Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
309/19.0PAPVZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA NATÉRCIA ROCHA
Descritores: MEDIDA DE COAÇÃO
AGRAVAMENTO
Nº do Documento: RP20210929309/19.0PAPVZ-A.P1
Data do Acordão: 09/29/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As medidas de coação não são imutáveis, devendo ser adequadas, ao longo da tramitação processual, à situação do processo. Efetivamente, tais medidas estão sujeitas ao princípio do caso julgado rebus sic stantibus, devendo ser revistas sempre que se modifiquem as circunstâncias que as justificaram (cf. art.º 212.º do Cód. Proc. Penal).
II - Considerando o estipulado pelo art.º 203.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, exige a lei que da violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coação decorra um agravamento dos perigos que foram o fundamento da aplicação das medidas de coação violadas.
III - A imposição de outra ou de outras medidas de coação não é, pois, uma sanção pela violação do regime coativo, mas uma atualização deste face às novas exigências cautelares que aquela violação traduza.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 309/19.0PAPVZ-A.P1
Tribunal de origem: Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim– Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
Corre termos no Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, o processo comum com intervenção do Tribunal Singular, registado sob o n.º 309/19.0PAPVZ, no qual o arguido B… foi condenado, em 18.01.2021, pela prática de um crime de perseguição, p. e p. pelo art.º 154.º-A, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 15 (quinze) meses de prisão, e pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º n.º 1, na pena de 1 (um) mês e 15 (quinze) dias de prisão, sendo que em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 16 (dezasseis) meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 2 (dois) anos, mediante: a) sujeição do arguido a um regime de prova a delinear e executar pela DGRSP, com vista a promover a consciencialização do mesmo para a problemática do “stalking” e violência conjugal; b) obrigação de não contactar com a ofendida, por qualquer meio, durante o período fixado infra para a pena acessória de proibição de contactos.
Mais foi o arguido condenado na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida C…, por um período de 15 (quinze) meses, mediante fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, com dispensa de consentimento do arguido.
A sentença condenatória está em recurso, tendo sido proferido acórdão neste Tribunal da Relação do Porto a conhecer do recurso, que manteve a decisão de 1.ª Instância, aguardando-se, por isso, o seu trânsito em julgado.

A 28.01.2021, o Ministério Público, entendendo ter havido por parte do arguido uma violação das obrigações coativas impostas pelo Tribunal a 05.11.2020, promoveu fosse estabelecida uma obrigação adicional não privativa da liberdade àquelas que já decorriam do seu estatuto coativo que deveria passar pela obrigação de o arguido se apresentar duas vezes por semana nas instalações do O.P.C. da sua área de residência, nos termos do disposto no art.º 181.º, n.º 1 e 2, do Cód. Proc. Penal.

Pelo Tribunal a quo foi proferido, com datada de 18.03.2021, o seguinte despacho:
“No âmbito dos presentes autos em que é arguido B…, tendo sido proferida sentença final condenatória ainda sem trânsito em julgado, temos que o mesmo, para além das obrigações decorrentes do TIR, está também sujeito às seguintes medidas de coação:
A)Proibição de contactar por qualquer meio (escrito, falado ou tecnológico), direto ou por interposta pessoa, com C… ou dela se aproximar, tendo de manter da mesma e sempre a distância mínima de 300 metros;
B)Proibição de permanecer e de se aproximar da residência de C… e do seu local de trabalho, tendo de manter destes a distância mínima de 300 metros.
Sucede que, a 15 de janeiro de 2021, veio a DGRSP informar os autos das seguintes situações de violação da zona de exclusão correspondente à habitação da ofendida: nos dias 09 de dezembro de 2020 (entre as 13:46h e as 13:58h) e 21 de dezembro de 2020 (entre as 11:39h e as 11:48h).
Ouvido o arguido, quer após contacto com a DGRSP, quer pelo tribunal, temos que o mesmo justificou as duas ocorrências com o facto de ter tido necessidade de se deslocar à agência bancária próxima da habitação da ofendida a fim de aí assinar documentos relativos à hipoteca da habitação e a tratar de assuntos relativos a seguros.
