Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ANABELA MORAIS | ||
| Descritores: | CONTRATO DE ARRENDAMENTO TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO CADUCIDADE DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO INDEMNIZAÇÃO PELO ATRASO NA RESTITUIÇÃO DO LOCADO | ||
| Nº do Documento: | RP202405206323/19.8T8MTS.P1 | ||
| Data do Acordão: | 05/20/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Por força do disposto no artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, o regime da transmissão do arrendamento para habitação é o vigente à data do falecimento da então arrendatária. II - O NRAU, por força do disposto no seu artigo 59º, nº1, aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nesta data, sem prejuízo nas normas transitórias, que constam dos artigos 26º a 58º do NRAU, solução que se harmoniza com as regras gerais estabelecidas para a aplicação das leis no tempo. III - Sendo o contrato de arrendamento celebrado em Fevereiro de 1971, encontra-se previsto no artigo 27º do NRAU, pelo que lhe é aplicável o regime de transmissão de arrendamento previsto no artigo 57º do mesmo diploma, em detrimento do regime previsto no art.º 1106º do Código Civil. IV - Com a Lei nº 31/2012, ocorreu a supressão da regra do “duplo grau de transmissibilidade do direito ao arrendamento” para os descendentes, anteriormente estabelecido no n.º 4 do artigo 57º do NRAU, na redacção da Lei nº6/2006, de 27 de Fevereiro. Com a redacção do artigo 57º do NRAU, introduzida pela Lei nº 79/2014, de 19/12, vigente à data do falecimento da então arrendatária, foi mantida a supressão da segunda transmissão do arrendamento. V - Não prevendo o artigo 57º do RNAU, na redacção da Lei nº79/2014, uma segunda transmissão do contrato, com o falecimento da então arrendatária, a posição do arrendatário não se transmitiu para o seu descendente porque a falecida já havia sucedido naquela posição ao primitivo arrendatário. VI - O critério indemnizatório fixado no artigo 1045º do Código Civil só tem aplicação quando esteja em causa a falta de restituição da coisa locada, por quem no respectivo contrato, já findo, tinha a posição de locatário, e não quando se tratar de ocupante ilegítimo. VII - Tratando-se de ocupante ilegítimo, em caso de não entrega imediata do locado ao senhorio, aquele incorre em responsabilidade extracontratual, sendo a indemnização a atribuir ao proprietário/senhorio, calculada segundo os princípios gerais da responsabilidade civil consagrados nos artigos 562º e seguintes do Código Civil, pela diferença entre a situação patrimonial actual do senhorio e aquela que teria se tivesse podido celebrar novo arrendamento. VIII - Não é unívoca, nem na doutrina, nem na jurisprudência, a resposta à questão da ressarcibilidade da privação do uso, existindo duas concepções antagónicas. IX - Para a primeira posição, a atribuição de indemnização exige que o lesado prove a concreta existência de prejuízos decorrentes da não fruição do bem. X_Para a segunda posição, a simples privação ilegal do uso já integra um prejuízo de que o proprietário deve ser compensado, em última análise, com recurso às regras da equidade. XI - Existe uma terceira posição, intermédia entre as duas antecedentes, que parte da exclusão da reparação do dano em abstracto mas, num segundo nível, admite como suficiente a prova da ocorrência de danos concretos com base numa presunção. XII - Integra o direito de propriedade, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição que envolve até o direito de não usar o bem. A impossibilidade de fruição de um bem próprio, em consequência de uma actuação ilícita de outrem, determina um corte, temporal definido, no legítimo direito de fruição, justificando-se, assim, o ressarcimento que supra a modificação negativa que a privação do uso determina na relação entre o lesado e o seu património. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo nº 6323/19.8T8MTS.P1
Acordam os Juízes da 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, sendo Relatora: Anabela Morais Primeira Adjunta: Maria Fernanda Fernandes de Almeida Segundo Adjunto: António Mendes Coelho
I. Relatório O Autor AA intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra o Réu BB, pedindo: Alegou, em síntese, que: _ é proprietário do prédio urbano, sito na Rua ..., ... R/C, no ..., em Matosinhos, e em 1 de Fevereiro de 1971, deu de arrendamento, por contrato verbal, a BB, o rés-do-chão e parte de garagem do prédio sito na Rua ..., Lugar ..., em ..., hoje denominada Rua ...; _ o direito ao arrendamento deste imóvel foi, posteriormente, transmitido à sua mulher CC, ficando esta com todos os direitos e deveres do seu cônjuge e titular do contrato; _ esta arrendatária veio a falecer no mês de Outubro de 2019, sendo a renda mensal a esta data de €63,20 (sessenta e três euros e vinte cêntimos); _ à data, encontrava-se a residir no locado, o ora réu, tendo o autor lhe enviado, a 03/12/2018, carta que este recebeu, a comunicar a caducidade do contrato de arrendamento primitivamente celebrado; _ o réu respondeu não aceitar, por vigorar um contrato verbal celebrado com o senhorio nos mesmos termos e condições do primitivo, o que não corresponde à verdade, tendo lhe sido comunicado que dispunha do prazo de seis meses legalmente fixado, para a restituição do locado; _ o NRAU aplica-se aos contratos celebrados no âmbito da lei antiga, que subsistam à data da sua entrada em vigor, abrangendo os factos ocorridos na vigência da lei nova e não já da lei velha, sem prejuízo das normas transitórias; _ à transmissão por morte, aplica-se o disposto nos arts. 57 e 58 da NRAU, ainda que o contrato de arrendamento tenha sido celebrado antes da entrada em vigor do RAU, ex vi arts. 26, 27 e 28 do mesmo diploma, e não já o art. 1106º CC (redacção da Lei 6/2006 de 27/2 –NRAU); _ tendo falecido a arrendatária em Outubro de 2018, não há lugar à transmissão do arrendamento para o seu filho, em consonância com o preceituado no art. 57º, nº1, alínea e), do NRAU, em vigor à data do óbito da arrendatária, operando-se a caducidade do contrato de arrendamento; _ caducado o contrato de arrendamento para habitação em Outubro de 2018, data do falecimento da arrendatária, por a caducidade constituir causa legal de extinção imediata do contrato de arrendamento e operar ipso jure ou ope legis, por força do disposto no art.º 1053.º, na redacção da Lei n.º 6/2006 de 27/02, a restituição do prédio, tratando-se de arrendamento, só pode ser exigida passados seis meses sobre a verificação do facto que determina a caducidade; _ o local arrendado devia ter sido restituído ao autor/proprietário/senhorio, livre de pessoas e bens no mês de Abril de 2019, o que não sucedeu, continuando o réu a ocupá-lo, causando grave prejuízo económico ao Autor; _ o móvel, no mercado de arrendamento actual, tem um valor de renda de €500,00 (quinhentos euros mensais); _ invoca, ainda, o instituto do enriquecimento sem causa. * Citado o réu contestou, defendendo-se por excepção e por impugnação. Aceitou o arrendamento, a 1 de Fevereiro de 1971, por contrato verbal, entre autor e BB, do rés-do-chão e parte de garagem do prédio sito na Rua ..., Lugar ..., em ..., e a sua transmissão ao cônjuge do arrendatário, CC, falecida no mês de Outubro de 2019, bem como a renda mensal, a essa data, de €63,20 (sessenta e três euros e vinte cêntimos). Aceitou, ainda, que se encontrava a residir no locado, à data da morte de CC, bem como a resposta por si enviada, invocando a existência de um contrato de arrendamento verbal celebrado com o senhorio. Alegou, em síntese, que: _ antes do seu falecimento, a arrendatária CC cedeu a sua posição no contrato ao seu filho, ora réu, que foi aceite pelo autor; _ o autor reconheceu o réu como arrendatário, tendo para o efeito, assinado os recibos das rendas referentes ao mês de Dezembro de 2018 e Janeiro de 2019, e a filha do autor reconheceu o réu na posição de arrendatário, assinando os recibos de Fevereiro e de Março, invocando, para o efeito, os artigos 424.º e 425º do Código Civil e 59.º, n.º 3, do NRAU; _ o autor recebeu a renda ao longo de 19 meses, em 9/4/2018 e desde Setembro de 2018 a Fevereiro de 2020, reconhecendo expressamente a posição de arrendatário ao réu; _ o réu padecia, já em 1996, de uma incapacidade física pois tem dificuldades de movimentos um quadro álgico associado a fratura da bacia e rotura da uretra, assim como tem um quadro ansioso e depressivo e viu agravado o seu estado de saúde; _ com toda a probabilidade e grau de certeza é possível alegar que o réu teria à morte da arrendatária elevada incapacidade uma deficiência com incapacidade superior a 60% _ habitou com a sua mãe, desde 2014 até à presente data, na Rua ..., Rés do Chão, ... – ..., Matosinhos, vivendo em economia comum com esta, partilhando a mesa e os espaços da habitação assim como as áreas comuns; _ o art. 57.º do NRAU é uma norma supletiva, estabelecendo, no presente, um sentido oposto ao art. 1111.º do Código Civil, vigente à data da celebração do contrato de arrendamento ( DL n.º 47344/66, de 25/11 ), pois esta permitia a transmissão por morte ao filho e agora o art. 57.º do NRAU não permite, pelo que, face ao art. 59.º n.º 3, do NRAU, quando tal suceda deve aplicar-se a norma vigente aquando da celebração; _ a norma vigente à data da celebração do contrato de arrendamento era o art 1111.º do DL n.º 47344/66 de 25/11, pelo que o réu, filho do primitivo arrendatário e do cônjuge deste, a quem o arrendamento foi transmitido durante o ano de 2003, viveu com a sua mãe desde 2006 em economia comum partilhando a mesa e a habitação, transmitindo-se, para si, o arrendamento, nos termos do art.85.º n.º 1 al. b) 2,ªparte, e 3, do RAU ( Decreto -lei 321-B/90); _ Invoca o abuso do direito, na vertente de “venire contra factum proprium” por ter sido reconhecido, pelo autor a transmissão da posição do arrendatário, e “o princípio da proteção dos mais fracos, que inspira todo o monumento jurídico civilístico” [que] deve acautelar os interesses do arrendatário, tão fragilizado face à legislação vigente”. Concluiu, pedindo, a absolvição do pedido.
