Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA CECÍLIA AGANTE | ||
Descritores: | EXPROPRIAÇÃO AQUISIÇÃO DIREITO PRIVADO COMPETÊNCIA MATERIAL TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS | ||
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Nº do Documento: | RP2019032624731/17.7T8PRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 03/26/2019 | ||
Votação: | MAIORIA COM 1 VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 2ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º883, FLS.99-106) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Com a declaração de utilidade pública de expropriação o direito de propriedade dos expropriados é sacrificado e os bens atingidos ficam imediatamente adstritos ao fim específico da expropriação. II - Não modifica esse fim a substituição da expropriação amigável pela compra e venda dos bens expropriados a ponto de transmutar a relação jurídico-administrativa decorrente da expropriação numa relação jurídico-privada. III - O contrato de compra e venda é apenas um meio de concluir mais rapidamente o processo expropriativo, pelo que, mantendo-se a natureza da expropriação, o pedido resolução do contrato por incumprimento do fim expropriatório move-se no âmbito da relação jurídico-administrativa da expropriação e transporta a competência da jurisdição administrativa. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo 24731/17.7T8PRT Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível do Porto – Juiz 1 Acórdão B…, viúvo, e C…, casado, residentes na Rua …, …, …. - … Porto, instauram no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, na instância central cível do Porto, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra o Município E…, com sede na Praça …, …. - … Porto, e F…, sito na Rua …, …., …. - … Porto, pedindo a sua condenação a verem resolvido o contrato titulado pela escritura lavrada em 06/07/1979, entregando-lhes os Autores o capital que receberam e recebendo deles os prédios dela objeto, livres de pessoas e bens. Subsidiariamente, pedem a declaração de que não teriam celebrado o contrato se soubessem que o comportamento do Município seria este e, por isso, deve ser condenado a pagar-lhes a diferença entre o valor do solo à data da aquisição pelo seu valor de mercado à data atualizado à data da decisão final, deduzido do valor recebido atualizado desde o momento do recebimento até à data da decisão final.Acordam no tribunal da Relação do Porto: I. Relatório Alegam, para tanto, que eram donos de um prédio misto sito no …, no lugar de …, com uma área global de cerca de 8.700 m2, inscrito na matriz predial urbana sob os artigos 373 e 201 e rústica sob o artigo 21. O Município decidiu afetar o prédio à execução do Centro de Educação Profissional Integrado destinado a Jovens Deficientes Mentais Não Escolarizados e, como não conseguiu adquiri-lo pela via do direito privado, foi declarada a sua expropriação por utilidade pública com carácter de urgência, com autorização de o Município dele tomar posse administrativa. Vencidos pelo fim da utilidade pública, acabaram por aceder vender o terreno ao Município e outorgar, em 06/07/1979, a escritura no Notário Privativo da Câmara Municipal E…. Exigiram que, na escritura, ficasse a constar o destino do prédio, que foi essencial para se determinarem a vender por um preço significativamente inferior ao de mercado. O Réu não cumpriu com a finalidade estabelecida, apesar do tempo decorrido ser mais do suficiente para o efeito. Ao invés, antes celebrou com o F…, por documento particular, um acordo de gestão pelo qual lhe cedeu uma área de 36.330 m2, no qual se engloba o seu prédio, por um período de 50 anos. Apenas em 08/06/2000 o F… implantou um pré-fabricado amovível que representa menos de 3% da sua parcela e nela instalou a sua sede, permanecendo igual toda a restante parcela. O Réu Município não cumpriu a obrigação a que ficou adstrito e que foi a base do negócio, o que funda a resolução do contrato. A manutenção do contrato viola as regras da boa fé, pelo que se sentem enganados e muito prejudicados. O Réu Município E… exceciona a incompetência em razão da matéria, alegando que, estando em causa uma expropriação, o pedido terá de ser discutido na jurisdição administrativa. No despacho saneador é julgada procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal e o réu absolvido da instância. Inconformados, recorrem os Autores, cuja alegação assim concluem: “1. A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pelo modo como o Autor delineia a ação. 2. Estando em causa a apreciação de um contrato de compra e venda, o pedido de resolução a título principal e o pedido de reequilíbrio a título subsidiário, estamos perante matéria de direito privado. 