Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA | ||
Descritores: | INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS BENS PRÓPRIOS DOAÇÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP202311092166/22.0T8VCD-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 11/09/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - Na comunhão de adquiridos, em regra, são bens próprios dos cônjuges os bens que lhes advierem depois do casamento por doação (art. 1722º do Código Civil). II - O art. 1729.º do Código Civil exclui os bens doados dessa regra em duas situações. III - A primeira é quando o disponente manifestou a vontade de que o bem doado entre na comunhão; esta situação exige duas coisas: a vontade real do doador e a sua exteriorização. IV - A segunda é quando o disponente não manifestou essa vontade, nem a vontade contrária, mas fez a doação em favor dos dois cônjuges conjuntamente; esta situação exige duas coisas: a ausência de manifestação de vontade (o disponente não manifestou se queria que o bem entrasse ou não entrasse na comunhão); que a disposição seja em favor dos dois cônjuges conjuntamente (i.e., constitua um benefício para o casal enquanto tal, para a vida em comum). | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | RECURSO DE APELAÇÃO ECLI:PT:TRP:2023:2166.22.0T8VCD.A.P1 * SUMÁRIO: …………………………… …………………………… …………………………… ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: I. Relatório: No processo de inventário para separação das meações nos bens comuns de AA e BB, em que este exerce funções de cabeça de casal, apresentada relação de bens, a interessada AA veio reclamar da mesma. Para o efeito, alega que estão por relacionar bens móveis e o passivo do património comum à reclamante no montante de €30.000. Refere para tanto que para adquirir o terreno e iniciar a construção da casa de habitação que está para partilhar, a reclamante utilizou um valor que lhe foi doado pelos seus pais, valor que lhe pertence por lhe ter sido doado, sendo que o casamento foi celebrado em comunhão de adquiridos. O cabeça-de-casal respondeu aceitando a existência de parte dos bens móveis e negando a existência do passivo, sustentando que o valor referido pela reclamante foi doado ao casal e não apenas à reclamante. Foi alcançado acordo quanto aos bens móveis a aditar à relação de bens. Produzida prova sobre a verba do passivo, foi proferida decisão, julgando a reclamação procedente e determinando a inclusão na relação de bens da dívida de €30.000 do património comum à reclamante. Do assim decidido, o cabeça de casal interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões: I. Vem o presente recurso interposto da douta decisão que julgou procedente a reclamação da requerente do inventário e determinou a inclusão na relação de bens do valor de €30.000,00 como dívida do património comum do casal à reclamante. II. De todos os testemunhos ouvidos em audiência, apenas a requerente e os seus pais declaram que o dinheiro lhe foi doado a si; na verdade todas as restantes testemunhas inquiridas, bem como o cabeça de casal foram unânimes a afirmar ou que o dinheiro dado se destinou à compra do terreno para a construção da habitação, o que até a requerente e seus pais confirmaram, ou que foi dado ao casal e não à requerente. III. A testemunha CC, irmã da requerente/reclamante, no seu depoimento na audiência de 30/05/2023 e após falar no seu caso particular, concluiu o seguinte: [nota do Relator: segue-se a reprodução de passagens do depoimento]. IV. Por seu turno, na mesma sessão de 30/05/2023, a testemunha DD, pai da requerente, para além de repetir incessantemente que deu o dinheiro à sua filha e não ao casal, acabou por dizer o seguinte: [nota do Relator: segue-se a reprodução de passagens do depoimento]. V. Isto é, muito embora a testemunha tenha referido, por inúmeras vezes, haver dado o dinheiro à sua filha, acabou por reconhecer que o mesmo foi emitido no dia e entregue ao vendedor do terreno, Sr. Dr. EE, com quem falou no final. Também afirmou “não estar preciso” se disse à filha que o dinheiro era para ela. VI. Por seu turno, a filha do casal FF afirmou peremptoriamente o seguinte: [00:06:04] FF: …e aquilo que eu comentava com a minha avó. Ela só disse: “Na altura, dei aos teus pais”, não disse… não disse: “Nem dei à tua mãe, nem dei ao teu pai”, disse: “Eu dei aos teus pais. E se soubesse, hoje em dia, prontos, tinha feito um papel para reaver o dinheiro.” Foi a única questão. Agora, se foi dado à minha mãe, se foi dado ao meu pai, não faço ideia, porque eu não vi… VII. Já na sessão de 20/06/2023 prestou declarações a requerente que afirmou ter sido a si que os seus pais deram o dinheiro, mas afirmou também o seguinte: [nota do Relator: segue-se a reprodução de passagens do depoimento]. VIII. Aliás, que o dinheiro foi dado ao casal para pagar em parte o terreno resulta das declarações do cabeça de casal que, na mesma sessão de julgamento, afirmou que “era o dinheiro para pagar o terreno” (00:04:38). “Está aqui o dinheiro para pagares o terreno” (00:06:44) e que o dinheiro “foi-nos dado, ao casal” (00:01:18) e ainda “ele - o sogro - acompanhou o processo todo da compra do terreno” (00:00:44). IX. Por último, a mãe da requerente inquirida na sessão de 06/07/2023, enfatizou que doou o dinheiro à filha e não ao genro, prestou igualmente as seguintes declarações: [nota do Relator: segue-se a reprodução de passagens do depoimento]. X. Assim, não poderia a Meritíssima Juiz a quo dar como não provado o constante na alínea b) dos factos não provados; tanto mais que, no que concerne a esta matéria, ao valorar apenas os depoimentos de DD e GG - como diz no segmento da convicção - ambos afirmaram que o cheque foi usado no acto da escritura da aquisição do terreno. XI. Aliás, tal versão foi confirmada quer pela requerente/reclamante, quer pelo cabeça de casal, como se demonstrou supra na transcrição dos seus depoimentos. Nesta conformidade, deveria ter sido dado por provada a matéria constante da alínea b) ou, pelo menos, a seguinte factualidade: “O cheque foi emitido para ser usado no acto da aquisição do terreno”. XII. Para além do mais, dos supracitados depoimentos, conjugados com os documentos juntos aos autos, certidão de casamento e escritura de compra e venda do terreno, devia igualmente dar-se por provada a matéria vazada em 17 e 19 da resposta à reclamação, isto é deveria ter sido considerada assente a seguinte factualidade: “O dinheiro foi doado dois anos após o casamento (17)” “Na escritura de compra e venda do terreno não ficou a constar qualquer quantia como sendo dinheiro próprio da requerente (19)” XIII. Há, deste modo, um clamoroso erro na apreciação da prova que urge rectificar, entendendo o recorrente que a factualidade - concatenando todos os meios de prova existentes nos autos - provada é a seguinte: 1- O cheque de €30.000,00 foi um valor doado pelos pais da requerente para aquisição do terreno e iniciarem a construção da casa (imóvel a partilhar). 2- Os pais da reclamante anos depois, fizeram doação monetária à sua outra filha solteira, para repor a igualdade perante as suas e únicas filhas. 3- O cheque foi emitido para ser usado no acto da aquisição do terreno (artigo 16 da resposta). 4- Tal doação foi realizada cerca de dois anos após o casamento (artigo 17 da resposta); 5- Na escritura de compra e venda do terreno não ficou a constar qualquer quantia como sendo dinheiro próprio da requerente (artigo 19 da resposta). XIV. Para que se conclua o processo constitutivo da doação, é necessária a aceitação do donatário; antes dela, haverá uma proposta de doação, mas não uma doação, porquanto o acordo de vontades é sempre um elemento essencial da formação de qualquer contrato - artigo 232 do CC. Ora, no caso concreto, ao dar-se como provado que o cheque de €30.000,00 foi emitido para ser usado no acto da aquisição do terreno pelo casal é neste acto que se deve considerar a doação aceite pelos donatários. Isto é, o cheque foi entregue directamente ao vendedor de um prédio adquirido pelo