Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MANUELA MACHADO | ||
| Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL ACIDENTE DE VIAÇÃO INDEMNIZAÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RP202510093526/23.4T8VNG.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/09/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | ALTERADA | ||
| Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - O dano biológico reporta-se a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais, sendo um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, capaz de afetar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas, determinando perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro. II - Não sendo possível determinar o valor exato desse dano, tal avaliação terá de ser efetuada recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566.º, nº 3 do Código Civil. III - Sobre o critério de equidade na fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais tem-se entendido que deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida, devendo tal compensação ter um alcance significativo, e não meramente simbólico nem miserabilista, não podendo, na sua fixação, deixar de ser ponderadas circunstâncias como o quantum doloris, o período de doença, a situação anterior e posterior do lesado em termos de afirmação social, apresentação e autoestima, alegria de viver, a idade, esperança de vida e perspetivas para o futuro, incluindo o dano biológico (agora, na vertente não patrimonial), entre outras, que o caso concreto revele. IV - No seguro de responsabilidade civil facultativo, os nºs 2 e 3 do art. 140.º do Dec. Lei nº 72/2008, de 16/04, concedem ao lesado o direito de demandar diretamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado, mas apenas nas duas situações excecionais aí mencionadas: a) - quando tal se encontre expressamente previsto no contrato de seguro; b) - quando o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações diretas entre o lesado e o segurador. V - No contexto do seguro de responsabilidade civil, o segurado e a seguradora são ambos responsáveis pelo dano causado ao terceiro. O segurado é o responsável primário, enquanto responsável civil, ao passo que a seguradora é responsável por força do contrato de seguro. VI - A obrigação do responsável civil não é afastada pela celebração de um contrato de seguro, desde logo, nos seguros facultativos. Mas mesmo nos seguros obrigatórios, nos quais a seguradora responde diretamente perante o lesado, a questão da solidariedade está presente na possibilidade do direito de regresso da seguradora contra o segurado, em determinadas situações. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 3526/23.4T8VNG.P1 Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto: I - RELATÓRIO AA intentou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra A... S.A. e B..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., todos melhor identificados nos autos, pedindo a condenação solidária das Rés no pagamento da quantia de €50.386,48, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sinistro em causa nos autos, bem como da quantia a liquidar em ampliação do pedido ou sede incidental, como indicado no art. 71.º da petição inicial, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento. Para o efeito, a autora alegou que no dia 30 de maio de 2020, pelas 9 horas, se deslocou ao estabelecimento de hipermercado/supermercado da primeira Ré, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, onde sofreu uma queda, numa zona em que o pavimento se encontrava molhado, com uma poça de água, sem que estivesse sinalizada, o que lhe causou os danos de natureza patrimonial e não patrimonial que quantifica. Mais alegou que a primeira Ré transferiu para a segunda a sua responsabilidade civil decorrente dos danos sofridos por terceiros no interior das suas instalações, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º .... A Ré A... S.A contestou, reconhecendo a existência de um sinistro no dia e hora descritos na petição inicial, de cuja ocorrência deu conhecimento à segunda Ré Seguradora, impugnando e extensão dos danos invocados pela Autora. No mais, invoca a transferência da responsabilidade civil extracontratual emergente da sua atividade comercial para a segunda Ré, por força do contrato de seguro celebrado, o qual prevê uma franquia de €5.000,00, por sinistro, que por si terá que ser suportada. A ré B..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. apresentou também contestação, defendendo-se por impugnação, para além de alegar que à data dos factos estava em vigor o contrato de seguro do ramo responsabilidade civil Exploração – Estabelecimento, titulado pela apólice n.º ..., através do qual assumiu para si transferido, entre outros, o risco da responsabilidade civil exploração de várias participadas da sociedade C... SGPS, S.A., no que se incluiu a primeira Ré, o qual vigorava com uma franquia de €5.000,00. Mais alegou que foi celebrado entre a C... SGPS, S.A. um outro contrato de seguro, do ramo de Acidentes Pessoais, titulado pela apólice n.º ..., através do qual assumiu a transferência dos riscos de morte ou invalidez permanente por acidente, com um capital seguro de €25.000,00, sendo consideradas pessoas seguras todas aquelas que se encontrem nos locais de risco, correspondentes à 427 lojas das participadas da tomadora do seguro, durante o regular horário de funcionamento dos mesmos, e em observância das normas de segurança o qual, para além do mais, tem uma exclusão da cobertura de risco de invalidez quando verificada dois anos após a data do acidente que lhe deu causa. Alegou ainda que o acidente lhe foi comunicado ao abrigo da apólice de acidentes pessoais, titulado pela apólice n.º ..., nada tendo a Autora reportado quanto à manutenção de queixas álgicas, o que teria que ser analisado ao abrigo do contrato de seguro de responsabilidade civil de exploração que com a primeira Ré mantém em vigor. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, prosseguindo o processo para julgamento, ao qual se procedeu, tendo sido proferida sentença que julgou parcialmente procedente a ação e, em consequência, decidiu: “a) Condenar as Rés, solidariamente, no pagamento à Autora da quantia de €22.218,21, a qual será acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento; b) Condenar a primeira Ré no pagamento à Autora da quantia de €5.000,00, a qual será acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento; c) Condenar as Rés, solidariamente, no pagamento à Autora da quantia de €12.500,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a presente data e até efetivo e integral pagamento. d) Condenar as Rés, solidariamente, no pagamento à Autora das quantias que se vierem a liquidar em sede incidental relativas ao acompanhamento regular em consultas de Medicina Física e de Reabilitação e de tratamentos de fisioterapia, a determinar pelo médico assistente, bem como no valor da medicação de que irá necessitar, igualmente a determinar pelo médico assistente; e) Absolver, no mais, as Rés do pedido; e condenar em custas Autora e Rés, na proporção do respetivo decaimento.”