Pedidas as devidas informações, veio a D… confirmar a deslocação do arguido ao balcão de … no dia 9.12.2020, estando a mesma relacionada com um pedido de emissão de distrate de hipoteca.
Já no que se reporta ao dia 21.12.2020, confirmou a DGRSP nos autos que o arguido contactou os serviços dando conta de uma alegada necessidade de se deslocar à agencia bancária em apreço.
Ora, e antes de mais, importa salientar que estamos, efetivamente, perante duas situações de violação por parte do arguido do estatuto coativo que sobre si impende.
Dispõe a propósito o artigo 203º, nº1 do CPP, que “em caso de violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coação, o juiz, tendo em conta a gravidade do crime imputado e os motivos da violação, por impor outra ou outras medidas de coação previstas neste Código e admissíveis no caso”.
Assim, e antes de mais, não podemos deixar de ter em conta que está em causa nos autos a prática pelo arguido, além do mais, de um crime de perseguição, p. e p. pelo artigo 154º-A, nº1, do Código Penal, pelo qual o arguido foi condenado na pena parcelar de 15 meses de prisão (sendo a pena do cúmulo jurídico de 16 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 2 anos, mediante, sujeição do arguido a um regime de prova a delinear e executar pela DGRSP, com vista a promover a consciencialização do mesmo para a problemática do “stalking” e violência conjugal; e obrigação de não contactar com a ofendida, por qualquer meio, durante o período fixado infra para a pena acessória de proibição de contactos).
Por outro lado, pese embora o eventual interesse particular do arguido nas deslocações à dependência bancária acima assinalada, a verdade é que a mesma apenas atesta uma única de tais deslocações e, em qualquer dos casos, impunha-se sempre que o arguido se dirigisse ao tribunal, solicitando as devidas autorizações, e não que decidisse de sua lavra quando violar ou não a zona exclusiva.
Na verdade, não se pode ignorar, no caso, a gravidade dos atos perpetrados e que fundamentaram a condenação do arguido, embora por sentença ainda não transitada em julgado, com o consequente alarme social que os mesmos provocam, com especial e acutilante incidência no que à vítima diz respeito.
Por conseguinte, em ordem a acautelar a segurança da vítima, por um lado, e a fazer sentir ao arguido a necessidade de cumprimento cabal das suas obrigações coativas, e não olvidando que o tribunal deve reservar as medidas privativas da liberdade para situações de ultima ratio, entendemos ser de concordar, em parte, com a douta promoção do Digno Magistrado do Ministério Público e, em conformidade, estabelecer uma obrigação adicional ao estatuto coativo do arguido, qual seja, a obrigação de apresentação semanal (uma vez por semana) nas instalações do OPC da sua área de residência, nos termos do artigo 198º, nºs 1 e 2, do CPP, o que se decide.
Consigna-se que não se estabelece, por ora, a obrigação de apresentações bissemanais conforme propugnado pelo MP, considerando o tempo decorrido desde a última ocorrência (cerca de três meses) sem que haja notícia de novas violações do estatuto coativo do arguido.
Notifique. (…).”

Desta decisão veio o arguido interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
I) O arguido B… não se conforma o despacho, que estabeleceu uma obrigação adicional ao seu estatuto coativo, que consiste na obrigação de apresentação semanal (uma vez por semana) nas instalações do OPC da sua área de residência, nos termos do artigo 198º, nºs 1 e 2, do CPP. porquanto não existem razões circunstanciais que requeiram a aplicação daquela medida de coação.
II) Efetivamente, quer no dia 09/12/2020, quer no dia 21/12/2020 a deslocação do arguido às instalações da D…, Balcão …, sitas na Avenida …, nº …, ….-… … – Póvoa de Varzim, foram feitas, a pedido desta Instituição Bancária, por motivos de natureza urgente, e em virtude de no mesmo Balcão se encontrar domiciliada a sua conta Bancária, bem como o empréstimo de crédito-habitação e seguros correspondentes.