casal, porquanto só aqui se consumou a aceitação da doação. XV. Deste modo, só se pode concluir que o dinheiro titulado pelo referido cheque aludido nos autos foi doado ao casal, porquanto a tradição da quantia se efectivou no acto da compra do terreno pelo casal, que, nesse momento, tacitamente declarou a vontade de aceitação. Na verdade, tendo tal cheque sido emitido para ser usado no acto de aquisição do terreno, só com a entrega deste ao vendedor se concluiu a aceitação da doação pelo casal. XVI. Se a doação tivesse sido feita apenas à interessada/reclamante, a tradição teria ocorrido quando o cheque tivesse sido depositado numa conta sua. Sucede que tal facto não ocorreu, tanto mais que não se provou - nem sequer foi alegado - que tal cheque tivesse sido emitido à sua ordem. Assim, da prova produzida não podia o tribunal concluir que tal quantia era dinheiro próprio da reclamante. Ademais, em nenhum momento foi referido pelas testemunhas que este dinheiro, em caso de separação do casal, era para ser considerado dinheiro próprio da reclamante. Bem ao invés, fez-se prova que os doadores estavam arrependidos de não terem elaborado um documento que o declarasse. XVII. A própria recorrida nunca colocou em causa que o terreno e a posterior edificação da casa fossem bens comuns do casal e nunca o fez porque sabia que o terreno foi adquirido com dinheiro comum do casal, dinheiro que foi doado pelos pais da recorrida ao casal e que este aceitou quando entregou o cheque ao vendedor do terreno. Dúvidas não subsistem, pois, que o dinheiro entregue, a atribuição foi feita em favor dos dois cônjuges conjuntamente, pelo que deverá tal quantia ser declarada como bem comum do casal. Aliás, se dúvidas houvesse, dispõem os artigos 1724º e 1725º do CC que fazem parte da comunhão os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do casamento e quando haja dúvida sobre a comunicabilidade dos bens móveis, estes consideram-se comuns. XVIII. O despacho recorrido fez errada interpretação da prova produzida, pelo que deve este alto tribunal proceder à alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos propugnados pelo recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº 1 do CPC. XIX. Por outro lado, o despacho em crise não opera a correcta aplicação do disposto nos artigos 217º, 232º, 940º, 945º nº 2, 947º nº 2, 1724º e 1725º do CC pelo que deve ser revogado com todas as consequências legais. Termos em que requer se dignem dar provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por douto acórdão que julgue improcedente a reclamação deduzida pela recorrida, com todas as consequências legais. A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado. Após os vistos legais, cumpre decidir. II. Questões a decidir: As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões: i. Se a fundamentação de facto da decisão recorrida deve ser alterada. ii. Se a quantia doada pelos pais da interessada AA era um bem próprio desta ou comum do casal e, na primeira hipótese, se a interessada tem um crédito sobre o património comum no valor do bem doado. III. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto: O recorrente impugnou a decisão sobre a matéria de facto, sustentando uma modificação substancial dessa decisão em vários pontos concretos. Mostram-se cumpridos de modo satisfatório os requisitos específicos desta impugnação, consagrados no artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que nada obsta à apreciação da mesma. O tribunal a quo julgou provados os seguintes pontos: 1. Para a aquisição do terreno e iniciar a construção da casa (imóvel a partilhar) a reclamante utilizou um valor que lhe foi doado pelos seus pais de 30.000,00 euros. 