Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14/08.2TACDR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES
Nº do Documento: RP2010121514/08.2TACDR.P1
Data do Acordão: 12/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Comete três crimes de abuso sexual de crianças, em concurso efectivo, dois da previsão do nº 1 e um da previsão do nº 3, alínea b), do art. 171º do Código Penal, o agente que, em momentos distintos, friccionou, por duas vezes, o seu pénis, erecto, na zona genital de menor do sexo feminino de 4 a 5 anos de idade, depois de a despir, e visionou com ela um filme contendo cenas de sexo explícito entre adultos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 14/08.2TACDR.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunta: Paula Guerreiro

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I.- RELATÓRIO.

1. No PCC n.º 14/08.2TACDR do Tribunal de Castro Daire, em que são:

Recorrente/Arguido: B……….

Recorrido: Ministério Público.

por acórdão de 2010/Abr./22, de fls. 338-365, o arguido foi condenado pela prática, como autor material e em concurso real, de três crimes de abuso sexual de criança, sendo dois da previsão do art. 171.º, n.º 1 e um da previsão do art. 171.º, n.º 3, al. b) do Código Penal nas penas de prisão de 3 (três) anos e 6 (seis) meses por cada um dos dois primeiros e de 1 (um) ano pelo terceiro, seguindo-se uma pena única de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão.
2. O arguido recorreu desta condenação em 2010/Mai./07, a fls. 376-387 pugnando que se dê como não provado o descrito nas alíneas d), e), f), g) i), j), k), l), m) e n) dos factos provados, absolvendo-o dos referenciados crimes ou, se assim não se entender e considerando-se que cometeu por uma vez o descrito na al. g), que seja condenado numa pena bastante inferior à que foi condenado, sendo suspensa a sua execução, apresentando, em suma, as seguintes conclusões:
1.º) A prova produzida é insuficiente para sustentar de forma fundamentada e inequívoca a prática pelo arguido dos factos provados nas alíneas d), e), f), g) i), m) e n) [1];
2.º) E isto porque a mãe da menor – a única a que se refere a situações de nudez desta – não sabe dizer se era o arguido que despia a menor ou se era ela mesmo que o fazia [d), f), i)], não podendo ser considerado o que a menor relatou às técnicas do CAT, para se concluir que foi mais do que uma vez [f), g), i)] nem isso se retira da observação clínica de 25 de Janeiro de 2008 [2-6];
3.º) Também não se pode dar o relevo que foi dado à reconstituição dos factos, tendo em atenção as dificuldades do arguido em atender o significado e a razão de ser dessa reconstituição, quer as circunstâncias em que a mesma foi realizada (logo no dia da busca à casa e interrogatório do arguido), quer por o arguido ter apresentado queixa contra os inspectores da PJ por o terem agredido, não tendo o arguido agido de modo espontâneo e livre [7-10];
4.º) A situação descrita na alínea h) não terá configurado para o arguido uma situação ilícita e com a gravidade descrita em m) dos factos provados, dificilmente entendendo se tal seria prejudicial para o normal e equilibrado desenvolvimento psicológico da criança, podendo até questionar-se, atenta a idade da menor, se o simples visionamento por uma vez de um filme daquela natureza terá importantes efeitos na liberdade de determinação sexual da criança [11-13];
5.º) As penas aplicadas em concreto são muito elevadas e severas quanto ao crime do art. 171.º, n.º 1, não devendo as mesmas ultrapassar os dois anos de prisão, já que os factos em causa não configuram uma situação tão grave como as de cópula, nem revelam uma gravidade semelhante, atento o grau de entendimento e de raciocínio do arguido [14, 15];
6.º) Ao entender-se que a situação II dos factos provados é crime a pena a aplicar deve corresponder ao mínimo legal ou muito próximo desse mínimo legal [16];
7.º) Não se deve aplicar-se a pena efectiva de prisão porque considera-se que o arguido mesmo não cometeu cumulativamente as situações previstas em f), g) e i), sendo pedir demais ao arguido que tivesse confessado tais factos, quando o mesmo está convicto de os não ter praticado, não tendo sido efectuado prova em audiência de julgamento dos mesmos [17-22];
8.º) O tribunal violou o disposto nos art. 171.º, n.º 3, al. b) do Código Penal, assim como o art. 410.º, n.º 2, al. a) e c) do Código de Processo Penal, tendo violado igualmente o disposto no art. 50.º, n.º 1 do Código Penal ao não permitir que o arguido tenha beneficiado da suspensão da pena de prisão [23].
3. O Ministério Público respondeu em 2010/Jul./14 a fls. 416-418, pugnando pela improcedência do recurso e sustentando essencialmente que:
a) o tribunal não está impedido de valorar determinadas declarações/depoimentos em detrimento de outros, podendo tanto assentar em prova directa, como em prova indirecta;
b) a prova produzida em audiência é suficiente para sustentar os factos dados como provados, não fazendo sentido invocar-se os vícios do art. 410.º, n.º 2, al. a) e c) do Código de Processo Penal porquanto os mesmos devem resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si ou com recurso às regras da experiência comum;
c) As penas parcelares e a pena única são equilibradas e justas, não havendo razões para se suspender a execução da pena de prisão.
4. O Ministério Público nesta Relação emitiu parecer em 2010/Set./30 a fls. 442 aderindo à resposta anterior e renovando a posição de que se deve negar provimento ao recurso.
5. Cumpriu-se o disposto no art. 417.º, n.º 2 do C.P.P., colheram-se os vistos legais, nada obstando ao conhecimento do mérito.
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As questões suscitadas neste recurso reconduzem-se ao reexame da matéria de facto [a)], a tipificação dos crimes de abuso sexual de crianças do art. 177.º [b)]; a medida das penas [c)] e a suspensão da pena de prisão [d)].
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II.- FUNDAMENTAÇÃO.