I.1_ Em 1/7/2020, foi proferido o seguinte despacho: “Na contestação apresentada, e apesar de não estar devidamente individualizada, o réu apresenta defesa por excepção. Concretamente, o réu invoca: (i) A existência de uma cessão da posição contratual entre a arrendatária primitiva, sua mãe, e o réu (artigos 6º a 18º); (ii) Que convivia com a primitiva arrendatária, sua mãe, desde 2014, e que tem uma deficiência com grau de incapacidade superior a 60% (artigos 19º a 30º); (iii) Que o arrendamento se transmitiu para o réu por morte do originário arrendatário (artigos 31.º a 40.º); (iv) O abuso do direito do autor (artigos 41.º a 44.º). Não obstante a forma de processo comum declarativo prever, em regra, a existência de apenas dois articulados, o artigo 547.º do Código de Processo Civil permite ao Tribunal adoptar a tramitação processual tendo em vista alcançar um processo equitativo. Assim, ao abrigo do artigo 3.º, n.º 3 e 547.º do Código de Processo Civil, determina-se a notificação do autor para, querendo, no prazo de 10 (dez) dias responder (apenas) à matéria das aludidas excepções. Desde já fica a parte advertida que, caso opte por não o fazer, pode ficar precludida a possibilidade de o fazer em momento posterior.”. * I.2_ O autor apresentou resposta à matéria de excepção deduzida pelo réu, alegando, em síntese, que: _ No que concerne à cessão da posição contratual por morte da arrendatária primitiva (mãe), para o réu, aplica-se o disposto nos artigos 57° e 58° do NRAU, ainda que o contrato de arrendamento tenha sido celebrado antes da entrada em vigor do RAU, ex vi arts.26°,27° e 28° do mesmo diploma, e não o art.1106°CC (redacção da Lei 6/2006 de 27/2-NRAU-). Tendo falecido a arrendatária, em Outubro de 2018, não há lugar à transmissão do arrendamento para o seu filho, em consonância com o preceituado no art.57°/1/ e) NRAU, operando-se, deste modo, a caducidade do contrato de arrendamento. _ Desconhece que o Réu residia com a primitiva arrendatária, sua mãe, desde 2014, e que é portador de deficiência com grau de incapacidade superior a 60%. _ Rejeita a transmissão do direito ao arrendamento, para o Réu por morte do originário arrendatário. _ Sobre o instituto do Abuso de Direito, argumenta que demonstrou “ab inicio” a sua vontade de fazer caducar o contrato de arrendamento celebrado com o réu, daí a interpelação extrajudicial no sentido de evitar a presente contenda, pelo que nunca criou àquele qualquer expectativa e confiança que tenha sido frustrada com a presente acção, invocando o abuso do direito, por parte do réu, com a conduta por este assumida. Pronunciou-se no sentido da inadmissibilidade da prova pericial que considerou impertinente e dilatória por não resultar dos elementos probatórios do réu qualquer “princípio de prova” que, na data de Outubro de 2018, o Réu era portador de deficiência com grau de incapacidade superior a 60%. * I.4_ Por despacho de 13/10/2020, foi “convid[ado] o autor a indicar o valor da causa, nele incluindo o valor do imóvel, nomeadamente juntando também a caderneta predial do mesmo”. I.5_ Por requerimento de 16/10/2020, o autor requereu “que, em cumprimento do disposto no artigo 302.°, n.º 1, do CPC, [fosse], corrigindo o valor da causa para o que desde já indica de €92.537,55 (Noventa e Dois Mil Quinhentos e Trinta e Sete Euros e Cinquenta e Cinco Cêntimos).“. I.6_ Proferido despacho, em 5/11/2020, foram ambas as partes convidadas a pronunciarem-se sobre o valor a atribuir à acção. Por despacho de 27/11/2020, foi fixado o valor da acção em €92.537,55 e decidido que “competente para tramitar a presente causa é a 2ª Instância Central Cível sediada na Comarca do Porto, Póvoa do Varzim, conforme mapa anexo ao Decreto-Lei nº 49/2014 de 27/03”, tendo sido declarada a Instância Local Cível de Matosinhos incompetente, em razão do valor, para tramitar os presentes autos e determinada a remessa dos mesmos para a referida Instância Central. I.7_ Por requerimento de 3/12/2020, o réu veio indicar a existência de “lapso de escrita”, no artigo 28º da contestação e requereu a correcção do mesmo, por forma a constar desse artigo “Viveu com a sua mãe desde 2006 em economia comum partilhando a mesa e a habitação”. Requereu, ainda, a correcção do art. 39.º, mediante a eliminação do mesmo, do segmento “declaravam I.R.S. conjuntamente”. Por despacho de 12/9/2021, foi deferida a correcção do articulado.
I.8_ Por requerimento de 3/12/2020, o réu veio invocar a ilegitimidade processual do autor, alegando que este não era o proprietário exclusivo do prédio, sendo a herança por óbito do cônjuge do autor titular de metade desse prédio. Invocou, ainda, a impossibilidade de ser sanada a ilegitimidade activa por ter ocorrido o falecimento do autor. Conclui que a ilegitimidade tem por consequência a absolvição do réu da instância (artigo 577.º alínea e) do CPC).
I.9_ Transferido o processo para o Juízo Central Cível e deduzido o incidente de habilitação de herdeiros de AA, falecido a 18 de Outubro de 2020, foi proferida sentença, em 7/5/2021, constando do dispositivo: “Assim, nos termos do disposto nos arts. 351, n.º 1 e 353, n.ºs 1 e 3 do CPC, julgo habilitadas para com elas prosseguir a ação principal as requerentes DD e EE”.
I.20_ Em cumprimento do despacho proferido, em 12/9/2021, foram notificadas as herdeiras habilitadas na posição do autor para, querendo, se pronunciarem sobre a excepção invocada pelo Réu, no requerimento com a referência 37353226, o que fizeram, pugnando pela improcedência da excepção, alegando, em síntese que o falecido autor era usufrutuário do imóvel arrendado, pelo que dispunha de legitimidade activa. I.21_ Proferido despacho saneador, em 4/11/2021, foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade activa. Fixados o objecto do litígio e os temas da prova, foi determinada a realização de prova pericial. I.22_ Por requerimento de 24/1/2022, FF e mulher, GG, vieram deduzir o incidente de intervenção espontânea, invocando a aquisição, a 03 de Janeiro de 2022, do imóvel sito na Rua ..., Lugar ..., em ..., objecto da presente acção. I.23_ Por despacho de 14/2/2022, foi decido “Em conformidade com o disposto no art.º 311 do CPC, admito a intervir nos autos, pelo lado ativo, FF e mulher, GG, na medida em que, encontrando-se demonstrada nos autos a aquisição pelos mesmos do imóvel em causa nos autos, estamos perante uma situação de litisconsórcio voluntário.* I.24_ Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, constando do dispositivo: “Atento o exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente por provada e, em consequência: a) declaro a caducidade do contrato de arrendamento por morte da arrendatária; b) condeno o réu a restituir de imediato aos intervenientes FF e GG o imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, no estado de conservação em que se encontrava à data do óbito da arrendatária; c) condeno o réu no pagamento ao autor, a título de indemnização pela ocupação do imóvel, por cada mês decorrido desde maio de 2019 a fevereiro de 2020, a quantia mensal de 386,80 € e, a partir de março de 2019 até dezembro de 2021, a quantia mensal de 450,00€, sendo que sobre os valores em dívida acrescem juros de mora contabilizados à taxa legal de juro civil desde a presente data até efetivo e integral pagamento; e, d) condeno o réu no pagamento aos intervenientes FF e GG, a título de indemnização pela ocupação do imóvel, a quantia mensal de 450,00 € por cada mês decorrido desde janeiro de 2022 até efetiva restituição do mesmo livre e devoluto de pessoas e bens, sendo que sobre os valores em dívida acrescem juros de mora contabilizados à taxa legal de juro civil desde a presente data até efetivo e integral pagamento. Custas por autor, intervenientes e réu na proporção dos respetivos decaimentos, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficia o réu. Registe. Notifique”. * Inconformado, o réu interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões: (…) * * * Os intervenientes apresentaram resposta, sendo suas as seguintes conclusões: (…) * Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. * II_ Questões a decidir: Nos termos dos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos. Assim, perante as conclusões da alegação do Recorrente há que apreciar as seguintes questões: 1_ Impugnação da decisão da matéria de facto com referência aos seguintes factos: 2_ Da cessão da posição contratual pela arrendatária, ao Réu. 3_ Determinação das normas que regulam a transmissão por morte, aplicáveis ao contrato de arrendamento em causa nos autos: aplicação do disposto no artigo 1111º do DL n.º47344/66, de 25/11, ou no artigo 57º do NRAU. 4_ Valor da indemnização a atribuir pela ocupação do imóvel desde a data da caducidade do contrato de arrendamento: o critério deve ser a renda mensal fixada no contrato de arrendamento, actualizada com observância dos coeficientes fixados em Portaria, ou com base no valor do mercado de arrendamento.
III_ Fundamentação de facto Consta da decisão recorrida: “1. Factos Provados: 1.1. O autor figura na respetiva caderneta predial urbana como usufrutuário, desde 2013, de 1/2 do prédio urbano sito na Rua ..., no ..., em Matosinhos. 1.2. Na qualidade de proprietário, a 01 de fevereiro de 1971, o autor deu de arrendamento, por acordo verbal, a BB, o rés-do-chão e parte de garagem do prédio sito na Rua ..., Lugar ..., em ..., hoje denominada Rua .... 1.3. O direito de arrendamento desse imóvel foi posteriormente transmitido à mulher de BB, CC. 1.4. CC veio a falecer no mês de outubro de 2018, sendo a renda mensal a essa data de 63,20 €. 1.5. Encontrava-se a residir no imóvel, à data do seu óbito, o réu. 1.6. O autor enviou ao réu carta datada de 03.12.2018, que este recebeu, junta com a petição, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo como “Assunto: Caducidade do Contrato e Não Transmissão do Direito ao Arrendamento por Morte do Arrendatário”. 1.7. Nessa carta foi comunicado ao réu que tinha o prazo de seis meses, contado do decesso de CC, para a restituição do imóvel. 1.8. O réu respondeu não aceitar, por vigorar um acordo verbal celebrado com o senhorio nos mesmos termos e condições do primitivo. 1.9. O réu continua a ocupar com os seus bens o imóvel e a residir no mesmo. 1.10. O imóvel, no mercado de arrendamento atual, tem um valor de cerca de 450,00 € mensais. 1.11. O autor assinou os recibos relativos às rendas referentes aos meses de dezembro de 2018 e janeiro de 2019, emitidos em nome do réu. 1.12. A filha do autor, DD, assinou os recibos de fevereiro e março de 2019, emitidos em nome do réu. 1.13. O réu transferiu para a conta do autor o valor de 63,20 €, correspondente ao valor da renda mensal, nas seguintes datas: 09-04-2018, 11-09-2018, 11-10-2018, 30-10-2018, 13-12-2018, 08-01-2019, 07-02-2019, 09-03-2019, 09-04-2019, 08-05-2019, 08-06-2019, 14-07-2019, 05-08-2019, 07-09-2019, 02-10-2019, 05-11-2019, 05-12-2019, 06-01-2020 e 13-02-2020. 1.14. O réu sofre de reação depressiva prolongada desde 2003. 1.15. Desde 2004 e até à data atual o réu sofre de patologia ortopédica – bacia e coluna lombar. 1.16. No final do mês de setembro de 2018 e na data em que foi submetido à perícia médico-legal realizada no âmbito dos presentes autos, o réu, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, apresentava uma incapacidade de 42,55%. 1.17. O réu habitou com CC desde, pelo menos, 2012 até à data do óbito desta última, na Rua ..., Rés-do-Chão, ... ..., Matosinhos, onde continuou a habitar depois do referido óbito até hoje. 1.18. Partilhando com a sua mãe mesa e habitação. 1.19. O réu é filho de BB e de CC. 1.20. O autor faleceu no dia 18.10.2020, deixando a suceder-lhe, como suas únicas herdeiras, as suas duas filhas, EE e DD. 1.21. O prédio identificado em 1.1. encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º .... 1.22. Pela Ap. ... de 03.01.2022, foi inscrita a favor dos intervenientes FF e GG a “Aquisição” por “Compra” desse prédio a DD e EE. * 2. Factos Não Provados: Não resultaram provados quaisquer outros factos de entre os alegados com interesse para a decisão da causa, designadamente, não se provou que: 2.1. O autor disse ao réu: “O contrato é o mesmo e ficas no lugar da tua mãe, fica tudo na mesma”. 2.2. O autor afirmou que reconhecia como arrendatário o réu. 2.3. A filha do autor, DD, reconheceu o réu na posição de arrendatário. 2.4. O autor aceitou a transmissão da posição de arrendatário ao réu. 2.5. O réu padecia, já em 1996, de uma incapacidade física. 2.6. O réu, à data da morte de CC, padecia de deficiência com incapacidade superior a 60%.”