2. Os pais da reclamante dois anos depois, fizeram a mesma doação monetária à sua outra filha, CC, para repor a igualdade perante as suas duas e únicas filhas. E julgou não provados os seguintes pontos: a) o cheque foi entregue pelo seu sogro ao cabeça de casal, em branco, que o preencheu e entregou ao vendedor do terreno … e … tal doação foi feita ao casal e não à requerente, pois esta nem o cheque viu. b) o cheque foi emitido no dia e para ser usado no acto da escritura da aquisição do terreno. O recorrente entende que devem ser julgados provados os seguintes pontos: 1. O cheque de €30.000,00 foi um valor doado pelos pais da requerente para aquisição do terreno e iniciarem a construção da casa (imóvel a partilhar). 2. Os pais da reclamante anos depois, fizeram doação monetária à sua outra filha solteira, para repor a igualdade perante as suas e únicas filhas. 3. O cheque foi emitido para ser usado no acto da aquisição do terreno. 4. Tal doação foi realizada cerca de dois anos após o casamento. 5. Na escritura de compra e venda do terreno não ficou a constar qualquer quantia como sendo dinheiro próprio da requerente. Será talvez oportuno começar por recordar os factos alegados a este respeito. No requerimento onde deduziu a reclamação da relação de bens a reclamante alegou que: - Para adquirir o terreno e iniciar a construção da casa … a reclamante utilizou um valor que lhe foi doado pelos seus pais de 30.000,00 euros … - Os pais da reclamante … cerca de dois anos depois, fizeram a mesma doação monetária à sua outra filha, CC, para repor a igualdade perante as suas duas e únicas filhas. - Esse valor pertence, por lhe ter sido doado, à interessada reclamante, … Na resposta ao incidente o cabeça de casal opôs o seguinte: - A aquisição do terreno para a construção do imóvel fez-se, em parte, com dinheiro doado pelos pais da requerente. - O valor de €30.000,00 não foi doado à requerente mas … ao casal. - O cheque foi entregue pelo seu sogro ao cabeça de casal, em branco, que o preencheu e entregou ao vendedor do terreno. - Tal doação foi feita ao casal e não à requerente, pois esta nem o cheque viu. - O sogro quando lhe entregou o cheque, disse-lhe “isto é para vós começardes a fazer a vossa casa”. - O dinheiro destinava-se à construção da moradia do casal tanto que [o cheque] foi emitido no dia e para ser usado no acto da escritura da aquisição do terreno. Como se vê as partes estão de acordo sobre o objectivo da doação feita pelos pais da interessada sobre a utilização que foi feita da quantia doada. Sobre esses aspectos, aliás, a prova por declarações e depoimentos é uniforme. Os pais da interessada quiseram ajudar a filha no início da sua vida de casada, cedendo recursos financeiros para que esta pudesse vir a ter casa própria para nela instalar a sua vida familiar. O dinheiro doado foi usado para pagar parte do preço pago pela aquisição do terreno onde a filha e o genro decidiram construir e de facto depois construíram a sua casa de família. Ao contrário do que vem referido o dinheiro não foi usado na construção propriamente dita da casa porque nem sequer foi suficiente para pagar o preço do terreno onde depois se iniciou a construção daquela (o restante do preço foi pago com dinheiro de outra origem de que o casal dispunha), razão pela qual, tendo-se esgotado naquele acto, não pode ter servido para pagar despesas que só foram contraídas depois. Ouvida a totalidade dos depoimentos e descontando a tendência das pessoas para ajustarem o seu relato à versão que é mais da sua simpatia ou fazerem declarações por mera crença, convicção ou desejo íntimo, e não por conhecimento pessoal, o que se retira à saciedade dos depoimentos é que na data em que a doação foi feita ninguém se lembrou da possibilidade de o casamento da filha dos doadores vir posteriormente a dissolver-se por divórcio e/ou do que sucederia nessa situação em relação à doação e, por isso, à data da doação não foi formada qualquer vontade a essa respeito. É um dado natural que por detrás de disposições desta natureza está normalmente a relação entre pais e filhos: os pais fazem doações aos filhos porque estes são …seus filhos. Mas os filhos, após o respectivo casamento, são já uma nova família que aproveita em comum recursos e património de que dispõe. Daí que, na prática, sempre que se sabe que o bem doado será