Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3636/23.8T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SEGUNDO PEDIDO
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RP202407103636/23.8T8OAZ.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A exoneração do passivo restante é uma medida especial de proteção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste.
II - Não é fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo da alínea c) do nº 1 do art. 238º do CIRE, a circunstância de o insolvente no período de dez anos anterior à data do início do presente processo de insolvência ter formulado pedido de exoneração do passivo restante no âmbito de outro processo sobre o qual incidiu despacho inicial de admissão, mas cujo procedimento veio depois a ser declarado cessado antecipadamente por razões imputáveis ao próprio insolvente.
III - O despacho liminar a proferir em incidente aberto no novo processo de insolvência não é suscetível de contrariar decisão proferida em incidente que correu em processo de insolvência anterior, porque as circunstâncias que permitem extrair a conclusão quanto à admissibilidade do pedido formulado assentam nas causas que nortearam a situação de insolvência decretada em cada um dos processos e na conduta do requerente do pedido, tendo sempre por referência a concreta declaração de insolvência, no âmbito da qual o pedido é formulado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 3636/23.8T8OAZ.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis - Juiz 2

Juíza Desembargadora Relatora:

Alexandra Pelayo

Juízes Desembargadores Adjuntos:

Rui Moreira

Rodrigues Pires

SUMÁRIO:

………………………………

………………………………

………………………………

Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:

AA veio apresentar-se à insolvência, tendo requerido a exoneração do passivo restante.

Por sentença proferida em 12.10.2023 foi declarada a insolvência de AA.

Em 18.2.2024 foi proferida sentença que, por insuficiência da massa insolvente, nos termos dos arts. 230º n.º 1 al. d) e 232º, ambos do C.I.R.E., declarou encerrado o processo, tendo mais sido declarada fortuita a insolvência do/a/s devedor/a/s – artigo 233º nº 6 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Foi ainda proferido o seguinte despacho: “Aguardem os autos pelo cumprimento do disposto no art. 233º n.º 5 do CIRE, após o que tomaremos posição quanto ao pedido de exoneração do passivo restante.

Sem prejuízo, cumpra o contraditório quanto ao eventual indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, atenta a existência de caso julgado, relativamente aos créditos que foram reconhecidos no âmbito do Proc. 1326/12.6TBOAZ e foram de novo reclamados e reconhecidos nestes autos.

A administradora da insolvência e dos credores não se opuseram.

Pronunciou-se o insolvente no sentido de o seu pedido não ser indeferido liminarmente.

Veio a ser preferido despacho, datado de 3.4.2024, que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, por constatar que compulsadas as reclamações de créditos juntas aos autos, quase todos os créditos reconhecidos – com exceção de parte dos créditos reclamados pela Autoridade Tributária - foram ou poderiam ter sido reconhecidos no âmbito do Proc. 1326/12.6TBOAZ, processo no âmbito do qual foi proferida decisão de recusa da exoneração do passivo restante.

Assim, e por entender, que “os créditos da segurança social são considerados créditos parafiscais e têm um regime idêntico aos créditos tributários, sendo que estes, estão por força da alínea d) do nº2 do art. 245º do CIRE estão excluídos da exoneração, por isso, seria inútil admitir parcialmente o incidente de exoneração em relação a este crédito, não abrangido pela autoridade do caso julgado decorrente da decisão proferida no anterior processo.

Destarte, mostra-se correta a fundamentação do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante ao abrigo do efeito positivo ou autoridade caso julgado.”

Inconformado, o insolvente AA veio interpor o presente recurso de apelação, tendo apresentado as seguintes conclusões:

1. O Insolvente requereu a sua insolvência pessoal a qual foi declarada fortuita.

2. O Administrador de Insolvência e os Credores não se pronunciaram contra a exoneração do passivo restante e a prolação de Despacho nesse sentido.

3. O Insolvente, liquidou após um primeiro processo de insolvência no qual foi declarado insolvente, parte de créditos que foram reclamados no primeiro processo de insolvência.

4. As circunstâncias desta insolvência, são também diferentes – aumento das despesas pessoais e familiares e impossibilidade de liquidação das mesmas.

5. Nunca o Insolvente beneficiou de Exoneração do Passivo Restante.

6. Na sua última insolvência, o arguido somente não beneficiou da mesma, por mero incumprimento de entrega de documentação, nunca tendo sido ouvido no âmbito desse processo.