3. O entendimento da douta julgadora recorrida ao basear-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14.05.2005 (Dr.ª D…) permite que percecionemos que não enquadrou bem a questão em apreço. 4. Desde logo, não estamos perante contrato sujeito às regras da contratação pública que dele estão expressamente proibidas. 5. Nem estamos perante contratação sujeita a procedimento précontratual, nem o facto de ter existido declaração de utilidade pública, representa ou pode representar um procedimento précontratual. 6. Para uma qualquer compra e venda de imóvel não está previsto na lei geral qualquer procedimento pré-contratual (artigo 4º, nº 2, c) do CCP-DL 18/2008). 7. A douta julgadora confundiu a declaração de utilidade pública com um procedimento pré-contratual e nem sequer atentou que as aqui partes na altura do recurso à compra e venda desistiram da expropriação que ficou sem qualquer efeito (por vontade das partes). 8. A sujeição às regras da contratação pública pressupõe a seleção de candidaturas para a contratação específica, devendo salvaguardar-se o interesse público do contratante e a igualdade em sentido amplo dos candidatos. 9. Daqui decorre a necessidade de procedimentos prévios, obrigatórios, regidos por normas de direito público. 10. Quando se precisa de adquirir um concreto terreno para a realização de uma obra, pretende-se obter concreto terreno e não outro. 11. Ou seja, não há concorrência. 12. E das duas uma, ou se adquire pela via da aquisição derivada, uma compra e venda, uma doação, uma permuta ou pela via da aquisição originária que é a expropriação. 13. E, a lei privilegia a aquisição pela via do direito privado, normalmente a compra e venda. E impõe que tal aquisição seja prévia à declaração de utilidade pública. 14. E, não é por a iniciativa da venda permitir a realização de uma concreta obra pública, que caia no escopo da candidata adquirente (e no caso concreto nem sequer cabe no seu escopo – argumento que se expende) que deixamos de estar perante uma compra e venda. 15. É que se o particular está condicionado pela perspetiva de ter de se desfazer do prédio - pela transmissão ou pela sua perda pela via da aquisição originária- não deixa de ser livre de o não fazer. 16. E também nada impede que, mesmo depois de proferida a declaração de utilidade pública, não se possa transmitir o direito de compra e venda (que foi o que aconteceu). 17.O Acórdão do STA invocado em defesa da tese do Município não perturba ou inquina o nosso entendimento. Ele inverteu o entendimento que defendemos para permitir, em defesa do interesse dos particulares, o exercício da reversão mesmo no âmbito da compra e venda. 18. Mas não teve a intenção de impedir os particulares de pedirem a apreciação do contrato de compra e venda. 19. E também não afasta porque não estamos no âmbito da reversão. Pelo contrário.” Respondendo, o Município E… remata, em síntese, a sua alegação: 1. Na resposta a dar à questão de saber se os tribunais judiciais são ou não materialmente incompetentes para dirimir o litígio em escrutínio, não há que apelar ao Código dos Contratos Públicos (“CCP”). 2. Mesmo não sendo os procedimentos pré-contratuais apenas aqueles que estão previstos no Código dos Contratos Públicos, podendo igualmente constar de outros diplomas, o procedimento pré-contratual é o procedimento anterior à celebração de um contrato e é necessário que o procedimento de formação do contrato esteja sujeito a um regime de direito público, previsto no CCP ou em legislação avulsa. 3. O contrato em causa adveio e foi precedido de um procedimento administrativo expropriativo e foi antecedido de um procedimento sujeito a um regime de direito público, i.e., aquele que está previsto no Código das Expropriações. 4. O contrato obedeceu, na sua formação, aos termos previstos no Código das Expropriações, e não deixa de ter sido antecedido por um procedimento regulado por normas de direito público pelo simples facto de essas normas não serem as que estão previstas no CCP. 5. As normas de direito público não são apenas aquelas que constam do CCP. 6. Mário Aroso de Almeida, ao contrário do que afirmam os recorrentes, refere que para aferir da competência dos tribunais administrativos em matéria contratual há que apurar se o contrato em causa se mostra “submetido a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo” e não se vê como pode a situação em escrutínio não ser subsumível àquele ensinamento, a não ser que se defenda, como parece fazerem os recorrentes, que “regras procedimentais de formação de Direito Administrativo” são apenas as que constam do CCP. 7. O contrato que opera a transferência da propriedade sobre a parcela n.