Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1144/21.0T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: DOAÇÃO
ANULAÇÃO
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP202201101144/21.0T8PVZ.P1
Data do Acordão: 01/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Por referência aos atos praticados antes do anúncio do início do processo de acompanhamento de maior, a pessoa afetada com a alegada incapacidade, tem legitimidade para requerer a anulação da doação, por ser no seu interesse que se atribui o direito de anular o ato (art. 287º/1 CC, por remissão do art.154º/3 CC).
II - Encontrando-se vivo o doador, pai do requerente, o requerente como herdeiro legitimário apenas tem uma expetativa do direito, não podendo impedir aquele de dispor dos seus bens como melhor lhe aprouver.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Arrolamento-1144/21.0T8PVZ.P1
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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
No presente procedimento cautelar de arrolamento instaurado como preliminar da ação principal, em que figuram como:
- REQUERENTE: B…, casado, residente na Av. … nº … …º andar, ….-… Póvoa de Varzim portador do C.C. nº …….. . …, válido até ../../2029, e titular do NIF ………; e
- REQUERIDOS: C…, viúvo, residente na Av. …., nº .., .. Andar, ….-… Póvoa de Varzim, portador do C.C. nº ……… . …, válido até ../../2028 e titular do NIF ………, e
N…, divorciada, residente na Av. …, nº .., ..º Andar, ….-… Póvoa de Varzim, portadora do C.C. nº ……… . …, válido até ../../2021 e titular do NIF ……..,
pretende o requerente que seja ordenado o imediato arrolamento do prédio identificado no art.º 24º, nomeando-se como fiel depositário o requerente, e que se ordene o registo da decisão de arrolamento sobre o respetivo prédio na competente Conservatória do Registo Predial, tudo com dispensa de audição prévia dos Requeridos.
Alegou para o efeito e em síntese que o requerido C…, nascido a ../../1933, na freguesia de …., Braga, filho de E… e de F…, em ../../1957 contraiu casamento católico com G…, sob o regime da comunhão geral de bens. Da constância do casamento, nasceram três filhos, H…, nascido em ../../1964, I.., nascido em ../../1959, e o Requerente, B.., nascido em ../../1959.
O casamento do Requerido C… e G…, dissolveu-se em 02/07/2006 por óbito desta última. Após a morte da sua mulher, o Requerido C…, ficou a viver com o filho mais velho H…, solteiro, maior e passou a ter uma empregada diurna para o serviço doméstico, a Srª. J….
Nos demais cuidados, o Requerido C… era apoiado pelo seu filho I…, enfermeiro de profissão, nomeadamente na administração dos seus bens e nos cuidados médicos de que precisava. Para além do apoio prestado pelo seu filho I…, o Requerido C… era ainda acompanhado pelo advogado Sr. Dr. L… da Sociedade M… de Braga.
Mais alegou que pelo menos a partir dos 80 (oitenta) anos, ou seja, pelo menos desde o ano de 2013, o Requerido C… começou a apresentar sinais de perdas de memória, desorientação e a apresentar trémulo de mão, que foram agravando progressivamente. Desde então as faculdades mentais e as forças do Requerido C… têm vindo a diminuir substancialmente, necessitando cada vez mais do apoio do seu filho I…, face ao desenvolvimento da demência por senilidade.
No final do ano de 2011, o filho I… conheceu a Requerida N…, quando a mesma acompanhou o internamento do pai dela no Hospital da Póvoa de Varzim, onde aquele se encontrava e encontra a trabalhar.
Após a morte do pai da Requerida N…, nos inícios do ano de 2012, o filho do Requerido, I… e a Requerida D… assumiram namoro e, nesse mesmo ano passaram a viver em união de facto, na casa deste sita na Rua …, nº .., ..º ..., ….-… Póvoa de Varzim. Quando não podia acompanhar o sei pai, o dito I… pedia à Requerida N… para o substituir.
Em 11 de Dezembro de 2016, o Requerido C…, sofreu um enfarte do miocárdio e foi hospitalizado no Hospital … no Porto e depois foi transferido para o Hospital S… em Matosinhos, onde permaneceu até ter alta, facto este a partir do qual a demência passou a ser mais notória e evidente, com perda da memória e quase sempre desorientado.
