Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
600/23.0T8ETR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: CASO JULGADO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RP20241121600/23.0T8ETR.P1
Data do Acordão: 11/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A expressão “caso julgado” é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado”, ou seja, caso que foi objecto de um pronunciamento judicativo.
II - O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. A primeira manifesta-se através de autoridade do caso julgado, visando impor os efeitos de uma primeira decisão, já transitada (fazendo valer a sua força e autoridade), enquanto que a segunda de manifesta-se através de excepção de caso julgado, visando impedir que uma causa já julgada, e transitada, seja novamente apreciada por outro tribunal, por forma a evitar a contradição ou a repetição de decisões, assumindo-se, assim, ambos como efeitos diversos da mesma realidade jurídica.
III - Enquanto na excepção de caso julgado se exige a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir em ambas as acções em confronto, já na autoridade do caso julgado a coexistência dessa tríade de identidades não constitui pressuposto necessário da sua actuação.
IV - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
V - A identidade de pedidos pressupõe que em ambas as acções se pretende obter o reconhecimento do mesmo direito subjectivo, independentemente da sua expressão quantitativa e da forma de processo utilizada, não sendo de exigir, porém, uma rigorosa identidade formal entre os pedidos. Os pedidos não têm que coincidir ponto por ponto, mas apenas que visar essencialmente o mesmo efeito.
VI - Sendo a causa de pedir um facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge a pretensão deduzida, haverá que procurá-la na questão fundamental levantada nas duas acções.
VII - No caso vertente, verifica-se a tríplice identidade prevista no artigo 581.º do Código de Processo Civil e, consequentemente, mostram-se preenchidos os pressupostos da excepção de caso julgado.
VIII - O enriquecimento sem causa - artigo 473.º do Código Civil - tem requisitos positivos (enriquecimento e seu suporte por outrem com o respectivo nexo causal) e negativos (ausência de causa legitima, e de outro meio jurídico ou de preceito legal a atribuir outros efeitos ao enriquecimento).
IX - Só pode ser invocado a título subsidiário (subsidiariedade que abrange os dois últimos requisitos negativos).
X - O enriquecimento que derive do caso julgado é justificado pelo ordenamento jurídico em virtude das referidas necessidades de certeza.
XI - Tal enriquecimento - sendo aprovado e consentido pelo ordenamento jurídico, como decorrência do caso julgado - tem, por isso, causa justificativa e, portanto, enquanto se mantiver a sentença e o caso julgado por ela formado, tal enriquecimento não poderá dar lugar à obrigação de restituir.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção

ECLI:PT:TRP:2024:600/23.0TBETR.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório

AA, residente na Rua ..., ... instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB, residente na Rua ..., ..., onde concluiu pedindo a condenação da Ré no pagamento/restituição ao autor da quantia de € 19.517,88 que a ré indevidamente levantou/transferiu das contas bancárias da mãe do autor, acrescida dos juros de mora desde a data da citação até integral e efectivo pagamento. Subsidiariamente, pediu a condenação da ré a restituir ao autor a referida quantia a título de enriquecimento sem causa, acrescida dos juros de mora desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.

Alegou, em síntese, que no Juízo de Competência Genérica - Juiz 2 e sob o n.º 393/21.6T8ETR, correu termos processo de inventário judicial onde não foi possível apurar a existência, por si reclamada, do valor de € 39.035,77, o qual pertenceria à sua mãe e teria estado depositado no Banco 1....


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Citada, a Ré contestou, pugnando pela improcedência da acção.

Negou, em síntese, o levantamento de tal quantia da conta da sua mãe e asseverou desconhecer a existência de tal montante na conta da mãe, bem como quem teria procedido ao levantamento de tais quantias.


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O Senhor Juiz a quo proferiu despacho saneador sentença, tendo decidido que:

- a questão que se suscita nestes autos foi, efetivamente, apreciada e decidida nos autos inventariais, concluindo-se pela verificação da tríplice identidade de partes, pedidos e causa de pedir pressuposta pela verificação da exceção de caso julgado que implicará a absolvição da ré da instância no que toca ao pedido identificado pelo autor na sua petição inicial sob o n.º 1, bem como,

- por não se encontrarem verificados os pressupostos do regime do enriquecimento sem causa que estavam o segundo pedido formulado pelo autor, decidiu absolver a ré do mesmo.