º 5 é celebrado no âmbito e por virtude da relação jurídico-administrativa estabelecida entre as partes. 8. É precedido de um procedimento administrativo, - o processo de expropriação - regulado por normas de direito público. 9. O facto de o contrato ter tomado a forma de escritura pública de compra e venda e não de escritura de expropriação amigável em nada prejudica a relação jurídico-administrativa, o que faz decair toda a linha argumentativa expendida pelos recorrentes. 10. Mesmo que não se considerassem os tribunais administrativos como competentes para conhecer dos presentes autos ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF – estando em causa uma questão relativa à tutela do direito de propriedade que foi transmitido no âmbito de uma relação jurídica administrativa, sempre os tribunais administrativos deverão considerar-se competentes para apreciar o presente litigio, por força do disposto nas alíneas a) e o) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF. 11. Ademais a matéria relacionada com o exercício do direito de reversão é da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, por força do n.º 4 do artigo 74.º e n.º 1 do artigo 77.º do Código das Expropriações de 1999, sendo que a pretensão dos Autores se reconduzi a um direito de reversão. 12. Defendem a improcedência da apelação. II. Objeto do recurso Sendo a temática do recurso balizada pelas conclusões da alegação do recorrente [artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil (CPC)], cabe apenas decidir a que jurisdição cabe apreciar o presente litígio.III. Fundamentação de direito Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas [artigo 211º/1 da Constituição da República Portuguesa (CRP)]. Donde a consagração de que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigo 40º/1 da lei nº 62/2013, de 26 de agosto, denominada Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) e artigo 64º do CPC]. Portanto, a competência dos tribunais judiciais determina-se por um critério residual, ou de exclusão de partes, sendo-lhe deferida competência para tudo o que não estiver atribuído aos tribunais especiais[1].Estando aqui em confronto a competência dos tribunais da ordem judicial e a dos tribunais da ordem administrativa, vemos que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (artigo 212º/3 da CRP). E na mesma linha definidora também o Estatuto dos Tribunais Administrativo e Fiscais (ETAF, aprovado pela lei nº 13/2002, de 19 de fevereiro) estatui que, “os tribunais administrativos e fiscais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais” (artigo 1º/1). Patenteia-se, assim, que a repartição de competência entre os tribunais destas duas ordens jurisdicionais é balizada em função da natureza da matéria a dirimir. O mesmo é dizer que a determinação do tribunal competente em razão de matéria é aferida em função da pretensão do autor e dos respetivos fundamentos, ou seja, à luz do pedido e da causa de pedir. Esta corresponde ao facto jurídico concreto integrante das normas de direito substantivo que concedem o direito e aquele à pretensão formulada pelo autor para a realização ou salvaguarda daquele direito (artigo 581º/3 e 4 do CPC). Destarte, a competência do tribunal afere-se, pois, pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)[2], o que nos remete para a alegação do autor e efeito jurídico pretendido. Este entendimento é aceito, doutrinária e jurisprudencialmente, sem discussão, considerando-se que a competência do tribunal se afere por referência à relação jurídica controvertida exposta na petição inicial e à pretensão formulada, com alheamento de qualquer juízo de prognose acerca da viabilidade ou não da acção[3]. Interpretando e caracterizando a ação proposta pelos Autores, vemos que ela tem em vista a resolução do contrato de compra e venda que outorgaram com o Município E…, pretendendo, por isso, a destruição do vínculo contratual e a restituição dos prédios objeto do mesmo contrato, disponibilizando-se a devolver o preço recebido. Filiam a causa de pedir no incumprimento, por parte do comprador, do destino a dar a tais prédios, o qual foi definido pela declaração de expropriação de utilidade pública que os determinou a vendê-los, embora para cumprimento desse mesmo fim. Nestes termos, não fora a prévia declaração de expropriação de utilidade pública, não teríamos dúvidas em afirmar que as partes se vincularam por um contrato de compra e venda, submetido às regras do direito privado, pelo que a sua resolução não poderia deixar de ser tratada pelos tribunais comuns. Contudo, o negócio só ocorreu, segundo a própria alegação dos Autores, porque a tanto foram obrigados pela declaração de expropriação por utilidade pública. O Código das Expropriações (CE), aprovado pela lei n.