. 4º, comporta um amplo alargamento da jurisdição administrativa relativamente à aludida cláusula geral, afirmando-se recorrentemente[6] que a reforma do contencioso administrativo procedeu a um alargamento do âmbito da jurisdição da Administração em matéria contratual, passando os tribunais administrativos a ter competência para apreciar os litígios emergentes de todos os contratos públicos, ultrapassando a tradicional dicotomia entre contrato administrativo e contrato de direito privado da Administração Pública. Daí que não falta quem, enfatizando que toda a atividade contratual da Administração está sujeita às vinculações da prossecução do interesse público (art. 266º, nº 1 da Constituição da República) e aos princípios gerais da atividade administrativa (art. 266º, nº 2 da Constituição), sufrague o entendimento de deixar de fazer sentido a aludida dicotomia no contexto da relevância para definir o âmbito da jurisdição, na decorrência do que advogam que todos os contratos da Administração passaram a estar sujeitos aos tribunais administrativos[7].

In casu, como se notou, a decisão recorrida afirmou a competência dos tribunais de jurisdição administrativa para a apreciação do presente pleito, convocando a regra plasmada na mencionada al. e) do nº 1 do art. 4º do ETAF (na redação que lhe foi dada pela Lei nº 114/2019, de 12.09), na qual se dispõe que «compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes».

A interpretação do inciso normativo transcrito tem sido alvo de atenção por parte da doutrina[8], a qual tem sublinhado que a técnica do ETAF, para a delimitação de competências dos tribunais administrativos e fiscais, consistiu em formular critérios de qualificação dos contratos, mormente por apelo a um critério substantivo que se mostra vertido na citada al. e), nos termos do qual a jurisdição administrativa é competente para apreciar todas as questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente acerca dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos do respetivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

A alínea e) enuncia, assim, três critérios:

. contratos de objeto passível de ato administrativo;

. contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulam aspetos específicos do respetivo regime substantivo;

. contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

No primeiro critério estamos a falar de contratos que têm por objeto um exercício contratualizado de poderes administrativos de autoridade, isto é, em vez de a Administração utilizar o meio do ato administrativo para conformar a situação jurídica do particular, os efeitos jurídicos produzem-se através de um acordo de vontades. Portanto, utiliza-se uma típica relação jurídica administrativa em que a Administração Pública é a autoridade e o particular o administrado e envolve-se a mesma com a forma de contrato.

Pelo segundo critério estão abrangidos os contratos em que há uma tomada de posição clara do legislador no sentido de eles verem o seu regime ser regulado (em aspetos específicos) por normas de direito público.

Por último, de acordo com o terceiro critério[9], a determinação do âmbito jurisdicional administrativo processa-se a dois níveis: um primeiro nível diz respeito à qualidade das partes em causa, exigindo-se que estejamos perante uma “entidade pública” ou um “concessionário no âmbito da concessão”; um segundo nível respeita à possibilidade de as partes submeterem expressamente o contrato que celebraram a um regime substantivo de direito público.

Tal como emerge da decisão recorrida, o tribunal a quo assentou o seu sentido decisório subsumindo a situação em análise ao segundo dos enunciados critérios, posição que se nos revela acertada e que, aliás, vem sendo perfilhada por diversos arestos dos tribunais superiores[10].

Com efeito, por mor do contrato de concessão (que assume natureza de contrato público – cfr. art. 429º do Código dos Contratos Públicos) que a autora firmou com a Câmara Municipal ... passou aquela a assumir a qualidade de concessionária de um serviço reconhecidamente de interesse público, atuando, nessa medida, em “substituição” da autarquia com os poderes inerentes que lhe foram concessionados.

Ora, independentemente da natureza jurídica que assumam os contratos ou acordos tácitos que se concretizam sempre que os utentes utilizam para estacionamento os espaços públicos concessionados à autora, tanto esta como os referidos utentes (como é o caso da ré) estão submetidos às regras do Regulamento Municipal que disciplina esses estacionamentos[11], e só por isso tem a demandante direito a cobrar as taxas[12] de utilização fixadas nesse instrumento normativo (cfr. art. 4º) e de exercer a respetiva atividade de fiscalização (cfr. art. 7º do DL nº 146/2014, de 9.10, art. 16º do Regulamento e cláusula 1ª do contrato de concessão).

Por outro lado, e tendo em conta que no âmbito do ajuizado contrato de concessão a apelante se vinculou expressamente ao cumprimento do aludido Regulamento de Estacionamento, recai sobre esta o ónus de conformar a sua atuação com o disposto naquele diploma e agir no âmbito dos poderes que o mesmo lhe confere, nomeadamente na sua relação com os terceiros particulares que usufruem do estacionamento concessionado e como tal passam a estar sujeitos às suas respetivas regras e condições.