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Não se conformando com a decisão proferida, o recorrente AA veio interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:

I.Os pedidos e a causa de pedir no processo de inventário e na presente ação não são idênticos;

II. Num pede-se que seja relacionada uma determinada verba e noutro que a R. pague/restitua uma determinada verba, com realce de que se fala em valores diferentes;

III. Não se verificando assim dois dos requisitos (identidade do pedido e da causa de pedir) exigidos para que se verifique o caso julgado;

IV. Existindo assim violação clara do disposto nos artigos 580º e 581º do CPC;

V. E sendo considerado que não existe caso julgado, também deve a sentença ser revogada na parte que decidiu não apreciar o pedido de enriquecimento sem causa;

VI. Revogando-se assim a douta sentença proferida nos presentes autos;

VII. Termos em que deverá proceder a presente apelação nos termos e motivos acima expostos, fazendo-se assim Justiça.


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2. Factos

O Tribunal a quo considerou assentes os seguintes factos:

1. A aqui ré BB foi nomeada no processo de inventário que correu termos sob o n.º 393/21.6T8ETR neste Juízo de Competência Genérica - Juiz 2 para partilha dos bens que integravam a herança aberta por óbito de CC sobredito processo de inventário como cabeça de casal, tendo o autor intervindo nesses autos enquanto interessado direto.

2. No dia 14 de outubro de 2019, o aqui autor reclamou contra a relação de bens apresentada, peticionando, nomeadamente, que a cabeça de casal relacionasse as quantias depositadas no Banco 1...:

a) nos valores que já se mostram apurados: € 1.707.41 e € 1306,55 e

b) os valores que vierem a ser indicados pelo Banco 1....

3. No dia 31 de agosto de 2020, o aqui autor concretiza os depósitos que existiriam no Banco 1... e cujos montantes teriam sido diminuídos, nomeadamente o valor global de € 39.035,77 em 30/12/2016, tendo procedido, nomeadamente, à junção como documentos n.ºs 3 e 4 os quais juntou na petição inicial que originou os presentes autos como documentos n.ºs 1 e 2.

4. Por decisão datada de 29-04-2022, a reclamação contra a relação de bens foi declarada improcedente com exceção do reconhecimento do direito de crédito que a herança titularia relativamente à aqui ré BB no valor de € 12.136,97 (referente a tornas devidas aquando da partilha de DD), tendo o excurso decisório aludido, inclusivamente, à sobredita verba de € 39.035,77, depositados em conta bancária (cf. quinto parágrafo da terceira página da decisão proferida).

5. Por sentença datada de 08-04-2023 e transitada em julgado, foi homologada a transação alcançada entre os dois interessados.


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Foram apresentadas contra-alegações.

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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

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3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar:

Das conclusões formuladas pelo recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso prendem-se com saber:

- da verificação da excepção de caso julgado;

- do enriquecimento sem causa.


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4. Conhecendo do mérito do recurso:

4.1 Da verificação da excepção de caso julgado

Arguiu o recorrente, ao invés do defendido pelo Tribunal a quo, a ausência de verificação dos requisitos do caso julgado entre a presente acção e o processo de inventário que correu termos sob o n.º 393/21.6T8ETR no Juízo de Competência Genérica - Juiz 2 para partilha dos bens que integravam a herança aberta por óbito de CC.

Vejamos, então.

Nos termos dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea i) do Código de Processo Civil, o caso julgado constituiu uma excepção dilatória que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância.

A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, depois da primeira ter já sido decidida por sentença sem possibilidade de recurso ordinário, e visa evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artigo 497.º do Código de Processo Civil).

Para que se verifique a excepção de caso julgado é necessário (cf. artigo 581.º do Código de Processo Civil):

- identidade de sujeitos (quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica);

- identidade de pedido (quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico);

- identidade de causa de pedir (quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico)

Por sua vez, caso a acção tenha vários pedidos ou causas de pedir, a excepção pode verificar-se apenas quanto a algum ou alguns dos pedidos ou causas de pedir que tenham já sido objecto de apreciação judicial[1].