1. – O acórdão recorrido.
Na parte que aqui releva transcreve-se o seguinte:
2.1. Factos provados
Discutida a causa e produzida a prova, resultam assentes os seguintes factos:
a) A menor C………. nasceu a 26/08/2002 e é filha de D………. e de E……….;
b) O arguido, que é conhecido por “B1………”, vive maritalmente com a avó materna da menor desde data não apurada, mas há mais de 20 anos, habitando numa casa que é pertença do arguido sita na Rua ………., ………., ………., Castro Daire;
c) A partir de data não concretamente apurada mas situada em inícios de 2003, a menor C………., a sua mãe, o companheiro desta, F………. [que é sobrinho do arguido] e a irmã uterina da menor, G………. [que é filha do companheiro da mãe da menor], passaram a residir na casa do arguido supra identificada, com este e com a companheira do mesmo, avó materna da menor;
d) A partir de determinada altura, não concretamente apurada, estando a menor C………. a viver na casa do arguido nas circunstâncias referidas na al. c), o arguido, começou a chamá-la para ir para o seu quarto, ver televisão [sendo esta a divisão da casa onde existia televisor e também um leitor de DVD] e uma vez aí, em datas não apuradas e por um número de vezes também não apurado, o arguido despia a menor da cintura para baixo e deitava-se com a mesma na cama;
e) Nesse contexto, no período compreendido entre Setembro de 2006 e 24/01/2008, tendo a menor C………., então 4 – 5 anos de idade, em datas não concretamente apuradas e por um número de vezes também não apurado, mas, pelo menos, por três vezes, em ocasiões distintas, o arguido praticou sobre e com a menor actos de índole sexual.
Assim e concretizando:
Situação I
f) Em data que não foi possível apurar, situada no período de tempo indicado na al. e), a menor C………. entrou no quarto do arguido, em circunstâncias não apuradas, e uma vez aí o arguido despiu-a da cintura para baixo, após o que o arguido se deitou na cama, desapertou a braguilha das suas calças, tirou o seu pénis para fora, e com a menor colocada por cima de si, levou a que a mesma pusesse a mão no seu pénis.
g) De seguida o arguido roçou o seu pénis, erecto, na parte superior das coxas da menor e na zona genital, ao nível da vulva, aí o friccionando-o.
Situação II
h) Ainda período temporal indicado em e), em data que não foi possível apurar, estando a menor C………. no quarto do arguido, este sentado na cama e a menor deitada na mesma, o arguido colocou a cassete de vídeo, contendo um filme denominado “……….” e que contém cenas de sexo explícito com adultos mantendo relações sexuais entre si, mostrando-se o mesmo apreendido nos autos, assistindo o arguido e a menor, juntos, à exibição de tal filme.
Situação III
i) Noutra ocasião, em data concreta que não foi possível apurar, mas situada no mês de Janeiro de 2008, a menor C………. entrou no quarto do arguido, em circunstâncias não apuradas e uma vez aí o arguido despiu-a da cintura para baixo, após o que o arguido se deitou na cama, desapertou a braguilha das suas calças, tirou o seu pénis para fora, e com a menor colocada por cima de si roçou o seu pénis, erecto, na parte superior das coxas da menor e na zona genital, ao nível da vulva, aí o friccionando-o.
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j) O arguido sabia qual a idade da menor C………. e que em função dessa idade – quatro cinco anos – a mesma não tinha suficiente discernimento para avaliar se os descritos comportamentos do arguido eram ou não adequados.
k) E sabia também o arguido que ao actuar da forma que acima se descreveu, na pessoa da menor C………., perturbava e estava a prejudicar, de forma séria, o desenvolvimento da sua personalidade, que ofendia os seus sentimentos de criança e punha em causa o são desenvolvimento psicológico, afectivo e da consciência sexual da menor.
l) Ao agir da forma descrita nas als. e) a i), o arguido actuou com a intenção que, concretizou, de dar satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, utilizando, para tanto, a menor, indiferente à sua idade e às consequências de tal actuação sobre a mesma.
m) Com referência à Situação II, o arguido, deliberadamente, exibiu à menor C………. o filme com cenas de sexo explícito, bem sabendo que o visionamento por aquela de filme dessa natureza era prejudicial ao seu normal e equilibrado desenvolvimento psicológico;
n) O arguido agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, ciente de que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Provou-se, ainda que:
o) As menores C………. e a sua irmã G………. vinham a ser acompanhadas pela Comissão de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Perigo de Castro Daire, respectivamente, desde 11 e 18 de Julho de 2006, por indicadores de negligência nos cuidados básicos de higiene e alimentação, tendo-lhes sido aplicada a medida de promoção e protecção “em meio natural de vida de apoio junto da mãe e do companheiro desta”.
p) No dia 24/01/2008, na sequência de denuncia efectuada à CPCJ de Castro Daire, que dava conta da suspeita de que a menor C………. vinha sendo alvo de actos sexuais, por parte do arguido, esta Comissão, nessa mesma data, após entrevista com a mãe da menor e em reunião extraordinária da Comissão restrita, que teve lugar em 25/01/2008, deliberou a aplicação à menor da medida de acolhimento em instituição, tendo a menor, nessa mesma data, dado entrada no L………. em Lamego;
q) Ainda no dia 25/01/2008, pelas 19h:22m, a menor C………. foi conduzida, por uma psicóloga do CAT de Lamego, ao Hospital ………., onde foi observada, por uma médica, constatando-se que apresentava escoriação na face abaixo do olho esquerdo e na região genital e superior das coxas, bilateralmente, um eritema do tipo atópico/contacto.