III) No dia 9/12/2020, apercebeu-se efetivamente da citada violação, porquanto da DGRS ligaram-lhe a advertir da violação da zona de exclusão fixa, tendo então justificado o motivo da sua deslocação à aludida dependência bancária.
IV) Por via disso, no dia 21/12/2020, com vista a evitar qualquer violação e depois de ter sido novamente contactado, ligou com a DGRS a informar da necessidade de se deslocar ao referido Balcão para cancelar/anular os seguros.
V) O tempo que o arguido permaneceu na dependência bancária em cada dia foi de cerca de 12 minutos, período de tempo mínimo de espera necessário atendendo às condições pandémicas que se vive, sendo que nas aludidas deslocações não contactou ou sequer visualizou a Assistente, nem esta se encontrava nas imediações, a qual apenas teve conhecimento das citadas deslocações do arguido pelo Tribunal.
VI) As deslocações do arguido à citada dependência bancária não foram arbitrárias, foram corroboradas por escrito pela Entidade Bancária, como resulta dos elementos que foram juntos aos presentes autos, em 25/01/2021, através da refª: 37828546, nomeadamente a declaração emitida pela D… datada de 21/01/2021, o impresso denominado de Anulação de Apólice e ainda o print comprovativo das chamadas feitas pelo arguido para a DGRS.
VII) O douto Tribunal a quo, também solicitou esclarecimentos quer à referida Instituição Bancária quer à DGRS.
VIII) Consta do ofício da DGRSP, junto aos autos que o arguido contactou os serviços dando conta de uma alegada necessidade de se deslocar à agência.
IX) No que respeita ao Pedido de Informação solicitado à D…, através do ofício com a Referência: 421531693, datado de 01-02-2021, apenas foi solicitada a seguinte informação: - “se esse balcão contactou o aqui arguido, abaixo identificado, a fim de ali se apresentar, no dia 9.12.2020, por motivos de natureza urgente e, em caso afirmativo, solicita-se ainda a identificação do(a) funcionário(a) que procedeu a tal contacto”.
X) Não tendo sido solicitada qualquer informação à referida entidade bancária pelo douto Tribunal a quo para o dia 21/12/2020, nem o M.mo Juíz fez constar tal pedido, como lhe competia, com vista à descoberta da verdade, o que se impõe, no douto despacho por si proferido no dia 01/02/2021 (Ref:421435818).
XI) Pelo que, s.m.o., andou mal o douto Tribunal, quando na motivação que esteve na base do agravamento da medida de coação referiu que “Pedidas as devidas informações, veio a D… confirmar a deslocação do arguido ao balcão … no dia 9.12.2020, estando a mesma relacionada com um pedido de emissão de distrate de hipoteca”, quando, na verdade, apenas pediu informação relativamente a esta data à aludida Entidade Bancária e Balcão.
XII) Efetivamente, deveria o Mmo. Juiz do Tribunal a quo ter aprofundado, com maior rigor, o alegado pelo arguido ou ter admitido como válidos os argumentos aduzidos pelo mesmo, uma vez que foram acompanhados de prova cabal e documental da necessidade urgente da sua conduta.
XIII) Estão vertidos no artigo 204º do CPC, os requisitos gerais das condições de aplicação das medidas, que reza que nenhuma medida de coação, à exceção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: a fuga ou perigo de fuga; o Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou o perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.”
XIV) Ora, nenhum dos requisitos do citado normativo existiam à data da aplicação da medida e as deslocações à Instituição Bancária e balcão em questão não foram caprichosas, nem feitas de ânimo leve, antes devidamente motivadas, pois que o balcão da Entidade Bancária onde se deslocou é o mesmo onde tem domiciliada a sua conta bancária e a conta bancária do empréstimo de crédito-habitação e se o douto Tribunal recorrido questionou a Entidade Bancária sobre o nome da(a) funcionária(o) que atendeu/, deveria previamente à tomada de decisão ouvir este(a) em declarações, a fim de averiguar, com melhor exatidão, as circunstâncias que levaram a E. Bancária a convocá-lo e o motivo da convocatória.