Posteriormente, em ../../2018, faleceu subitamente o filho mais velho do Requerido C…, H…, solteiro, maior o qual padecia de esquizofrenia, tendo até sido internado no Centro Hospitalar T…. O Requerido C…, já nem sequer manifestou quaisquer sinais de quaisquer sentimentos pela perda do filho, atenta a demência e a incapacidade de que já sofria.
Desde o enfarte o filho I.., enfermeiro Chefe no Centro Hospitalar da …, mudou-se para casa do Requerido C… com a Requerida N… e a filha desta, a fim de cuidar do Requerido C…, vigiar a sua saúde, acompanha-lo clinicamente no âmbito das suas funções de enfermagem, ministrar medicamentos, entre outras tarefas.
Sendo notória a progressividade da senilidade do Requerido C…, da qual o filho I… se foi apercebendo e foi sinalizando a Requerida N…. Quando nos anos de 2015 e 2016 a degradação do estado de saúde e de consciência do Requerido H… se foi agravando, carecendo de mais idas a médicos, apurou agora o Requerente que, o seu irmão I…, mandou a aquela companheira acompanhar o Requerido C…, pai deles, uma vez que esta se encontrava livre, por não ter qualquer ocupação enquanto ele tinha de fazer os turnos hospitalares e os serviços externos em clínicas particulares.
Com base no pedido efetuado I…, a Requerida N… começou assim a apresentar-se com o Requerido C… e a fazer-se passar por sua “nora” nos médicos e em todos os locais e a deixar o seu número de telemóvel para qualquer contacto.
Ora, tal conduta por parte da Requerida N… tinha e teve como único objetivo assenhorear-se da pessoa do Requerido C… para seguidamente se apoderar dos bens do mesmo, através dos atos que o induziu a praticar, nomeadamente a execução de plano que antecipou.
Apurou agora o Requerente que o Requerido C…, seu pai, efetuou vários levantamentos nas contas bancárias que possuía, que totalizam um montante superior a 200.000,00 € (duzentos mil euros) e que, o dinheiro simplesmente desapareceu, já que o Requerido C… no estado em que se encontra não sabe nem diz o destino que lhe deu. Não obstante, o Requerente apurou ainda, através do Processo Especial de Maior Acompanhado que corre termos no Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, sob o nº 904/21.7T8PVZ, que intentou contra o Requerido C…, seu pai, que este em ../../2019, efetuou uma procuração com poderes gerais e especiais, poderes de administração de bens, movimentação de contas bancárias, entre outros, a favor da Requerida N…
Apurou ainda o Requerente que a Requerida N…, em .. de Outubro de 2018 levou o Requerido C…, pai do Requerente, ao Cartório Notarial sito à Rua … …., nº …, ….-… …, Braga, para lhe fazer a doação da raiz ou nua propriedade do Apartamento, ..º Andar, fração “…”, tipo T-3, destinado a habitação, sito na Av. …, nº …, Póvoa de Varzim, do prédio em Propriedade Horizontal, descrito na CRP da Póvoa de Varzim sob o nº ….-. e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º….-., com o VPT de 182.631,05€ (cento e oitenta e dois mil, seiscentos e trinta e um euros e cinco cêntimos), mas cujo valor comercial ascende pelo menos a MEIO MILHÃO DE EUROS. Doação esta na qual, nem sequer impôs qualquer condição ou obrigação, de lhe prestar quaisquer cuidados, apenas reservando o usufruto, o qual nem sequer se encontra registado a favor do Doador.
Acresce ainda que, o irmão do Requerente, I…, foi recentemente surpreendido com uma carta que lhe foi endereçada pelo putativo advogado do seu pai, Dr. L…, a ameaça-lo retirar-lhe o carro que utiliza – Mercedes – que se encontra em nome do Requerido C…, para ser vendido, por falta de dinheiro, tudo conforme carta datada de .. de Maio de 2021.
A Requerida N… e a sua filha O…, vivem agora as duas na casa do Requerido C…, pai do Requerente, à custa do Requerido, porque o irmão do Requerente, o dito I… foi obrigado a ter de deixar a casa e o seu pai, para não ser preso preventivamente por pseudo atos de violência doméstica.