7. Nenhum dos Credores se pronunciou contra a prolação do referido Despacho inicial.

8. De considerar, que, como tem vindo a entender a jurisprudência (Cfr Acórdão da Relação de Évora, de 6.04.2017, processo n.º5416/16.8T8STB-B.E1) a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração de passivo restante proferida em processo de insolvência não constitui caso julgado no novo processo de insolvência em que o devedor formule novo pedido de exoneração.

9. No processo atual a conduta do insolvente tem que ser valorada em função das circunstâncias que nortearam a nova declaração de insolvência, pelo que o objeto do processo é diferente.

10. É certo que os créditos e os credores em ambos os processos são essencialmente os mesmos, mas também é certo que o devedor foi declarado novamente insolvente e o pedido de exoneração reporta-se à nova declaração de insolvência.

11. Ora, se a lei permite que quem tenha sido declarado insolvente o possa voltar a ser, posto que ocorram os factos conducentes a tal situação, como agora sucedeu, também o insolvente, que assim, voltou a ser declarado há-de poder dispor de todos os mecanismos processuais atinentes ao seu estado, como sejam o de requerer a exoneração do passivo restante outra vez, atenta a sua nova situação.

12. Embora não diga diretamente respeito à questão do caso julgado, afigura-se-nos incongruente face à lei vedar ao insolvente o pedido de exoneração do passivo restante, quando, caso tivesse beneficiado da exoneração, poderia voltar a formular esse pedido ao fim de 10 anos, como decorre da alínea c) do n.º 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

13. Pelo exposto, violou o tribunal “a quo” violou as normas contidas no artigo 235.º e 238.º a contrario sensu do CIRE.

Pelo exposto, revogando os Venerandos Desembargadores o Despacho de Indeferimento Liminar da Exoneração e substituindo-o, ou, determinando a prolação de Despacho de deferimento inicial, farão, a acostumada e inteira JUSTIÇA.”

Não houve resposta ao recurso.

O recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – cfr. arts. 627º, 629º, 631º, 637º, 638º, 639º, 641º e 644º, todos do CPC, e art. 14º do CIRE.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a questão a dirimir, delimitada pelas conclusões do recurso é a de saber se deve ou não ser mantida a decisão que indeferiu liminarmente a exoneração do passivo restante.

III-FUNDAMENTAÇÃO:

Com relevância para a decisão, o tribunal a quo considerou assentes os seguintes factos:

- Por sentença proferida em 12.10.2023 foi declarada a insolvência de AA.

- Quase todos os créditos reconhecidos – com exceção de parte dos créditos reclamados pela Autoridade Tributária - foram ou poderiam ter sido reconhecidos no âmbito do Proc. 1326/12.6TBOAZ, processo no âmbito do qual foi proferida decisão de recusa da exoneração do passivo restante.

-Nestes autos de insolvência, o único crédito novo reconhecido é um crédito da segurança social, no valor de € 158,31 euros.

Constam ainda do processo, os seguintes factos, com relevância para a decisão:

-O devedor fora já declarado insolvente por Sentença de 8 de Junho de 2012, pelo Tribunal Judicial de Oliveira de Azeméis - 1º Juízo Cível no processo 1326/12.6TBOAZ e qual, após reforma, foi distribuído ao Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis - Juiz 2.

-Por despacho proferido em 19.1.207 naqueles autos, foi recusada ao insolvente, a exoneração do passivo restante ao abrigo do art. 243º do CIRE, por se entender ter o “devedor de forma reiterada ter incumprido os seus deveres decorrentes da exoneração”, verificando-se os pressupostos conducentes à cessação antecipada do procedimento de exoneração”.

IV-APLICAÇÃO DO DIREITO:

A exoneração do passivo restante constitui uma medida especial de proteção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

Tal como decorre do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2003, de 18 de Março, é uma solução que se inspirou no modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente.

O devedor mantém-se por um período de cessão, equivalente a três anos, adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não tenham sido integralmente satisfeitos e obriga-se, durante esse período, no essencial, a ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário, que afetará os montantes recebidos ao pagamento aos credores.

A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, nos termos do disposto no art. 245º do CIRE.