º 168/99, de 18 de setembro, elege a aquisição por via de direito privado como o mecanismo preferencial para a afetação da propriedade particular aos fins de utilidade pública. Para tanto, prevê a resolução de expropriar e a adoção, pela entidade interessada, de medidas tendentes a adquirir os bens por via de direito privado, antes de requerer a declaração de utilidade pública, salvo nas situações em que, jurídica ou materialmente, não é possível a aquisição por essa via (artigos 10º e 11º). Só perante a recusa ou falta de resposta no prazo legalmente estabelecido para o efeito é que a entidade interessada na expropriação tem a faculdade de apresentar o requerimento para a declaração de utilidade pública (artigo 11º/6 do CE). Depois disso, prevê o CE uma primeira fase puramente administrativa, que compreende a declaração de utilidade pública, com um procedimento próprio, a vistoria ad perpetuam rei memoriam e a posse administrativa (artigos 13º a 22º). Esta fase processual é tida como uma relação jurídico-administrativa, por o Estado/Administração intervir numa típica ação de lesão da esfera jurídica dos particulares, com vista à prossecução de um interesse público. Quando termina esta fase, ainda antes de promover a constituição de arbitragem, a entidade expropriante deve procurar chegar a acordo com o expropriado e os demais interessados na designada expropriação amigável, podendo acordar sobre o montante da indemnização, o seu pagamento ou de parte dela em prestações, juros respetivos e o seu prazo de pagamento, o modo de satisfazer as prestações, a indemnização através da cedência de bens ou direitos, a expropriação total e as condições acessórias (artigos 33º e 34º do CE). E alcançado o acordo entre a entidade expropriante e os interessados deve ser o mesmo formalizado, designadamente, através de escritura de expropriação amigável, se a entidade expropriante tiver notário privativo (artigo 36º do CE). E esta fase constitui uma relação jurídico-administrativa, pois o Estado/Administração intervém, ainda, no quadro do seu poder público, em oneração dos direitos dos particulares para satisfação do interesse público. De facto, a relação jurídico-administrativa “deve ser uma relação regulada por normas de direito administrativo que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada”[4]. Volvidos ao relato factual do caso, verificamos que a entidade expropriante promoveu a expropriação por utilidade pública, vindo a respetiva declaração, com carácter de urgência, a ser publicada no Diário da República, II Série, n.º 25, de 2/11/1977, e lavrado auto de posse administrativa dos prédios dos Autores (parcela 5) em março de 1978. Os Autores aceitaram o valor indemnizatório proposto pelo Município, mas solicitaram que na escritura ficasse declarado o destino da parcela. Procedimentos que em nada descaracterizam o procedimento que o CE denomina por expropriação amigável, com a estrita natureza de uma relação jurídico-administrativa. E seria no âmbito dessa mesma relação a celebração da escritura pelo notário privativo do Município, em 06/07/1979, se não tem ocorrido a deliberação camarária de 30/01/1979, promovida pelos Autores, que requereram à Câmara Municipal E… que a aquisição da parcela se não fizesse pela via da expropriação amigável, em curso, mas pela via da aquisição. Esse requerimento foi deferido e aquela deliberação camarária decidiu declarar sem efeito, quanto à parcela 5, o processo de expropriação amigável e aprovar, em sua substituição, e quanto à parcela 5, o processo de aquisição por compra e venda pelo preço de 2.142.800$00. É neste concreto segmento da narrativa procedimental que surge a dúvida acerca da natureza da aquisição da “parcela 5” pelo Município e, enquanto, os Autores lhe assacam uma natureza jurídico-privada, o Município entende que se mantém a natureza jurídico-administrativa, porque não desistiu da expropriação da parcela, mas apenas consentiu em transformar um processo de expropriação amigável em aquisição por via do direito privado de modo a facilitar e acelerar o recebimento da indemnização pelos Autores. Dum ou doutro modo, a