. * Não se conformando com o assim decidido, vieram recorrer tanto a autora, como ambas as rés, recursos que foram admitidos como de apelação, com subida imediata, nos autos e com efeito devolutivo.A ré B... - COMPANHIA DE SEGUROS S.A., apresentou as seguintes conclusões das suas alegações: “I. Nos termos do artigo 607º, nºs 4 e 5 do C.P.C., decorre que cumpre ao Sr. Juiz explicar os motivos que influenciaram e determinaram a decisão acerca da matéria de facto, fazendo uma análise crítica da prova. II. A fundamentação é um imperativo constitucional consagrado no artigo 205 nº 1 da Constituição da República. III. Da necessidade de fundamentação não decorre perda de liberdade de IV. julgamento, a qual se mostra garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 607º/5 C.P.C. V. A sentença a quo dá como provados os pontos 49º “Por causa das dores de que passou a padecer, a Autora irá necessitar de medicação analgésica, a definir por médico assistente.” e 50º “Necessitará ainda de acompanhamento regular em consulta de Medicina Física e de Reabilitação, com periodicidade a definir pelo médico assistente, e de tratamentos de fisioterapia.” VI. Neste caso – dos pontos 49º e 50º dos factos provados – não existe, na fundamentação da sentença ora recorrenda, qualquer referência ou análise crítica, nem tão pouco a indicação das provas ou fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção e sequente decisão. VII. Tais factos, não mereceram qualquer análise por parte do Douto Tribunal a quo. E deveriam. VIII. Dado que servem de fundamento para a alínea d) do dispositivo final da sentença. IX. Pelo que, a Decisão viola claramente o disposto no artigo 607º, nº 4 do C.P.C. X. Aliás, diga-se, tais factos não constam sequer do pedido da Recorrida. XI. A Recorrida na sua Douta P.I. não peticiona, nem alega os factos constantes dos pontos 49º e 50º dos factos provados. XII. Faz apenas referência a que haverá, eventualmente, despesas em que incorrerá e que, a existirem, seriam alvo de eventual ampliação do pedido ou liquidação de sentença. XIII. Não se verificou nos autos qualquer ampliação do pedido. XIV. Ora, deve o juiz conhecer de todas as questões que lhe sejam submetidas, isto é de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas, nos termos do artigo 608º, nº 2 do C.P.C. XV. Não pode o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, pelo que é nula a sentença em que tal sucede. XVI. De facto, o excesso de pronúncia verifica-se quando o Tribunal conhece, isto é, aprecia e toma posição (emite pronúncia) sobre questões de que não deveria conhecer, designadamente porque não foram levantadas pelas partes e não eram de conhecimento oficioso. XVII. O excesso de pronúncia consiste numa apreciação ou decisão sobre questão que ultrapassa o quanto é submetido pelas partes ou imposto por lei à consideração do julgador. XVIII. Devendo por isso mesmo, os factos constantes dos pontos 49º e 50º dos factos provados serem retirados de tal acervo, não só porque o tribunal a quo não explicou, de todo em todo, onde se baseou para os dar como provados, como também, os mesmos não foram alvo de qualquer pedido formulado pela recorrida devendo a sentença neste conspecto ser nula nos termos do artigo 615º, nº 1 alínea d) do C.P.C. in fine. XIX. E sendo retirados tais factos do acervo dos factos provados e sendo declarada nula a sentença sobre tal matéria, por excesso de pronuncia, deverá a alínea d) do dispositivo da sentença ser retirada por ausência de correspondência com factos que tenham sido alegados. XX. A R./apelante discorda da douta sentença do Tribunal a quo no que toca ao montante fixado à A./recorrida a título de compensação pelo dano biológico, por entender que tal quantia é, salvo o devido respeito, manifestamente excessiva e, por isso, injusta. XXI. E fá-lo, porquanto é desde logo perceptível da douta sentença que nessa decisão não se fez o melhor uso (longe disso, aliás) da equidade, o que, evidentemente, se diz com o respeito devido e mormente por melhor opinião; XXII. As lesões por aquela sofridas em consequência do presente sinistro não justificam, nem se adequam ao valor indemnizatório fixado na sentença ora posta em crise. XXIII. Cumpre, assim, analisar o valor arbitrado a título de dano biológico na vertente patrimonial. XXIV. Para o dano biológico com reflexos patrimoniais, na sua quantificação por referência ao dano patrimonial futuro, é de considerar: - as sequelas de que a A. ficou a padecer, seja no âmbito profissional, seja pessoal ou doméstico, com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica apurado de 8 pontos. XXV. A Autora, pese embora consiga realizar as suas tarefas domésticas, o certo é que as faz com muito mais dificuldade, principalmente no desempenho daquelas atividades que exigem mais força física, como sejam, limpezas, passar a ferro, cozinhar, etc; A Autora apresentava (como apresenta) dificuldades em realizar tarefas em que tem de utilizar o membro superior direito, sobretudo em movimentos de esforço; XXVI. Contudo, não ficou demonstrado que a Autora apresenta limitações ao nível da preensão e manipulação; que a Autora não consegue pegar em pesos superiores a 5 Kg; que a Autora apresenta dificuldades quando pretende tratar da sua higiene pessoal; que a Autora viu ficar irremediavelmente comprometida a sua capacidade de ganho;” XXVII. A Autora era doméstica à data dos factos, nada vindo provado quanto aos rendimentos. XXVIII. A A. à data do acidente tinha 57 anos, pelo que tinha ainda uma esperança média de vida de mais 26 anos – de acordo com os dados INE a esperança média de vida para as mulheres é de 83 anos; XXIX. Ora, não exercendo a A. qualquer atividade profissional, o valor a encontrar não se deve sustentar em retribuições salariais, pois a sua situação não tem total equivalência com a de um trabalhador/prestador de serviços que, continua a desempenhar a sua função e a receber a sua retribuição, no entanto tem de se esforçar mais para continuar a desempenhar essa função e, assim, continuar a receber correspetivo do seu esforço. XXX. Salvo o devido respeito pelo Douto Tribunal, o valor do salário médio mensal de referência para cálculo do dano biológico, não poderá ser utilizado para determinação do quantum indemnizatório, pois que, no caso concreto, desconhece-se qualquer qualificação que a Autora possa ter a nível de formação ou de capacidade para desempenho de funções. XXXI. Dito de outra forma, não existem elementos para crer que a Autora pudesse encontrar uma ocupação profissional que permitisse concluir que o seu rendimento poderia ser nivelado pelo salário médio mensal. XXXII. Note-se que, não ficou provado que a Autora viu ficar irremediavelmente comprometida a sua capacidade de ganho. XXXIII. Aliás, foi a própria Autora que, no seu petitório, pugnou pela aplicação do salário mínimo nacional, para efeitos de cálculo. XXXIV. Pelo que, entende-se ser de considerar como ponto de referência o valor do salário mínimo nacional, que, à data, era de 635,00 €. XXXV. Com efeito, parece à R., vista designadamente e por comparação com decisões jurisprudenciais dos Tribunais Superiores, de que constituem exemplo os Ac. Relação do Porto, in processo 779/11.4TBPNF.P1, o Ac. Supremo Tribunal de Justiça, in Processo nº 90/06.2TBPTL.G1.S1, o Ac Relação do Porto, in Processo nº 2870/11.8TJVNF.P1, e o Ac. Relação do Porto, in processo 171/14.9TVPRT.P1. XXXVI. Deve, pois, fixar-se a indemnização a título de dano biológico, atendendo à situação concreta, em não mais de 10.000,00 €, quantia esta que já traduz de forma muito mais consentânea (e comparativamente harmoniosa e entendível, por assim dizer) a gravidade das lesões da recorrida, além de que não ofende os valores usualmente arbitrados pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores. XXXVII. Deverá pois a douta Sentença ora recorrida ser revogada e substituída por outra que fixe em 10.000,00 € o valor indemnizatório a título de dano biológico. XXXVIII. Na mesma senda do que foi dito para o dano biológico, entende-se que o valor atribuído pelo Douto Tribunal a quo a título de dano não patrimonial se mostra excessivo. XXXIX. O Douto Tribunal a quo atribuiu uma indemnização no montante de 12.500,00 € a título de dano não patrimonial. XL. Ao liquidar o dano não patrimonial, o juiz deve levar em conta os sofrimentos efectivamente padecidos pelo lesado, a gravidade do ilícito e os demais elementos do “fattispecie”, de modo a achar uma soma adequada ao caso concreto, a qual, em qualquer caso, a avaliar pela equidade mas que deve evitar parecer mero simulacro de ressarcimento. XLI. A única condição de ressarcibilidade do dano não patrimonial é a sua gravidade (artº 496º, nº 1 do Código Civil). XLII. Os critérios jurisprudenciais constituem importante baliza para o raciocínio, posto que aplicáveis, ainda que por semelhança, ao caso concreto, nomeadamente os Ac Relação do Porto, in processo 735/16.6T8STS.P e o Ac. Relação de Guimarães, in processo 2277/23.4T8VCT.G1. XLIII. Pelo que, a atribuição à Recorrida de uma indemnização de 8.000,00 € a título de danos não patrimoniais, parece ser mais ajustada à realidade factual dos autos. XLIV. Devendo também aí ser revogada a sentença e substituída por outra que atribua o valor de 8.000,00 € à Recorrida a título de dano não patrimonial. Nestes termos e nos melhores de direito a suprir por Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado devendo a sentença recorrida ser revogada, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA.”