IV_ Fundamentação de direito 1ª Questão Dissente o Recorrente da decisão da matéria de facto por referência aos seguintes factos:
Vejamos, então, se assiste razão ao Recorrente. I.1. Facto ínsito no ponto 1.10 dos factos provados Insurge-se o recorrente com a decisão da matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo quanto ao facto ínsito no ponto 1.10 dos factos provados, sustentando que “não foi apresentada qualquer prova que documentasse ou suportasse este valor”. Ainda em sede de impugnação da matéria de facto, advoga que o valor de referência pela ocupação do imóvel devia ser o valor da renda (€.63,20/ sessenta e três euros e vinte cêntimos) até ser decidida, no Tribunal, a situação jurídica controvertida, solução que, no seu entender, decorre do princípio da boa fé e da equidade. Em caso de actualização da renda, devia ser com observância dos coeficientes aprovados por Portaria, o que certamente não alcançaria o valor de €450,00, tendo em conta a vetustez do imóvel e os demais índices que se tem em consideração na determinação de uma renda actualizada. Conclui, pugnando que no ponto 1.10 fique a constar “Tendo em conta o valor da renda €. 63,20 (Sessenta e três euros e vinte cêntimos) convencionado pelas partes deve esse ser o valor a cobrar ao Réu pela ocupação do imóvel durante a pendência da ação”. Da leitura articulada das alegações e conclusões apresentadas pelo Recorrente poder-se-á dividir a impugnação da decisão da matéria de facto quanto ao ponto 1.10 dos factos provados em duas questões distintas: A segunda questão não se insere na impugnação da decisão da matéria de facto, pelo que apreciar-se-á em sede de erro na aplicação do direito. A redacção proposta pelo Recorrente para o ponto 1.10 dos factos provados é, precisamente, a solução jurídica que o mesmo pretende ver dada à questão da indemnização a atribuir ao Recorrido, verificado o seu pressuposto. Assim, neste momento, importa reapreciar a prova produzida para aferir se se encontra demonstrado o facto que o Tribunal a quo considerou provado, no ponto 1.10. A testemunha HH, neto de AA [autor] e filho de DD [filho do autor e habilitada para prosseguir, nestes autos, na sua posição], declarou que em 2018/2019, o seu avô, em conversas que foi tendo consigo, mencionou o propósito de arrendar o locado e o desejo de que o Réu saísse do locado, sendo o motivo o valor “muito baixo” da renda que estava a ser cobrada. Referiu a testemunha que, à data, um casal, seu amigo, pretendia ir residir para o Porto e o seu avô mencionou como hipótese o locado e a sua intenção de arrendamento do mesmo pelo valor de €500,00. A testemunha II, cônjuge de EE, filha de AA, questionado sobre o valor da renda, respondeu que na zona onde se encontra localizado o prédio, os valores rondavam entre €450, €550, €600, no ano de 2018. No presente, não sabe por não ter acompanhado a evolução do mercado. O depoimento das testemunhas arroladas pelo Autor e seus familiares, mostra-se corroborado pelo depoimento prestado por JJ, amiga do Réu/Recorrente. No final do seu depoimento, referiu a testemunha que foi pedido ao Réu, a renda no valor de €500. Considerou, ainda, o Tribunal a quo, a localização do imóvel e a composição, extraída da caderneta junta em 16/10/2020. Sendo esta a prova, concorda-se com a decisão do Tribunal a quo. Improcede, assim, a impugnação da decisão da matéria de facto, nesta parte.
I.2. Factos ínsitos nos pontos 1.11 e 1.112 dos factos provados Insurge-se o recorrente com a decisão da matéria de acto proferida pelo Tribunal a quo quanto aos factos ínsitos nos pontos 1.11 e 1.12 dos factos provados. Sustenta a sua posição nos seguintes elementos de prova: _ os recibos relativos às rendas referentes aos meses de Dezembro de 2018, Janeiro de 2019, Fevereiro de 2019 e Março de 2019, dos quais consta, além da assinatura dos autores, “Recibo de renda” e os seguintes dizeres “Recebi de BB, n.º ... a quantia de sessenta e três euros e vinte cêntimos pelo arrendamento do prédio sito na Rua ..., Rés do Chão”. _ o recibo n.º... – Doc. n.º 17 junto com a contestação - referente à renda do mês de Dezembro de 2018, emitido em nome do réu, assinado a 19 de Novembro 2018, tendo a renda do mês de Novembro de 2018 sido paga pela sua mãe; _ o recibo n.º... – Doc. n.º 18 junto com a contestação - referente à renda do mês de Janeiro de 2019, assinado a 1 de Dezembro de 2018. Este recibo foi assinado pelo autor em data posterior ao falecimento da mãe do réu (dia 18 de Outubro de 2018); _ os documentos 19 a 23, juntos com a contestação encontram-se assinados pela filha do Autor, DD; _ o Tribunal ignorou os recibos referentes aos meses de Março, Abril, Maio e Junho de 2019, assinados pela filha do senhorio, DD; _ o depoimento da testemunha JJ: por esta testemunha foi transmitido ao tribunal ter escutado AA ter dito ao Réu, “não quero que vás embora; tu ficas; vais pagando o aluguerzinho tu ficas”. O Tribunal a quo considerou provada a assinatura dos recibos pelos Senhorio e herdeiros e, sem se perceber o motivo, não considerou provado que o réu foi reconhecido como arrendatário, devendo ter considerado provado que: “1.11. O autor assinou os recibos, onde consta o nome do Réu, a sua morada e identificação, a quantia de 63,20, recebida a título de renda, relativos às rendas referentes aos meses de dezembro de 2018 e janeiro de 2019, reconhecendo a posição de arrendatário do Réu”. “1.12. A filha do autor, DD, assinou os recibos de fevereiro e março de 2019, emitidos em nome do réu, onde consta o nome do Réu, a sua morada e identificação, a quantia de 63,20, recebida a título de renda, reconhecendo a posição de arrendatário do Réu (…)”. Da enunciação da questão que o Recorrente pretende ver apreciada em sede de recurso parece resultar que o dissentimento não incide nos factos considerados provados pelo Tribunal a quo, nos pontos 1.11 e 1.12, factos que mereceram a sua concordância e que respeitam unicamente à emissão dos recibos aí mencionados e ao respectivo conteúdo. Em rigor, pretende o Recorrente o aditamento do segmento em ambos os pontos, com o seguinte teor “reconhecendo a posição de arrendatário do Réu”. Saber se a emissão dos recibos em nome do Réu tem o significado de reconhecimento deste como arrendatário constitui uma conclusão a extrair da prova e a considerar por referência ao facto vertido no ponto 2.2 dos factos não provados, igualmente objecto de impugnação da decisão da matéria de facto, e ao facto alegado na contestação, em matéria de excepção, “[a]ntes de morrer, a arrendatária Senhora CC cedeu a sua posição no contrato ao seu filho aqui Réu”. Dos pontos 1.11 e 1.12 já consta que os recibos foram emitidos em nome do Réu, pelo que se mostra desnecessário acrescentar que dos mesmos consta a sua morada e elementos de identificação. Assim, alterar-se-á a redacção dos pontos 1.11 e 1.12 por forma a constar dos mesmos o valor da renda recebido. O Recorrente invoca, ainda, que o Tribunal a quo omitiu a emissão de recibos, por parte da filha do Autor, DD. Compulsados os autos, verifica-se que dos mesmos constam os seguintes recibos, emitidos por DD: _ Recibo nº15: “Recebi de BB, a quantia de sessenta e três euros e vinte cêntimos, pelo arrendamento do prédio sito na Rua ..., ..., relativo ao mês de Fevereiro 2019”, datado de 8 de Janeiro de 2019. Este recibo contém a assinatura com os dizeres “DD. Nº contribuinte ...”. _ Recibo nº16: “Recebi de BB, a quantia de sessenta e três euros e vinte cêntimos, pelo arrendamento da casa, prédio sito na Rua ..., ..., relativo ao mês de Março”, datado de 8 de Fevereiro de 2019”. Este recibo contém a assinatura com os dizeres “DD. Nº contribuinte ...”. _ Recibo nº17: “Recebi de BB, a quantia de sessenta e três euros e vinte cêntimos, pelo arrendamento da casa, prédio sito na Rua ..., ..., relativo ao mês de Março”, datado de 8 de Março de 20...”. Este recibo contém a assinatura com os dizeres “DD. Nº contribuinte ...”. _ Recibo nº18: “Recebi de BB, a quantia de sessenta e três euros e vinte cêntimos, pelo arrendamento da casa, prédio sito na Rua ..., ..., relativo ao mês de Maio”, datado de 8 de Abril de 20...”. Este recibo contém a assinatura com os dizeres “DD. Nº contribuinte ... ”. _ Recibo nº19: “Recebi de BB, a quantia de sessenta e três euros e vinte cêntimos, pelo arrendamento da casa, prédio sito na Rua ..., ..., relativo ao mês de Junho”, datado de 8 de Maio de 2019”. Este recibo contém a assinatura com os dizeres “DD. Nº contribuinte ... ”. O autor, na petição inicial, refere, apenas, os recibos considerados pelo Tribunal nos pontos 1.11. e 1.12. Porém, pelo Réu, na sua contestação – artigo 9º-, invocou, em matéria de excepção, a existência dos recibos nº ... a .... Procede, assim, nesta parte, a impugnação da decisão da matéria de facto. No que tange ao segmento final que o Recorrente pretende ver aditado aos pontos 1.11 e 1.112, trata-se de conclusão a extrair do factos, pelo que improcede a impugnação da decisão da matéria de facto, nesta parte. Assim, procede, parcialmente, a impugnação da decisão da matéria de facto e, consequentemente, altera-se a redacção dos pontos 1.11 e 1.12, passando a constar dos mesmos: 1.11. O autor assinou os recibos relativos às rendas, referentes aos meses de Dezembro de 2018 e de Janeiro de 2019, no montante de €63,20 cada, emitidos em nome do réu, datados de 1 de Novembro de 2018 e 1 de Dezembro de 2019, respectivamente. 1.12. A filha do autor, DD, assinou os recibos, respeitantes ao recebimento da renda mensal, no montante de €63,20, por referência aos meses de Fevereiro, Março, Abril, Maio e Junho de 2019, emitidos em nome do réu, datados de 1 de Janeiro de 2019, 8 de Fevereiro de 2019, 8 de Março, 8 de Abril de 2019 e 8 de Maio de 2019, respectivamente.