A concessão da exoneração compreende sempre dois momentos, caracterizados basicamente por duas decisões: o chamado despacho inicial e a decisão final da exoneração.

Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial a determinar que, no referido período de três anos de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade designada por fiduciário (cf. art.º 239.º, n.º 2 do CIRE).

A estes dois momentos certos, a lei acrescenta dois outros momentos decisórios eventuais: a cessação antecipada do procedimento (cfr. art. 243º do CIRE) e a revogação da exoneração (cfr. art.246º do CIRE).

A exoneração dos créditos pode ser recusada no decurso do período de três anos se houver fundamento para fazer cessar antecipadamente o incidente e, apesar de concedida (a final), a exoneração pode ainda ser revogada, no ano subsequente ao trânsito em julgado da decisão que a concedeu, precisamente com os mesmos fundamentos que teriam determinado o indeferimento liminar ou a recusa antecipada de exoneração.

Desta forma, o despacho inicial de concessão da exoneração não consubstancia uma decisão definitiva, garantido apenas a passagem do processo para a fase subsequente, o período de cessão.

Por sua vez a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos porque o poderia ter sido antecipadamente (art. 244º nº 2 do CIRE).

Está em causa neste recurso o despacho que indeferiu liminarmente a pretensão do insolvente de exoneração do passivo.

Dispõe o artigo 238.º n.º 1, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

a) For apresentado fora de prazo;

b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;

c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;

d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;

e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;

f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;

g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.

A enumeração das causas de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo previstas no nº 1 do art. 238º do CIRE é taxativa.

E se o nome do despacho é de “indeferimento liminar”, o certo é que o mesmo ocorre depois da audição dos credores e do administrador da insolvência, dos devedores e após produção de prova e trata-se de um despacho que obriga a uma apreciação o mérito por parte do juiz.[1]

Com efeito, o art.º 238.º do CIRE traça os casos de indeferimento liminar, revelando que "A concessão da exoneração do passivo restante (...) depende, como facilmente se compreende, da verificação de certos requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém".[2]

Somente os interesses do insolvente digno e atuando de boa-fé justificam a aplicação do instituto da exoneração do passivo restante, em prevalência sobre os direitos dos respetivos credores.

Os comportamentos passíveis de censura, que são fundamento do indeferimento do pedido de exoneração, dividem-se estruturalmente em três grupos: um respeitante a comportamentos do insolvente que contribuíram ou agravaram a sua situação de insolvência (alíneas b), d) e e)); outro respeitante a situações ligadas ao passado do insolvente relevantes para a concessão do período de cessão (alíneas c) e f)) e um outro relacionado com condutas do devedor que consubstanciam a violação de deveres impostos no decurso do processo de insolvência (alínea g)).

Como afirma Assunção Cristas, a propósito da alínea c) desta norma, que impõe o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante “se o devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência”, [3]“ a lei exige, pois, que ele não seja recorrente (pelo menos num passado relativamente próximo). Ou seja, propõe-se dar uma segunda oportunidade, mas não uma terceira ou quarta.”

Também em decorrência das finalidades gerais acima enunciadas, e tal como refere Ana Filipa Conceição[4], “No caso da alínea c), diz-nos a lei que o insolvente não deverá utilizar a exoneração do passivo restante de modo periódico ou cíclico, o que perverteria o espírito do fresh start.”

Coloca-se então a questão de saber o alcance deste fundamento de indeferimento liminar, se é o de vedar ao devedor a possibilidade de beneficiar da exoneração do passivo restante apenas na hipótese de lhe ter sido concedida a exoneração, nos 10 anos anteriores, ou se, o legislador pretendeu vedar também esse acesso nos casos em que nos 10 anos anteriores, em processo de insolvência anterior, o insolvente viu ser-lhe recusada a exoneração.

Especificamente quanto à alínea c), esta é de funcionamento automático sempre que o insolvente já tiver beneficiado de exoneração nos dez anos anteriores à data do início do processo de insolvência.

No caso em apreço estamos perante uma situação de facto, em que o insolvente não beneficiou de exoneração anteriormente (nos dez anos anteriores), mas porque viu aquela ser-lhe recusada, nos termos do art. 243º do CIRE, por ter culposamente incumprido os deveres a que ficara sujeito.