XV) No entanto, o douto Tribunal a quo, de cuja decisão ora se recorre, ao invés disso, preferiu tomar uma decisão com base em elementos por si solicitados, de modo incompleto, com o intuito único de prejudicar o arguido.
XVI) O arguido sempre colaborou com a justiça, de modo exemplar, constituindo o agravamento do seu estatuto coativo uma verdadeira penalização, que poderá afetar profundamente a socialização do arguido e as medidas de coação anteriormente impostas de Proibição de contactar por qualquer meio (escrito, falado ou tecnológico), direto ou por interposta pessoa, com C… ou dela se aproximar, tendo de manter da mesma e sempre a distância mínima de 300 metros e de Proibição de permanecer e de se aproximar da residência de C… e do seu local de trabalho, tendo de manter destes a distância mínima de 300 metros”, cujo controlo é feito através meios técnicos de controlo à distância é suficientemente capaz de salvaguardar os direitos da Assistente.
XVII) Entende-se, por isso, s.m.o. que o Douto Despacho recorrido, pelo menos violou o disposto no art.º 193, nº 1, 201.º e 204º do Código de Processo Penal e no art° 27º,n° 1 e 2 da C.R.P.
XVIII) Além do mais, as instalações do OPC da área de residência do arguido, nos termos do artigo 198º, nºs 1 e 2, tendo em conta a sua residência constante os autos, que foi vendida, é a PSP …, que dista do local de trabalho da Assistente – Centro Hospitalar …, sito no … – cerca de 200 metros e sendo a atual morada do arguido a Rua … nº .., ….-… … – Póvoa de Varzim, as instalações do OPC da área de residência do arguido, segundo o mesmo normativo é a GNR que dista cerca de 50 metros do dito trabalho da Assistente.
XIX) E, com esta nova imposição coativa do arguido, a assistente, no seu local de trabalho, semanalmente, irá ser avisada da proximidade daquele (arguido), situação que certamente constrangerá a assistente, que não é, de todo, a pretensão do arguido, nem deverá ser a pretensão do douto Tribunal.
XX) Assim, e tendo em conta os considerandos supra aduzidos, resulta que não existem exigências cautelares que permitissem determinar o agravamento da medida de coação anteriormente imposta, a que se roga seja revogado o agravamento do estatuto coativo do arguido.
Termina pedindo seja concedido provimento ao recurso e, em consequência, seja revogado o despacho recorrido, declarando-se extinto o agravamento do estatuto coativo do arguido.

A este recurso veio o Ministério Público responder, nos termos constantes dos autos, nos seguintes termos:
AA - Do objeto do recurso ao qual respondemos
1. O objeto do recurso ao qual respondemos prende-se com a resolução da seguinte questão: - saber se o despacho de 18 de março de 2021 que agravou o estatuto coativo com base em duas violações da zona de exclusão fixa, pelo mesmo protagonizadas, violou os pressupostos legais definidos para o efeito.
BB.1) - Da solução encontrada
2. Perante tudo o que ficou apurado em sede do presente incidente – ou seja duas deslocações do arguido com vista à resolução de questões importantes a uma agência bancária situada a menos de 150 metros da casa da assistente quando estava proibido de se aproximar da casa da vítima num raio inferior a 300 metros - parece-nos evidente que o arguido violou de forma consciente e injustificada uma das obrigações que sobre ele impendiam decorrentes de uma ordem judicial relacionada com o agravamento do seu estatuto coativo, isto é a zona de exclusão fixa de 300 metros com referência ao domicílio da vítima.
3. Nada ficou demonstrado no sentido de que os assuntos que o arguido foi tratar ao banco não pudessem ser tratados à distância com recurso a telefonemas e envio de documentação digitalizada, assim como não ficou demonstrado que tais assuntos não pudessem ser tratados por um terceiro a quem o arguido outorgaria poderes para o efeito, ou que tais assuntos não pudessem ser tratados noutra agência do banco ou mesmo adiados.