usado, fruído e disposto pelo casal, seja, em regra, muito difícil distinguir entre a vontade de doar ao filho e a vontade de doar ao casal de que o filho faz parte. No caso, o que se retira é que os pais doadores queriam ajudar a filha na sua vida autónoma subsequente ao casamento e à constituição de família, proporcionando-lhe uma quantia para a ajudar e ao marido (no fundo o casal) a obterem (construírem) casa própria para ser a respectiva morada de família. O mesmo fizeram, aliás, com a outra filha, quando esta tomou a decisão de se casar, assim concretizando um desejo, muito comum os pais na nossa sociedade, de tratarem de igual todos os filhos, dando a uns o mesmo que dão aos outros. O doador revelou que o dinheiro foi entregue por meio de cheque sacado para ser usado no pagamento de parte do preço da compra do terreno, revelando que sacou o cheque no próprio dia da escritura e esteve no cartório notarial aquando da outorga da mesma, sabendo que esse dinheiro acabou por ser entregue ao vendedor do terreno, que, aliás, conhecia e com quem falou. Nessa medida, e porque o que interessa não é saber como as pessoas, com base numa vontade hipotética, agora interpretam o que fizeram, mas sim averiguar o que na altura fizeram e como esses actos deverão ser interpretados quanto à vontade real, adquire importância probatória absolutamente decisiva o teor da própria escritura de compra e venda do terreno, que, com todo o devido respeito, a 1.ª instância desprezou indevidamente, agarrando-se apenas à literalidade dos depoimentos e formando a sua convicção com base numa credibilidade insusceptível de fundamentar em termos objectivos. A referida escritura (cujo preço de venda é simulado, sendo o preço real superior ao declarado) encontra-se junta aos autos (foi junta na audiência de julgamento) e nela surge como comprador exclusivamente o agora cabeça de casal, e não o casal constituído por ele e pela interessada reclamante. O segundo outorgante é com efeito apenas «BB, NIF ...06, casado com AA sob o regime da comunhão de adquiridos» e foi apenas a ele que o primeiro outorgante declarou «vender ao segundo outorgante, BB, o prédio rústico …». Por outras palavras, a filha do doador não foi compradora do terreno … para pagamento de cujo preço a doação foi feita e o valor doado foi usado. Muito embora face ao regime de bens do casamento o imóvel adquirido por um dos cônjuges na constância do casamento passasse a fazer parte da comunhão (artigo 1724.º do Código Civil), a verdade é que, estivesse ou não o doador informado da consequência jurídica do acto praticado (aparentemente não estava, mas também não equacionou a possibilidade de o casal se vir a divorciar), tendo o dinheiro doado sido consciente e deliberadamente entregue na ocasião e para pagamento do preço de um imóvel que foi adquirido unicamente pelo genro, sem a intervenção da filha, é forçoso concluir que a doação foi feita, pelo menos, em favor dos dois cônjuges conjuntamente (parte final do n.º 1 do artigo 1729.º do Código Civil). Como essa circunstância, segundo estabelece a norma citada, determina que se considere que a vontade do doador foi que o bem doado (a quantia em dinheiro) entrasse na comunhão, não é possível julgar provado facto diverso quando não existe qualquer outro meio de prova com suficiente valor para afastar o que a norma manda que se “entenda”. Refira-se, além disso, que a audição da gravação da audiência de julgamento permite concluir que os depoimentos produzidos são quase imprestáveis do ponto de vista probatório por ser notória a inclinação e o subjectivismo dos depoentes, manifesta a circunstância de estarem a ser confrontado com uma questão que antes do processo não lhes passava pela cabeça e patente a oscilação das respostas consoante o que lhes é sugestionado pela formulação das perguntas ou pelas objecções à primeira resposta que pronunciam dado que agora já têm consciência do que está em causa e conhecimento do que devem dizer para o efeito. Por conseguinte, partindo dos factos alegados no incidente, do acordo dos interessados quanto a parte deles, do teor dos depoimentos e da mencionada escritura pública, são os seguintes os factos que se devem julgar e se julgam provados: 1. Cerca de dois anos após o casamento, os interessados AA e BB resolveram adquirir um terreno para nele construírem a sua casa de morada de família, para o que não dispunham da totalidade do dinheiro. 