. A autora, por sua vez, concluiu as suas alegações nos seguintes termos: “I- Vem o presente recurso de apelação interposto da douta sentença datada de 21.3.2025, que veio, entre outras injunções, a fixar a indemnização devida a título de danos não patrimoniais em € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros); II- A Recorrente considera que esse montante, peca por manifesto defeito; III- Considerando toda a factualidade julgada provada, ponderando os parâmetros elencados nesta instância recursiva, incluindo os da jurisprudência, e dando especial enfoque aos danos e às dores físicas, à gravidade das lesões, ao período de incapacidade temporária parcial, ao valor do déficit funcional permanente da integridade físico-psíquica, ao prejuízo de afirmação pessoal, ao dano estético, à dependência e ao sofrimento vivenciado desde o acidente, às sequelas e às limitações que padece, entende a Recorrente que o valor mais adequado à situação concreta será os € 20.000,00 (vinte mil euros) peticionados, pelo que, deverá o tribunal ad quem, fixar definitivamente este dano nesse montante; IV- Os valores indemnizatórios devem ter carácter significativo, não podendo assumir uma feição meramente simbólica; V- Os critérios utilizados pelo tribunal recorrido afastam-se, de modo substancial e injustificado, das regras uniformizadas, ferindo a segurança que devia presidir à aplicação do direito, constituindo, por esse facto e em última análise, uma violação do princípio da igualdade previsto no n.º 1 do art. 13.º da CRP e n.º 3, do art. 8.º do CC. VI- A decisão recorrida ofende o preceituado nos artigos 8.º, n.º 3, 70.º, 562.º, 564.º e 566.º, todos do Código Civil e art. 13.º, n.º 1 da CRP. Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. Muito doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente ser a sentença recorrida revogada, sendo substituída por outra que contemple as conclusões atrás aduzidas, tudo com as legais consequências.”. Finalmente, a ré A..., S.A., formulou as seguintes conclusões das suas alegações: “A. A 1.ª Ré/Recorrente adere ao recurso da 2.ª Ré/Recorrente, por força do artigo 634.º n.º 2, alíneas a) e c) do CPC, sendo certo que, de tal adesão, não poderá resultar uma condenação da 1.ª Ré/Recorrente acima do valor da franquia contratualizado com a seguradora; B. No mais, a 1.ª Ré/Recorrente, interpõe o presente recurso de apelação para apreciação pelo tribunal ad quem das seguintes questões: (i) a errada interpretação que é feita ao contrato de seguro em causa nos presentes autos; (ii) impugnação referente à decisão da matéria de facto, em concreto, o facto n.º 55 dado como provado; (iii) condenação solidária da 1.ª R./Recorrente em diversos montantes além da franquia devida no âmbito do contrato de seguro mantido com a 2.ª R./Recorrente; (iv) condenação da 1.ª R./Recorrente em juros, referentes ao montante da franquia e aos montantes devidos solidariamente. C. Não obstante resultar da matéria dada como provada, a menção a um seguro de acidentes pessoais e a um seguro de responsabilidade civil celebrados entre as Rés, certo é que a motivação da sentença permite concluir que, aos presentes autos, é aplicável o contrato de seguro de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.º .... D. Nesse sentido, aceita-se o vertido no facto provado n.º 54, o qual reconhece que a “A primeira Ré tinha a sua responsabilidade civil decorrente dos danos sofridos por terceiros no interior das suas instalações (responsabilidade civil extracontratual) transferida para a 2.ª Ré”. E. O que carece de reforma é a interpretação que a sentença a quo faz do contrato de seguro de responsabilidade civil, designadamente, a quem compete e como opera o ressarcimento dos danos abrangidos por tal contrato. F. Com efeito, por cada sinistro ocorrido e verificados os respetivos pressupostos de responsabilidade civil extracontratual, fica a 1.ª Ré/Recorrente adstrita ao pagamento de uma franquia de € 5.000,00. Sucede que, sobre este ponto, foi dado como provado o seguinte facto 55 da sentença: “55) Com uma franquia, ou primeira parte de qualquer indemnização, de €5.000,00 sempre a cargo da segurada, no caso a primeira Ré;” G. A franquia não é uma “primeira parte” de uma “qualquer indemnização”, na medida em que não existem quaisquer valores a liquidar pela 1.ª Ré/Recorrente, para além da franquia, em caso de sinistro. H. Termos em que se impõe a alteração do facto 55, passando o mesmo a conter a seguinte redação: “55) Com uma franquia de €5.000,00 sempre a cargo da segurada, no caso a primeira Ré.” I. A decisão deverá igualmente ser alterada, impondo-se a retirada de qualquer menção à condenação “solidária” das Rés no pagamento de montantes indemnizatórios à Recorrida. J. Com efeito, estando provada a transferência da responsabilidade civil da segurada para a seguradora, em caso de sinistro, apenas esta será a responsável pelo ressarcimento dos danos, desaplicando-se a norma constante do artigo 487.º n.º 1 do CC, tal como já decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão de 30.04.2014, disponível em www.dgsi.pt, Relator Manuel Braz. K. Requer-se a alteração da sentença, por forma a que fique claro que à 1.ª Ré/Recorrente caberá suportar, em face do sinistro em causa nos presentes autos, apenas a franquia de € 5.000,00, ficando a 2.ª Ré/Recorrente, responsável pelo pagamento dos valores que excedam o valor da franquia, revogando-se todas as menções à solidariedade no ressarcimento. L. Também a condenação em juros, relativa aos € 5.000,00 de franquia, deverá improceder e ser revogada em sede de Acórdão na medida em que, estando a franquia contratualizada com a 2.ª Ré/Recorrente, incluída no montante global indemnizatório a pagar por esta à Autora/Recorrida, apurado em sentença (e impugnado em sede de recurso), é apenas sobre este valor global que caberá calcular os correspondentes juros e não sobre a parcela “franquia”. Nestes termos e no mais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença proferida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!”. Foram apresentadas contra-alegações pela ré B... quanto ao recurso da autora, e pela autora quanto aos recursos de ambas as rés. * Após os vistos legais, cumpre decidir.* II - OBJETO DO RECURSO * O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil. Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelas recorrentes, as questões a apreciar são as seguintes: - Se a sentença padece de nulidade; - Se devem ser alterados os valores fixados a título de indemnização pelo dano biológico e pelo dano não patrimonial; - Interpretação do contrato de seguro quanto à questão da franquia e da solidariedade da responsabilidade. * III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO* Na decisão recorrida foram dados como provados os seguintes factos: 1) No passado dia 30 de maio de 2020, no período da manhã, a Autora deslocou-se ao hipermercado/supermercado A..., sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia; 2) É a primeira Ré que se dedica à exploração do referido hipermercado/supermercado; 3) Quando a Autora se encontrava no interior desse estabelecimento comercial, mais concretamente quando se preparava para sair da zona da charcutaria, após ter sido atendida; 4) A Autora, ao realizar um movimento de rotação do seu corpo, no sentido de retomar o corredor de circulação para continuar a realizar o resto das compras de que necessitava; 5) Veio a escorregar; 6) Caindo no pavimento desse estabelecimento comercial; 7) A perda de aderência do pavimento naquele local ficou a dever-se ao facto do mesmo se encontrar molhado; 8) Situação que não estava sinalizada; 9) Por força do evento acima descrito, a Autora sofreu um traumatismo no seu hemicorpo direito; 10) Tendo-se deslocado ao Centro Hospitalar ..., EPE, Hospital ..., em Vila Nova de Gaia a fim de ser assistida; 11) À entrada do serviço de urgências desse Centro Hospitalar, a Autora apresenta queixas dolorosas, mais concretamente