Factos atinentes à personalidade e às condições pessoais do arguido:
r) O arguido é oriundo de um agregado familiar de condição sócio-económica modesta, sendo o mais novo de três irmãos. Os pais praticavam uma agricultura de subsistência, vivendo com dificuldades económicas.
s) Frequentou a escola até aos 11 anos de idade, apresentando muitas dificuldades de aprendizagem, não sabendo ler nem escrever apenas assinando o seu nome.
t) Após abandonar a escola passou a trabalhar na agricultura, quer com os pais, quer para outras pessoas do local da residência.
u) Com 20 anos cumpriu o serviço militar durante 28 meses, tendo posteriormente regressado ao agregado familiar e de origem e à actividade agrícola inicial.
v) Casou com uma mulher alguns anos mais velha, que veio a falecer após dez anos de casamento.
w) O arguido manifesta ter sido sempre muito tímido com elementos do sexo oposto, pelo que nunca tomou a iniciativa de procurar estabelecer relacionamentos afectivos e íntimos com mulheres.
x) Decorrido algum tempo após ter enviuvado conheceu a actual companheira que tinha três filhos menores e vivenciava uma situação de elevada carência económica.
y) Actualmente o arguido vive com a companheira;
z) A casa do arguido referida na al. c) é uma construção em blocos por rebocar, com 3 quartos, cozinha, sala e casa de banho, com condições de habitabilidade bastante precárias, maximizadas pela desorganização e falta de higiene.
aa) O arguido aufere pensão de reforma e uma pensão de sobrevivência por viuvez, no montante global de cerca de € 500,00, recebendo também a companheira do arguido pensão de sobrevivência por morte do marido, de valor não apurado.
bb) Quando há oferta de trabalho, o arguido trabalha, ao dia, na agricultura, auferindo € 20,00/dia, granjeando um pequeno quintal cuja produção é para auto-consumo.
cc) No meio local o arguido é considerado pessoa trabalhadora e pacata, sem problemas de relacionamento.
No referente à menor C……….:
dd) Mantêm-se institucionalizada e não tem contacto com o agregado familiar, designadamente com a mãe, tendo esta e o companheiro vindo a sair da residência do arguido, na sequência da denuncia dos factos;
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ee) O arguido não tem antecedentes criminais.

2.2. Factos não provados
Não resultaram provados os factos que não se compaginam com os que foram dados por provados, nomeadamente, e com interesse para a decisão da causa da acusação não se provou que:
1. Com referência à Situação I, o arguido fechasse a porta do quarto e que a tivesse despido a menor completamente, acariciando-a, beijando-a na face e após que tivesse introduzido o pénis erecto na vagina da menor friccionando-o até ejacular;
2. Que os actos referidos em 1. se repetissem por, pelo menos, mais dez vezes no período situado entre os meses de Setembro a Dezembro de 2007;
3. No mês de Janeiro de 2008, no quarto do arguido, este após despir a menor C………. introduzisse o seu pénis erecto, sem preservativo, na vagina daquela, friccionando-o até ejacular.
4. Nessa ocasião, o arguido chegasse a fotografar a menor estando esta completamente nua e também a fotografar ambos em pleno acto sexual, através do seu telemóvel e que guardasse a imagem e a mostrasse a diversas pessoas da localidade onde reside.
5. No decorrer dos anos de 2006 a Janeiro de 2008 e para além da ocasião a que se refere a Situação III, fosse usual o arguido assistir, acompanhado da menor C………. à exibição dos filmes pornográficos apreendidos nos autos e que, nessas circunstâncias chegasse ainda a despir a menor da cintura para baixo, mantendo-a assim até ao final da visualização dos filmes.
6. Para manter com a menor contactos sexuais, o arguido usasse do seu ascendente por ser o dono da casa, onde a família daquela morava por caridade, valendo-se desse facto.
7. Em Setembro de 2007, o arguido tivesse mantido com a menor relacionamento sexual de cópula completa.

2.3. Motivação da decisão de facto
A convicção do Tribunal no tocante à prova dos factos que deu por assentes formou-se com base no conjunto da prova produzida e respectiva apreciação crítica, à luz das regras da experiência e da normalidade da vida.
Concretizando:
A prova da factualidade constante da al. a) alicerçou-se no teor do documento – certidão do assento de nascimento – juntos a fls. 74/75 dos autos.
Os factos descritos nas als. b) e c) provaram-se com base nas declarações do arguido e nos depoimentos conjugados das testemunhas E………. e F………., respectivamente, mãe da menor C………. e companheiro daquela, que descreveram a composição do agregado familiar e as circunstâncias em que passaram a residir na casa do arguido, tendo as duas identificadas testemunhas precisado que quando foram residir para a casa do arguido a menor C………. tinha sete meses, o que atenta a data de nascimento desta (26/08/2002) leva a situar a data em que passaram a viver na casa do arguido em inícios de 2003.