4. Como tal, também não é pelo facto de o arguido ter, na segunda violação, avisado a D.G.R.S. sobre o local onde ia que se justifica a sua conduta.
5. O que aqui está em causa é o facto de o arguido ter deliberadamente desobedecido ao que fora anteriormente determinado pelo Tribunal, o que consubstancia o preenchimento da previsão contida no art. 203º do Código de Processo Penal, que, por seu turno, permite agravar o estatuto coativo anteriormente definido.
6.Assim, apesar da conduta do arguido não preencher agora diretamente nenhum dos perigos a que alude o art. 204º do Código de Processo Penal, o que é certo é que integra a violação manifesta de obrigações judiciais aplicadas como medidas de coação e, por conseguinte, traduz a existência de um perigo acrescido no sentido do estancamento dos perigos do art. 204º, do Código de Processo Penal, poder desmoronar-se por ineficácia e inobservância das medidas proibitivas aplicadas.
Termina pedindo seja o recurso julgado improcedente e, em consequência, seja mantida a decisão recorrida.

Neste Tribunal da Relação do Porto o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer, pugnando pela procedência do recurso.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II- Fundamentação:
Fundamentação de facto:
Factos provados documentalmente com relevância para a decisão da questão suscitada:
1. No âmbito dos autos principais, a 05.11.2020, cerca de duas semanas antes do início do julgamento, o arguido foi ouvido em sede de 1.º interrogatório judicial, tendo sido decidido que o arguido ficava sujeito às seguintes medidas de coação: A) Proibição de contactar por qualquer meio (escrito, falado ou tecnológico), direto ou por interposta pessoa, com C… ou dela se aproximar, tendo de manter da mesma e sempre a distância mínima de 300 metros; B) Proibição de permanecer e de se aproximar da residência de C… e do seu local de trabalho, tendo de manter destes a distância mínima de 300 metros.
2. Em 15.01.2021, a DGRSP juntou aos autos o “Relatório de Incidentes”, cuja certidão consta a fls. 2 dos presentes autos, onde consta, para além do mais, “Nos dias 09Dez2020 (entre as 13.46h e as 13.58h) e 21Dez2021 (entre as 11.39h e as 11.48h) o sistema de vigilância eletrónica reportou a violação da zona de exclusão fixa correspondendo à habitação da ofendida. Após o reporte destas ocorrências, estes serviços de imediato efetuaram tentativa de contacto telefónico com o arguido, que quando confrontado com os incumprimentos, justificou as duas ocorrências com o facto de estar na agência bancária, próxima da habitação da ofendida, a assinar documentos relativos à hipoteca da habitação e a tratar de assuntos relativos a seguros, tendo permanecido nas imediações da habitação da ofendida, a uma distância de 119 metros. (…)”.
3. A assistente não viu ou encontrou o arguido nas duas situações relatadas pela DGRSP, conforme se retira das suas declarações cuja certidão consta a fls. 17 e 18 dos presentes autos.
4. A “D…” subscreveu, com data de 21.01.2021, a “Declaração” cuja certidão consta a fls. 22 dos presentes autos, onde consta, para além do mais, “Declara-se, para os devidos efeitos, que o Exmo Sr. B…, (…), esteve presente na Agência …, sito em Avenida …, …, ….-… Póvoa de Varzim, em 09.12.2020, entre as 13H45 e as 14H00 aproximadamente, e em 21.12.2020 entre as 11H35 e as 11H50 aproximadamente, a pedido da agência, onde a sua conta bancária está domiciliada, para resolução atempada de assuntos do seu interesse. (…)”.
5. A solicitação do Tribunal, a DGRSP enviou a informação, cuja certidão consta a fls. 26 dos presentes autos, onde consta, para além do mais, “Acusada a receção da V/comunicação supra cumpre-nos informar que o arguido contactou, efetivamente, estes serviços, no dia 21Dez2020, dando conta da alegada necessidade de se deslocar à agência bancária em questão e, em consequência, violar a zona de exclusão fixa criada em torno da habitação da ofendida. (…), sendo certo ainda que o técnico com quem contactou o informou que a DGRSP não autoriza a violação das decisões judiciais, que se concretizasse os seus intentos, estaria a incumprir tal decisão e ainda que, em caso de absoluta necessidade, deveria dirigir tal pedido ao tribunal competente. (…)”.
