Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0450927
Nº Convencional: JTRP00035273
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: EXECUÇÃO
EMBARGOS DE EXECUTADO
AVAL
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RP200404260450927
Data do Acordão: 04/26/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Área Temática: .
Sumário: I - Os avalistas embargantes não sendo sujeitos da relação subjacente à subscrição de uma livrança, não podem deduzir defesa, ou oposição à execução com base na relação extracartular a que são alheios.
II - Actua com abuso do direito a exequente que instaura execução contra os obrigados cambiários, sabendo que a operação de crédito que esteve na base da emissão do titulo não se chegou a concretizar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1 – B........... e C............ (ambos, .............) deduziram embargos de executado à execução que, sob o nº .../.., lhes é movida, na comarca de ............, pelo “Banco X...........”, pedindo que, na respectiva procedência, seja julgada extinta aquela execução.
Fundamentando a respectiva pretensão, alegaram, essencialmente e entre o mais:
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a) – Desde Setembro de 2000, não houve quaisquer relações comerciais entre a exequente e a “D...........” (subscritora da livrança dada à execução);
b) – A livrança junta aos autos ficou na posse da exequente, vários anos antes, talvez em 96 ou 97, tendo sido subscrita pela “D............” e avalizada pelos embargantes, para titular uma operação pretendida por aquela;
c) – Porém, tal operação não veio a concretizar-se, pois a exequente não a aprovou, ficando, todavia, com o título e não o devolvendo à subscritora, nem aos embargantes, os quais (todos) ficaram convencidos que a exequente tinha destruído tal título;
d) – Não existindo qualquer relação subjacente ao dito título, a utilização deste não passa de um expediente da embargada para tentar cobrar uma dívida de que é responsável, exclusivamente, a subscritora, “D...............”, usando um título que, bem sabe a embargada, não tem qualquer suporte fáctico, nem legal;
e) – Acrescendo que tal quantia já havia sido executada, nos autos de execução ordinária nº ../.., deste Tribunal.
Não foi apresentada contestação.
No subsequente despacho saneador, o M.mo Juiz, além do mais tabelar, conheceu do mérito dos embargos, julgando-os improcedentes, essencialmente, com base na consideração de que os embargantes, na sua qualidade de avalistas da subscritora da livrança dada à execução, não podem defender-se esgrimindo a inexistência da relação subjacente à incorporada na livrança.
Inconformados, apelaram os embargantes, visando a revogação da decisão recorrida, com a inerente procedência dos embargos, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes conclusões:
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1ª - Os factos alegados nos embargos, não tendo a embargada cumprido o dever da impugnação no respeito do princípio do contraditório, deviam ter sido considerados assentes;
2ª - O Tribunal devia ter conhecido da alegada execução em outro processo, aliás do mesmo Tribunal, da quantia exequenda;
3ª - O título em execução nunca teve qualquer operação que o justificasse;
4ª - A apelada preencheu e executou abusivamente tal título;
5ª - Não havendo qualquer responsabilidade da afiançada, não pode haver responsabilidade dos apelantes;
6ª - Porque a apelada já havia executado, anteriormente, a quantia de que a avalizada era devedora, não podia vir repetir a execução, muito menos com a utilização abusiva de um título de que bem sabia não ser portadora legítima;
7ª - Verifica-se a inexistência de título executivo, na presente execução, por o documento junto não preencher os legais requisitos;
8ª - Ainda que – o que só por mera hipótese académica se concede – fosse aceitável a tese formalista e rigorosamente literal explanada na decisão recorrida, a manutenção da mesma decisão e a obrigação, por parte dos apelantes, de pagarem à apelada o que lhe não devem, nem nunca deveram, constituiria um abuso do direito, pois sempre seria ilegítimo o exercício desse direito, porque, ao tentar exercê-lo, a apelada excederia manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social e económico desse direito, o que terá sempre de declarar-se, nos termos do art. 334º do CC;
9ª - A sentença recorrida violou os arts. 334º do CC, 2º § do art. 32º e 76º, ambos da L.U.L.L. (Lei Uniforme sobre Letras e Livranças), e os arts. 45º, 46º, 484º, 660º e 668º, nº1, al. d), todos do CPC.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2 – Sendo o âmbito e objecto do recurso delimitados (para além das meras razões de direito e das questões de oficioso conhecimento) pelas conclusões formuladas pelo recorrente (arts. 660º, nº2, 664º, 684º, nº3 e 690º, nº1, todos do CPC), impõe-se apreciar e decidir, no âmbito da presente apelação, as seguintes questões:
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I – Possibilidade, ou não, de os embargantes-executados, na sua qualidade de avalistas da subscritora da livrança dada à execução, se defenderem, contrapondo à exequente a inexistência da obrigação causal, fundamental ou subjacente à obrigação cambiária incorporada naquele título de crédito; e
II – Qualificação da conduta da exequente-embargada como integrando, ou não, exercício abusivo do respectivo direito.