Ora, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.11.2013[2], constitui enquadramento teórico consensual “o caso julgado tem, (…), como pressuposto a repetição de uma causa decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e exerce duas funções: (i) uma função positiva e (ii) uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal. Visando tal excepção, assim, evitar que o tribunal contrarie na decisão posterior o que decidiu na primeira ou a repita; a autoridade do caso julgado é o comando da acção ou proibição de repetição. O que vale por dizer que a sentença faz caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável (efeito processual do caso julgado) em razão do que o tribunal não pode voltar a pronunciar-se sobre o decidido (excepção do caso julgado) e fica vinculado ao respectivo conteúdo (autoridade do caso julgado) (...). Sendo certo que a autoridade de caso julgado e a excepção de caso julgado não são duas figuras distintas, mas antes duas faces da mesma figura - consistindo o facto jurídico "caso julgado" em existir uma sentença (um despacho) com trânsito sobre determinada matéria (...). E, caso se encontrem preenchidos os pressupostos do caso julgado, pode distinguir-se entre o caso julgado formal, externo ou de simples preclusão e o caso julgado material ou interno. Consistindo o primeiro (art. 672.º) em estar excluída a possibilidade de recurso ordinário, nada obstando, porém, em que a matéria da decisão seja diversamente apreciada noutro processo, pelo mesmo ou por outro Tribunal. Correspondendo o mesmo às decisões que versam apenas sobre a relação processual, não provendo sobre os bens litigados. Consistindo o segundo (art. 671.º), geralmente designado como caso julgado "res judicata", em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os Tribunais (e até a quaisquer outras autoridades), quando lhes seja submetida a mesma relação. Todos têm de a acatar, de modo absoluto, julgando em conformidade, sem nova discussão. Competindo o mesmo às decisões que versam sobre o fundo da causa, sobre os bens discutidos no processo, definindo a relação ou situação jurídica deduzida e discutida em Juízo (...). Quando constitui uma decisão de mérito (decisão sobre a relação material controvertida) a sentença produz, também fora do processo, efeito de caso julgado material: a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se nos planos substantivo e processual, distinguindo-se, neste, como atrás aflorado, o efeito negativo da inadmissibilidade de uma segunda acção (proibição de repetição: excepção de caso julgado) e o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade de caso julgado) (...). Enquanto excepção, o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa idêntica, repetindo-se a mesma quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (arts. 497.º, n.º 1, e 498.º, n.º 1): (i) há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; (ii) há entidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e (iii) identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico - arts. 497.º, n.º 1, e 498.º, do CPC.”.

Ou seja, a excepção do caso julgado tem como fundamento teleológico impedir que os tribunais se vejam obrigados a decidir novamente a mesma questão. Esse objectivo tem como preocupações subjacentes assegurar a paz jurídica dos cidadãos, que passam a poder confiar que o trânsito em julgado da decisão sobre um determinado conflito o resolve em definitivo e não terão a necessidade de demandarem ou se defenderem de novo a propósito do mesmo conflito jurídico, evitar a prolação de decisões divergentes e o risco que isso representa para a imagem da justiça e para a clareza dos comandos jurisdicionais a que se deve obediência, e, finalmente, obstar ao desperdício de meios que a repetição de procedimentos jurisdicionais para decidir a mesma questão implicaria desnecessariamente.

Tratando-se de um bloqueio ao direito de acesso aos tribunais e de um impedimento à suscitação de solução para uma controvérsia jurídica que as partes podem manter latente e cujos pontos de vista podem divergir ou evoluir, esta excepção tem naturalmente contornos rigorosos que se reconduzem ao requisito da chamada tripla identidade: para que estejamos perante a mesma questão jurídica é necessário que haja identidade de partes, de causas de pedir e de pedidos.

Este requisito encontra-se obviamente moldado para a situação comum que é a de a excepção se colocar entre uma acção declarativa já decidida e uma acção declarativa que se pretende instaurar, ou seja, os elementos que devem ser idênticos são elementos característicos das acções declarativas, nas quais se formula a pretensão de uma concreta tutela jurisdicional correspondente à forma como se pretende fazer valer um determinado direito (declarando a sua existência, condenando o réu na prestação que corresponde ao direito ou introduzindo na ordem jurídica a mudança que o direito implica), ancorando esse direito num fundamento específico traduzido em factos jurídicos concretos que delimitam o objecto da decisão do tribunal.

Reportando-nos ao recurso em análise, constata-se que defende o apelante não se verificarem os requisitos do caso julgado previstos no artigo 581.º do Código de Processo Civil, aceitando a existência de identidade entre as acções quanto aos sujeitos, mas já não quanto aos pedidos e à causa de pedir, por entender serem estes diversos.

De facto, as partes que intervieram no processo de inventário e que intervêm nos presentes são as mesmas e, consequentemente, verifica-se a identidade das partes entre o processo de inventário que correu os seus termos neste Juízo - Juiz 2 e estes autos.