O Tribunal sedimentou a convicção no tocante à prova da matéria factual exarada na al. d), com base no depoimento da testemunha E………. que afirmou – revelando segurança, consistência, coerência e objectividade merecendo credibilidade – que o arguido deitava-se na cama com a sua filha C………., chamava-a para o quarto dele, para ver televisão, e que, em duas ocasiões – em datas que não conseguiu precisar, afirmando que a primeira ocorreu antes da C………. ter sido operada, tendo ela quatro anos de idade e a outra algum tempo depois – “apanhou” a menor, no quarto do arguido, despida da cintura para baixo e estando o arguido com as calças desapertadas e deitado na cama, tendo, na primeira situação, o arguido dito à testemunha “a menina está mijada e eu tirei-lhe a roupa”, vindo a testemunha a constatar que as roupas da filha estavam molhadas, o que a levou a pensar que “estava mijada”; na segunda ocasião a que aludiu na testemunha constatou que as roupas da filha (cuecas, collants, calças ou fato de treino) estavam no chão do quarto do arguido e encontravam-se molhadas, concluindo a testemunha que estariam “mijadas”, o que também lhe foi referido pela menor, tendo, então, ido lavar a filha, tendo, nessa altura constatado que a mesma tinha as “virilhas a deitar sangue … em carne viva” e perguntando à criança o que se passava esta encolheu-se e não disse nada [comportamento este que, segundo a depoente, a C………. assumia sempre que se lhe perguntava se se passava alguma coisa e sobre se tinha medo de alguém]. Nessa sequência a testemunha, o seu companheiro [a testemunha F………] e a testemunha H………., na qual a C………. depositava confiança, levaram-na a dar uma volta e questionaram-na sobre o que tinha acontecido, ao que a menor manifestou não querer dizer, tendo após insistência e mediante a promessa de que lhe dariam um telemóvel a mesma confidenciado que o “B1……….” – referindo-se ao arguido –, lhe tinha “mexido no pipi” com a “pila” e que lhe tinha “metido a pila no pipi”. Após a revelação feita pela filha segundo o que afirmou a testemunha confrontou o arguido com a situação e o mesmo negou “que tivesse feito pouco da filha” e questionada sobre se tinha falado com a mãe, companheira do arguido avó materna da menor sobre os factos respondeu negativamente justificando-se “a minha mãe era capaz de se virar a mim … ela é que criou a menina”, e no tocante à razão por que não denunciou a situação às autoridades não conseguiu apresentar qualquer explicação, negando que tivesse sido pelo facto de recear que o arguido os pusesse fora de casa e que fosse estes que os sustentava.
A testemunha F………. – que denotou constrangimento e pesar pelo sofrimento por que passou a menor C………. e manifestou-se envergonhado por não ter feito nada, denunciando a situação às autoridades – confirmou que muitas vezes ouviu o arguido a chamar a menor C………. para o seu quarto e que, em determinada altura – nas circunstâncias que a testemunha E………. descreveu –, a menor lhe confidenciou, a chorar, que o “B1……….” – referindo-se ao arguido – lhe metia “a pilinha nas perninhas e no pipi”, constatando a testemunha, por duas vezes, que a C………. tinha as “pernas vermelhas, por baixo … perto do pipi”.
A testemunha H………. - que é sobrinha do arguido e que privava com a C………. e com a família, chegando a pernoitar na casa do arguido, na altura em que a C………. já aí vivia, ainda que apresentando um discurso com algumas imprecisões, chorando amiúde e tendo alguns momentos de bloqueio, o que atribui à circunstância de estar em sofrimento por ter perdido uma filha -, foi peremptória em afirmar que, em determinada altura, em data que não conseguiu precisar, na sequência da C………. ter feito “chichi” nas cuecas, ao dar-lhe banho verificou que a menina “tinha sangue nas cuecas e na vagina”, tendo alertado a mãe da menor que seria melhor levá-la ao médico, tendo a mesma desvalorizado o assunto, retorquindo “não é nada” e que, posteriormente, a C………. lhe confidenciou “tia … o tio – referindo-se ao arguido – fez pouco de mim”, pedindo-lhe que não contasse nada à mãe, por que tinha medo que esta lhe batesse.
Na prova da factualidade descrita nas als. e) a i) atendeu-se à reconstituição dos factos efectuada e que se reporta o auto de fls. 101 e que se mostra documentada através das fotografias juntas fls. 101 e 135 a 137, tendo o arguido participado em tal diligência e sendo utilizada uma boneca para representar a menor C………., tendo a testemunha I………., Inspector da P.J. que interveio em tal diligência garantido que os factos foram “reconstituídos” de acordo com as indicações que iam sendo dadas pelo arguido e que o registo fotográfico constante de fls. 135 a 137, tendo sido acompanhado, para o efeito, pelo arguido, o qual explicava os actos que praticou e/ou que foram praticados pela menor e ter estado com a menor no seu quarto e ter em duas dela, mantido contacto sexual conforme evidenciado no auto de reconstituição, esclarecendo a testemunha I………. que com referência aos actos ocorridos a que se reportam as fotos de fls. 135 e 136 o arguido encontrava-se com o pénis desnudado; numa terceira ocasião assistido a um filme pornográfico juntamente com a menor.
O Tribunal valorou a reconstituição dos factos efectuada com a intervenção do arguido, tendo tal prova sido produzida com observância das formalidades legais e estando o arguido assistido por defensor oficioso que esteve presente na diligência, não merecendo credibilidade a versão apresentada pelo arguido para que tivesse admitido ter mantido contactos sexuais com a menor C………. nos termos que evidenciou no auto de reconstituição, referindo tê-lo feito por ter sido ameaçado e agredido por um inspector da P.J., já que estando presente o defensor na diligência em causa, no caso de ter existido qualquer actuação de coacção por parte dos inspectores que intervieram em tal diligência sobre o arguido, o defensor deste certamente não deixaria de intervir no sentido de garantir que fossem assegurados os direitos de defesa do arguido.
Atendeu-se, ainda, ao depoimento conjugado das testemunhas J………. e K………., que exercem as funções, respectivamente, de ajudante de lar no CAT de Lamego e de directora técnica do mesmo Centro, tendo:
- A primeira relatado, de forma emocionada, que decorridos oito ou dez dias depois da C………. ter dado entrada no CAT após uma colega sua ter dado banho à menor, a testemunha limpou-a em cima da cama e quando se preparava para lhe por a pomada – que havia sido prescrita pela médica que a observou no Hospital de ………. nas circunstâncias a que se reporta o boletim de fls. 19 – notou que a menina estava encolhida e quando começou a aplicar-lhe a pomada na zona genital e entre as coxas – onde apresentava eritema – a menor disse “Ai J………. quando o B1………. punha-me a pilinha aqui … (ao mesmo tempo que apontava para o meio das penas, entre as coxas) eu chorava tanto …”;
- A última, que acompanhou a C………. ao Hospital aquando da entrada no CAT, onde lhe foi prescrita uma pomada para tratamento do eritema que apresentava entre as coxas, afirmou que alguns dias, a funcionária do CAT, ora testemunha J………., deu-lhe conhecimento da confidência que a menor lhe tinha feito, tendo, nessa sequência, a testemunha procurado saber pela menor o que se tinha passado, ao que a mesma lhe confirmou – mostrando-se nervosa e incomodada com o que se estava a dizer e encolhida –, que “o B1………. pôs a pilinha no pipi”, acrescentando “ele é mau”.