junto ao seu ombro direito; 12) Após ser submetida a um estudo radiológico, os médicos não vieram a detetar qualquer fratura, pelo que, depois de ser devidamente medicada, foi-lhe concedida alta para o seu domicílio; 13) Após a alta, a Autora sentia dores e limitações físicas; 14) Seguidamente, a Autora veio a ser observada em consulta no dia 9.06.2020, nas instalações da segunda Ré; 15) Considerando o facto de a Autora apresentar limitações de mobilidade e queixas intensas no seu ombro direito, o médico que a observou requisitou a realização de uma ressonância magnética, a qual veio a ser realizada no dia 17.06.2020; 16) Realizou ainda uma nova consulta em 19.6.2020; 17) No dia 3.7.2020 foi novamente observada em consulta de Ortopedia; 18) Após a realização do exame a que se alude no facto 15º, os médicos vieram a detetar uma fratura aguda da grande tuberosidade do úmero direito e uma rotura do tendão subescapular; 19) Em face desse diagnóstico e após nova observação por ortopedia, foi recomendado que a Autora se sujeitasse a tratamentos de Medicina Física e Reabilitação (MFR); 20) A Autora realizou 15 sessões de fisioterapia na Clínica ..., sita nos ...; 21) Nesse ínterim, a Autora teve mais duas consultas da especialidade nos dias 24 e 31 de julho; 22) Contudo, a Autora mantinha ainda um importante quadro álgico; 23) Apesar do referido no facto anterior, foi-lhe concedida alta, no dia 28.08.2020, sem lhe ser atribuída ou fixada qualquer desvalorização; 24) No entanto, a Autora continuava a sentir uma dor intensa e, bem assim, continuava a apresentar uma incapacidade funcional do seu membro superior direito; 25) Nesses termos, a aqui Autora, atento o facto de o seu marido ser um militar da GNR, veio a recorrer aos serviços das ADMG, no Hospital 1..., onde foi observada por médico ortopedista; 26) Este especialista veio a sugerir a realização de tratamento cirúrgico, considerando as lesões que a Autora apresentava, designadamente uma rotura da coifa e instabilidade LPBiceps do ombro direito; 27) Nessa decorrência, a Autora foi sujeita a uma cirurgia no dia 30.09.2020, tendo-lhe sido efetuada: (i) uma sutura do tendão subescapular com uma âncora; (ii) uma tenotomia da longa porção do bíceps; (iii) e desbridamento de rotura parcial do supraespinhoso. 28) A Autora teve alta hospitalar no dia 2.10.2020; 29) No entanto e apesar de uma evolução positiva do seu estado físico, o certo é que a Autora continuava a apresentar um quadro doloroso; 30) Pelo que, a Autora realizou novos tratamentos de MFR, cerca de 20 sessões, no Hospital Privado ...; 31) Durante todo o ano de 2021 a Autora continuou a apresentar queixas de dor incapacitante do ombro direito; 32) A Autora apresentava (como apresenta) dificuldades em realizar tarefas em que tem de utilizar o membro superior direito, sobretudo em movimentos de esforço; 33) Tendo que realizar as tarefas que normalmente realizava com o membro dominante (direito), com o membro superior esquerdo (lado passivo); 34) A Autora mostra-se autónoma nos atos da vida diária, apresentando dificuldades ao vestir. 35) a Autora pese embora consiga realizar as suas tarefas domésticas, o certo é que as faz com muito mais dificuldade, principalmente no desempenho daquelas atividades que exigem mais força física, como sejam, limpezas, passar a ferro, cozinhar, etc; 36) A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 31.12.2020; 37) O Défice Funcional Temporário Total é fixável num período total de 5 dias; 38) O Défice Funcional Temporário Parcial é fixável num período de 211 dias; 39) Como consequência da queda sofrida, no membro superior direito apresenta dor à palpação difusa do ombro; 40) Apresenta ainda dor à mobilização passiva do ombro; 41) Quanto ao arco de movimentos ativo apresenta: flexão anterior e abdução 0-95º, leva a mão ao ombro contralateral, leva a mão à nuca com queixas dolorosas, leva a mão à metade direita da região lombar, não a conseguindo levar até à linha média; 42) Apresenta ainda força muscular do membro superior globalmente diminuída face a contralateral; 43) O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 8 pontos; 44) Como consequência da queda sofrida e dos tratamentos a que foi submetida, no membro superior direito apresenta quatro cicatrizes hipocrómicas de tipo cirúrgico no ombro direito, com 1cm cada uma; 45) Apresenta ainda ligeira atrofia do deltoide direito, sem hipotrofia do braço comparativamente ao contralateral; 46) O Dano Estético Permanente é fixável no grau 3, numa escala de 7 graus de gravidade crescente; 47) Como consequência da queda, dos tratamentos a que foi submetida e das sequelas de que ficou a padecer sofreu e sofre a Autora dores; 48) O Quantum Doloris é fixável no grau 4 numa escala de 7 de gravidade crescente; 49) Por causa das dores de que passou a padecer, a Autora irá necessitar de medicação analgésica, a definir por médico assistente; 50) Necessitará ainda de acompanhamento regular em consulta de Medicina Física e de Reabilitação, com periodicidade a definir pelo médico assistente, e de tratamentos de fisioterapia; 51) A Autora teve várias despesas médicas e medicamentosas no montante de €218,21 até à data de 08.04.2021; 52) À data do sinistro, a Autora era doméstica, 53) A Autora nasceu no dia ../../1964; 54) A primeira Ré tinha a sua responsabilidade civil decorrente dos danos sofridos por terceiros no interior das suas instalações (responsabilidade civil extracontratual) transferida para a 2.ª Ré, através da celebração de um contrato de seguro, o qual se encontra titulado pela apólice n.º ..., encontrando-se o mesmo em vigor à data dos factos em apreço; 55) Com uma franquia, ou primeira parte de qualquer indemnização, de €5.000,00 sempre a cargo da segurada, no caso a primeira Ré; 56) De acordo com artigo 3º das Condições Gerais da apólice, “O presente contrato de seguro garante, até ao limite do valor seguro constante das Condições Particulares, o pagamento de indemnizações que sejam legalmente exigíveis ao Segurado por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais, causados a terceiros em consequência de atos ou omissões do Segurado, bem como dos seus empregados (…)”; 57) Também entre a segunda Ré e a C... SGPS, SA, foi celebrado um contrato de seguro do ramo Acidentes Pessoais, o qual é titulado pela apólice ..., cfr. docs. 4 e 5 da contestação da segunda Ré; 58) Através do qual a segunda Ré assumiu para si transferidos, entre outros, os riscos de Morte ou Invalidez Permanente por Acidente, com um capital seguro de €25.000,00; 59) Para efeitos desse contrato são consideradas pessoas seguras “Todas as pessoas que se encontrem nos locais de risco, durante o regular horário de funcionamento dos mesmos, e em observância das normas de segurança”. 60) Tendo ficado «convencionado que o grau de desvalorização sofrido pela Pessoa Segura será determinado pela Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil»; 61) Mais ficando excluído deste risco a “Invalidez verificada 2 anos após a data do acidente que lhe deu causa”; 62) A Ré seguradora promoveu a abertura de um processo de sinistros, tendo identificado essa assistência com o número ... e a Autora esteve presente, como supra indicado, em diversos atos médicos agendados por aquela. * E consideram-se como não provados os factos seguintes:a) A queda a que se alude no facto 5º foi de forma totalmente desamparada; b) A água existente no pavimento aquando da queda formava uma poça; c) Aquando do referido no facto 13º, a Autora conseguiu suportar esse quadro, recorrendo a analgésicos (Be-nu-ron e Brufen) e pomadas (Voltaren); d) No circunstancialismo a que se alude no facto 29º, foi a Autora medicada com duas injeções de betametasona “diprofos”, intervalados por um período de 15 dias; e) Mesmo após a realização desses tratamentos, a Autora apresentava apenas ligeiras melhoras; f) As sessões de MFR a que se alude no facto 30º, foram autorizadas pela segunda Ré; g) Tendo-lhe sido concedida nova alta médica, durante o pretérito mês de março de 2021, sem que os serviços clínicos da segunda Ré lhe tenham atribuído qualquer incapacidade; h) Durante o ano de 2021, a Autora recorreu ao seu médico de família, no Centro de Saúde ..., que requisitou uma ecografia às partes moles do ombro direito; i) A Autora apresenta limitações ao nível da preensão e manipulação; j) A Autora não consegue pegar em pesos superiores a 5 Kg; k) A Autora apresenta dificuldades quando pretende tratar da sua higiene pessoal; l) A Autora viu ficar irremediavelmente comprometida a sua capacidade de ganho; m) O acidente da Autora foi comunicado à segunda Ré como um simples acidente pessoal e ao abrigo da apólice de acidentes pessoais ..., cfr. documento nº 6; n) Aos três meses de evolução, os serviços clínicos da segunda Ré. verificaram: 1) uma melhoria do quadro clínico; 2) que a mobilidade foi recuperada; 3) que não apresentava atrofia da cintura escapular direita e; 4) que tinha consolidação da fratura com boa redução. o) Na altura mencionada na anterior alínea, a Autora nada referiu sobre a manutenção queixas álgicas. * IV – MOTIVAÇÃO DE DIREITO * 1. Da nulidade da sentença Invoca a recorrente B..., Companhia de Seguros, S.A. que a sentença é nula no tocante a matéria dos pontos 49º e 50º dos factos dados como provados, por ausência de fundamentação e excesso de pronúncia. O artigo 615.