Vejamos:
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3 – Em explicitação do que, na douta decisão apelada, apenas poderá haver-se por implícito, elencaremos, antes de mais, os factos relevantes e que temos por provados, ou seja, os constantes das als. a) a d) de 1 supra, considerados confessados, por terem sido alegados pelos embargantes e não se encontrarem em oposição com os expressamente articulados pela exequente, no respectivo requerimento executivo – arts. 817º, nº3 e 484º, ambos do CPC –, a que se impõe acrescentar que:
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e) – A exequente é legítima portadora de uma livrança de Esc. 15.000.000$00 (€ 74.819,68), subscrita, em 28.06.01, por “D............” e avalizada pelos executados, ocorrendo, em 28.08.01, o respectivo vencimento.
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4 – I – Quanto à 1ª das aludidas questões:
Como decorre do art. 17º (aplicável por força do art. 77º), em princípio, só no âmbito das denominadas relações imediatas – as existentes entre os obrigados cambiários que se encontram ligados pela relação subjacente (Cfr. Pedro de Vasconcelos – “Direito Comercial, Títulos de Crédito”, págs. 37) é possível discutir a relação fundamental, lançando-se mão de toda e qualquer defesa, tudo se passando, então, como no regime comum das obrigações, ou seja, como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta (Cfr. Prof. Ferrer Correia, in “Letra de Câmbio”, págs. 87).
Não sendo os avalistas-embargantes e, ora, apelantes sujeitos da relação subjacente à emissão da livrança, não podem os mesmos deduzir defesa ou oposição à respectiva execução, com base na relação fundamental, a que são alheios.
É certo que o aval, como os outros actos cambiários, tem uma relação subjacente, a qual, todavia, é constituída pela relação jurídica que funda a prestação do aval e só pode ser invocada, obviamente, nas relações entre o avalista e o avalizado (Pedro de Vasconcelos, Ob. citada, págs. 128). Daí que, como sustenta Paulo Sendim (“Letra de Câmbio”, Vol. II, págs. 842), “o adquirente da letra, mesmo como portador imediato, em relação à operação avalizada, está sempre em situação de portador mediato, face ao seu aval, que o garante com um valor patrimonial correspondente, mas independente, livre das excepções que, porventura, se formem na operação garantida”.
Não podem, pois, os embargantes-avalistas deduzir oposição à execução, invocando defesa que só poderia ser oposta, no domínio das relações imediatas existentes entre a exequente – portadora da livrança em causa e a respectiva subscritora (“D.............”), precisamente por não serem sujeitos da relação material respectiva (“res inter alios acta”, não havendo, assim, a exigida ligação imediata entre eles e a portadora da livrança, necessária à justificação dessa atitude. É que, como sustenta o Prof. Ferrer Correia (Ob. citada, págs. 207), além de não ser subsidiária, a obrigação do avalista não é senão imperfeitamente uma obrigação acessória relativamente à do avalizado. Trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da última quanto ao lado formal, uma vez que se mantém ainda que a obrigação garantida seja nula, salvo “por vício de forma” (art. 32º). E em idêntico sentido opina Pedro de Vasconcelos (Ob. citada, págs. 127), para quem a obrigação do avalista é autónoma, pois, embora se defina pela do avalizado, “vive e subsiste, independentemente desta”.
Aliás, as considerações da natureza jurídica do aval apontam decididamente no sentido de – fora a invocação da excepção do pagamento – não lhe ser aplicável o regime do art. 637º, nº2, do CC, o qual permite ao fiador opor ao credor os meios de defesa que competem ao devedor, já que tal regime se mostra incompatível com o carácter autónomo e abstracto daquele acto cambiário, sendo que só são aplicáveis ao aval os princípios da fiança que, a despeito das afinidades existentes entre ambas as figuras, não contradigam o carácter cambiário daquele – Cfr. Ac. do STJ, de 23.01.86 (Bol. 353º/482) e Prof. Ferrer Correia (Ob. citada, págs. 198).