Da apreciação conjugada das provas que se deixam enunciadas sedimentou o Tribunal a convicção segura de que o arguido praticou os factos descritos com referência às Situações I, II e III, sendo que no referente à prova do período temporal em que tiveram lugar os concretos actos descritos, foi determinante o depoimento da testemunha E………. – que localizou a primeira situação em que “surpreendeu” o arguido, no seu quarto com a filha, nas circunstâncias que descreveu, antes da mesma ter sido operada e que a menor tinha, então, 4 anos, pelo que considerando a data de aniversário desta e a altura em que foi operada e que resulta da informação da CPCJ de fls. 5, leva a situar a ocorrência a partir de Setembro de 2006 – e no tocante ao última Situação a circunstância de a C………. sendo retirada do meio familiar no dia seguinte a ter sido apresentada a denuncia do caso na CPCJ de Castro Daire e dado entrada no CAT de Lamego, o que ocorreu em 25/01/2008 ao ser observada por uma médica, no Hospital de ………., apresentar na região genital e superior das coxas, bilateralmente, um eritema tipo atópico/contacto, lesão essa que se revela compatível com a fricção nessa zona, tendo a menor confidenciado às testemunhas J………. e K………., funcionárias do CAT de Lamego, que o arguido lhe punha a pilinha nessa zona e que lhe provocava dor.
Os factos descritos na al. h) resultaram ainda corroborados pelo depoimento da testemunha E………., que relatou as circunstâncias em que o arguido apareceu em casa com os DVD´s contendo filmes pornográficos [tendo sido apreendidos no quarto do arguido conforme auto de fls. 89 e 90 e reportando aos mesmos o auto de exame e avaliação inserto a fls. 175] e assegurando que em determinada ocasião entrou no quarto do arguido e deparou com este deitado na cama e com a menor C………. sentada ao fundo da cama, a assistirem a um daqueles filmes tendo a testemunha dito ao arguido para desligar o vídeo, o que ele não fez.
Para a prova dos factos atinentes ao dolo do arguido constantes das als. j) a n) atendeu-se às regras da experiência comum e da normalidade da vida, em face da actuação assumida pelo arguido, nos termos que resultaram apurados.
A factualidade descrita nas als. o) e p) provou-se a partir do teor do relatório da CPCJ de Castro Daire inserto a fls. 7.
Os factos exarados na al. q) provaram-se a partir do teor do boletim hospitalar de fls. 19 dos autos.
Os factos das als. r) a cc) provaram-se com base no teor do relatório social junto a fls. 328 a 331 dos autos, atendendo-se, ainda, no que concerne ao montante das pensões auferidas pelo arguido às declarações do próprio.
A prova dos factos vertidos na al. dd) provou-se com base nos depoimentos das testemunhas E………. e F……….
Por último, a ausência de antecedentes criminais do arguido mostra-se certificada a fls. 300 dos autos.
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Não resultaram provados os factos descritos sob o ponto 2.2. porquanto não foi produzida prova que os confirmasse.”
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2. - Os fundamentos do recurso
a) Reexame da matéria de facto
Decorre do disposto no art. 428.º, n.º 1 do Código de Processo Penal[1], que as relações conhecem de facto e de direito, acrescentando-se no art. 431.º que “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
Por sua vez e de acordo com o precedente art. 412.º, n.º 3, “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas”.
Acrescenta-se no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Nesta conformidade e para se proceder à revisão da factualidade apurada em julgamento, deve o recorrente indicar os factos impugnados (i), a prova de que se pretende fazer valer (ii), identificando ainda o vício revelado pelo julgador aquando da sua motivação na livre apreciação da prova (iii).
Convém, no entanto, precisar que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efectuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso [Ac. do STJ de 2005/Jun./16 (Recurso n.º 1577/05), 2006/Jun./22 (Recurso n.º 1426/06)].
Por outro lado, o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal “a quo”, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente [Ac. STJ de 2007/Jan./10].
Daí que esse reexame esteja sujeito a este ónus de impugnação, sendo através do mesmo que se fixam os pontos da controvérsia e possibilita-se o seu conhecimento por esta Relação [Ac. do STJ de 2006/Nov./08].[2]
Como é sabido e muito embora, segundo o disposto no art. 127.º, o tribunal seja livre na formação da sua convicção, existem algumas restrições legais ou condicionantes estruturais que o podem comprimir.
Tais restrições existem no valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (169.º), no efeito de caso julgado nos Pedido de Indemnização Cível (84.º), na prova pericial (163.º) e na confissão integral sem reservas (344.º).
Aquelas condicionantes assentam no princípio da legalidade da prova (32.º, n.º 8 C. Rep.; 125.º e 126.º) e no princípio “in dubio pro reo”, enquanto emanação da garantia constitucional da presunção de inocência [32.º, n.º 2, C. Rep.; 11.º, n.º 1 DUDH[3]; 6.º, n.º 2 da CEDH[4]].
Por tudo isto, este princípio da livre apreciação das provas não tem carácter arbitrário nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, estando antes vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado, estando ainda sujeito aos princípios estruturantes do processo penal, como o da legalidade das provas e “in dubio pro reo”.
Assim e para além da violação daquelas restrições legais ou das apontadas condicionantes estruturais, o juízo decisório da matéria de facto só é susceptível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objectivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida.