Desse modo, contendo tal Regulamento normas de direito público, que estabelecem o regime substantivo de tais contratos ou acordos tácitos, a execução dos mesmos cai no âmbito da previsão do disposto na al. e) do nº 1 do citado art. 4º do ETAF, razão pela qual materialmente competentes para a preparação e julgamento do presente litígio são os tribunais administrativos».

Atentas as razões alinhadas na decisão singular e ora transcritas, não se vislumbra razão válida para divergir do sentido decisório nela acolhido relativamente às concretas questões que aí foram objeto de apreciação.


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V. DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em não atender a reclamação, mantendo-se a decisão sumária que julgou improcedente o recurso.

Custas a cargo da reclamante, fixando em duas UCs a respetiva taxa de justiça.


Porto, 24/2/2025
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Martins Ribeiro
José Eusébio Almeida
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[1] Cfr., por todos, TEIXEIRA DE SOUSA, A competência declarativa dos tribunais comuns, pág. 36 e seguintes; MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 88 e seguinte; LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 129; acórdãos do STJ de 9.12.99, CJ, Acórdãos do STJ, ano VII, tomo 3º, pág. 283 e de 18.06.2015 (processo nº 13857/14.9T8PRT.P1.S1), disponível no sítio www.dgsi.pt.
[2] Cfr., sobre a questão, inter alia, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição Anotada, 3ª edição, em anotação ao artigo 212º - que advogam a natureza absoluta ou fechada dessa reserva – e VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 4ª edição, págs. 107 e seguintes – que preconiza a natureza relativa dessa reserva material de jurisdição.
[3] Cfr., por todos, acórdãos nºs 347/97, de 25.07.97 e 284/2003, de 29.05.2003, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
[4] Cfr., v.g., acórdão de 27.11.2008 (processo nº 19/08), disponível em www.dgsi.pt, onde expressamente se sublinha que «o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode sem ofensa à lei constitucional, alterar o perímetro natural da jurisdição, quer atribuindo-lhe algumas competências em matérias de direito comum, quer atribuindo aos tribunais comuns algumas competências em matérias administrativas».
[5] Cfr., sobre a questão, VIEIRA DE ANDRADE, ob. citada, págs. 59 e seguintes.
[6] Cfr., sobre a questão, HELENA FERREIRA CANELAS, A amplitude da competência material dos Tribunais Administrativos em sede de ações relativas a responsabilidade civil contratual, Revista Julgar, nº 15, passim, especialmente págs. 110 e seguinte.
[7] Cfr., neste sentido, MARIA JOÃO ESTORNINHO, A Reforma de 2002 e o âmbito de jurisdição administrativa, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 35 e PEREIRA DA SILVA, Contencioso Administrativo no divã da Psicanálise, 2009, pág. 492. Aliás, a este respeito, não será despiciendo trazer à colação a exposição de motivos da Proposta de Lei que deu origem ao ETAF (que pode ser consultada em http://rca.cejur.pt/portal/alias_RCA/lang_pt), onde se afirmava que “a jurisdição administrativa passa, também, a ser competente para a apreciação de todas as questões relativas a contratos celebrados por pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais contratos se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado (…)”
[8] Cfr., por todos, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, O novo regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição revista e atualizada, págs. 96 e seguintes; MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Vol. I e VIEIRA DE ANDRADE, Justiça Administrativa – Lições.
[9] Registe-se que este critério foi igualmente adotado pelo Código de Contratos Públicos no seu art. 1º, nº 6, al. a). É assim, possível, a um contrato com objeto passível de direito privado, por vontade expressa e inequívoca das partes, submetê-lo ao foro administrativo; a vontade das partes passou, portanto, a ser fonte de administratividade.
[10] Cfr., por todos, acórdão do STJ de 12.10.2010 (processo nº 1984/09.9TBPDL.L1.S1), acórdão da Relação de Lisboa de 20.01.2011 (processo nº 918/09.5TBPDL.L1-8), de 7.10.2010 (processo nº 1763/09.3TBPDL.L1-8), de 25.05.2010 (processo nº 2011/09.1TBPDL.L1-1), de 6.05.2010 (processo nº 1984/09.9TBPDL.L1-8), de 13.07.2010 (processo nº 825/09.1TBPDL.L1-8) e de 24.06.2010 (processo nº 466/09.3TBPDL-A.L1-6), acessíveis em www.dgsi.pt.
[11] Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos, aprovado pela Câmara e Assembleia Municipal e publicado no Diário da República, em 8 de março de 2016, e que foi alvo de várias alterações, a última das quais pelo Regulamento nº 494/2018, publicado no Diário da República, 2ª série, nº 147, de 1.08.2018.
[12] Em causa está efetivamente uma taxa e não, como sustenta a apelante, um “preço” em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento, como inequivocamente emerge do DL nº 146/2014, de 9.10, diploma que estabelece as condições em que as empresas privadas concessionárias de estacionamento sujeito ao pagamento de taxa em vias de jurisdição municipal podem exercer a atividade de fiscalização do estacionamento nas zonas que lhe estão concessionadas.