2. Os pais da interessada AA decidiram contribuir com dinheiro para a concretização desse objectivo. 3. No dia 10-02-2000 foi celebrada a escritura pública de compra do terreno, a qual foi outorgada, como comprador, apenas pelo interessado BB. 4. Nesse dia o pai da interessada AA sacou um cheque sobre uma sua conta bancária, no valor de seis milhões de escudos, destinado a ser entregue ao vendedor do terreno, para pagamento de parte do respectivo preço, conforme ocorreu, ajudando dessa forma a filha a alcançar aquele objectivo. 5. Posteriormente, o pai da interessada AA dispôs de quantia equivalente a favor da sua outra filha que, entretanto, resolveu casar-se e ter também casa própria. Procede assim nesta medida a impugnação da decisão sobre a matéria de facto. IV. Fundamentação de facto: Encontram-se agora julgados provados em definitivo os seguintes factos: 1. Cerca de dois anos após o casamento, os interessados AA e BB resolveram adquirir um terreno para nele construírem a sua casa de morada de família, para o que não dispunham da totalidade do dinheiro. 2. Os pais da interessada AA decidiram contribuir com dinheiro para a concretização desse objectivo. 3. No dia 10-02-2000 foi celebrada a escritura pública de compra do terreno, a qual foi outorgada, como comprador apenas pelo interessado BB. 4. Nesse dia o pai da interessada AA sacou um cheque sobre uma sua conta bancária, no valor de seis milhões de escudos, destinado a ser entregue ao vendedor do terreno, para pagamento de parte do respectivo preço, conforme ocorreu, ajudando dessa forma a filha a alcançar aquele objectivo. 5. Posteriormente, o pai da interessada AA dispôs de quantia equivalente a favor da sua outra filha que, entretanto, resolveu casar-se e ter também casa própria. V. Matéria de Direito: Está em causa no incidente da reclamação da relação de bens saber se o bem doado pelos pais da reclamante é um bem próprio dela ou um bem comum do casal. Para isso importa saber qual é o regime de bens do casamento. O regime de bens do casamento é o conjunto de regras cuja aplicação define se os bens do casal são património comum, património do marido ou património da mulher, bem como diversos outros aspectos da vivência conjugal como a administração dos bens, a responsabilidade por dívidas e pelos encargos da vida familiar, etc.. Os nubentes podem, em regra escolher o «regime de bens» mas as normas que integram cada um dos regimes previstos são impostas por lei e nessa medida imperativas, excepto quando elas próprias consentirem o acordo das partes. No caso o casamento dos interessados na partilha foi celebrado no regime da comunhão de adquiridos. Nos termos do artigo 1722.º do Código Civil nesse regime de bens são considerados bens próprios dos cônjuges, entre outros, os bens que lhes advierem depois do casamento por doação [n.º 1, alínea b), parte final]. Para Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito da Família, Introdução, Direito Matrimonial, Volume I, 5ª edição, página 604, isso é assim por que «os bens adquiridos por estas formas não resultam do esforço partilhado dos cônjuges que justifica a comunhão de adquiridos». Todavia, isto não é sempre assim. A lei, com efeito, ressalva a hipótese de a vontade do doador ser diferente, tutelando essa vontade. Estabelece o artigo 1729.º do Código Civil o seguinte: 1. Os bens havidos por um dos cônjuges por meio de doação ou deixa testamentária de terceiro entram na comunhão, se o doador ou testador assim o tiver determinado; entende-se que essa é a vontade do doador ou testador, quando a liberalidade for feita em favor dos dois cônjuges conjuntamente. 