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O arguido impugna os factos provados descritos nas alíneas d), e), f), g) i), m) e n), partindo essencialmente do depoimento da mãe da menor e desvalorizando os depoimentos das testemunhas que são técnicas do CAT, o boletim hospitalar de fls. 19 dos autos respeitante ao aí assinalado em 2008/Jan./25, quando a menor foi aí observada, assim como o auto de reconstituição dos factos.
No entanto o recorrente não atende que a testemunha E………., mãe da menor, revelou duas situações em que viu a menor no quarto do arguido ou como se diz no acórdão recorrido ““apanhou” a menor, no quarto do arguido, despida da cintura para baixo e estando o arguido com as calças desapertadas e deitado na cama”.
E foi isso mesmo o que esta testemunha relatou, ao dizer “apanhei a menina duas vezes na parte de baixo despida” [27:07-27:11], precisando mais à frente que chegou a ver as virilhas ensanguentadas, em carne viva [29:45-31:02], tendo a sua filha lhe dito que “o arguido tinha-lhe mexido no pipizinho” …chegando-o a fazer com o seu pénis [34:19-34:53] – aliás o recorrente chega a transcrever algumas destas passagens na sua motivação de recurso.
Esta versão foi nalguns pontos corroborada pelas testemunhas F………., companheiro da mãe da menor, e H………., sobrinha do arguido, a quem a menor relatou o sucedido com o arguido praticamente nos mesmos termos anteriormente assinalados e que o acórdão recorrido faz igualmente referência.
O mesmo se passou com as testemunhas J………. e K………. que exercem funções no CAT de Lamego e a quem a menor fez as mesmas descrições do sucedido com o arguido.
Por outro lado, não existe nenhum obstáculo legal, designadamente por se tratar de um método proibido de prova [126.º], para não ser utilizado e valorizado como meio de prova, como pretende o recorrente, a reconstituição dos factos [150.º], porquanto não ficou demonstrado que o mesmo fosse obtido “mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas”, sendo tudo aquilo que é invocado no recurso meras especulações ou convicções do arguido, mas sem qualquer relevo para infirmar a convicção probatória do tribunal recorrido.
Nesta conformidade, não descortinamos que o julgamento da matéria de facto tenha sido desrazoável ou mesmo arbitrário na apreciação da prova que lhe foi submetida.
Por outro lado, também não tem qualquer fundamento fazer apelo aos vícios do art. 410.º, n.º 2, porquanto os mesmos, como se diz no seu proémio, devem resultar apenas e tão só “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, como de resto aponta o Ministério Público na sua resposta.
Por isso, improcede o presente fundamento de recurso quanto ao reexame da matéria de facto.
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b) O crime de abuso sexual de crianças
Tal ilícito da previsão do art. 171.º, n.º 1 do Código Penal[5] pune “Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa”.
No caso do seu n.º 3, al. b) pune-se “Quem actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objectos pornográficos”.
O bem jurídico aqui tutelado incide imediatamente na protecção da sexualidade durante a infância e o começo da adolescência e na preservação de um adequado desenvolvimento sexual nestas fases de crescimento – e não tanto a “intangibilidade sexual” e muito menos uma “obrigação de castidade e de virgindade quando estejam em causa menores”.
Assim e só apenas mediatamente se pode dizer que se protege a liberdade e autodeterminação sexual, porquanto só mais tarde é que tais menores vão desenvolver esta sua vertente.
Por sua vez, acto sexual de relevo e partindo do indicado bem jurídico, será toda aquela acção que afecte o adequado desenvolvimento sexual de uma criança ou jovem menor de 14 anos, e que, por isso mesmo, seja susceptível de vir a condicionar a sua liberdade e autonomia sexual, que tem todo o direito a ver preservada e a ser desenvolvida.
Para o efeito é necessário que esses actos tenham uma conotação sexual e sejam suficientemente relevantes para ofender o livre desenvolvimento sexual da vítima, o que implica um contacto corporal com conotações sexuais.
No que concerne aos actos sobre a menor que correspondam a conversa, escrito, espectáculo e objecto pornográfico não é necessário que exista um contacto físico entre o agente e a vítima, mas que a acção perpetrada tenha igualmente uma conexão de índole sexual e influencie ou seja idónea a influenciar negativamente o livre e adequado desenvolvimento sexual do menor.
No caso de actuação mediante objecto pornográfico essa acção típica consistirá essencialmente na exibição de fotografia, filme, gravação [176.º, al. b)] ou apresentação de qualquer outro material, independentemente do seu suporte, com conotação sexual e susceptível de afectar o desenvolvimento da sexualidade da vítima menor de 14 anos de idade.
Por outro lado, haverá ainda que atender aos estádios antecessores ou que se desenvolvem no âmbito dos actos sexuais de relevo consumados, os quais podem não patentear uma relevância própria e autónoma em relação a estes últimos [Ac. STJ de 2008/Out./29, CJ (S) III/207].
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Ora tendo ficado provado que “o arguido despiu-a – a menor – da cintura para baixo, após o que o arguido se deitou na cama, desapertou a braguilha das suas calças, tirou o seu pénis para fora, e com a menor colocada por cima de si, levou a que a mesma pusesse a mão no seu pénis” e logo de seguida “o arguido roçou o seu pénis, erecto, na parte superior das coxas da menor e na zona genital, ao nível da vulva, aí o friccionando-o” [situações I f), g) e III i)], não restam dúvidas que tais condutas do arguido, de que a menor foi vítima, correspondem a actos sexuais de relevo, que se desenvolveram em momentos temporais distintos.
Por outro lado, o visionamento de um filme com a menor, contendo cenas de sexo explícito entre adultos que mantêm relações sexuais entre si e cujo visionamento foi provocado pelo arguido, tipifica um crime de abuso sexual de criança da previsão do art. 171.º, n.º 3, al. b) [situação II h)].