6. A solicitação do Tribunal, “D…” informou, com data de 08.02.2021, que “a funcionária da D…, E… (Balcão …), contactou o Sr. B… a fim deste assinar um documento (pedido de emissão de distrate de hipoteca). O Sr. B… apresentou-se nesse balcão no dia 09.12.2020 para assinar o documento”.
7. O arguido B… foi condenado, em 18.01.2021, pela prática de um crime de perseguição, p. e p. pelo art.º 154.º-A, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 15 (quinze) meses de prisão, e pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º n.º 1, na pena de 1 (um) mês e 15 (quinze) dias de prisão, sendo que em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 16 (dezasseis) meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 2 (dois) anos, mediante: a) sujeição do arguido a um regime de prova a delinear e executar pela DGRSP, com vista a promover a consciencialização do mesmo para a problemática do “stalking” e violência conjugal; b) obrigação de não contactar com a ofendida, por qualquer meio, durante o período fixado infra para a pena acessória de proibição de contactos. Mais foi o arguido condenado na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida C…, por um período de 15 (quinze) meses, mediante fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, com dispensa de consentimento do arguido.
8. A sentença condenatória está em recurso, tendo sido proferido acórdão neste Tribunal da Relação do Porto a conhecer do recurso, que manteve a decisão de 1.ª Instância, aguardando-se, por isso, o seu trânsito em julgado.

Fundamentação de Direito:
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).
A questão que cumpre apreciar:
- se a violação da proibição a que estava coativamente sujeito de permanecer e de se aproximar da residência de C…, tendo de manter a distância mínima de 300 metros, tendo em conta os motivos que à mesma presidiram, o tempo que perdurou e as circunstâncias que a rodearam, justifica o agravamento do estatuto coativo determinado pela decisão recorrida.

Vejamos.
Para fundamentar o seu recurso, o recorrente alega que se deslocou à agência bancária … , sita na Avenida …, …, Póvoa de Varzim, nos dias 09.12.2020 e no dia 21.12.2020, para tratar de assuntos bancários relacionados com o distrate de hipoteca, sendo que na primeira daquelas vezes o fez a pedido da própria agência bancária e na segunda vez avisou antecipadamente os serviços da DGRSP, razão pela qual não existem exigências cautelares que permitissem o agravamento do seu estatuto coativo determinado pelo Tribunal a quo.
As medidas de coação são meios processuais restritivos da liberdade do arguido e que têm natureza meramente cautelar, motivo pelo qual apenas podem ser aplicadas quando, em concreto se verificar, no momento de aplicação da medida de coação, fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou, perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas (art.º 204.º do Cód. Proc. Penal).
Estas medidas contendem, assim, com os direitos, liberdades e garantias fundamentais do arguido. Sendo certo que todo o processo penal se rege pelo princípio constitucional da presunção de inocência (previsto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, bem como no artigo 9.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no artigo 11.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no artigo 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), o qual impõe que qualquer limitação à liberdade do arguido antes do trânsito em julgado da condenação tem uma natureza excecional.
Decorrentes do princípio de presunção da inocência emanam os demais princípios que deverão ser observados na aplicação das medidas de coação, nomeadamente, o princípio da legalidade, o princípio da necessidade, o princípio da adequação, o princípio da proporcionalidade e o princípio da subsidiariedade.
O princípio da legalidade das medidas de coação concretiza o direito constitucional e o direito internacional dos direitos humanos (artigos 27.º, 28.º e 165.º, n.º 1, al. c), da CRP, e artigo 5.º da CEDH). Assim, só se admite a aplicação das medidas de coação catalogadas nos artigos 196.º a 202.º do Cód. Proc. Penal (ou em legislação avulsa). É pois uma enunciação taxativa, admitindo-se apenas as que se encontram previstas na lei.