I.3_ Factos vertidos nos pontos 2.1 [O autor disse ao réu: “o contrato é o mesmo e ficas no lugar da tua mãe, fica tudo na mesma”.], 2.2. [2.2. O autor afirmou que reconhecia como arrendatário o réu.], 2.3. [A filha do autor, DD, Cabeça de casal reconheceu o réu na posição de arrendatário.] 2.4 [2.4. O autor aceitou a transmissão da posição de arrendatário ao réu”] dos factos não provados. Insurge-se o recorrente com a decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto aos factos vertidos nos pontos 2.1 [“O autor disse ao réu: o contrato é o mesmo e ficas no lugar da tua mãe, fica tudo na mesma”.], 2.2. [“O autor afirmou que reconhecia como arrendatário o réu.”], 2.3. [“A filha do autor, DD, Cabeça de casal reconheceu o réu na posição de arrendatário.”] 2.4 [” O autor aceitou a transmissão da posição de arrendatário ao réu”] dos factos não provados. Sustenta que tais factos se encontram provados com base nos documentos 17, 18, 19, 20, 21, 22 e 23 juntos com a contestação, ou seja, os recibos emitidos em nome do réu; e no depoimento da testemunha JJ. Vejamos se assiste razão ao Recorrente, tendo presente que recai sobre si o ónus de prova da matéria de facto na qual sustenta a matéria de excepção por si invocada – cfr. artigo 342º, nº2, do Código Civil. Nos termos do artigo 396.º do Código Civil e do princípio geral enunciado no artigo 607º, nº 5 do CPC, o depoimento da testemunha é um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador. Nas palavras do Professor Alberto dos Reis, que mantêm plena actualidade, “[…] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”.[1] A livre apreciação da prova não se confunde com a apreciação arbitrária da prova pois, apenas a fundamentação racional e lógica que possa fazer compreender a intervenção e o sentido das regras da experiência, permite formar uma convicção motivada e apreensível. Como elucidam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida”.[2] Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado. É da conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante que se confere credibilidade a determinados elementos de prova. Na valorização judiciária dos depoimentos, além da razão de ciência, da espontaneidade dos depoimentos, há que ter atenção ao raciocínio, às lacunas, às hesitações, à linguagem, ao tom de voz, ao comportamento, aos tempos de resposta, às coincidências e às contradições, às circunstâncias, ao tempo decorrido, ao contexto sócio cultural e à interpretação das pausas dos depoentes. Ouvido o depoimento prestado pela testemunha JJ, entende este tribunal que não merece o mesmo credibilidade quanto ao episódio por si descrito. Iniciada a pergunta “presenciou alguma situação …”, a testemunha, de imediato, iniciou a resposta, sem aguardar o termo da pergunta, postura que mereceu da parte da Exma. Senhora Juíza a observação “é melhor esperar que lhe pergunte qual a situação que presenciou …”. Ou seja, a testemunha nem necessitou de saber o que lhe estava a ser perguntado, o que demonstra qual o seu propósito, na prestação de depoimento. Mas, afinal, o que transmitiu a testemunha JJ? Declarou que “num dos dias em que visitava o BB e que o apoiava por a mãe estar no hospital, viu um carro parar. O BB levantou-se; estava à sua beira; e disse assim «Senhor AA, preciso de falar consigo». O Sr. AA entrou. Eu estava na sala e levantei-me e fui cumprimentar o Sr. AA e ouvi o BB a dizer-lhe assim «Sr. AA a minha mãe está no Hospital não sei quanto tempo tem de vida e eu tenho que falar consigo, você quer que eu vá embora da casa?» E o Senhor AA disse «Não rapaz, não quero que vás embora. Tu ficas. Vais pagando o aluguerzinho tu ficas». Nada mais ouviu porque o réu e o Senhor AA ausentaram-se”. Localizou esta alegada conversa no mês de Outubro de 2018, quando a mãe do réu se encontrava hospitalizada. Ainda que a conversa tivesse ocorrido, como refere o Tribunal a quo, a afirmação alegadamente proferida pelo autor teria ocorrido “numa altura em que a mãe do réu ainda era viva, desconhecendo-se o concreto contexto em que foi proferida, ou seja, os concretos pressupostos com base nessa afirmação. Desde logo desconhecemos se a intenção do autor era a de que o réu não tivesse que sair de imediato ou se estaria a equacionar a possibilidade de celebrar com ele um novo contrato de arrendamento mediante o pagamento de uma renda de valor superior”. Concorda-se com o Tribunal a quo, na sua apreciação. Aliás, é a própria testemunha que refere, no final do seu depoimento, que o réu lhe transmitiu que o Autor “queria um aumento de 75 euros para 500 euros, isso é uma injustiça”. Caso fosse intenção do Autor a manutenção do contrato de arrendamento, não faria qualquer sentido a existência de uma proposta para o valor da renda. E da emissão dos dois recibos, nos meses de Novembro de 2018 e Dezembro de 2018, referente ao recebimento da renda respeitantes aos meses de Dezembro de 2018 e Janeiro de 2019, pode extrair-se que KK reconheceu o Réu como arrendatário? Da emissão dos cinco recibos, nos meses de Janeiro a Maio de 2019, referente ao recebimento da renda respeitantes aos meses de Fevereiro a Junho de 2019, pode extrair-se que a filha de KK reconheceu o Réu como arrendatário? Entende este Tribunal que não. Todos os recibos foram emitidos com data posterior ao falecimento da mãe do réu, ocorrido em 18 de Outubro de 2018. Em segundo lugar, das declarações prestadas por EE resulta que tomado conhecimento do falecimento da mãe do Réu, deslocou-se ao escritório da sua Ilustre Mandatária e, nessa sequência, foi expedida a carta datada de 3 de Novembro de 2018. A carta, datada de 3/12/2018, foi recebida em 12/12/2018, ou seja, precede a emissão dos recibos nos meses de Janeiro a Maio de 2019. Nessa carta, é comunicada expressamente a caducidade do contrato de arrendamento e o prazo de seis meses para entrega do locado, o que contraria o alegado reconhecimento da posição do Réu como arrendatário que o mesmo pretende que se extraia da emissão dos recibos. A carta foi recebida pelo Réu e não mereceu da parte deste qualquer pedido de esclarecimento, nem suscitou qualquer dúvida. Caso lhe tivesse sido reconhecida a posição de arrendatário no contrato de arrendamento vigente à data do falecimento da sua mãe, não é plausível, à luz do crivo das regras da experiência, que, recebida a carta, não solicitasse esclarecimentos, nomeadamente através do contacto telefónico indicado na penúltimo parágrafo da carta. O silêncio do Réu, perante o recebimento da carta, indicia, precisamente, o inverso do que o mesmo vem alegar nestes autos. Como refere o Tribunal a quo, “o autor expressou por escrito ao réu, através de carta datada de 03.12.2018, o seu entendimento (…) de que o contrato de arrendamento caducou, não se transmitindo o direito ao arrendamento por morte do arrendatário ao réu”. Acrescenta o Tribunal a quo “É certo que o autor assinou os recibos relativos às rendas referentes aos meses de dezembro de 2018 e janeiro de 2019, emitidos em nome do réu, e que a filha do autor, DD, assinou os recibos de fevereiro e março de 2019, igualmente emitidos em nome do réu. Mas esses recibos foram emitidos com referência a rendas relativas ao período de 6 meses de que o réu dispunha para proceder à restituição do imóvel, o que, a nosso ver, não permite retirar desse facto qualquer reconhecimento da transmissão do arrendamento”. Na carta de 3/12/2018, foi comunicado ao réu que dispunha do prazo de seis meses a contra do falecimento da arrendatária, para entregar o locado, prazo esse que terminou no mês de Abril de 2019. Significa que dois dos recibos emitidos pela filha do senhorio reportam-se ao uso do locado em data posterior (meses de Maio e Junho). Porém, essa circunstância, por si só, não permite extrair a conclusão que havia sido reconhecido ao réu a posição de arrendatário. Tanto mais que a emissão de tais recibos está precedida do envio da carta de 3/12/2018. Por último, todos os familiares de AA que foram inquiridos, em audiência, transmitiram que por este nunca foi manifestada a intenção de o Réu permanecer no locado, com o mesmo contrato de arrendamento, desde logo por considerar a renda de valor “muito baixo”. Sendo esta a prova, não se encontra demonstrado que: _ “O autor disse ao réu «o contrato é o mesmo e ficas no lugar da tua mãe, fica tudo na mesma». _ “O autor afirmou que reconhecia como arrendatário o réu”. _ “A filha do autor, DD, reconheceu o réu na posição de arrendatário.” _ “O autor aceitou a transmissão da posição de arrendatário ao réu.” Improcede, assim, a impugnação da matéria de facto, nesta parte. * De harmonia com o disposto no artigo 662º do Código de Processo Civil, quando a decisão proferida pela primeira instância relativa à matéria de facto apresente patologias, nomeadamente “resultantes da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares” e se revelem impeditivas ao “estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”, tais vícios, “para além de serem sujeitos a apreciação oficiosa da Relação, esta poderá supri-los a partir dos elementos que constem do processo ou da gravação”. [3] Em anotação ao referido artigo, refere António Abrantes Geraldes, “Pode ainda revelar-se uma situação que exija a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegure um enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo. Trata-se de uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objectiva de factos relevantes”. Na contestação, o réu apresentou defesa por excepção, tendo invocado a cessão da posição contratual, pela então arrendatária, tendo, para tanto, alegado que: _ “Antes de morrer a arrendatária Senhora CC cedeu a sua posição no contrato ao seu filho aqui Réu”. _ “[O] autor, senhorio do imóvel, disse ao Réu:” O contrato é o mesmo e ficas no lugar da tua mãe, fica tudo na mesma”, _ O Autor afirmou que reconhecia como arrendatário o Réu, tendo para o efeito, assinado os recibos das rendas referentes ao mês de Dezembro e Janeiro (recibos n.º ... e ... – Doc. 17 e 18 respetivamente). _ Assim como a filha do Autor reconheceu o Réu na posição de arrendatário assinando os recibos de Fevereiro e de Março (recibos n.º ... a ...) correspondentes aos Docs. 19 a 23 respetivamente). Pelo Tribunal a quo não foi proferida decisão por referência à matéria de facto invocada pelo Réu, no artigo 6º do seu articulado contestação e na qual fundamenta a excepção por si invocada, pelo que se mostra indispensável a ampliação da matéria de facto. Constando dos autos todos os elementos necessários, ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil, proceder-se-á, de seguida, à apreciação da matéria de facto referida. Nenhuma das testemunhas inquiridas em audiência referiu ao tribunal que a arrendatária tivesse manifestado vontade de transmitir para o seu filho, ora réu, a posição que possuía no contrato de arrendamento celebrado com AA. Na conversa alegadamente ocorrida, transmitida pela testemunha JJ não resulta, igualmente, que a mãe do réu tenha transmitido àquele a sua posição de arrendatária. Convoca-se o acima exposto a propósito deste depoimento. A testemunha referiu que o Réu disse «Senhor AA, preciso de falar consigo (…). Sr. AA, a minha mãe está no Hospital. Não sei quanto tempo tem de vida e eu tenho que falar consigo, você quer que eu vá embora da casa?». Pela testemunha, nada foi mencionado quanto à vontade manifestada pela mãe do Réu, nomeadamente de ceder a sua posição ao seu filho. Não existe, nos autos, qualquer documento de cujo teor resulte a vontade da arrendatária em ceder ao réu a sua posição no contrato de arrendamento. Pelo exposto, tal facto não se encontra demonstrado. Assim, ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil, procede-se à modificação da decisão sobre a matéria de facto, aditando, aos factos não provados, o seguinte facto: “2.7_Antes de morrer a arrendatária Senhora CC cedeu a sua posição no contrato ao seu filho, ora Réu”.
2ª Questão Dissente o Recorrente da decisão proferida pelo Tribunal a quo, sustentando que por óbito da arrendatária CC, sua mãe, não operou a caducidade do contrato de arrendamento que vigorou entre AA e aquela por ter ocorrido a cessão da posição contratual, reconhecida nos recibos de renda. Cumpre apreciar e decidir. Nos termos do nº1 do artigo 1059º do C. Civil, “A posição contratual do locatário é transmissível por morte dele ou, tratando-se de pessoa colectiva, pela extinção desta, se assim tiver sido convencionado por escrito”, estipulando o nº2 que “A cessão da posição do locatário está sujeita ao regime geral dos artigos 424.º e seguintes, sem prejuízo das disposições especiais deste capítulo”. Remete-se, assim, integralmente para o regime geral da cessão da posição contratual, o que implica que esta só possa normalmente ser realizada com o consentimento do senhorio (artigo 424º do C.Civil). Nos termos do artigo 424.º, n.º 1, CC, no contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão. Na definição de Antunes Varela[4], «A cessão da posição contratual (arts. 424.° e segs) consiste no negócio pelo qual um dos outorgantes em qualquer contrato bilateral ou sinalagmático transmite a terceiro, com consentimento do outro contraente, o complexo dos direitos e obrigações que lhe advieram desse contrato.» Este autor sublinha que na cessão da posição contratual coexistem dois contratos distintos: o contrato básico (no caso, seria, o contrato de arrendamento celebrado em 1 de Fevereiro de 1971) e o contrato instrumento da cessão, através do qual se procede à transmissão de uma das posições derivadas do contrato básico (no caso, seria a posição de arrendatário). A modificação subjectiva operada pela cessão da posição contratual não interfere com a identidade do contrato, pois este se mantém o mesmo, apenas com um novo arrendatário a ocupar a posição do primitivo. A cessão da posição contratual opera uma transmissão global dos direitos e obrigações emergentes do contrato. Como sintetiza Antunes Varela[5], «A cessão da posição contratual opera uma simples modificação subjectiva na relação contratual básica, a qual persiste, embora com novo titular». Analisada a matéria de facto na qual o Réu sustenta a alegada “cessão da posição contratual”, facilmente se constata que não se encontra demonstrado que a arrendatária CC, antes do seu falecimento, tenha manifestado vontade em ceder, ao réu, a sua posição no contrato de arrendamento. Dos recibos emitidos por AA e, posteriormente, por sua filha DD, não se extrai a vontade de CC em ceder a sua posição pois, não interveio na sua emissão e respeitam a momento posterior ao seu falecimento. Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, improcede o recurso nesta parte.