º do CPC prevê as causas de nulidade da sentença, dispondo que: “1 - É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido. (…)”. Posto isto, é unânime considerar-se que “as nulidades da sentença são vícios intrínsecos da formação desta peça processual, taxativamente consagrados no nº 1, do art. 615.º, do CPC, sendo vícios formais do silogismo judiciário relativos à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento, de facto ou de direito, nem com vícios da vontade que possam estar na base de acordos a por termo ao processo por transação” (vide Ac. do TRG de 04.10.2018, disponível em dgsi.pt). Ou seja, as nulidades da sentença encontram-se taxativamente previstas no artigo 615.º do CPC e reportam-se a vícios estruturais ou intrínsecos da decisão, também, designados por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito. Ora, efetivamente, uma das causas de nulidade da sentença é a falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Contudo, como temos vindo a decidir e nos parece ser jurisprudência unânime, só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil. A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o disposto no art. 607.º, nº 3 do Código do Processo Civil, que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. Contudo, conforme foi decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 3157/17.8T8VFX.L1.S1, de 03-03-2021 (disponível em gdsi.pt): “Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual - nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma - ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.”. Acresce que, “Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.”. Também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 19/14.4T8VVD.G1.S1, de 22-01-2019, se conclui em termos idênticos: “1. A nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.”. Ou seja, só ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão, quando exista uma falta absoluta de fundamentação, ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial. Não é claramente o que ocorre no caso, já que a sentença recorrida indica como meios de prova quanto às lesões, tratamentos e sequelas sofridas, que o tribunal teve em consideração o teor dos registos clínicos constantes dos autos e os relatórios periciais elaborados pelo I.N.M.L.C.F. de avaliação do dano corporal, quer os intercalares, quer o final, juntos aos autos em 8.02.2024 e 17.07.2024 (intercalares) e 23.07.2024 (final) e os esclarecimentos prestados em 20.09.2024. Por sua vez, consta, desde logo, do relatório pericial final a necessidade, a avaliar pelo médico assistente, de medicação analgésica e de acompanhamento em consulta de medicina física e reabilitação, englobando tratamentos de fisioterapia. Assim, sem necessidade de outras considerações, conclui-se que não ocorre a invocada nulidade da sentença por falta de fundamentação. A nulidade da sentença por omissão ou excesso de pronúncia, da previsão da alínea d) do nº 1 do citado art. 615.º do CPC, ocorre quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questão que devesse apreciar, ou conheça de questão de que não podia tomar conhecimento. Entende a recorrente, ainda, que a sentença enferma do vício plasmado no art. 615.º, nº 1, al d) do CPC, agora, por excesso de pronúncia, e isto, porque os factos dados como provados nos pontos 49 e 50 da matéria de facto provada, não terão sido alegados na petição inicial, nem constam do pedido formulado pela autora, pelo que, ao dar tais factos como provados e condenar nos termos que constam da alínea d) do dispositivo da sentença recorrida, a sentença enferma de nulidade por excesso de pronúncia. Mas também quanto a este fundamento não lhe assiste razão. Ora, a nulidade por excesso de pronúncia apenas se verifica quando o tribunal conheça de matéria situada para além das questões temáticas centrais, integrantes do thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções (Ac. STJ de 06-03-2024, processo 4553/21.1T8LSB.L1.S1, disponível em dgsi.pt). No caso, o Tribunal recorrido não se pronunciou sobre qualquer questão que não tivesse sido colocada nos autos. Ao contrário do que a recorrente B... pretende, a autora refere no ponto 69 da petição inicial, despesas médicas e medicamentosas, mencionando no ponto 71 da mesma peça processual, o apuramento dos respetivos valores em liquidação de sentença. Mas mais, também no pedido que formula, a autora pede, para além da quantia indemnizatória já liquidada, “a quantia a liquidar em ampliação do pedido ou execução de sentença”. Ou seja, no pedido formulado pela autora, esta relega para incidente de liquidação os valores correspondentes a despesas médicas e medicamentosas, pelo que ao condenar “no pagamento à Autora das quantias que se vierem a liquidar em sede incidental relativas ao acompanhamento regular em consultas de Medicina Física e de Reabilitação e de tratamentos de fisioterapia, a determinar pelo médico assistente, bem como no valor da medicação de que irá necessitar, igualmente a determinar pelo médico assistente”, a sentença não incorreu na nulidade por excesso de pronúncia. Improcede, assim, esta parte do recurso da ré B..., Companhia de Seguros, S.A. * 2. Dos valores indemnizatóriosA pretensão da recorrente B... consiste, ainda, em ver reduzidos os valores indemnizatórios fixados pelo tribunal a quo, quanto ao dano biológico e ao dano não patrimonial. Por sua vez, também a autora recorre, pretendendo a alteração do valor indemnizatório correspondente ao dano não patrimonial, o qual, contudo, pretende ver aumentado. Estando em causa a fixação dos valores indemnizatórios, iremos apreciar em conjunto esta parte do recurso da ré B... e o recurso da autora. O Tribunal recorrido fixou a título de indemnização pelo chamado dano biológico, a quantia de € 27.000,00 (vinte e sete mil euros) e pelo dano não patrimonial, a quantia de € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros). Vejamos. Quanto ao valor da indemnização pelo dano biológico, sofrido pela autora, diremos o seguinte: Como resulta da matéria de facto provada, a autora ficou definitivamente afetada na sua integridade física e psíquica, com repercussão nos atos da sua atividade enquanto doméstica e nos atos da sua vida diária, incluindo familiares e sociais, num grau 8, numa escala até 100. Só este facto já se afigura suficiente para que se deva concluir pela perda da capacidade de ganho, nem que seja apenas pelo maior esforço que a autora terá que despender para realizar as mesmas tarefas que antes realizava, ainda que não tivesse resultado provada qualquer específica perda definitiva da capacidade de ganho. Por refletir de forma clara a nossa posição sobre esta questão, passamos a transcrever o que foi decidido no Acórdão do STJ, de 21-04-2022, processo 96/18.9T8PVZ.P1.S1, onde se diz: “I. O dano biológico vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais; é um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, suscetível de afetar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas, determinando perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro, perda essa eventualmente agravável em função da idade do lesado. II. Tal dano tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral. Depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período ativo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade. III. Não sendo possível determinar o valor exato deste dano, tal avaliação terá de ser efetuada recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566 º n.