Mais se constata que o Apelante funda a sua pretensão na mesma conduta da Apelada que, de acordo com o autor, se terá «apropriado» da quantia de € 39.035,77 pertencente à mãe de ambos e que se encontraria depositada numa conta sediada no Banco 1..., pretendendo, nestes autos, a condenação da Apelada na restituição de metade de tal montante, concluindo-se, assim, que ocorre, também, a identidade da causa de pedir e de pedidos entre os dois processos.

Com efeito, refere o artigo 581º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil que “Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.” e “Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.”.

Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas demandas procede do mesmo facto jurídico, entendendo-se a causa de pedir como o próprio facto jurídico genético do direito, donde se deverá atender a todos os factos invocados que forem injuntivos da decisão, correspondendo, pois, à alegação de todos os factos constitutivos do direito e relevantes no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender, independentemente da coloração jurídica dada, sendo que a causa de pedir deve ser preenchida com os factos essenciais causantes do efeito jurídico pretendido.

Por outro lado, o pedido prende-se com o efeito jurídico que a parte pretende obter pela decisão judicial e que ela retira da causa de pedir que invocou.

“(…) O pedido tem por objeto imediato determinado efeito jurídico que se retira da causa de pedir e por objeto mediato o bem jurídico a que se refere a causa de pedir. Donde, há

identidade de pedido quando em causas diferentes a parte ativa pretende uma sentença com idêntico efeito jurídico para um mesmo e determinado bem jurídico.”[3].

De resto, os pedidos não têm que coincidir ponto por ponto, mas apenas que visar essencialmente o mesmo efeito.

Reportando-nos ao caso vertente, alega o Apelante que pretendia que o dinheiro que reclamou, e juntou sob os documentos n.ºs 3 e 4 da reclamação à relação de bens e documentos n.ºs 1 e 2 da petição inicial, fosse relacionado no processo de inventário.

Ora, se a sua pretensão tivesse tido provimento, essa quantia teria sido aditada à relação de bens e teria sido realizada a subsequente partilha, mas tal, assim, não sucedeu, uma vez que a reclamação foi julgada improcedente, decisão que não foi alvo de recurso.

Destarte, pese embora pedido e causa de pedir nas acções em apreço não sejam iguais, ipsis verbis, não há dúvidas que existe uma identidade entre ambos.

Ou seja, há, pois, que comparar o teor da parte dispositiva da decisão já transitada em julgado com a pretensão da nova acção e o alcance potencial da nova decisão judicial que vier a ser emitida.

E facilmente se depreende existir esta identidade, pois a pretensão do Recorrente é, por via de uma acção de condenação, proceder à recepção da quantia que, então, juntou em sede inventário, mas não logrou aditar e partilhar, reclamando agora não a totalidade do valor, mas apenas a “sua quota-parte”.

Ou seja, o efeito prático-jurídico de uma decisão favorável que viesse a ser proferida em sede dos autos ora recorridos é exactamente o mesmo que pretendia mas não logrou realizar no processo de inventário.

De resto, refere, muito bem, a sentença em crise que “(…) o autor funda a sua pretensão na mesma conduta da ré que, de acordo com o autor, se terá «apropriado» da quantia de € 39.035,77 pertencente à mãe de ambos e que se encontraria depositada numa conta sediada no Banco 1..., pretendendo, neste autos, a condenação da ré na restituição de metade de tal montante, concluindo-se que ocorre, de igual modo, a identidade da causa de pedir e de pedidos entre os dois processos.”.

Mas mais, refere explicitamente que tal questão “(…) foi, efetivamente, apreciada e decidida nos autos inventariais, concluindo-se pela verificação da tríplice identidade de partes, pedidos e causa de pedir (…)”.

Afigura-se-nos, assim, que se verifica a tríplice identidade prevista no artigo 581.º do Código de Processo Civil e, consequentemente, mostram-se preenchidos os pressupostos da excepção de caso julgado, improcedendo, por isso, este segmento da apelação.

4.2 Do enriquecimento sem causa

Cumpre, agora, apreciar e decidir se a pretensão do Apelante merecerá provimento quando perspectivada à luz do regime do enriquecimento sem causa.

Preceitua o artigo 473.º, n.º 1 do Código Civil que «Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir tudo aquilo com que injustificadamente se locupletou», concretizando o n.º 2 do preceito que «A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».