3ª Questão Dissente o Recorrente da aplicação do regime decorrente do artigo 57º do NRAU, invocando o art. 59.º do NRAU que dispõe, no seu nº 3, “As normas supletivas contidas no NRAU só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é essa a norma aplicável”. Sustenta que o art. 57.º, n.º 1, al. e), do NRAU e o art. 1111.º da Lei n.º 46/2023, de 17/08 têm natureza supletiva porque permitem a estipulação em contrário das partes e o art. 1051.º al d) do Código Civil, na sua primitiva versão, do DL n.º 47344/66, de 25/11, permite convenção escrita em contrário, ou seja, deixa à disponibilidade das partes a possibilidade de regular – permitir ou não - a transmissão por morte. Constituindo o artigo 57.º n.º 1 al. e) do NRAU uma norma supletiva de sentido oposto à norma vigente à data da celebração do contrato – o art. 1111.º do DL n.º 47344/66 de 25/11 – deve aplicar-se o artigo 1111.º do DL n.º 47344/66 de 25/11. Advogam os Recorridos que o NRAU aplica-se aos contratos celebrados no âmbito da lei antiga, que subsistam à data da sua entrada em vigor, abrangendo os factos ocorridos na vigência da lei nova e não já da lei velha, sem prejuízo das normas transitórias. No que à transmissão por morte concerne, aplica-se o disposto nos artigos 57º e 58º do NRAU, ainda que o contrato de arrendamento tenha sido celebrado antes da entrada em vigor do RAU, ex vi arts. 26º, 27º e 28º do mesmo diploma, e não já o artigo 1106º do CC (redacção da Lei 6/2006 de 27/2 –NRAU). Tendo falecido a arrendatária em Outubro de 2018, não há lugar à transmissão do arrendamento para o seu filho, em consonância com o preceituado no art. 57º, nº1 e), do NRAU, em vigor à data do óbito da arrendatária, operando-se a caducidade do contrato de arrendamento. Cumpre apreciar e decidir. O contrato de arrendamento em causa nestes autos foi celebrado em 1 de Fevereiro de 1971, entre AA, na qualidade de senhorio, e BB, na qualidade de arrendatário, tendo por objeto o rés-do-chão e parte de garagem do prédio sito na Rua ..., Lugar ..., em ..., hoje denominada Rua .... Ao contrato em causa eram aplicáveis as disposições do Código Civil, relativas ao contrato de locação e arrendamento, na redacção do Decreto-Lei nº 47344/66, de 25 de Novembro, diploma que aprovou o Código Civil na sua redacção originária. A posição do arrendatário foi, posteriormente, transmitida ao seu cônjuge, CC que veio a falecer em 18 de Outubro de 2018. O réu encontrava-se, então, a residir no locado. Nos termos da al. d) do art. 1051º do Código Civil, na redação que se manteve, apesar das sucessivas alterações do regime do arrendamento urbano, o contrato de locação caduca por morte do locatário. O artigo 1111º do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei 47344/66, de 25 de Novembro, dispunha: “1. O arrendamento não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto, ou deixar parentes ou afins na linha recta que com ele vivessem, pelo menos, há um ano; mas os sucessores podem renunciar à transmissão, comunicando a renúncia ao senhorio no prazo de trinta dias. 2. A transmissão da posição do inquilino, estabelecida no número anterior, defere-se pela ordem seguinte: a) Ao cônjuge sobrevivo; b) Aos parentes ou afins da linha recta, preferindo os primeiros aos segundos, os descendentes aos ascendentes e os de grau mais próximo aos de grau ulterior. 3. A transmissão a favor dos parentes ou afins também se verifica por morte do cônjuge sobrevivo quando, nos termos deste artigo, lhe tenha sido transmitido o direito ao arrendamento.” O citado artigo 1111º do Código Civil foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 293/77, de 20/06, tendo sido suprimida a palavra «primitivo», a seguir a arrendatário. Com o Decreto-Lei 328/81, de 4 de Dezembro, o artigo 1111º do Código Civil passou a ter a seguinte redacção: “1 - O arrendamento não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto ou deixar parentes ou afins, na linha recta, com menos de 1 ano ou que com ele vivessem pelo menos há 1 ano, mas os sucessores podem renunciar à transmissão, comunicando a renúncia ao senhorio no prazo de 30 dias. 2 - A transmissão da posição do inquilino, estabelecida no número anterior, defere-se pela ordem seguinte: a) Ao cônjuge sobrevivo; b) Aos parentes ou afins, na linha recta, preferindo os primeiros aos segundos, os descendentes aos ascendentes e os de grau mais próximo aos de grau ulterior. 3 - A transmissão a favor dos parentes ou afins também se verifica por morte do cônjuge sobrevivo quando, nos termos deste artigo, lhe tenha sido transmitido o direito ao arrendamento.” Nova redacção foi conferida ao artigo 1111º do Código Civil, com a Lei nº46/85 de 20 de Setembro: “1 - O arrendamento não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto ou deixar parentes ou afins, na linha recta, com menos de 1 ano ou que com ele vivessem pelo menos há 1 ano, mas os sucessores podem renunciar à transmissão, comunicando a renúncia ao senhorio no prazo de 30 dias. 2 - No caso de o primitivo inquilino ser pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, a sua posição também se transmite, sem prejuízo do disposto no número anterior, àquele que no momento da sua morte vivia com ele há mais de 5 anos em condições análogas às dos cônjuges. 3 - A transmissão da posição de inquilino, estabelecido nos números anteriores, defere-se pela ordem seguinte: a) Ao cônjuge sobrevivo; b) Aos parentes ou afins na linha recta, preferindo os primeiros aos segundos, os descendentes aos ascendentes e os de grau mais próximo aos de grau ulterior; c) À pessoa mencionada no n.º 2. 4 - A transmissão a favor dos parentes ou afins também se verifica por morte do cônjuge sobrevivo quando, nos termos deste artigo, lhe tenha sido transmitido o direito ao arrendamento. 5 -…”. Ao citado art. 1111º do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 328/81, veio corresponder o artigo 85º do Regime de Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15/10, que revogou o direito anterior relativo às matérias reguladas no regime de arrendamento urbano, designadamente os artigos 1083º a 1120º do Código Civil; a Lei n.º 46/85, de 20/09 e o Decreto-Lei n.º 13/86, de 23/01 (cf. art. 3º n.º 1, als. a), g) e h) do citado Decreto-Lei 321-B/90). Dispunha o artigo 51º do RAU que “O disposto neste diploma sobre a resolução, a caducidade e a denúncia do arrendamento têm natureza imperativa”. O RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, com todas as alterações subsequentes, salvo nas matérias a que se referem os artigos 26.º e 28.º da Lei nº 6/2006, de 27/2, foi revogado por esta lei que aprovou o novo regime de Arrendamento Urbano (NRAU) e que passou a regular a transmissão por morte no arrendamento para habitação, no seu artigo 57º, que dispunha [artigo 57º do NRAU, aprovado pela Lei 6/2006]: “1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva: a) Cônjuge com residência no locado; b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto, com residência no locado; c) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano; d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior; e) Filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%. 2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho. 3 - Quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles. 4 - A transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário, nos termos dos números anteriores, verifica-se ainda por morte daquele a quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 1 ou nos termos do número anterior.” Assim, segundo o disposto no artigo 57º, nº 1, al. e), do NRAU, na sua versão original (Lei n.º 6/2006), o filho do arrendatário falecido podia adquirir a qualidade de arrendatário, quer directamente, numa primeira transmissão, caso não existissem nenhuma das pessoas identificadas nas alíneas a) a c) do n.º 1 que sobre ele tinham preferência legal (nº2 do art. 57º do NRAU), quer indiretamente, ou por segunda transmissão, na sequência da morte duma das pessoas previstas nas alíneas a) a c) do n.º 1 e n.º 3 do Art. 57º. A Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, no seu artigo 59.º, regulou a sua aplicação no tempo, dispondo no seu n.º 1: “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.” Estas normas transitórias são as contempladas nos art.º 26.º a 58.º da referida lei. Os artigos 26.º, n.º 1, e 28.º impõem a aplicação do novo regime a todos os contratos celebrados não só na vigência do Decreto Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, como também aos contratos de arrendamento para habitação celebrados em momento anterior ao da sua vigência, com as especificidades previstas no mencionado artigo 26º. Com a Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, foi determinado o aditamento, ao Código Civil, de, entre outros, os seguintes artigos: _ Artigo 1106.º (transmissão por morte) que dispunha: “1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva: a) Cônjuge com residência no locado ou pessoa que com o arrendatário vivesse no locado em união de facto e há mais de um ano; b) Pessoa que com ele residisse em economia comum e há mais de um ano. 2 - No caso referido no número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, em igualdade de circunstâncias, sucessivamente para o cônjuge sobrevivo ou pessoa que, com o falecido, vivesse em união de facto, para o parente ou afim mais próximo ou de entre estes para o mais velho ou para o mais velho de entre as restantes pessoas que com ele residissem em economia comum há mais de um ano. 3 - A morte do arrendatário nos seis meses anteriores à data da cessação do contrato dá ao transmissário o direito de permanecer no local por período não inferior a seis meses a contar do decesso.” _ Artigo 1080º (imperatividade) que dispunha: “As normas sobre a resolução, a caducidade e a denúncia do arrendamento urbano têm natureza imperativa, salvo disposição legal em contrário.” O artigo 1106º do Código Civil veio a ser alterado pela Lei nº31/2012, de 14/8, passando a dispor: “1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva: a) Cônjuge com residência no locado; b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de um ano; c) Pessoa que com ele vivesse em economia comum há mais de um ano. 2 - Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior, a transmissão da posição de arrendatário depende de, à data da morte do arrendatário, o transmissário residir no locado há mais de um ano. 3 - Havendo várias pessoas com direito à transmissão, a posição do arrendatário transmite-se, em igualdade de circunstâncias, sucessivamente para o cônjuge sobrevivo ou pessoa que com o falecido vivesse em união de facto, para o parente ou afim mais próximo ou, de entre estes, para o mais velho ou para a mais velha de entre as restantes pessoas que com ele residissem em economia comum. 4 - O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País. 5 - A morte do arrendatário nos seis meses anteriores à data da cessação do contrato dá ao transmissário o direito de permanecer no local por período não inferior a seis meses a contar do decesso”. O regime decorrente do artigo 1106º do Código Civil não é aplicável aos contratos celebrados antes do NRAU, valendo para estes o regime transitório previsto no artigo 57º da Lei nº6/2006. Com a Lei nº 31/2012, de 14/8, o legislador veio introduzir alterações ao NRAU. Com referência à questão que nos ocupa, dispõe o art.º 26.º n.º 2 que à transmissão por morte se aplica o disposto nos art.º 57.º e 58.º, sendo que o primeiro se refere aos arrendamentos para habitação e o segundo aos arrendamentos para fins não habitacionais. A Lei nº 31/2012 introduziu alterações ao artigo 57º do NRAU que passou a dispor: “1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva: a) Cônjuge com residência no locado; b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano; c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano; d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior; e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct.. f) Filho ou enteado que com ele convivesse há mais de cinco anos, com idade igual ou superior a 65 anos, desde que o RABC do agregado seja inferior a 5 RMNA. 2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respetivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho. 3 - O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País. 4 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles. 5 - Quando a posição do arrendatário se transmita para ascendente com idade inferior a 65 anos à data da morte do arrendatário, o contrato fica submetido ao NRAU, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos. 6 - Salvo no caso previsto na alínea e) do n.