Para alcançar tal plano a Requerida N… começou por apresentar queixa-crime contra o irmão do Requerente, I…, pela prática de violência doméstica, com a única finalidade de o expulsar da casa do Requerido C…, onde vivia, e assim ficar sozinha com aquele.
As queixas de factos falsos apresentadas pela Requerida N… contra o dito I… eram de tal forma graves e reiteradas que não deixaram outra opção, quando foi ouvido naqueles autos, que não fosse abandonar de imediato a casa do Requerido/pai onde vivia, para lhe prestar cuidados médicos, antes que lhe fosse dada ordem de prisão preventiva.
Medida de coação que apenas não foi aplicada devido ao exagero das queixas da Requerida N…, que até à própria Srª. Magistrada do Ministério Público ficaram dúvidas, já que apenas a Requerida era a única pessoa a fazer prova das ditas falsas ofensas. O que levou a mesma Srª. Magistrada a pedir uma avaliação psicológica da Queixosa, pretensa ofendida.
Na sequência da saída do irmão do Requerente de casa, a Requerida N…, mudou as fechaduras da porta da casa do Requerido C… e impediu o Requerente e qualquer outro familiar de acederem à mesma e ao Requerido C….
Após diversas tentativas, o Requerente e a sua filha lograram entrar com o consentimento da Requerida N… e puderam constatar o estado de prostração e total ausência do mundo em que o Requerido C… vive vegetativamente, o qual já não tem qualquer capacidade de gerir a sua pessoa e muito menos os parcos bens e rendimentos que ainda possui.
Alegou, ainda, que tudo não passou de manobras e esquemas da Requerida N… para se apropriar da pessoa do pai do Requerente e assim fazer dele o que bem entendesse em seu proveito próprio, depredando todo o património de valor do Requerido C…, em mais de 800.000,00€ (oitocentos mil euros), já que, o que o mesmo ainda possui não vale mais do que 100.000,00€ (cem mil euros), como a própria Requerida N…, alegou naquele processo de maior acompanhado.
Do relatório clínico junto pelo médico Sr. Dr. P…, neurologista e neurocirurgista, que acompanhou o Requerido C… desde pelo menos 2016, este apresentou sintomas de demência senil e começou a ser tratado para o efeito a partir dessa data. Está assim, suficientemente evidenciado que o pai do Requerente, o Requerido C…, não tem condições para agir, pois apresenta um quadro mental compatível com uma demência e com desorientação no espaço e no tempo. Acrescido das confusões mentais e lapsos de memória que tendo vindo a agravar-se, presentemente são totais.
O Requerente já instaurou Ação Especial de Maior Acompanhado que corre termos no Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, sob o nº 904/21.7T8PVZ, em que é Requerido o seu pai, C…, e pretende agora o Requerente proceder à anulação daquela doação, por a mesma não corresponder à vontade do Requerido C…, seu pai, que foi ludibriado pela Requerida N…, a qual usou o Requerido C… de tal forma que este desenvolveu ciúmes contra o próprio filho, por causa da Requerida N…. O pai do Requerente, não só não têm consciência dos atos praticados, como não tem vontade e muito menos entende o que se está a passar com a sua pessoa.
A Requerida N… acamou o pai do Denunciante e mantém-no completamente sedado e imobilizado, tudo com recurso a uso de medicação hospitalar para sedar doentes convulsos ou com problemas psiquiátricos e assim dominar toda a sua vida, a pessoa e o património, em seu próprio benefício. Para obstar à perda do imóvel supra melhor identificado no art.º 24º, urge proceder ao seu Arrolamento imediato e urgente como o meio adequado de evitar o extravio e/ou dissipação do bem, face ao justo e fundado receio, decorrente de o Requerido C… se encontrar em debilitado estado de saúde e por isso incapaz de agir sozinho e de a Requerida N… já ter conhecimento de que o Requerente já descobriu a doação e que pretende agir judicialmente para salvaguarda do Requerido C…, seu pai e da expectativa da sua legítima.
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Designou-se data para inquirição das testemunhas.
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Proferiu-se despacho que convidou o requerente a aperfeiçoar a petição, com indicação da ação que pretendia instaurar.