deliberação camarária não “extinguiu” a relação de expropriação e o Município, mesmo na outorga de um contrato de direito privado, não deixou de prosseguir o interesse coletivo do Estado na expropriação já declarada de interesse público e com carácter de urgência. A declaração de utilidade pública do ato expropriativo tem uma dupla finalidade: a indicação do fim concreto da expropriação e a especificação dos bens que dela são objeto. Não obstante esta simplista delimitação, é controversa a sua natureza jurídica, enquadrada como uma simples formalidade do ato de expropriar, como pressuposto do procedimento de expropriação ou como ato constitutivo da expropriação. Na verdade, com o ato de declaração de utilidade pública o particular vê-se imediatamente cerceado do seu direito, afirmando-se que, depois desse ato, ele deixa de gozar de um direito de propriedade para passar a beneficiar de um direito de indemnização. Contudo, a declaração de utilidade pública não é dotada de autonomia funcional, não fica colocada fora do processo expropriatório e não é uma mera condição da expropriação, uma vez que extingue o direito de livre disposição do proprietário. E o ato de transferência da propriedade pelo juiz do tribunal comum não é um ato judicial, sob o ponto de vista material, pois não há julgamento. O juiz realiza apenas um ato de controlo preventivo da regularidade formal dos atos do procedimento expropriatório e não da legalidade do ato de declaração de utilidade pública, este da competência dos tribunais administrativos. Por isso se diz que o “visto” do juiz é “elemento integrativo da eficácia” do ato de declaração de utilidade pública, na medida em que transfere a propriedade e a posse, caso não tenha ocorrido anteriormente, para a entidade expropriante[5]. “Poderá dizer-se que o acto de declaração de utilidade pública, como acto constitutivo da expropriação, carece, para produzir efeitos de transferência da propriedade e da posse dos bens, de ser integrado com um “visto” do tribunal comum”[6], havendo casos em que ele é dispensado. Digamos que ao ter sido expropriada a parcela 5, com a declaração de utilidade pública o direito de propriedade dos Autores foi sacrificado e a parcela ficou imediatamente adstrita ao fim específico da expropriação, a significar que o direito de propriedade dos Autores se converteu imediatamente num direito de indemnização[7]. A esta luz, parece-nos que a causa de pedir invocada pelos Autores se reporta à relação expropriativa, cujo facto constitutivo emerge da declaração de utilidade pública, que é, sem sombra de dúvida, um ato administrativo. A relação jurídica de direito administrativo é definida como “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração”[8]. E, portanto, desde a declaração de utilidade pública até à investidura administrativa na posse dos bens, que teve lugar mesmo contra a vontade dos expropriados, movemo-nos no domínio das relações jurídicas administrativas. E só está deferida aos tribunais comuns a resolução dos litígios que se prendam com a determinação e fixação da justa indemnização decorrente da expropriação (artigo 38º/1 do CE). Donde nos pareça que a ulterior “substituição da expropriação amigável” pela aquisição não transmute a relação jurídico-administrativa em relação jurídico-privada e, mantendo-se, aquela natureza, forçoso é concluir que a pedida resolução do contrato se move no âmbito da relação jurídico-administrativa da expropriação. Diverso entendimento, sempre levaria a tratar uma aquisição no âmbito de um ato expropriatório como uma questão civilista, submetida às normas do direito civil, em absoluta disfuncionalidade com a natureza pública daquele ato. Donde se defenda que quem celebra uma escritura pública de compra e venda de um bem sobre o qual recaiu uma declaração de utilidade pública jamais poderá fugir à vontade do expropriante, o que equivale a afirmar que o vendedor não vende de livre vontade, mas por força da expropriação. O contrato é apenas um meio de concluir mais rapidamente o processo expropriativo, de que resultam vantagens para ambas as partes, desde a paz jurídica à celeridade com que se põe termo ao processo. A declaração de utilidade pública condiciona todo o processo expropriativo a ponto de, depois dela, o proprietário dos bens ficar obrigado a cedê-los ao expropriante e este vinculado a dar-lhes o destino que justificou a expropriação. Essa a razão pela qual a outorga de contrato de compra e venda não descaracteriza a expropriação, salvo se dela houver desistência. No caso, não estamos perante a desistência da