º 1, quando a posição do arrendatário se transmita para filho ou enteado nos termos da alínea d) do mesmo número, o contrato fica submetido ao NRAU na data em que aquele adquirir a maioridade ou, caso frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou cursos de ensino pós-secundário não superior ou de ensino superior, na data em que perfizer 26 anos, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.” Com a Lei nº 31/2012, ocorreu a supressão da regra do “duplo grau de transmissibilidade do direito ao arrendamento” para os descendentes que anteriormente era estabelecido no n.º 4 do art. 57º do NRAU. Com a Lei nº 79/2014, ocorreu nova alteração do artigo 57º - “Transmissão por morte no arrendamento para habitação” passando o mesmo a ter a seguinte redacção: “1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva: a) Cônjuge com residência no locado; b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano; c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano; d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior; e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct.. 2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respetivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho. 3 - O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País. 4 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles. 5 - Quando a posição do arrendatário se transmita para ascendente com idade inferior a 65 anos à data da morte do arrendatário, o contrato fica submetido ao NRAU, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos. 6 - Salvo no caso previsto na alínea e) do n.º 1, quando a posição do arrendatário se transmita para filho ou enteado nos termos da alínea d) do mesmo número, o contrato fica submetido ao NRAU na data em que aquele adquirir a maioridade ou, caso frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou cursos de ensino pós-secundário não superior ou de ensino superior, na data em que perfizer 26 anos, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos”. A Lei nº 79/2014 manteve a supressão da segunda transmissão do arrendamento. Com a Lei nº13/2019, de 12/2, o artigo 57º do NRAU passou a dispor: “1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva: a) Cônjuge com residência no locado; b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano; c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano; d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior; e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct.. f) Filho ou enteado que com ele convivesse há mais de cinco anos, com idade igual ou superior a 65 anos, desde que o RABC do agregado seja inferior a 5 RMNA. 2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respetivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho. 3 - O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País. 4 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles. 5 - Quando a posição do arrendatário se transmita para ascendente com idade inferior a 65 anos à data da morte do arrendatário, o contrato fica submetido ao NRAU, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos. 6 - Salvo no caso previsto na alínea e) do n.º 1, quando a posição do arrendatário se transmita para filho ou enteado nos termos da alínea d) do mesmo número, o contrato fica submetido ao NRAU na data em que aquele adquirir a maioridade ou, caso frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou cursos de ensino pós-secundário não superior ou de ensino superior, na data em que perfizer 26 anos, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos”. A aplicação no tempo do NRAU encontra-se prevista no respectivo artigo 59º, nº1, o qual dispõe que se aplica “aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nesta data, sem prejuízo nas normas transitórias”, que constam dos artigos 26º a 58º do NRAU. Nas palavras de Luís Menezes Leitão[6], “Trata-se de solução que se harmoniza com as regras gerais estabelecidas para a aplicação das leis no tempo. Efectivamente, face ao artigo 12º, nº2, do Código Civil, sempre que a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal, de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos. Mas quando dispuser sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor. Ora, a aprovação de um novo regime do arrendamento é manifestamente uma disposição sobre o conteúdo de relações jurídicas, pelo que deverá aplicar-se imediatamente aos arrendamentos já existentes”. E conclui, “A solução agora constante do NRAU é (….) a aplicação integral e imediata do novo regime, o que (…) está de acordo com as regras comuns em sede de aplicação da lei no tempo. Esta solução é, no entanto, objecto de algumas excepções, constantes das disposições transitórias referidas nos artigos 26º e 28º…”, respeitando as últimas disposições transitórias aos contratos habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do D.L. 321-B/90, de 15 de Outubro bem como aos não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do D.L. 257/95, de 30 DE Setembro (artigo 27º NRAU). Nestes casos, mantém-se igualmente em vigor o regime relativo à transmissão por morte, duração, renovação e denúncia, também em termos próximos aos que vigoraram no RAU e a que já nos referimos (art. 28º NRAU), reafirmando-se assim a plenitude do vinculismo arrendatício…”. Ensina o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 4/12/2018[7]: “I - Por força do disposto no art. 12.º, n.º 2, do CC, o regime da transmissão do arrendamento (para habitação), não obstante celebrado em 1951, é o vigente à data do facto potencialmente idóneo a determiná-la – ou seja, na situação em apreço, do falecimento (em 14-08-2014) da então arrendatária, a mãe da ré –, em que já vigorava a Lei que aprovou o NRAU (Lei n.º 6/2006, de 27-02, com as alterações conferidas pela Lei n.º 31/2012, de 14- 08), cujo art. 59.º determina a aplicação deste novo regime do arrendamento urbano às relações contratuais anteriormente constituídas, sem prejuízo do estabelecido nas normas transitórias. II - De entre tais normas transitórias, a do art. 57.º, que para o caso relevaria, não confere à ré o direito à (re)transmissão do arrendamento, uma vez que, em 14-08-2014, a sua mãe não era a primitiva arrendatária nem se verificava em relação a ela própria qualquer das hipóteses subsumíveis à previsão de tal norma. III - Com efeito, apenas a partir da referida Lei n.º 6/2006, ao aditar ao CC o art. 1068.º, se instituiu a regra da comunicabilidade ao cônjuge do arrendatário do direito ao arrendamento de prédios urbanos e daí que a mãe da ré já fosse transmissária do arrendamento, desde 1972, na sequência do divórcio com o primitivo arrendatário e pai da ré. IV - Uma vez aplicado o regime em vigor ao tempo da ocorrência do facto determinante da transmissão ou da caducidade do contrato, não tem cabimento a alusão à violação do princípio da não retroatividade da lei, configurada pela ré como sendo restritiva de direitos, liberdades e garantias (arts. 17.º e 18.º da CRP). V - O regime mais restritivo da transmissibilidade do arrendamento que passou a vigorar com o NRAU para os contratos de arrendamento já anteriormente constituídos também não contende com a norma do art. porque esta não regula, muito menos em termos absolutos, os relacionamentos intersubjetivos privados, antes encerra, uma injunção dirigida ao Estado no sentido de dever programar a sua atividade de modo a assegurar a todos os cidadãos «uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar». VI - À luz do regime pregresso, entre a vigência da versão original do CC de 1966 e a entrada em vigor do citado art. 57.º do NRAU, a invocada expectativa a uma segunda transmissão do arrendamento só teria tido solidez no período em que vigorou o DL n.º 293/77, de 20- 07, durante o qual a morte de qualquer arrendatário, mesmo que não fosse o “primitivo”, facultava a ilimitada transmissão da posição contratual, já que o DL 328/81, de 04-12, veio, de novo, restringir aos casos de morte do “primitivo” arrendatário a ressalva posta à caducidade do arrendamento pela sua transmissão, o que o RAU (DL n.º 321-B/90, de 15- 10) manteve, tal como a lei actualmente vigente. VII - De todo o modo, a alegada expectativa não seria merecedora da tutela equivalente à da confiança na manutenção do direito que na esfera jurídica da ré eventualmente se tivesse desencadeado com o óbito da mãe e no momento deste, o único em que seria possível aferir do preenchimento, ou não, dos requisitos da pretendida transmissibilidade. VIII - E não tem fundamento o apelo à tutela da “posição de confiança na previsibilidade do direito”, porquanto a mera expectativa fundada na não alteração da lei só é legítima quando esta consubstancie uma violação da segurança jurídica e da confiança legítima, enquanto emanação da ideia de Estado de direito democrático (art. 2.º da CRP), por constituir uma modificação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os respectivos destinatários não possam contar e não inspirada pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses também constitucionalmente protegidos”. No mesmo sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão de 9/11/2023[8]: “A Lei nº. 6/2006 de 27/2, que criou o Novo Regime Jurídico do Arrendamento Urbano (NRAU) instituiu normas transitórias, de aplicação imediata aos contratos de arrendamento celebrados antes do Regime Jurídico do Arrendamento Urbano (RAU), instituído pelo DL nº DL 321-B/90 de 15/10, sendo uma delas o art.º 57º, relacionado com a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário”. Ainda no mesmo sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 2/7/2019[9]: “O NRAU veio de novo regular esta matéria de novo no CC, agora no art. 1106º n.º 1 do referido código. Contudo, esta disposição legal não se aplica ao caso dos autos, visto que o art. 27º do NRAU estabelece expressamente que relativamente aos contratos para fins habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do RAU se aplicam as disposições constantes do Capítulo II do NRAU, aqui se incluindo o art. 57º, que tem por epígrafe “transmissão por morte”. Porém, relativamente a este, não é aplicável a redação que lhe foi conferida pela Lei nº 13/2019, de 12-02, por a mesma ter sido publicada e entrado em vigor muito depois do decesso da falecida mãe do réu, e posteriormente à propositura da presente ação (que teve lugar em 04-10-2017), sendo certo que das disposições transitórias da Lei 13/2019 não resulta coisa diversa”. Ora, dispõe o artigo 27º da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, com a alteração introduzida pela Lei 31/2012 (vigente à data do óbito de CC), que é aplicável aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, o regime previsto no capítulo II do NRAU, sendo que, por remissão do artigo 28º da Lei 6/2006(vigente à data do óbito de CC), há que ter em consideração o disposto no art.º 26º, concretamente o que se dispõe no n.º 2, que determina a aplicação do disposto no art.º 57º do NRAU quanto à transmissão por morte. No caso, a questão que se coloca é a da caducidade do contrato de arrendamento por morte do arrendatário que sucedeu ao primitivo arrendatário. Tratando-se de contrato previsto no art.º 27º do NRAU, é-lhe aplicável o regime de transmissão de arrendamento previsto no art.º 57º do mesmo diploma, em detrimento do regime previsto no art.º 1106º do CC. Resulta da matéria de facto provada que o contrato de arrendamento foi celebrado em 1 de Fevereiro de 1971, entre o autor e BB. O direito de arrendamento sobre o locado foi posteriormente transmitido à mulher de BB, CC, falecida no mês de Outubro de 2018, encontrando-se a residir no imóvel, à data do seu óbito, o réu. Atento o disposto no artigo 57º do NRAU, na redacção conferida pela Lei nº79/2014[10], de 19/12 (vigente à data do óbito da arrendatária), com o falecimento de CC, mãe do Réu, a posição de arrendatário não se transmitiu para este porque a falecida já tinha sucedido naquela posição ao primitivo arrendatário. Conforme se explicou, à data do decesso da mãe do Réu, o artigo 57º do RNAU, na redacção da Lei 79/2014, não previa uma segunda transmissão do contrato. Em suma, tendo sido o contrato de arrendamento celebrado no ano de 1971, antes do início de vigência do RAU, à transmissão por morte do arrendatário aplica-se o disposto nos art.