Por sua vez, ocorre concurso de crimes [30.º, n.º 1], porquanto ainda que esteja em causa o mesmo ilícito, no seu tipo base e privilegiado, e se trate da mesma vítima sexualmente abusada, decorre da existência de momentos temporais distintos em que ocorreram essas situações, que o arguido reformulou o seu desígnio criminoso, surgindo cada um deles de modo autónomo em relação ao outros propósitos criminosos.
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c) A medida da pena
A todo o crime corresponde uma reacção penal, mediante a qual a comunidade expressa o seu juízo de desvalor sobre os factos e a conduta realizada por quem viola os comandos legais do ordenamento penal, estando a mesma definida no respectivo tipo legal.
O crime de abuso sexual de crianças da previsão do art. 171.º, n.º 1 do Código Penal, estabelece uma pena de prisão de 1 a 8 anos, enquanto no seu n.º 3 se comina uma pena de prisão até 3 anos, sendo o seu mínimo legal um mês [41.º, n.º 1].
O bem jurídico aqui protegido já foi anteriormente assinalado, tendo o seu enfoque na protecção da sexualidade durante a infância e o começo da adolescência, bem como na preservação de um adequado desenvolvimento sexual nestas fases de crescimento.
Estabelecida a medida legal da pena, opera-se a sua determinação judicial, sendo certo que, segundo o art. 40.º, n.º 1, do, “A aplicação das penas …visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente da sociedade”, acrescentando o seu n.º 2 que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Isto significa que a pena, enquanto instrumento político-criminal de protecção de bens jurídicos, tem, ao fim e ao cabo, uma função de paz jurídica, típica da prevenção geral, cuja graduação deve ser proporcional à culpa.[6]
Por sua vez, de acordo com os critérios de determinação da medida da pena, fixados no art. 71.º e conjugados com aquele art. 40.º, esta, numa primeira fase, é encontrada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento, quer resultem a favor ou contra o agente.
Assim, daquela primeira aproximação decorrem duas regras centrais: a primeira é que a culpa é o fundamento para a concretização da pena, devendo esta proteger eficazmente os bens jurídicos violados; a segunda é que deverá ter-se em conta os efeitos da pena na vida futura do arguido na sociedade e da necessidade desta defender-se do mesmo, mantendo a confiança da comunidade na tutela da correspondente norma jurídica que foi violada.
Posto isto, podemos dizer que nesta acção a pena serve primacialmente, por um lado, para a responsabilização do arguido, atenta a sua culpa e a intensidade do bem jurídico violado, contribuindo ainda, por outro lado e ao mesmo nível, para a sua reinserção, procurando não prejudicar a sua situação social mais do que o estritamente necessário.
Também, aqui deve-se, tanto quanto possível, neutralizar o efeito do delito, passando este a surgir, sem sombra de dúvidas, como um exemplo negativo para a comunidade e contribuindo, ao mesmo tempo, para fortalecer a consciência jurídica da mesma, procurando dar satisfação ao sentimento de justiça do mundo circundante que rodeia o arguido (função de prevenção geral).
O grau de ilicitude é bastante razoável já que o arguido não se inibiu de manter um relacionamento sexual com uma menor, na altura com apenas 4-5 anos de idade, sendo a mesma neta da companheira do arguido e convivente com o arguido, o que ainda acentua mais a sua culpa e subsequente responsabilização, como foi devidamente assinalado pelo acórdão recorrido.
Porém, a seu favor milita o facto de não ter antecedentes criminais e a sua avançada idade, pois aquando da prolacção do acórdão recorrido estava quase a completar 69 anos de idade[7], circunstâncias estas que não são devidamente valorizadas, tendo a última sido até ignorada em 1.ª instância.
Dai que se justifique uma pena entre os 2 e 4 anos de prisão, surgindo como ajustada uma pena de 3 anos de prisão.
No que concerne ao crime de abuso sexual de criança da previsão do art. 171.º, n.º 3, al. b) e por haver uma culpa mais ligeira, temos como adequado uma pena de 6 meses de prisão.
Reformulando o cúmulo jurídico e observando as regras de punição do concurso estabelecidas no art. 77.º, n.º 1 e 2, temos uma moldura penal entre os 3 anos e 6 anos e 6 meses de prisão.
Atendendo que a imagem global dos factos apresenta uma gravidade bastante razoável, pois como já se disse a menor tinha na ocasião apenas 4-5 anos de idade, havendo uma reiteração de condutas criminosas, mostrando o arguido uma personalidade avessa às relações emergentes de uma coabitação, pois todos moravam na mesma casa, sendo a menor neta da sua companheira, temos como ajustado uma pena única de 4 anos de prisão.
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d) A suspensão da execução da pena de prisão
A suspensão da execução de um pena de prisão tem lugar, atento o disposto no art. 50.º, n.º 1 do C. Penal (1995), se a simples censura do facto e a ameaça daquela pena forem bastantes para afastar o arguido da criminalidade, satisfazendo simultaneamente as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
A actual redacção deste preceito, resultante da Lei n.º 59/2007, de 04/Set, alterou de 3 para 5 anos de prisão este pressuposto objectivo ou formal.
A jurisprudência tem assim vindo a acentuar, que a suspensão da pena é uma medida penal de conteúdo pedagógico e reeducativo que pressupõe uma relação de confiança entre o tribunal e o arguido, estando na sua base um juízo de prognose social favorável ao condenado [Ac. do STJ de 2002/Jan./09 (Recurso n.º 3026/01-3.ª) e 2007/Out./18, (Recurso n.º 3185/07) divulgados, respectivamente, em http://www.stj.pt e www.colectaneadejurisprudência.com)].
Tal juízo deverá assentar num risco de prudência entre a reinserção e a protecção dos bens jurídicos violados, reflectindo-se sobre a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta “ante et post crimen” e sobre todo o circunstancialismo envolvente da infracção.