2. O disposto no número anterior não abrange as doações e deixas testamentárias que integrem a legítima do donatário. O n.º 1 da norma prevê assim duas situações. A primeira consiste em o disponente ter manifestado a vontade de que o bem doado ou deixado em testamento entre na comunhão: «assim o tiver determinado». Esta situação pressupõe duas coisas: a vontade real e a sua exteriorização. A segunda situação é a de o disponente não ter manifestado essa vontade (nem a vontade contrária) mas ter feito a disposição em favor dos dois cônjuges conjuntamente. O que releva para o seu preenchimento é, por um lado, a ausência de manifestação de vontade (o disponente não manifestou se queria que o bem entrasse ou não entrasse na comunhão), e, por outro lado, que a disposição seja em favor (constitua um benefício) dos dois cônjuges conjuntamente (ou seja, um benefício para o casal enquanto tal, para a vida em comum). Comentando este preceito, escreveram Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. IV, 2ª edição revista e actualizada, 1992, página 435, que «o ingresso, na comunhão, de bens doados ou deixados a um dos cônjuges, previsto no n.º 1 do artigo 1729.º, não constitui propriamente uma excepção ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 1722.º. Trata-se apenas de reconhecer a existência de casos em que a vontade do doador ou do autor da disposição mortis causa é a de beneficiar conjuntamente os dois cônjuges. Em duas hipóteses se admite semelhante intenção. A primeira é a de, sendo a doação ou a deixa feita formalmente a um só dos cônjuges, o doador ou o testador ter manifestado a intenção de que os bens doados ou deixados entrem na comunhão. A segunda é a de a liberalidade ter sido feita conjuntamente a ambos os cônjuges. Quando assim seja, em lugar de ficar cada um dos donatários ou legatários com metade dos bens era propriedade exclusiva, entrarão todos os bens no património comum dos cônjuges». Na obra Código Civil - Livro IV - Direito da Família, coordenadora Clara Sottomayor, 2020, págs. 442 e 443, Remédio Marques assinala que o fim da norma é a prevalência da vontade do disponente, afirmando que «o legislador reconhece que, por vezes, a vontade do doador deve prevalecer sobre o regime legal supletivo, designadamente o previsto na al. b) do n.º 1 do art. 1722.º. Neste sentido, prepondera a vontade expressa do disponente ao efectuar a doação a um dos cônjuges, pelo que os bens doados ou deixados por testamento ingressam na messa dos bens comuns». E acrescenta: «se não for detectada uma declaração expressa no sentido de o bem doado ou deixado por testamento entrar na comunhão, a lei presume que é essa a vontade do disponente quando a liberalidade for efectuada em favor dos dois cônjuges conjuntamente. (…) Se, ao invés, a liberalidade for efectuada a um só dos cônjuges e o doador ou testador tiverem manifestado a intenção expressa de os bens objecto da liberalidade então aplicar-se-á a regra geral: o bem ingressa na massa dos bens próprios do beneficiário da liberalidade». Também na obra Código Civil Anotado (volume II), coordenadora Ana Prata, Almedina, 2017, páginas 636/637, Rute Teixeira Pedro defende que «as normas contidas no n.º 1 encontram a sua explicação num objectivo de tutela da autonomia privada, ao reconhecerem efeitos à vontade do doador (à vontade real na norma da 1ª parte do n.º 1, e à vontade presumida na norma contida na 2.ª parte do mesmo número). Assim, apesar de os bens adquiridos por um dos cônjuges, através de uma doação (inter vivos ou mortis causa) ou de uma disposição testamentária, deverem ser qualificados, em princípio, por força da disposição legal do art. 1722.º, n.