ºs 57º e 58º do NRAU, por força dos artigos 26º, nº 2, 27º e 28º deste mesmo diploma legal. O artigo 1106º, n.º 1, do Código Civil não se aplica ao caso dos autos, visto que o art. 27º do NRAU estabelece expressamente que relativamente aos contratos para fins habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do RAU se aplicam as disposições constantes do Capítulo II do NRAU, aqui se incluindo o art. 57º que tem por epígrafe “transmissão por morte”. Mas, ainda que se tratasse da morte do primitivo arrendatário, operava igualmente a caducidade do contrato porquanto da factualidade provada resulta, apenas, que o réu, à data do decesso da sua mãe, habitava com a mesma, no locado, há mais de um ano, não tendo o mesmo logrado demonstrar que padecia de “deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%” (alínea e) do artigo 57º do NRAU, na redacção introduzida pela Lei 79/2014, de 19 de Dezembro. Pelo exposto, com o falecimento de CC, operou a caducidade do contrato de arrendamento, pelo que, embora com fundamentação não totalmente coincidente, concorda-se com a decisão proferida pelo Tribunal a quo. Improcede, assim, o recurso, nesta parte. 4ª Questão Insurge-se o Recorrente com a condenação no pagamento, a título de indemnização, da quantia de €450 por mês, desde o termo do prazo de seis meses sobre a data da cessação do contrato e até à efectiva restituição do local arrendado. Argumenta que o valor de referência pela ocupação do imóvel devia ser o valor da renda (€63,20/sessenta e três euros e vinte cêntimos) até à situação jurídica controvertida estar decidida nos Tribunais, solução que, no seu entender, resulta do princípio da boa fé e também da equidade. Advogam as Recorridas que a ocupação do prédio urbano pelo Réu é sem título justificativo e impede os proprietários, durante esse mesmo período, de usá-lo, de fruir as utilidades que ele normalmente lhes proporcionaria e que essa privação injustificada do direito de propriedade constitui o ocupante na obrigação de indemnizar os proprietários pelos prejuízos para eles decorrentes da perda temporária dos poderes de gozo e fruição. Sendo o imóvel em questão um prédio urbano, e tendo ficado pela prova testemunhal suficientemente demonstrado que o mesmo destinava-se a ser colocado no mercado de arrendamento, corresponde, neste caso, a indemnização pela privação do uso ao seu valor locativo. Cumpre apreciar e decidir. Operada a caducidade do contrato de arrendamento, por morte do arrendatário, dispõe o art.º 1053º do CC que “Em qualquer dos casos de caducidade previstos nas alíneas b) e seguintes do artigo 1051.º, a restituição do prédio, tratando-se de arrendamento, só pode ser exigida passados seis meses sobre a verificação do facto que determina a caducidade …”. Significa que o Réu estava obrigado a restituir o locado, findo o prazo dos seis meses, sem necessidade de interpelação porque decorre da inobservância de uma obrigação com prazo certo (art.º 805º, nº 2, al. a) do CC). Dispõe o artigo 1045º do Código Civil que: “1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida. 2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro”. A obrigação do pagamento da indemnização fixada neste artigo tem como fundamento o incumprimento da entrega da coisa ao locador, não estando dependente da prova da existência de uma utilização lucrativa que a proprietária daria ao local arrendado, sendo suficiente a fata de cumprimento atempado da obrigação de restituição da coisa. Extinto o contrato, o locatário tem o dever de restituir a coisa ao locador, visto cessar o seu direito de gozo – artº 1038º, al. j) do CC. A partir do momento da constituição em mora é devida a indemnização fixada no nº2: pagamento do dobro dos montantes da renda fixada como contrapartida do gozo da coisa. No entanto, o critério indemnizatório fixado no artigo 1045º do Código Civil só tem aplicação quando esteja em causa a falta de restituição da coisa locada, por quem no respectivo contrato, já findo, tinha a posição de locatário, e não quando se tratar de ocupante ilegítimo.[11] Tratando-se de ocupante ilegítimo, em caso de não entrega imediata do locado ao senhorio, aquele incorre em responsabilidade extracontratual, sendo a indemnização a atribuir ao senhorio, fixada segundo os princípios gerais da responsabilidade civil consagrados nos artigos 562º e seguintes do Código Civil, pela diferença entre a situação patrimonial actual do senhorio e aquela que teria se tivesse podido celebrar novo arrendamento ou vender o locado a terceiro (se fosse essa a sua opção).[12] Como refere o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 6/2/2007[13], “além de o nº 1, do art.º 1045º, do CC, aludir expressis verbis a obrigação indemnizatória a cargo do locatário, acresce que a indemnização a forfait é precisamente aquela que mais justa é, quer porque baseada em montante que foi pelas próprias partes estipulado - assim se compreendendo que qualquer delas fique desonerada da prova dos danos efectivos - , quer porque a que mais se harmoniza com certa protecção tradicionalmente concedida ao arrendatário. Acresce que, importa não olvidar, « a razão de ser da norma do art.º 1045º Código Civil é a de que o extinto contrato continua, apesar de tudo, a ser o referencial de equilíbrio entre as prestações da relação de liquidação», ou seja, tendo a renda resultado da auto-regulação das partes, representa a mesma “em regra, o justo valor do lucro cessante derivado da indisponibilidade da coisa locada“. Consequentemente, de solução normativa se trata que, necessariamente, mostra-se inter-relacionada com a pré-existência de um contrato de arrendamento, assenta naturalmente numa lógica de prolongamento de facto do contrato, e que se traduz na subsistência da utilização da coisa pelo locatário, com prejuízo do locador, isto é, continuando aquele a auferir os benefícios decorrentes da celebração do contrato, deverá consequentemente pagar ao senhorio as rendas acordadas, a título de indemnização. Em face do exposto, temos assim que já “o ocupante ilegítimo incorre em responsabilidade extracontratual em caso de não entrega do locado ao senhorio, sendo a indemnização [ por ele devida ] medida pela diferença entre a situação patrimonial actual do senhorio e aquela que teria se tivesse podido celebrar novo arrendamento»”. No caso dos autos, a não entrega voluntária do imóvel pelo Réu que consabidamente não lhe pertence e sem que tenha título para tanto, configura uma violação ilícita do direito de propriedade dos autores. Interpelado por carta datada de 3/12/2018, para restituir o locado, decorrido o prazo de seis meses sobre o óbito da arrendatária e não tendo procedido à entrega do imóvel, ao inviabilizar a sua fruição pelos autores, únicos titulares de direito que confere esse benefício, designadamente privando-os dos frutos que o imóvel poderia produzir por via de arrendamento, não pode o Réu deixar de saber que causa àqueles os prejuízos inerentes ao não percebimento dos proventos que os mesmos poderiam auferir correspondentes a uma renda mensal, o que constitui este na obrigação de indemnizá-los pelos danos decorrentes dessa violação, atento o notório nexo de causalidade entre a sua actuação ilícita e os ditos danos (cfr. artº 483º C. Civil). Não é unívoca, nem na doutrina, nem na jurisprudência, a resposta à questão da ressarcibilidade da privação do uso, existindo duas concepções antagónicas: Na primeira corrente, a resposta que tem sido dada parte basicamente da aplicação da teoria da diferença. Quando a indemnização é negada invoca-se a falta de prova de uma diferença patrimonial entre a situação constatada no momento da decisão e a que existiria se não ocorresse o evento.[16] Para a segunda corrente, a admissibilidade da indemnização, é sustentada, como explica António Santos Abrantes Geraldes[17], pela “constatação naturalística de que a privação do uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui uma perda que deve ser considerada, tudo se resumindo à detecção do método mais adequado para a quantificação da indemnização compensatória”. Conclui António Santos Abrantes Geraldes [18] que “provado que a indisponibilidade do bem foi causa directa da redução ou perda de receitas ou da perda de oportunidade de negócios, não se questiona o direito de indemnização atinente aos lucros cessantes”. Mas, mesmo que nada se apure a respeito da utilização ou do destino que seria dado ao bem, os argumentos anteriormente aduzidos a respeito da indemnização pela privação do uso de veículos automóveis justificam, “mutatis mutandis”, a atribuição de uma compensação monetária ao lesado pelo período correspondente ao impedimento ou à redução dos seus poderes de fruição ou de disposição. Esta corrente é igualmente perfilhada por Luís Menezes Leitão [19] defendendo que «entre os danos patrimoniais, incluiu-se naturalmente a privação do uso das coisas ou prestações, como sucede no caso de alguém ser privado da utilização de um veículo seu ou ser impedido de realizar uma viagem turística que tinha contratado. Efetivamente, o simples uso constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano».[20] Existe uma terceira posição, de alguma forma intermédia entre as duas antecedentes, indicada por Maria da Graça Trigo[21], que parte da exclusão da reparação do dano em abstracto mas, num segundo nível admite como suficiente a prova da ocorrência de danos concretos com base numa presunção[22]. Pronunciando-se sobre a questão, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 23/2/2023[23], “…é nossa convicção que - no seguimento de resto de jurisprudência que nesta matéria é prevalecente - a privação do uso de um bem é susceptível de constituir, por si, dano patrimonial, visto que se traduz na lesão do direito real de propriedade correspondente, assente na exclusão de uma das faculdades que é lícito ao proprietário gozar, de acordo com o preceituado no artigo 1305.º do Código Civil, isto é, o uso e fruição da coisa”, concluindo “Em suma, e neste conspecto, como que subscrevemos in totum as considerações que constam do Ac do STJ de 22/1/2013 (31), no mesmo se discorrendo com inquestionável sentido de JUSTIÇA do seguinte modo: “(...) É inquestionável que, enquanto a posse intitulada subsistir, os direitos plenos de uso, fruição e disposição de que o proprietário goza, nos termos do art.º 1305º CC, ficam fortemente limitados, não podendo ser exercidos na sua plenitude; e estando demonstrado que os réus tinham plena consciência de que o gozo dos imóveis tinha um determinado valor ( tanto assim que, celebrando os contratos de arrendamento, se dispuseram a pagar uma renda ), afigura-se justo e razoável quantificar o correspondente dano da privação do uso no valor locativo dos imóveis que o autor logrou provar. Se a lei expressamente reconhece ao senhorio o direito a indemnização pelo atraso na restituição da coisa, findo o contrato, mesmo que em concreto nenhum dano se comprove – art.