º 3 do CC. Isto é, a equidade terá de ser sempre um elemento essencial no cálculo deste dano, independentemente de se considerar o dano biológico numa vertente meramente patrimonial, mais ou menos patrimonial ou até... como um tertium genus. IV. Na determinação do seu quantum indemnizatório, deve ter-se em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, face ao que dispõe o art. 8°, n° 3, do CC, fazendo-se a comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, sem se perder de vista a sua evolução e adaptação às especificidades do caso concreto – não podendo, assim, o dano biológico ser indemnizado por obediência a tabelas rígidas, de forma que a uma mesma pontuação em pessoas de idade aproximada tenha de corresponder necessariamente a fixação do mesmo valor a ressarcir. V. Particularmente relevante é a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da atividade profissional habitual do lesado, assim como de atividades profissionais ou económicas alternativas (tendo em conta as qualificações e competências do lesado).”. Voltando ao caso, não havendo dúvidas que é devida a indemnização pelo dano biológico, face à matéria de facto provada, na sua vertente patrimonial de perda da capacidade de ganho (nos termos expostos de necessidade de maior esforço para realização das mesmas tarefas), vejamos, então, se deve ser alterado o valor fixado pela 1.ª Instância e que foi, como referido, no valor de € 27.000,00 (vinte e sete mil euros). Provou-se, com interesse para esta questão, que: - O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica resultante para a autora da lesão sofrida é de oito pontos numa escala de cem. - As sequelas que para a autora resultaram do acidente, no que à repercussão permanente na atividade profissional respeita, são compatíveis com o exercício da sua atividade habitual de doméstica, mas provocam maior penosidade na sua execução, por exigência de esforços suplementares para a prática das mesmas tarefas. - À data do acidente, a autora tinha 55 anos de idade. Posto isto, como bem se refere na decisão recorrida, “O valor da indemnização a atribuir não poderá ser apurado com exatidão, mas com recurso à equidade, nos termos do art. 566.º, n.º 3 do C.C. tendo-se em consideração fatores como as sequelas resultantes da lesão, a idade do lesado aquando da lesão, a expectativa de vida (e não a esperança de vida ativa) do lesado e o facto de o pagamento da indemnização ser efetuado de uma só vez (cfr., entre outros, o Ac. do S.T.J. de 5.03.2012, disponível no sítio da dgsi).”. Ora, ponderando o facto de a autora não exercer uma atividade remunerada, por ser doméstica, mas sem que se possa deixar de atribuir um valor a tal atividade, valor que, contudo, ao contrário do que se decidiu na sentença recorrida, deve situar-se no salário mínimo nacional (€ 635,00), o qual, aliás, a própria autora tomou como referência no seu pedido, e considerando também que, de acordo com os dados do INE, a esperança média de vida para as mulheres é de 83 anos, sendo de concluir que a autora ainda terá cerca de 28 anos de expetativa de vida, afigura-se efetivamente, algo exagerado o montante fixado pelo tribunal a quo. O apuramento do dano biológico depende, como já referido, de um critério de equidade, já que não é compatível com um simples cálculo aritmético (artigos 566.º, n.º 3, e 4.º, alínea a), do Código Civil). Todas as acima mencionadas circunstâncias factuais relevam para encontrar a solução mais justa, proporcional e adequada para o caso concreto, pelo que, ponderando tais critérios, e levando em conta que a obrigação de indemnizar tem como diretrizes, por um lado, o princípio da reparação integral do dano, mas, por outro, a proibição de enriquecimento injusto do lesado à custa da indemnização, consideramos equilibrada uma indemnização no valor de € 15.000,00, a título de dano biológico na sua vertente patrimonial de perda da capacidade de ganho, quantia que se mostra mais adequada e proporcional em termos equitativos, procedendo, deste modo, parcialmente o recurso da ré B..., nesta parte. Recorre a ré B... também do valor fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais, valor que o tribunal recorrido fixou em € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros) e que a recorrente considera excessivo, indicando como mais adequado o valor de € 8.000,00 (oito mil euros), ao passo que a autora que também recorre quanto ao valor indemnizatório fixado a esse título, entende que tal valor peca por defeito, considerando adequado o valor de € 20.000,00 (vinte mil euros). Vejamos. Quanto à indemnização por danos não patrimoniais, importa ter presente as seguintes considerações: De harmonia com o disposto no art. 496.º, nº 1 do Código Civil, a indemnização por danos de natureza não patrimonial respeita apenas aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, como é o caso da ofensa dos direitos à vida, à integridade física e moral, à liberdade, à segurança, à saúde e à qualidade de vida, entre outros, direitos que são tutelados pela Constituição da República Portuguesa (arts. 24.º, 25.º, 26.º, 27.º, 64.º e 66.º). Destina-se esta indemnização a que se conceda ao ofendido uma quantia em dinheiro considerada adequada a proporcionar-lhe alegria ou satisfação que de algum modo contrabalancem as dores, desilusões, desgostos ou outros sofrimentos que o ofensor lhe tenha provocado. O Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo que esta indemnização se destina a proporcionar ao lesado, na medida do possível, uma compensação que lhe permita satisfazer necessidades consumistas que constituam um lenitivo para o mal, sofrido. Deve, por isso, tal compensação abranger as consequências passadas e futuras resultantes das lesões emergentes do evento danoso. Trata-se, num e noutro caso, de prejuízos de natureza infungível, em que, por isso, não é possível uma reintegração por equivalente, mas tão só um almejo de compensação que proporcione ao beneficiário certas satisfações decorrentes da utilização do dinheiro. Nos termos do nº 3 do referido art. 496.º do Código Civil, a sua fixação deve ser feita equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de concorrência do lesante, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (art. 494.º do Código Civil, para que remete aquele preceito legal). Sobre o critério de equidade na fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais tem-se entendido que deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. A este respeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem acentuando a ideia de que tais compensações devem ter um alcance significativo, e não meramente simbólico nem miserabilista, acrescentando que, na sua fixação, não podem deixar de ser ponderadas circunstâncias como o quantum doloris, o período de doença, situação anterior e posterior do lesado em termos de afirmação social, apresentação e autoestima, alegria de viver, sua idade, esperança de vida e perspetivas para o futuro, incluindo o dano biológico (agora, na vertente não patrimonial), entre outras, que o caso concreto revele. Partindo destas matrizes, e aceite que a autora sofreu danos não patrimoniais suscetíveis de indemnização, em face do critério estabelecido no art. 496.º, nº 1 do Código Civil, vejamos se o valor fixado pelo tribunal a quo se mostra equitativamente adequado. Com relevância para a fixação da indemnização por danos não patrimoniais, há que tomar em consideração os seguintes aspetos, invocados pela autora e dados como provados, ou seja, a natureza e a gravidade da ofensa sofrida na sua integridade física, aferida pela gravidade das lesões que sofreu e pelo grau de incapacidade de que ficou afetada em resultado dessas lesões, bem como a intensidade das dores que sofreu em consequência dessas lesões e dos tratamentos clínicos e cirúrgicos a que foi sujeita, isto é, o quantum doloris, bem como o dano estético e a necessidade de tratamento futuro, medicamentoso e de medicina física e de reabilitação. Como se vê dos factos provados, a autora foi ofendida na sua integridade física e na sua saúde, ofensas tuteladas pela Constituição da República Portuguesa (arts. 25.