º 1-b), como bens próprios do cônjuge adquirente, a lei admite que as partes - na doação - e o testador - na disposição testamentária - disponham no sentido de que esses bens integrem o património comum, ditando essa manifestação de vontade do(s) particular(es) a qualificação do bem como bem comum. Para além das situações em que existe uma exteriorização de uma vontade nesse sentido, a lei presume que essa será a vontade do autor da liberalidade, quando ela seja feita, em benefício conjuntamente dos dois cônjuges». A autora acrescenta ainda uma nota que não se encontra noutros autores[1] e que não resulta com facilidade da norma (cuja redacção literal usa a palavra «considera-se», não a palavra «presume-se») segundo a qual «trata-se de uma presunção que pode ser ilidida, se, na operação de interpretação da doação, à luz do art. 236.º, ou da disposição testamentária, de acordo com o art. 2179.º, se concluir que outra era a vontade real do disponente». Ora no caso a matéria de facto provada não revela que os doadores hajam manifestado de modo expresso a vontade de que o bem doado entrasse na comunhão conjugal, razão pela qual não tem aplicação a primeira parte do n.º 1 do artigo 1729.º do Código Civil. Todavia, a matéria de facto revela que se tratou da doação de uma quantia em dinheiro com o objectivo de contribuir para a filha e o marido concretizarem a vontade comum de construírem uma casa para ser a morada de família, feita no momento em que (só) o marido da filha dos doadores adquiriu por compra e venda um terreno destinado a essa construção (o qual, em virtude do regime de bens do casamento, passou a ser um bem comum), tendo o dinheiro sido imediatamente usado, com o conhecimento e a aceitação do doador, para o comprador pagar parte do preço do imóvel. Esta realidade de facto, na medida em que traduz uma doação feita em favor dos dois cônjuges conjuntamente, integra-se na previsão da segunda parte do n.º 1 do artigo 1729.º do Código Civil que a ela associa a consequência jurídica de o bem doado integrar a comunhão. Pode colocar-se a questão de saber se esta segunda parte da norma consagra uma mera presunção iuris tantum ou relativa sobre a vontade real do disponente (como parece depreender-se do fim social da norma: a tutela da vontade real do disponente), ou, ao invés, consagra uma consequência jurídica inevitável (entende-se, ou seja, conclui-se, considera-se) quando a liberalidade é feita em determinadas circunstâncias que indiciam a vontade correspondente (de forma a atenuar ou evitar os conflitos motivados pela controvérsia sobre a natureza própria ou comum do bem). Como quer que seja, no caso essa discussão é irrelevante porque mesmo a admitir-se que se trata de uma presunção iuris tantum não podemos deixar de concluir que a presunção não foi ilidida uma vez que se provaram apenas as circunstâncias em que a doação foi feita e o objectivo final da sua realização. Nesse sentido, por aplicação do disposto no artigo 1729.º do Código Civil a quantia doada pelos pais da reclamante entrou na comunhão, passou a ser bem comum do casal, razão pela qual sobre estes bens não existe qualquer passivo a favor da reclamante com essa natureza e proveniência. A reclamação devia, por isso, ter sido julgada improcedente nesta parte, motivo pelo qual o recurso procede. VI. Dispositivo: Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, julgando improcedente a reclamação da falta na relação de bens de um passivo a favor da interessada AA no montante de €30.000. Custas do recurso pela recorrida, cabendo ao Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P., atento o apoio judiciário de que aquela beneficia, a obrigação de reembolsar o recorrente do valor da taxa de justiça que suportou. * Porto, 9 de Novembro de 2023. * Os Juízes Desembargadores Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 779) António Paulo Vasconcelos António Carneiro da Silva [a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas] __________ [1] Por exemplo, Antunes Varela, in Direito da Família, 1.º volume, 5.ª edição, Petrony, 1999, página 458, afirma que «os bens recebidos por sucessão ou doação entrarão na categoria dos bens comuns, quando forem deixados ou doados conjuntamente a ambos os cônjuges ou quando, deixados ou doados apenas a um, o testador ou o doador declarar que devem entrar na comunhão (art. 1729.º)». |