O princípio da necessidade verifica-se sempre que o fim que se visa atingir com a concreta medida de coação a aplicar não pode ser obtido por qualquer outro meio menos oneroso para os direitos do arguido. A execução da medida deve igualmente (art.º 193.º, n.º 4, Cód. Proc. Penal) “cingir-se ao estritamente necessário para o cumprimento das exigências cautelares, sendo ilegítimas quaisquer outras restrições ao exercício dos direitos fundamentais.” (cf. Maia Costa, Código Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição Revista, Almedina).
Segundo o princípio da adequação, previsto no art.º 193, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, a medida a aplicar deve ser estritamente idónea à satisfação das necessidades cautelares do caso, isto é, deverá ser adequada para alcançar o fim cautelar pretendido no caso concreto.
O princípio da proporcionalidade, previsto no mesmo artigo, impõe que na aplicação de medida de coação, seja ponderada quer a gravidade do crime quer a sanção que previsivelmente venha a ser aplicada ao arguido, de maneira a que a medida de coação seja proporcional à gravidade do crime imputado.
Não deve ser aplicada medida mais grave que aquela que, no caso concreto, for apta a afastar os perigos que se verificarem, devendo ainda ser necessária e adequada às exigências cautelares que o caso requer e proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, é o que determina o princípio da subsidiariedade.
Por todas as razões elencadas as medidas de coação não são imutáveis, devendo ser adequadas, ao longo da tramitação processual, à situação do processo. Efetivamente, tais medidas estão sujeitas ao princípio do caso julgado rebus sic stantibus, devendo ser revistas sempre que se modifiquem as circunstâncias que as justificaram (cf. art.º 212.º do Cód. Proc. Penal).
Estipula o art.º 203.º, do Cód. Proc. Penal, sob a epígrafe «Violação das obrigações impostas», que “1 - Em caso de violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coação, o juiz, tendo em conta a gravidade do crime imputado e os motivos da violação, pode impor outra ou outras medidas de coação previstas neste Código e admissíveis no caso”.
Ora, considerando o estipulado pelo citado preceito legal, exige a lei que da violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coação decorra um agravamento dos perigos que foram o fundamento da aplicação das medidas de coação violadas.
Nos termos acima referidos, não podemos deixar de concordar com o Exmº Senhor Procurador da República quando refere no seu parecer que a imposição de outra ou de outras medidas de coação não é, pois, uma sanção pela violação do regime coativo, mas uma atualização deste face às novas exigências cautelares que aquela violação traduza.
No caso em apreço, como revela a consulta do auto de interrogatório de arguido ocorrido no dia 05.11.2020, a aplicação das medidas de coação de proibição de contactar com a assistente e de se aproximar e de permanecer nas imediações (300 metros) da sua casa de residência teve por base os perigos de
a. continuação da atividade criminosa, porque o arguido vinha adotando comportamentos obsessivos, persecutórios e perturbadores da vida privada da assistente, perigosos para a sua integridade física e vida, o que fazia de forma contínua desde o final da relação de ambos, em dezembro de 2017, até 26.10.2020, sem que nem sequer a existência do processo e a dedução da acusação tivessem a virtualidade de o dissuadir, assim revelando que não conseguira aceitar o final da relação e a necessidade de, voluntariamente, deixar de contactar a assistente e de a procurar;
b. perturbação do decurso da instrução do processo (em concreto, perigo para a conservação e veracidade da prova), uma vez que com tais comportamentos retirava a paz de espírito à assistente, testemunha privilegiada dos factos, e condicionava-a na sua liberdade, devido ao medo que lhe provocava; além de que contactara uma das duas testemunhas arroladas na acusação particular, tentando influenciar o mesmo em relação ao depoimento que fosse prestar;
c. perturbação da ordem e tranquilidade públicas, uma vez que o arguido incorria nos comportamentos em qualquer sítio, quer fosse em cafés, na via pública ou no prédio da assistente, afetando não só a esta como todas as pessoas que nesse momento se encontrassem a frequentar tais espaços, criando medo no seio da comunidade.