º 1045º CC - indemnização essa que tem por base o valor da renda estipulada, nenhuma razão se vislumbra para que num caso essencialmente análogo como é o presente não se proceda de igual modo; efectivamente o “atraso na restituição da coisa” é aqui a “ocupação ilícita”, conduta cuja antijuridicidade se apresenta tão ou mais evidente do que naquela disposição legal.” Por este tribunal é perfilhado igual entendimento. Contra a admissibilidade da indemnização do dano da privação do uso invoca-se frequentemente a sua natureza abstracta, contraposta ao facto de a responsabilidade civil exigir a produção de um dano concreto cuja medida serve para quantificar a indemnização. É um facto que só os danos concretos merecem ser ressarcidos. Todavia, isso não significa que o chamado "dano da privação do uso" deva incluir-se na categoria do dano abstracto, sob pena de se afrontarem juízos assentes em padrões de normalidade. Esta integração é contrariada pela simples verificação de que a impossibilidade de fruição de um bem próprio, em consequência de uma actuação ilícita de outrem, determina um corte temporal no legítimo direito de fruição, conforme acima referido. Reportando-se a privação a um determinado período e sendo o direito de propriedade também integrado pelo direito de fruição, aquela traduz-se, em termos práticos, num corte temporalmente definido e naturalmente irrecuperável nesse poder de fruição. Quanto às dificuldades suscitadas pela adopção da teoria da diferença, como critério determinativo da indemnização, podem as mesmas ser superadas se se evidenciar que o plano da quantificação não deve confundir-se com o da ressarcibilidade em que, por ora, nos situamos. No percurso metodológico da aplicação da lei este situa-se a montante, sendo reflexo da mera perda, ainda que temporária, dos poderes de fruição; já a quantificação comporta uma mera operação material, situada a jusante, destinada a avaliar, em termos pecuniários, o desequilíbrio patrimonial causado pela privação. A simples invocação das regras da experiência quando se estabelece a comparação entre a situação do proprietário que manteve intacto o seu poder de fruição e a de um outro que dele seja privado temporariamente permite concluir que não existe entre ambas uma equivalência substancial. Verificando-se uma lacuna de natureza patrimonial, correspondente à fatia de poderes de que o proprietário ficou privado, é com naturalidade que deve ser encarada a atribuição de uma compensação monetária, face à constatação de que o simples reconhecimento da ilegitimidade da privação e a condenação na restituição do bem são insuficientes para repor a situação do lesado no estado em que se encontraria caso não tivesse existido tal privação. Uma vez que o sistema atribui ao lesado o direito à reconstituição natural da situação, a recomposição da situação danosa reclama que, pela única via então possível, ou seja, pela atribuição de um equivalente pecuniário, o lesado consiga ser reintegrado. Dito de outro modo, se a privação do uso do bem durante um determinado período origina a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se tal perda não pode ser reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente. A prova da ocorrência de danos concretos e directamente imputáveis à privação é solução que se justifica quando o lesado pretenda obter o ressarcimento dos lucros cessantes, pelos “benefícios que deixou de obter”, nos termos do art. 564.º, n.º 1, do Código Civil. Porém, não se esgotam aí as possibilidades de ressarcimento que abarca também, com os danos emergentes, no segmento normativo referente ao “prejuízo causado”, a privação do uso. Em suma, integrando o direito de propriedade, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, e que isso envolve até o direito de não usar, a privação do uso reflecte o corte definitivo e irrecuperável de uma “fatia” desses, justificando-se, assim, o ressarcimento que supra a modificação negativa que a privação do uso determina na relação entre o lesado e o seu património[25]. Transpondo tais princípios para os presentes autos, da matéria de facto provada resulta que por carta datada de 3/12/2018, foi o réu interpelado para restituir o locado, decorrido o prazo de seis meses sobre o óbito da arrendatária. A arrendatária faleceu em 18 de Outubro de 2018, pelo que o prazo se extinguiu em 18 de Abril de 2019, continuando o réu a ocupar o imóvel, sem dispor de título que legitime a ocupação do mesmo. Peticionam os autores a condenação do réu no pagamento da quantia de €500,00 mensais, a título de indemnização pela ocupação do imóvel, desde a data em que caducou o contrato de arrendamento até à efectiva restituição do mesmo. Da matéria de facto provada resulta que o imóvel, no mercado de arrendamento actual, tem um valor de €450,00 mensais. Atento o disposto no artigo 566º, nº3, do C. Civil, considerar-se-á que o valor locativo do imóvel, propriedade dos autores, situa-se em montante mensal não inferior a €450,00. Assim, a título de indemnização pela ocupação ilegítima do imóvel, deve o Réu ser condenado a pagar a quantia mensal de €450,00, desde Maio de 2019 [data fixada na sentença recorrida – cfr. artigo 635º, nº5, do CPC] até à efectiva entrega do imóvel, deduzido das quantias por si pagas desde Maio de 2019 a Fevereiro de 2020, confirmando-se a sentença recorrida. Improcede, assim, o recurso nesta parte. Custas As custas são integralmente da responsabilidade do Recorrente porquanto, ainda que a impugnação da decisão da matéria de facto tenha sido parcialmente procedente, revelou-se inócua para as demais pretensões recursórias que não obtiveram provimento. * V. Decisão Pelos fundamentos acima expostos, julga-se improcedente o recurso interposto pelo Réu e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida, sem prejuízo da alteração dos pontos 1.11 e 1.12 dos factos provados e do aditamento do ponto 2.7 aos factos não provados, nos termos enunciados. Custas da apelação pelo Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que o mesmo beneficia (artigo 527.º, nº 1, do Código de Processo Civil e artigo 18º, nº4, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, com a alteração introduzida pela Lei nº47/2007, de 28/8). * Sumário: ……………………………… ……………………………… ……………………………… * Anabela Morais Fernanda Almeida Mendes Coelho ____________ [1] Professor Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Volume IV, Reimpressão, Coimbra, 1987, p. 569. [2] Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436. [3] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição Atualizada, Almedina, 2022, págs. 356 e 357. [4] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, vol. II, 7.ª edição, pg. 385. [5] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, vol. II, 7.ª edição, pág. 390. [6] Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, Almedina, 10ª edição, pág. 189 [7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4/12/2018, proferido no processo nº 6371/15.7T8SNT.L1.S2, acessível em www.dgsi.pt [8] Acórdão do Tribunal da Reação de Guimarães, de 9/11/2023, proferido no processo nº 153/22.78VVD.G1, acessível em www.dgsi.pt. [9] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2/7/2019, proferido no processo 21543/17.1T8LSB.L1-7, acessível em www.dgsi.pt. Nesse Acórdão, abordada a questão da aplicação do artigo 57º do NRAU e não do artigo 1106º do Código Civil, refere o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão citado que “Poderia contudo objetar-se que tal conclusão conduziria a um tratamento menos favorável que o decorrente da aplicação do art. 1106º n.º 1 al. c) do CC, e como tal implicaria uma violação do princípio da igualdade, consagrado no art. 13º da Constituição da República, na medida em que este permitiria a transmissão do direito ao arrendamento para habitação em caso de morte do arrendatário quando lhe sobreviva “pessoa que com ele vivesse em economia comum há mais de um ano”, só não se aplicando tal regra por se tratar de contrato de arrendamento celebrado em data anterior à entrada em vigor do RAU. Contudo, cremos que tal entendimento não colhe, porque as duas situações não são iguais, nem sequer equiparáveis. Com efeito, o art. 1106º do CC, na redação que lhe foi conferida pelo DL n.º 6/2006 de 23/3, e posteriormente alterado pela Lei n.º 31/2012 de 14/8, aplica-se aos contratos de arrendamento mais recentes, os quais foram outorgados num momento em que o arrendamento urbano já não se achava limitado pela rigidez do regime anterior, à luz do qual os contratos de arrendamento urbano, especialmente os destinados para habitação constituíam vínculos rígidos de duração multigeracional. Nessa medida, a evolução legislativa foi claramente no sentido de aligeirar o rigor e rigidez do regime do arrendamento vinculístico. É por isso à luz destas considerações que devemos encarar as regras consagradas no art. 57º do NRAU, as quais visam obviar a uma excessiva prorrogação da vigência dos contratos outorgados antes da entrada em vigor do RAU e do NRAU, reduzindo os casos de transmissão do arrendamento a situações justificadas por especiais razões assistenciais. No caso vertente, o réu não se enquadra em nenhuma dessas situações, não se descortinando qualquer razão para crer que se encontra em situação semelhante àquela em que se encontraria caso o contrato de arrendamento dos autos tivesse sido celebrado na vigência do RAU. Basta referir que caso tivesse sido outorgado na vigência do RAU, a renda teria sido fixada de acordo com as regras do mercado, e com toda a certeza não seria de € 83,15, como no caso sucede; o contrato seria outorgado por prazo não superior a 5 anos; e não ficaria sujeito a renovação automática, obrigatória e forçada …. Estas as razões pelas quais cremos que os diferentes regimes se aplicam a situações diferentes, pelo que as diferenças entre os mesmos não violam o princípio da igualdade, nomeadamente na sua vertente da igualdade material (tratar de forma diferente o que é diferente, na medida dessa diferença).” [10] A Lei 43/2017, de 14 de Julho, não introduziu qualquer alteração ao artigo 57º do NRAU. [11] Ana Afonso, “Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Contratos em Especial”, UCP Editora, Abril 2023, anotação ao artigo 1045º do CC, pág. 431. [12] Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1/6/2004, proferido no Proc. nº 10331/2002-7; e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2/7/2019, proferido no Proc. nº 21543/17.1T8LSB.L1-7, ambos acessíveis em www.dgsi.pt. [13] Acórdão da RL de 6/2/2007, proferido no processo nº 7797/2005-1, acessível em www.dgsi.pt acessíveis em www.dgsi.pt. [14] Nesse sentido, Paulo Mota Pinto, em Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, volume I, pp. 590, 594-596: “Na verdade não é a simples impossibilidade de usar que está em causa, mas a impossibilidade de se satisfazer por essa via uma necessidade concreta”. Em sentido idêntico, Ana Mafalda de Miranda Barbosa, em Lições de Responsabilidade Civil, Cascais, Principia, 2017, pág. 339. Jurisprudência citada por Paulo Mota Pinto, em Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, volume I, p. 571 notas 1642 e 1643. [15] Defendendo que a simples privação do uso é ressarcível, António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, I volume, pp. 48 e ss.; Américo Marcelino, Acidentes de viação e responsabilidade civil, 11.ª edição, Lisboa, Petrony, 2012, pp. 379-380; Luís de Menezes Leitão, , Direito das Obrigações, volume I, p. 301 e nota 739; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, p. 777, nota 3: “O dano da privação do uso é ressarcível de acordo com os princípios gerais da responsabilidade civil, ainda que se reconduza a puro e simples impedimento da utilização”. [16] Neste sentido, Acórdão do STJ de 04-05-2010, processo n.º 727/06.3TBBCL.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt; Acórdão do STJ de 03-05-2011, processo n.º 2618/05.06TBOVR.P1, consultável em www.dgsi.pt; Acórdão do STJ de 12-01-2012, processo n.º 1875/06.5TBVNO.C1.S1. [17] Temas da Responsabilidade Civil, I Volume, 3ª Edição, Almedina, “Indemnização do Dano da Privação do Uso”, 3ª edição, pág. 59. [18] Temas da Responsabilidade Civil, I Volume, 3ª Edição, Almedina, “Indemnização do Dano da Privação do Uso”, 3ª edição, págs 92 e 93. [19] Direito das Obrigações, vol. I, pág. 297. [20] Neste sentido, o Acórdão do STJ de 29-11-2005, processo n.º 05B3122, consultável via www.dgsi.pt; o Acórdão do STJ de 05-02-2009, processo n.º 08B3994, consultável via www.dgsi.pt; o Acórdão do TRG de 07-11-2019, processo n.º 15/18.2T8AMR.G1, consultável via www.dgsi.pt. [21] Maria da Graça Trigo, em “Responsabilidade Civil, Temas Especiais”, UCP, pág. 59. [22] Neste sentido, o Acórdão do STJ de 15-11-2011, processo n.º 6472/06.2TBSTB.E1.S1; o Acórdão do STJ de 27-11-2018, processo n.º 78/13.7PVPRT.P2.S1, consultável via www.dgsi.pt; o Acórdão do TRL de 25-02-2021, processo n.º 400/18.0T8LRS.L1-6, consultável via www.dgsi.pt. [23] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23/2/2023, proferido no processo nº 213395/21.7T8LSB.L1-6, consultável em www.dgsi.p.: [24] António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, I volume, pág. 14. [25] Neste o sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6-6-01, in CJSTJ, tomo II, pág. 124, onde se considerou a indemnização correspondente ao valor de uso de um andar “independentemente da prova de qualquer dano sofrido pelos proprietários do andar, sendo bastante a demonstração de que o seu ocupante o usa sem título legítimo”; e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 6-6-91, in CJ, tomo III, pág. 173, onde se atribuiu uma indemnização pelo facto de o comodatário não ter entregado o prédio ao proprietário, apesar de não se ter provado que este o teria arrendado. |