Temos portanto, que no caso em apreciação já foi concedido ao Insolvente a possibilidade de beneficiar da exoneração do passivo restante, há menos de 10 anos, mas tal beneficio, não lhe foi concedido no final do período da cessão, por ter-lhe sido antecipadamente recusado tal benefício.

Ora, conforme acórdãos desta Relação[5], (para cujo teor remetemos) que se pronunciaram sobre esta questão interpretativa, foi aí acolhido o entendimento, que também sufragamos, de não constituir fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo da alínea c) do nº 1 do art. 238º do CIRE, a circunstância de o insolvente no período de dez anos anterior à data do início do presente processo de insolvência ter formulado pedido de exoneração do passivo restante no âmbito de outro processo sobre o qual incidiu despacho inicial de admissão, mas cujo procedimento veio depois a ser declarado cessado antecipadamente por razões imputáveis ao próprio insolvente.

Isto porque, da interpretação da alínea c) do nº 1 do art. 238º do CIRE decorre que somente a exoneração definitiva do passivo restante concedida no período de dez anos anterior ao início do processo de insolvência constitui fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração.

Acontece que, apesar da sua relevância para a decisão do recurso em apreço, uma vez que a recusa da exoneração em anterior processo de insolvencia ocorreu nos dez anos anteriores, não é essa a questão concreta que se mostra suscitada.

É que, no despacho recorrido, foi rejeitado liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante com outro fundamento - o de que a decisão de recusa da exoneração proferida no âmbito do anterior processo de insolvência - processo 1326/12.6TBOAZ do Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis - Juiz 2 - vinculava a decisão a proferir neste “novo” processo de insolvência, por força da autoridade do caso julgado.

Temos assim de nos debruçar sobre a questão de saber se a decisão proferida no anterior processo de insolvência pode produzir efeitos neste novo processo, por força da autoridade do caso julgado dessa decisão.

No despacho recorrido, o tribunal a quo, após ter considerado que, a jurisprudência tem entendido que nas situações, em que o devedor se apresenta novamente à insolvência, ainda que os credores não sejam exatamente os mesmos, deva ser indeferida liminarmente a petição inicial da nova ação de insolvência, considerando verificada a exceção de caso julgado, citando, entre outros os seguintes acórdãos da R.C. de 26-10-2021, Proc. 3009/21.T8CBR.C1; de 23.11.2021, Proc.2926/21.9T8VIS.C1, de 24.1.2023, Proc. 3245/22.9T8LRA-A-C1 e de 05-04-2022, Proc.354/22.8T8CBR.C1,[6] veio a entender que, também na situação em apreço deve o pedido de exoneração ser indeferido com fundamento no caso julgado, mais concretamente na autoridade do caso julgado.

Afirma-se aí que: “E essa decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante tem que ser acatada nestes autos em relação aos créditos já existentes à data em que foi proferida. Tal decisão impõe-se neste segundo processo, nisso se traduzindo o efeito positivo ou a autoridade de caso julgado da mesma.”

Com efeito, afirma-se aí que em relação aos créditos reconhecidos no primeiro processo de insolvência dos requerentes que foram abrangidos pela decisão de indeferimento da exoneração do passivo aí proferida e, por isso, não se extinguiram, não podia o tribunal a quo neste segundo processo proferir uma decisão diversa, sob pena de violação do efeito positivo ou autoridade do caso julgado da primeira decisão.

Concordamos com o tribunal a quo quando afirma que, sendo certo que as causas de indeferimento são apenas as referidas no art. 238º, isso não exclui o funcionamento dos institutos jurídicos de natureza geral, como é o caso julgado.”

Importa por isso aferir se estamos perante uma situação de caso julgado, na sua vertente positiva ou negativa.

Nos termos do artº 619º, nº 1 do C.P.C. “Transitada em julgado a sentença, ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a matéria de facto controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele dentro dos limites fixados pelos artigos 480 e 581º , sem prejuízo do  disposto nos artigos 696º a 702º.”

Por sua vez, dispõe o artº 621º do mesmo diploma que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).”

As decisões judiciais, em especial as sentenças, conduzem à pacificação das relações jurídicas controvertidas, contribuindo para a indispensável segurança jurídica e social (cf. art.º 619.º, n.º 1 e 621.º, ambos do CP Civil).