Tudo, pois, razões para, em complemento das aduzidas na douta decisão apelada, ter de concluir-se em sentido negativo quanto à 1ª das sobreditas questões: os embargantes não podem, na sua qualidade de avalistas da subscritora da livrança, contrapor à beneficiária desta e, ora, exequente-embargada, a inexistência da obrigação causal, fundamental ou subjacente à obrigação cambiária naquela incorporada e que, no caso, se pretenderia consistir em (inverificado) financiamento (mediante outorga de mútuo) por parte da exequente à subscritora da livrança e avalizada dos executados-embargantes.
Assim improcedendo, pois, as correspondentes conclusões formuladas pelos apelantes.
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II – Passando à apreciação da 2ª das sobreditas questões:
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A) – O art. 334º do CC diz que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito.
Aceita o legislador a concepção objectivista, o que não significa “que ao conceito de abuso do direito consagrado no art. 334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido” (Cfr. Profs. Pires de Lima – Antunes Varela, in “CC Anotado”, Vol. I – 4ª Ed., págs. 298).
Naquela concepção, não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico, exigindo-se, contudo, que o titular do direito tenha excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício (Cfr. Prof. Almeida Costa, in “Obrigações”, págs. 52 e segs.).
A figura do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida. Por um lado, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico, por outro, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
Em consonância, podem, nesta temática, ser convocados os seguintes ensinamentos doutrinais:
-- Manuel de Andrade referia-se, a propósito, aos direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça” (“Teoria Geral das Obrigações”, págs. 63) e às “hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição” (“Sobre a validade das cláusulas de liquidação de partes sociais pelo último balanço”, in R.L.J., Ano 87º/307);
-- Vaz Serra refere-se, igualmente, à “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” (“Abuso do Direito”, in Bol. 85º/253);
-- Para Jorge Coutinho de Abreu (“Do Abuso de direito”, págs. 43), “Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”;
-- E, para os Profs. Pires de Lima – Antunes Varela (in “CC Anotado”, Vol. I, 4ª Ed., págs. 300), “A nota típica do abuso do direito reside...na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido”.
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B) – Transpondo os enunciados ensinamentos e princípios para o caso debatido nos autos, afigura-se-nos que não pode deixar de ser considerado, ante a factualidade tida por provada, que a embargada, ao propor a execução a que se reportam os presentes embargos, incorreu em abuso do correspondente direito. Na realidade, ofende clamorosamente a consciência ético-jurídica de que a comunidade é tributária a prossecução de um interesse, por parte da exequente-embargada, no património dos executados-embargantes, mediante a invocação da qualidade (e inerente vinculação cambiária a que foi feita referência), detida por estes últimos, de avalistas de uma livrança subscrita por “D............”, a favor da exequente, sem que a operação que originou tal emissão tivesse sido objecto de concretização, por falta da correspondente aprovação por parte da exequente-embargada, a qual, não obstante, não devolveu à subscritora o aludido título de crédito.
Tendo, assim, sido excedidos, manifestamente, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito de que a exequente, em princípio, seria titular, inexorável é a conclusão de que, no caso, aquela incorreu, em moldes que raiam a litigância de má fé, em exercício abusivo de tal direito, nos termos previstos no art. 334º do CC, impondo-se, pois (trata-se de questão que, para além de suscitada pelos apelantes, sempre seria, como é pacífico, de conhecimento oficioso), a paralisação da eficácia visada com tal exercício, tendo-se, no caso, por inverificado o correspondente direito. Com a correspondente procedência, nesta parte, das conclusões formuladas pelos apelantes, a determinar a revogação da douta decisão apelada.
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5 – Em face do exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, em consequência do que, revogando-se a, não obstante, douta decisão recorrida, se julgam procedentes os embargos de executado, com a inerente extinção da execução.
Custas, em ambas as instâncias, pela apelada-embargada.
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Porto, 26 de Abril de 2004
José Augusto Fernandes do Vale
António Manuel Martins Lopes
Rui de Sousa Pinto Ferreira