Para o efeito, será de atender que a pena de prisão suspensa, sujeita ou não a certas condições ou obrigações, é a reacção penal por excelência que exprime um juízo de desvalor ético-social e que não só antevê, como propicia ao condenado, a sua reintegração na sociedade, que é um dos vectores dos fins das penas (função de prevenção especial de reinserção ou positiva).
Porém, outros dos seus vectores é a protecção dos bens jurídicos violados e, naturalmente, a protecção da própria vítima e da sociedade em relação aos agentes do crime, de modo que, responsabilizando suficientemente estes últimos, se possa esperar que os mesmos não venham a adoptar novas condutas desviantes (função de prevenção especial defensiva ou negativa).
Na protecção dos bens jurídicos, será igualmente de destacar que a reacção penal a aplicar deve, tanto quanto possível, neutralizar o efeito do delito, passando este a surgir, sem sombra de dúvidas, como um exemplo negativo para a comunidade e contribuindo, ao mesmo tempo, para fortalecer a consciência jurídica da mesma (função de prevenção geral).
Pretende-se, assim, dar satisfação ao sentimento de justiça do mundo circundante que rodeia o arguido, através do mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica [Ac. STJ de 2007/Set./26, (Recurso n.º 2579/07), acessível em www.colectaneadejurisprudência.com].
Daí que, muitas vezes, e sobrepondo-se à ressocialização, seja necessária a execução de uma pena de prisão para defesa do ordenamento jurídico, designadamente quando o comportamento desviante for revelador de uma atitude generalizada e consequente de não se tomar a sério o desvalor de certas condutas relevantemente ofensivas da vida comunitária, de acordo com os princípios constitucionais relevantes de um Estado de Direito Democrático[8].
Por outro lado e muito embora o regime de suspensão da pena de prisão não seja graduado e condicionado materialmente em função do respectivo número de anos, não poderemos deixar de atender que o alargamento de 3 para 5 anos de prisão do pressuposto formal que possibilita essa suspensão, faz realçar, nesse excedente, a necessidade de uma ponderação mais criteriosa dos pressupostos materiais que regulam a sua aplicação, mormente quanto às circunstâncias em que ocorreram a conduta criminosa e a protecção adequada dos bens jurídicos violados [Ac. do STJ de 2008/Abr./03) (Recurso n.º 4827/07-5)].
E isto porque a suspensão generalizada e tida como “normal” ou “corrente” das penas de prisão de amplitude elevada, prejudica grandemente, por motivos óbvios de afrouxamento da reacção penal executiva, a eficácia preventiva do direito penal.[9]
Para o efeito, será de constatar que as razões de prevenção e apesar do arguido ser delinquente primário, levam a que a defesa eficaz do ordenamento jurídico e a protecção eficaz dos bens jurídicos aqui assinalados se faça, neste caso, com a efectivação da pena de prisão.
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III.- DECISÃO.
Nos termos e fundamentos expostos, concede-se parcial provimento ao presente recurso interposto pelo arguido B……… e, em consequência, decide-se condenar o mesmo pela prática, como autor material, na forma consumada e em concurso real, de dois crimes de abuso sexual de crianças da previsão do art. 171.º, n.º 1 do Código Penal na pena de 3 (três) anos por cada um desses ilícitos e pela prática de um crime de abuso sexual de crianças da previsão do art. 171.º, n.º 3, al. b) do Código Penal na pena de 6 (seis) meses de prisão, seguindo-se uma pena única de 4 (quatro) anos de prisão.

Mais se condena o arguido nas custas deste recurso fixando-se a taxa de justiça em quatro (4) Ucs [513.º, 514.º do Código Processo Penal].

Notifique.

Porto, 15 de Dezembro de 2010
Joaquim Arménio Correia Gomes
Paula Cristina Passos Barradas Guerreiro

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[1] Doravante são deste diploma os artigos a que se fizer referência sem indicação expressa da sua origem.
[2] “Impugnada, em sede de recurso, a matéria de facto fixada em 1.ª instância, a Relação não pode eximir-se à respectiva apreciação, a pretexto de que o modo como o aquele tribunal procedeu à apreciação da prova constituir matéria não sindicável, por respeitar ao princípio da livre apreciação da prova. O tribunal da Relação, em sede de fundamentação do seu acórdão, terá necessariamente que abordar especificamente cada uma das provas e correspondentes razões indicadas, salvo naturalmente aquelas cuja consideração tiver ficado prejudicada, sob pena de omissão de pronúncia, conducente à nulidade de tal aresto.”
[3] Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 Dezembro de 1948.
[4] Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que foi aprovada, para ratificação, pela Lei n.º 65/78, de 13/Out.
[5] Doravante são deste diploma os artigos a que se fizer referência, sem indicação expressa da sua origem.
[6] Veja-se a propósito Claus Roxin, em “Culpabilidad y Prevencion en Derecho Penal”, p. 181; Figueiredo Dias, em “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime” (1993), p. 73 e no seu estudo “Sobre o estado actual da doutrina do crime”, na RPCC, ano I (1991), p. 22; Maria Fernanda Palma, no seu estudo sobre “As alterações da Parte Geral do Código Penal na revisão de 1995: Desmantelamento, reforço e paralisia da sociedade punitiva”, em “Jornadas sobre a revisão do Código Penal” (1998), p. 26, onde se traça as finalidades de punição deste artigo, com base no § 2 do projecto alternativo alemão (Alternativ-Entwurf).
[7] Muito embora não conste expressamente nos factos provados, o certo é que o acórdão recorrido no seu relatório faz referência que o arguido nasceu em 1941/Jun./04 (fls. 338).
[8] DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime” (2005), p. 344.
[9] JESCHECK, H.-H., “Tratado de Derecho Penal”, Vol. II (1981), p. 1158