º, 64.º, nº 1 e 66.º, nº 1) e pelo Código Civil (art. 70.º) e, por isso, com relevância jurídica para efeitos de indemnização, nos termos do art. 496.º, nº 1 do Código Civil. Em termos objetivos, as lesões sofridas pela autora revelam um grau de gravidade médio, apesar do período de incapacidade total que sofreu, foi submetida a tratamentos, consultas e exames, bem como a intervenção cirúrgica, e sofreu evidentemente dores, quer em consequência das lesões quer dos tratamentos a que foi submetida, dores que persistirão para o futuro, prevendo-se necessidade de toma de medicamentos e realização de tratamentos, para além de ter ficado com sequelas que lhe provocam défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 8 pontos, e, ainda, um dano estético. Assim, com base nestes pressupostos fácticos e tendo presentes as orientações jurisprudenciais acima referidas, temos de concluir que se mostra parca a indemnização fixada a esse título, considerando-se como mais adequado e proporcional o valor de € 20 000,00 (vinte mil euros), indicado pela recorrente autora, a título de indemnização por danos não patrimoniais. Posto isto, improcede o recurso da recorrente B..., nesta parte, procedendo o recurso da autora. * 3. Interpretação do contrato de seguro quanto à questão da franquia e da solidariedade da responsabilidadeTambém a ré A..., S.A. veio apresentar recurso da decisão do tribunal a quo. Refere que o seu recurso se destina à apreciação das seguintes questões: (i) a errada interpretação que é feita ao contrato de seguro em causa nos autos; (ii) impugnação referente à decisão da matéria de facto, em concreto, o facto n.º 55 dado como provado; (iii) condenação solidária da 1.ª R./Recorrente em diversos montantes além da franquia devida no âmbito do contrato de seguro mantido com a 2.ª R./Recorrente; (iv) condenação da 1.ª R./Recorrente em juros, referentes ao montante da franquia e aos montantes devidos solidariamente. Começando pela pretendida alteração do facto provado 55, e sem necessidade de analisarmos se foi cumprido o que resulta da lei quanto à impugnação da matéria de facto, o certo é que a recorrente se baseia no teor do contrato de seguro de responsabilidade civil extracontratual que celebrou com a ré Seguradora, B..., Companhia de Seguros, S.A., no qual se mostra prevista uma franquia de € 5.000,00, a cargo da segurada, por sinistro. O facto em causa foi alegado pela ré B... no ponto 2., da sua contestação, e foi com essa redação que foi levado aos factos provados, não tendo tal facto sido posto em causa pela recorrente A.... E sendo assim, não se vê motivo para o facto ser alterado, até porque dizer-se “Com uma franquia de €5.000,00, a cargo da segurada, no caso a primeira Ré” ou como o tribunal a quo fez, “Com uma franquia, ou primeira parte de qualquer indemnização, de €5.000,00 sempre a cargo da segurada, no caso a primeira Ré”, em nada altera a decisão, já que a expressão “ou primeira parte de qualquer indemnização” constitui apenas como que uma definição de franquia, que não se afigura necessário constar do facto provado, mas que também em nada o altera, pelo que se entende ser desnecessário alterar a matéria de facto. Improcede, pois, sem necessidade de outras considerações, o recurso, nesta parte. Insurge-se a recorrente A..., ainda, contra o facto de a sentença recorrida ter proferido a condenação solidária da 1.ª Ré/Recorrente e da ré B..., nos diversos montantes da condenação, além da franquia devida no âmbito do contrato de seguro que celebrou com a 2.ª Ré/Recorrente. Vejamos. Estando a responsabilidade civil por danos causados a terceiros, devidamente transferida para a seguradora, através de competente contrato de seguro, e constando, nomeadamente, do artigo 3.º das Condições Gerais da Apólice que “O presente contrato de seguro garante, até ao limite do valor seguro constante das Condições Particulares, o pagamento de indemnizações que sejam legalmente exigíveis ao Segurado por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais, causados a terceiros em consequência de atos ou omissões do Segurado, bem como dos seus empregados (…)”, entende a recorrente A... que não se verifica a solidariedade da obrigação entre segurador e segurado. Importa, sobre esta matéria, levar em consideração o que dispõe o regime jurídico do contrato de seguro, estabelecido pelo Dec. Lei n.º 72/2008, de 16 de abril (doravante LCS). Resulta da LCS, quanto ao seguro de responsabilidade civil, que: “No seguro de responsabilidade civil, o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros.” (art. 137.º) e que “O seguro de responsabilidade civil garante a obrigação de indemnizar, nos termos acordados, até ao montante do capital seguro por sinistro, por período de vigência do contrato ou por lesado. (…)” (art. 138.º, nº 1)). Contudo, a natureza obrigatória ou facultativa do seguro interfere com este regime. No preâmbulo da LCS refere-se expressamente: “No seguro de responsabilidade civil voluntário, em determinadas situações, o lesado pode demandar diretamente o segurador, sendo esse direito reconhecido ao lesado nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil. Por isso, a possibilidade de o lesado demandar diretamente o segurador depende de se tratar de seguro de responsabilidade civil obrigatório ou facultativo. No primeiro caso, a regra é a de se atribuir esse direito ao lesado, pois a obrigatoriedade do seguro é estabelecida nas leis com a finalidade de proteger o lesado. No seguro facultativo, preserva-se o princípio da relatividade dos contratos, dispondo que o terceiro lesado não pode, por via de regra, exigir a indemnização ao segurador”. Em consonância com o que consta do preâmbulo, resulta das disposições relativas ao seguro obrigatório de responsabilidade civil, em concreto, do art. 146.º, que “o lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização diretamente ao segurador”. Já no que diz respeito ao seguro de responsabilidade civil em geral, incluindo, pois, o seguro de responsabilidade civil facultativo, o art. 140.º estabelece, no n.º 2, que “o contrato de seguro pode prever o direito de o lesado demandar diretamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado.” O nº 3 do mesmo preceito, por sua vez, prevê o direito do lesado de demandar diretamente o segurador, ainda na seguinte situação: “O direito de o lesado demandar diretamente o segurador verifica-se ainda quando o segurado o tenha informado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações diretas entre o lesado e o segurador”. Nos termos expostos, pode o lesado ter o direito de demandar diretamente apenas a seguradora, na sequência de um sinistro, e no caso de um seguro facultativo, desde que se verifique alguma das situações previstas no art. 140.º, nºs 2 e 3 da LCS. No caso dos autos, o próprio contrato de seguro reconhece ao terceiro lesado o direito de reclamar da seguradora o cumprimento do contrato de seguro em causa, ao que acresce que a ré A... deu a conhecer à autora a existência do contrato de seguro e que, consequentemente, entre a autora e a ré B... se iniciaram negociações tendo por objeto o sinistro em causa. Apesar disso, a autora demandou, e bem, ambas as rés. Posto isto, quanto à verdadeira questão controvertida colocada pela recorrente A..., ou seja, a solidariedade da condenação, entendemos não lhe assistir razão. Como resulta do que se deixa exposto, o responsável civil é o segurado (neste caso, A...), sendo este quem, em primeira linha, deve ser demandado, ainda que exista um seguro facultativo. Como já se referiu, no seguro de responsabilidade civil facultativo, os nºs 2 e 3 do art. 140.