Por inerência, razões de verdade, harmonia, certeza e segurança jurídica e sociais impõem que não se possa verificar uma contradição de decisões sobre a mesma questão fáctico-jurídica concreta, quer por via da exceção do caso julgado, quer por via da exceção da autoridade de caso julgado ou efeito positivo externo do caso julgado.

Os aludidos preceitos legais referem-se ao caso julgado material, ou seja, ao efeito imperativo atribuído à decisão transitada em julgado (artº 628º do C.P.C.) que tenha recaído sobre a relação jurídica substancial.

Porém, é habitual na jurisprudência, assim como na doutrina, proceder-se á distinção no caso julgado entre a sua “vertente negativa” e a “vertente positiva”, defendendo-se que na expressão “caso julgado” cabem, em rigor, a “exceção de caso julgado” e a “autoridade de caso julgado”.[7]

Distingue-se assim, a função positiva que é exercida através da autoridade do caso julgado e a função negativa que é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artº 580º do C.P.C.), como vimos.

A autoridade de caso julgado de sentença que transitou e a exceção de caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica.

Explica  o Prof. Lebre de Freitas [8] que “pela exceção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.

No mesmo sentido, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa afirma:[9] “a exceção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”, já “quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de ação, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior”.

Feita esta explicação, não nos parece que possamos falar aqui com propriedade de caso julgado.

Acompanhamos Maria do Rosário Epifânio, quando defende que “o despacho liminar a proferir em incidente aberto novo processo de insolvência não é suscetível de contrariar decisão proferida em incidente que correu em processo de insolvência anterior. Ou seja, a decisão prolatada num incidente aberto (num concreto e distinto) processo de insolvência que recusou a exoneração do passivo restante não goza de autoridade do caso julgado em futuro processo de insolvência (não goza do dito “efeito positivo do caso julgado material)-art. 619º nº 1 do Código de processo Civil”.[10]

Impõe-se desde logo reconhecer a dificuldade das aplicação das regras do caso julgado, no âmbito do processo insolvência A força do caso julgado neste âmbito concreto (processo de insolvência/incidente de exoneração do passivo restante) reveste-se de especificidades que não podemos ignorar.

Temos de ter em consideração que, tal como o define o art. 1º do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.

O processo de insolvência tem uma estrutura complexa que tendencialmente apresenta duas fases. A primeira fase de natureza declarativa visa apurar se o devedor (que tanto pode ser requerente como requerido) se encontra no estado de insolvência. A segunda fase que existirá caso na primeira se declare a insolvência do devedor e este seja titular de bens patrimoniais tem um cariz essencialmente executivo, mas pode incluir também outros procedimentos declarativos, por via incidental.

As especificidades do processo de insolvência dificultam assim a aplicação do instituto do caso julgado, seja na sua dimensão negativa, enquanto exceção, seja na dimensão positiva de autoridade do caso julgado, pois também os conceitos de parte, pedido e causa de pedir apresentam nuances próprias.

A presente ação de insolvência  tem  por fim último a liquidação de todo o património do devedor insolvente em benefício da generalidade dos seus credores (artigo 1.º do CIRE), tendo em consideração a função prioritária da verificação dos créditos, exige que todos os créditos sejam ali reclamados, disponham ou não os credores de título executivo e mesmo que se trate de créditos já reconhecidos por decisão judicial definitiva.

É o chamado princípio da exclusividade, segundo o qual só os credores com créditos verificados e graduados podem concorrer à distribuição do produto da liquidação do ativo.

É, pois, em função dessa finalidade de liquidação global que é conferida legitimidade a cada credor concorrente interessado para impugnar os créditos dos demais concorrentes que sejam suscetíveis de conflituar com o crédito daquele, nos termos do art.º 130.º, n.º 1, do CIRE.

A verdade é que o devedor foi declarado insolvente, em novo processo de insolvência.

No processo anterior o que foi apreciado para efeitos de admissibilidade do pedido de exoneração do passivo restante foram as circunstâncias impeditivas da concessão de tal beneficio, apreciadas em função da conduta da insolvente, tendo em conta as causas que conduziram à sua declaração da insolvência.