expropriação, que o artigo 88º do CE torna lícita à entidade expropriante enquanto não for investida na propriedade dos bens a expropriar, conferindo às partes, após a investidura da posse dos bens, a faculdade de, por acordo, converterem o processo litigioso em processo de reversão. Como a norma pressupõe que a desistência da entidade expropriante ocorre na fase litigiosa do processo, para a qual são competentes os tribunais comuns, onde o processo já se encontra a correr termos, justifica-se, então, até por razões de economia processual, que sejam os tribunais comuns a conhecer dessa questão, suscitada no processo que já neles se encontra pendente. Nada nos autos revela, nem as partes o articularam, que a entidade expropriante tenha desistido da expropriação e, tanto não desistiu, que adquiriu aos expropriados os prédios objeto da declaração de utilidade pública. Aliás, a pedida resolução do contrato de compra e venda corporiza, na sua essência, a reversão da parcela expropriada (artigo 5º do CE). A reversão traduz-se no direito conferido ao expropriado de recuperar os bens expropriados quando se mostrarem desnecessários para a realização do interesse público que justificou a expropriação. E esse fenómeno da reversão ou retrocessão baseia-se em fundamentos de direito público e a sua competência é deferida à entidade que houver declarado a utilidade pública da expropriação ou que haja sucedido na respetiva competência (artigo 74º/1 do CE) e, em via recursiva, aos tribunais administrativos. Donde nos pareça destituído de sentido trazer para os tribunais comuns a discussão da temática colocada na ação – a destruição da relação contratual e, consequentemente, do ato expropriatório, de natureza estritamente administrativa , quando a vocação primária dessa matéria se concentra na jurisdição administrativa. Não desconhecemos a discussão aportada pela natureza jurídica da reversão, tida, para uns, como o direito legal de compra conferido ao expropriado, e, para outros, como uma condição resolutiva de direito público. Esta última teoria é a que melhor se compagina com a estatuição legal do nosso ordenamento jurídico, cujo fundamento se centra no desaparecimento da causado ato administrativo expropriatório decorrente do não cumprimento da finalidade da expropriação, fazendo cessar os efeitos desta, impondo a repristinação do statu quo ante, restituindo o expropriado o valor que recebeu a título de indemnização e recuperando o bem[9]. Este é exatamente o fim visado pelos Autores que, embora tenham obtido a substituição da expropriação amigável pela compra e venda, não suprimiram da ordem jurídica a declaração de utilidade pública com as consequências que lhe são inerentes, designadamente a afetação da parcela expropriada aos sinalizados fins de utilidade pública, cuja modificação só poderá ocorrer pela via da reversão. Ademais, a exceção prevista no CE para a competência dos tribunais comuns circunscreve-se às relações estabelecidas na fase litigiosa do processo expropriativo (artigo 38.º) e, se não existisse esta norma, também a fase litigiosa do processo de expropriação correria nos tribunais administrativos[10]. In casu, o processo expropriativo não chegou a entrar na fase litigiosa e inexistindo outra norma que subtraia esta matéria à competência dos tribunais administrativos, são estes dotados de competência para a sua dirimição. Salvaguardando o muito respeito devido, neste entendimento a competência radica na jurisdição administrativa. IV. Dispositivo Ante o exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, por conseguinte, em confirmar a decisão apelada.Custas da apelação a cargo dos Autores (artigo 527º/1 do CPC). * Porto, 26 de março de 2019.Maria Cecília Agante José Carvalho Rodrigues Pires _____________ [1] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, pág. 146. [2] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 91. [3] Manuel de Andrade, ob. e loc. citados; in www.gsi.pt: Acs. Tribunal dos Conflitos de 15/03/2018, processo 036/17; 16/03/03/2017, processo 026/16; RC de 12/09/2017, processo 1021/16.7T8GRD.C1. [4] Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo dos Tribunais Administrativos, 2ª ed.. pág. 17. [5] Fernando Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, Coimbra, 1982, págs. 107 a 115. [6] Fernando Alves Correia, ibidem, pág. 115. [7] Fernando Alves Correia, ibidem, pág. 113. [8] Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, 1989, pág. 439. [9] Fernando Alves Correia, ibidem, pág. 167. [10] In www.dgsi.pt: Ac. RP de 29/02/2016, processo 1641/11.6TBPNF.P2. |