Por força do princípio da subsidiariedade do enriquecimento sem causa em relação a outros meios específicos de tutela (artigo 474.º, do Código Civil), o enriquecimento sem causa configura um instituto de natureza absolutamente residual, sendo uma das fontes das obrigações. Figurará como credor o sujeito à custa de quem o enriquecimento se verificou e como devedor a pessoa que dele beneficiou, mas a geração de obrigações não se basta com tais requisitos, antes tendo, como decorre da norma supra citada, pressupostos exigentes e cumulativos, concretamente: (a) a existência de um enriquecimento; (b) à custa do empobrecimento alheio; (c) a ausência de causa justificativa da deslocação patrimonial verificada e (d) o prévio esgotamento dos institutos que oferecem, de forma originária, tutela à questão em causa.

Verdadeiramente, «Pode, assim, dizer-se que ‘o enriquecimento carece de causa, quando o Direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios jurídicos, justifique a realizada deslocação patrimonial’, hipótese em que a lei «obriga a restabelecer o equilíbrio patrimonial por ele rompido, por não desejar que essa vantagem perdure, constituindo o «accipiens» no dever de restituir o recebido». Deste modo, operando-se deslocação patrimonial mediante uma prestação, a causa há-de ser a relação jurídica que essa prestação visa satisfazer, e se esse fim falta, a obrigação daí resultante fica sem causa.»[4].

Do artigo 473.º, n.º 2 do Código Civil, retiram-se três situações-tipo integrantes do enriquecimento sem causa, mormente (a) o que for indevidamente recebido - condictio in debiti (a que se referem os artigos 476.º e 478.º do Código Civil); (b) o que for recebido por uma causa que deixou de existir - condictio ob causam finitam e (c) o que for recebido em vista de um efeito que se não verificou - condictio ob causam datorum ou conditio ob rem. Verificados que estejam os requisitos vindos de elencar, surge, então, a obrigação de restituição de tudo quanto haja sido obtido à custa do empobrecido ou do valor correspondente, quando a restituição in natura não seja possível (artigo 479.º, n.º 1 do Código Civil).

No caso vertente, entende-se, em sintonia com o Tribunal a quo, que a questão não poderá ser apreciada sem se tomar em consideração a sentença proferida nos autos de inventariais e o seu consequente caso julgado, pois que, conforme se sustentou no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 24-09-2013[5] «parece-nos claro - conforme refere Diogo Leite de Campos,[6] - que não pode ser admitida a pretensão de enriquecimento sem causa contra o caso julgado, com o fim de eliminar os enriquecimentos considerados injustos sancionados por este. Como refere o citado autor[7], “o enriquecimento que derive do caso julgado, eventualmente injusto segundo critérios éticos, é justificado pelo ordenamento jurídico em virtude das referidas necessidades de certeza”. Tal enriquecimento - sendo aprovado e consentido pelo ordenamento jurídico, como decorrência do caso julgado - tem, por isso, causa justificativa e, portanto, enquanto se mantiver a sentença e o caso julgado por ela formado, tal enriquecimento não poderá dar lugar à obrigação de restituir. Assim, o enriquecimento eventualmente emergente de uma sentença e do caso julgado por ela formado, apenas poderá ser eliminado através da revogação ou eliminação dessa sentença e tal apenas poderá suceder nos casos e pelos meios expressamente previstos na lei.».

Efectivamente, sopesando que o Apelante se encontra vinculado pelo caso julgado formado na sentença proferida nos autos inventariais, importará concluir que, ainda que essa decisão tenha acarretado o prejuízo do autor e o enriquecimento da Apelada, tal prejuízo e enriquecimento estão justificados pelo caso julgado, não podendo fundamentar qualquer obrigação de restituição com fundamento no regime do enriquecimento sem causa.

Assim sendo, não se encontrando verificados os pressupostos do regime do enriquecimento sem causa que esteavam o segundo pedido formulado pelo autor, decide-se também neste segmento da apelação manter a decisão recorrida.

Impõe-se, por isso, o não provimento da apelação.


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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:

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5. Decisão

Nos termos supra expostos, acorda-se neste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso de apelação, confirmando-se a decisão recorrida.


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As custas são a cargo do apelante.

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Notifique.


Porto, 21 de Novembro de 2024
Paulo Dias da Silva
Isoleta de Almeida Costa
Francisca Mota Vieira

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
_________________
[1] Cf. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, págs. 320 e ss.
[2] proferido no processo n.º 106/11.0TBCPV.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Rui Pinto, em Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias.
[4] Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de março de 2017, processo n.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] no processo n.º 271/10.4T2AVR.C1, disponível em www.dgsi.pt.,
[6] Cfr. Diogo Leite de Campos, A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir o Enriquecimento, Almedina, 1974, pág. 430.
[7] Cfr. Ob. Cit., pág. 430.