Como vimos, em interpretação da alínea c) do art. 238º do CIRE que estabelece as causas taxativas do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, não foi incluída a circunstância de o insolvente no período de dez anos anterior à data do início do presente processo de insolvência ter formulado pedido de exoneração do passivo restante no âmbito de outro processo sobre o qual incidiu despacho inicial de admissão, mas cujo procedimento veio depois a ser declarado cessado antecipadamente por razões imputáveis ao próprio insolvente.

Isto porque, da interpretação da alínea c) do nº 1 do art. 238º do CIRE decorre que somente a exoneração definitiva do passivo restante concedida no período de dez anos anterior ao início do processo de insolvência constitui fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração.

Ora, no processo atual a conduta da insolvente tem que ser valorada em função das circunstâncias que nortearam a nova declaração de insolvência, pelo que o objeto do processo é diferente.

É certo que os créditos e os credores em ambos os processos são essencialmente os mesmos, mas também é certo que a devedora foi declarada novamente insolvente e o pedido de exoneração reporta-se à nova declaração de insolvência.

Desta forma, acolhemos o entendimento vertido no acórdão da RE de 6.4.2017,[11] onde se pode ler: “Ora, se a lei permite que quem tenha sido declarado insolvente o possa voltar a ser, posto que ocorram os factos conducentes a tal situação, como agora sucedeu, também o insolvente, que assim, voltou a ser declarado há-de poder dispor de todos os mecanismos processuais atinentes ao seu estado, como sejam o de requerer a exoneração do passivo restante outra vez, atenta a sua nova situação.

Embora não diga diretamente respeito à questão do caso julgado, afigura-se-nos incongruente face à lei vedar ao insolvente o pedido de exoneração do passivo restante, quando, caso tivesse beneficiado da exoneração, poderia voltar a formular esse pedido ao fim de 10 anos, como decorre da alínea c) do n.º 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”

Deste modo, conclui-se que não ocorre o caso julgado, nomeadamente na veste da autoridade do caso julgado, relativamente à decisão anterior, procedendo o recurso, pelo que, em consequência, deve revogar-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante com a apreciação dos pressupostos a que se reporta o artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que, no caso, não ocorreu, seguindo-se os demais termos.

IV-DECISÃO

Pelo exposto em conclusão, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação, em julgar procedente o recurso e em consequência determinar que o incidente do pedido de exoneração do passivo restante prossiga os ulteriores termos, com a apreciação dos pressupostos a que se reporta o artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, seguindo-se os demais termos.

Sem custas.


Porto, 10 de julho de 2024
Alexandra Pelayo
Rui Moreira
Rodrigues Pires
__________________
[1] Ver Catarina Serra in Lições de Direito de Insolvência, pg 564.
[2] Carvalho Fernandes e João Labareda in Coletânea de estudos sobre a insolvência, Quid Juris, 2009, pág. 276.
[3] Citada por Rosário Epifânio na Revista Julgar nº 48, págs. 47 ("A Exoneração do Passivo Restante - Algumas Questões").
[4] In “Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares no Código da Insolvência e Recuperação de Empresas” in I Congresso de Direito da Insolvência, 2013, Almedina, pág. 52.
[5] Ac. RP 29.9.2021 (451/21.7 T8VNG.P1), relatado pelo aqui Exmº Juiz Adjunto Rodrigues Pires e de 23.3.2021 (7804/19.9 T8VNG-B.P1), relator por Fernando Vilares, e de 12.9.2022 (2046/21.6 T8STS.P1), relatado por Fátima Andrade, sendo esta ainda a posição acolhida no Ac. da RC de 12.9.2023 (2642/22.4 T8VIS.C2), relatado Por Emídio Francisco Santos, acórdãos disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] todos consultáveis in www.dgsi.pt
[7] Cfr., por todos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30.3.2017 no P 1375/06.3TBSTR.E1.S1, relatado por Tomé Gomes; de 08.01.2019, relatado por Roque Nogueira, disponíveis in www.dgsi.pt.
[8] In Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª ed., p. 354.
[9] In O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, p. 49 e ss.
[10] In Revista Julgar nº 48, págs. 50 ("A Exoneração do Passivo Restante - Algumas Questões").
[11] Proferido no P5416/16.8T8STB-B.E1, disponível no mesmo loc.