º do Dec. Lei nº 72/2008, de 16/04, concedem ao lesado o direito de demandar diretamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado, mas apenas nas duas situações excecionais aí mencionadas: a) - quando tal se encontre expressamente previsto no contrato de seguro; b) - quando o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações diretas entre o lesado e o segurador. Já o responsável civil pode sempre ser demandado. Segundo o artigo 497.º do Código Civil, se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade, ainda que a solidariedade de devedores ou credores só exista quando resulte da lei ou da vontade das partes (art. 513.º do CC). No contexto do seguro de responsabilidade civil, o segurado e a seguradora são ambos responsáveis pelo dano causado ao terceiro. O segurado é o responsável primário, enquanto responsável civil, ao passo que a seguradora é responsável por força do contrato de seguro. A obrigação do responsável civil não é afastada pela celebração de um contrato de seguro, desde logo, nos seguros facultativos. Mas mesmo nos seguros obrigatórios, nos quais a seguradora responde diretamente perante o lesado, a questão da solidariedade está presente na possibilidade do direito de regresso da seguradora contra o segurado, em determinadas situações. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21-05-2020, Processo 5/14.4TCFUN.L1-2, Relator: PEDRO MARTINS (disponível em dgsi.pt): “(..) A seguradora não é, pois, mais uma responsável pelos danos; os que são responsáveis pelos danos, a título de culpa ou pelo risco, são apenas três e não quatro pessoas, como seriam se se contasse com a seguradora. A condenação da seguradora resulta de ela ser uma obrigada e essa obrigação resulta do contrato de seguro, por força do qual a seguradora fica obrigada a garantir a eventual responsabilidade civil da sua segurada (arts. 137 e 138/1 da Lei do contrato de seguro). Pela verificação do sinistro nascem duas obrigações. A da segurada, responsável civil, pelo facto que deu causa aos danos. A da seguradora, obrigada contratual, pela verificação do sinistro previsto no contrato. (…) O contrato de seguro obrigatório tem regras especiais (arts. 146 a 148) em relação ao regime comum do contrato de seguro voluntário de responsabilidade civil (arts. 137 a 145). Ou seja, e no que importa ao caso, nos casos de seguros obrigatórios, como regra geral, o lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização diretamente ao segurador (art. 146/1 da LCS), o que é diferente do que acontece no caso dos seguros voluntários, em que tal só pode ocorrer em duas situações (art. 140/2-3 da LCS). E como o direito de demandar diretamente o lesante/segurado não desaparece, pois que não há nenhuma norma idêntica ao regime previsto no art. 64/1-a do DL 291/2007, de 21/08, do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (assim, por exemplo, José Vasques, Lei do Contrato de Seguro, anotada, 2011, Almedina, 2.ª edição, pág. 494), o lesado tem o direito de optar por demandar o lesante/segurado e/ou a seguradora. Assim sendo, há um caso nítido de obrigação plural solidária: qualquer dos obrigados pode ser demandado à escolha do credor e o pagamento da indemnização livra da prestação (face ao credor) o outro devedor (art. 512/1 do CC)”. Voltando ao caso em discussão nos autos, a condenação deve, no caso de serem demandados em conjunto o responsável civil e a seguradora, ser solidária, já que o lesado tanto pode demandar ambos, como apenas um deles (embora a seguradora apenas em casos determinados, como referido). Bem andou, assim, o tribunal a quo, ao condenar as rés solidariamente. O recurso da ré A... versa, ainda, sobre a condenação em juros, quer quanto ao valor da franquia, quer quanto às demais quantias em que houve condenação solidária. Ora, como se decidiu no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 04-06-2024, proferido no Processo 9073/21.1T8PRT.P1 (relatora: Anabela Dias da Silva), em que se discute uma situação idêntica à destes autos, “Estamos perante um contrato de seguro de responsabilidade civil facultativo. Decorre do preceituado no n.º 3 do art.º 49.º do D.L. n.º 72/2008, de 16.04 - Regime Jurídico do Contrato de Seguro – que as partes podem fixar franquias, escalões de indemnização e outras previsões contratuais que condicionem o valor da prestação a realizar pelo segurador – o que sucedeu no contrato de seguro em apreço. Ou seja, as partes contratantes do mesmo estabeleceram uma franquia ao capital seguro, e tratando-se de uma parcela da indemnização, em princípio, ficará exclusivamente a cargo do segurado e que será deduzida do valor a pagar pela seguradora ao lesado. No contrato de seguro em apreço nos autos, verificamos que no seu art.º 1.º das Condições Gerais consta: O montante desse franquia foi estipulado em €5.000,00 por sinistro, cfr. Condições Particulares da apólice. Ora, José Vasques, in “Contrato de Seguro”, pág. 309, explica que a franquia é uma dedução ao montante indemnizatório, um desconto que tem de incidir sobre quem o recebe e que normalmente é o segurado. A franquia tem por fundamento o estímulo à prudência do segurado e a eliminação a responsabilidade do segurador em pequenos sinistros, obstando aos custos administrativos inerentes. Segundo Meneses Cordeiro, in “Manual de Direito Comercial”, pág. 819, franquia consiste na “margem não-coberta pela indemnização e que fica a cargo do segurado”. Em suma, a franquia corresponde à quantia a suportar pelo tomador do seguro, em caso de sinistro, quantia essa que pode ser fixa ou variável (percentagem) previamente estabelecida na apólice de seguro. Refere-se no Ac. do STJ, de 20.02.2021, in www.dgsi.pt que “V- No contrato de seguro facultativo, no montante indemnizatório garantido e a pagar não se inclui a franquia; o valor desta é devido pelo segurado ao lesado. VI - A franquia funciona como estímulo à atitude prudente do segurado, é elemento de cálculo do prémio, e diminui a possibilidade de o segurador se ocupar de sinistros de pequeno valor”. No Ac. da Rel. de Évora de 7.01.2016, in www.dgsi.pt, explicita-se, além do mais, a razão de ser da aplicação de uma franquia ao segurado, ou seja, “A franquia tem como escopo (e como seu essencial fundamento) o estímulo à prudência do segurado e a eliminação da responsabilidade do segurador em pequenos sinistros, obstando aos custos administrativos inerentes. No seguro facultativo (…), as partes podem introduzir no contrato as cláusulas que tiverem por convenientes, desde que não ofendam a lei ou interesses de ordem pública. Inclui-se nessas cláusulas admissíveis aquela que, restringindo a garantia do seguro, estabelece uma certa franquia dos prejuízos indemnizáveis”. Em suma, no contrato de seguro de responsabilidade civil facultativo, como é o contrato em apreço nos autos, e nada tendo sido estipulado pelas partes em contrário, o valor da franquia será deduzido do montante indemnizatório apurado e a pagar pela seguradora ao lesado.”. No caso de que nos ocupamos, foi prevista no contrato de seguro uma franquia a cargo do segurado, o que a recorrente nem sequer põe em causa. E ficando essa parte da indemnização devida, apenas a cargo da recorrente, não sendo sequer responsável pelo seu pagamento a seguradora, os juros devidos pelo eventual atraso no pagamento, também apenas pela recorrente serão devidos, não podendo o respetivo valor ser incluído na indemnização devida pela seguradora, como a recorrente A... pretende. O mesmo vale para os juros devidos pelas demais quantias em que houve condenação, já que sendo a condenação solidária, como se decidiu, também os juros devidos o serão. Improcede, pois, o recurso da ré A..., na sua totalidade. * V - DISPOSITIVO* Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em: 1- Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela ré B... - Companhia de Seguros, S.A.; 2- Julgar procedente o recurso interposto pela autora; e 3- Julgar improcedente o recurso interposto pela ré A..., S.A. Consequentemente: a) Reduzem o valor indemnizatório devido a título de dano biológico, para o montante de € 15.000,00 (quinze mil euros); b) Fixam o valor indemnizatório devido a título de dano não patrimonial em € 20.000,00 (vinte mil euros). c) Mantêm a decisão recorrida quanto ao demais aí decidido. Custas na proporção do decaimento (art. 527.º, nºs 1 e 2 do CPC). Porto, 2025-10-09 Manuela Machado Álvaro Monteiro Aristides Rodrigues de Almeida |