Mais uma vez concordamos com o Exmº Senhor Procurador da República, pois o perigo de perturbação da instrução do processo, perigo de conservação e veracidade da prova está manifestamente atenuado, pois a prova mais importante é aquela produzida em julgamento e este já teve lugar com o registo da prova.
Se é certo que a decisão condenatória ainda não transitou em julgado, a verdade é que ocorre uma atenuação das exigências cautelares, pois o arguido já foi julgado, foi condenado em pena suspensa, mediante regime de prova e cumprimento de obrigações, pelo que o receio de que o arguido se furte à execução da pena de prisão não existe.
Dos que fundamentaram a aplicação ao arguido de medidas de coação, os perigos que neste momento ainda subsistem são os relacionados com a perturbação da ordem e tranquilidade públicas e com a continuação da atividade perigosa, contendendo este com a proteção da vitima que, atendendo ao tipo legal de crime a que o arguido foi condenado, se põe com bastante acuidade.
Vejamos, pois, se as condutas do arguido nos dias 09.12.2020 (entre as 13.46h e as 13.58h) e 21.12.2021 (entre as 11.39h e as 11.48h), em que o sistema de vigilância eletrónica reportou a violação da zona de exclusão fixa correspondendo à habitação da ofendida, permitem concluir por um exacerbamento destes perigos que justifique o agravamento do estatuto coativo do arguido determinado pela decisão recorrida.
A este propósito não poderemos deixar de concordar com o parecer emitido pelo Exm.º Sr. Procurador da República que, por ser certeiro na sua análise, passamos a transcrever: “Em primeiro lugar, importa relevar que as deslocações ao banco não traduziram uma continuação da atividade criminosa por parte do arguido, uma vez que, objetivamente encaradas, encerram uma conduta socialmente adequada, absolutamente normal e rotineira, de lida de assuntos burocráticos pessoais em agência bancária. Esta conduta distingue-se, por conseguinte, das condutas anteriores do arguido que levaram ao decretamento das medidas de coação.
Em segundo lugar, não há sequer qualquer indício que tais deslocações tenham sido usadas pelo arguido como cobertura para aproximação à assistente, seja porque esta nem delas se apercebeu – cfr. informações de fls. 17/18, conjugadas com o teor da ata de leitura da sentença de 18.01.2021- seja porque pelo menos a deslocação de 09.12.2020 foi a pedido do banco e não da sua iniciativa.
Daqui se retira ainda, e é a terceira razão, que as concretas deslocações ao banco que agora se analisam, não tendo contendido fosse de que forma fosse com a assistente, não suscitam de per si quaisquer razões acrescidas de proteção desta.
Em quarto lugar, não há quaisquer elementos no processo que permitam deixar de caracterizar estas deslocações como singulares, únicas, o que se retira do motivo que as enformou e do local para onde se deram, bem como de ser o mesmo motivo e o mesmo local para ambas.
Por fim, esta singularidade, aliada ao arremedo de autorização que o recorrente ainda buscou para a segunda ida ao banco – o contacto anterior com a DGRSP- permite concluir com razoável segurança que da violação do regime coativo que as deslocações apesar de tudo constituem, não pode concluir-se por uma indiferença do arguido recorrente às suas obrigações que faça supor novos e graves incumprimentos. Ou seja, os elementos existentes nos autos, se sustentam o incumprimento, não sustentam, a nosso ver, que dele decorra qualquer agravamento das exigências cautelares que levaram à aplicação das medidas de coação e, consequentemente, desse incumprimento não pode retirar-se fundamento para aplicação de qualquer medida de coação adicional”.
Assim, pelas razões expostas, merece provimento o recurso apresentado pelo arguido e, em consequência, é revogada a decisão recorrida que estabeleceu uma obrigação adicional ao estatuto coativo do arguido.

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida que estabeleceu uma obrigação adicional ao estatuto coativo do arguido.
Sem custas.

Porto, 29 de setembro de 2021
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelas suas signatárias)
Paula Natércia Rocha
Pedro Afonso Lucas