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O requerente, respondendo ao convite, veio informar que o presente procedimento foi instaurado como preliminar da ação de anulação do contrato de doação, referenciado na petição.
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Seguiu-se novo despacho com a seguinte proposta de decisão:
“O presente procedimento cautelar de arrolamento de imóvel é apresentado como preliminar de uma ação pela qual o Requerente pretende a anulação do negócio de doação do dito imóvel, pelo qual o primeiro Requerido, seu pai, doou à segunda Requerida a raiz ou nua-propriedade do mesmo.
Alega o Requerente que tal doação não corresponde à vontade real do primeiro Requerido, seu pai, o qual, por razões de demência, não estava capaz de querer e compreender o alcance de tal negócio, visando assim a salvaguarda do dito Requerido e da expectativa da sua legítima.
Afigura-se-nos, porém, que o Requerente, não agindo como representante do doador, não tem legitimidade para requerer a anulação do referido negócio jurídico de doação, já que a mera expectativa jurídica de vir a suceder àquele não lhe confere tal legitimidade (neste sentido, confrontar, entre outros, o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 5.12.2012, processo n.º 10/22.2T2AVR, in www.dgsi.pt).
Consequentemente também não terá legitimidade ativa para instaurar a presente providência.
Assim, afigurando-se existirem motivos para indeferir liminarmente o presente procedimento cautelar, ao abrigo do disposto no art. 3º, n.º 3 do CPC, notifique o Requerente para, querendo, se pronunciar sobre o acima expendido no prazo de 2 dias”.
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O requerente veio pronunciar-se, alegando para o efeito “muito embora não concorde com o seu teor, Vem dizer que no processo de maior acompanhado foi já nomeada curadora provisória do beneficiário, aqui Requerido, a neta Q….
Assim e face ao teor do despacho aguarda que a inquirição designada, para a manhã de hoje seja dada sem efeito”.
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Não se procedeu à inquirição das testemunhas.
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Proferiu-se despacho com a decisão que se transcreve:
“Pelo exposto, ao abrigo do preceituado no art. 590º, n.º 1 do CPC, por manifestamente improcedente, indefiro liminarmente a presente providência cautelar de arrolamento.
Custas pela Requerente.
Notifique.
Fixo à ação o valor de €182.631,05”.
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O requerente veio interpor recurso do despacho.
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Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:
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Termina por pedir que se julgue o presente recurso provado e procedente e em consequência o despacho recorrido revogado e substituído por outro que admita o presente procedimento cautelar.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Dispensaram-se os vistos legais.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A questão a decidir consiste em saber se o pedido de arrolamento é manifestamente improcedente, quando requerido pelo filho do doador como incidente de ação de anulação de doação.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório.
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3. O direito
No presente procedimento cautelar pretende o apelante-requerente que se proceda ao arrolamento do imóvel referenciado na escritura pública de doação celebrada entre os requeridos e através da qual o requerido doou à requerida o referido imóvel, com reserva de usufruto para o próprio.
O procedimento foi liminarmente indeferido, por se considerar manifestamente improcedente, com os fundamentos que se passam a transcrever:
“Sendo certo que, nos termos do art. 404º, n.º 1 do Código de Processo Civil, “o arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos”, é também verdade que o art. 403º, n.º 2 do mesmo Código de Processo Civil estabelece que o arrolamento é dependência de uma ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas”.
Trata-se da concretização legal da relação de instrumentalidade que deve existir entre a providência cautelar e a ação principal. Sendo inequívoca tal relação de instrumentalidade entre o presente procedimento cautelar de arrolamento e a ação que o Requerente diz pretender instaurar para a anulação do aludido negócio jurídico, temos de concluir a legitimidade do Requerente para a instauração do presente procedimento cautelar depende da sua legitimidade para instaurar a aludida ação de anulação.
Ora, a ação de invalidade de negócio jurídico por incapacidade acidental prevista no art. 257º do Código Civil – também aplicável aos negócios jurídicos celebrados por qualquer incapaz de facto, ainda que ferido de incapacidade permanente, quando não tenha sido proposta a competente ação de acompanhamento, ou nesta não haja ainda decisão final – fundamenta-se no regime da anulabilidade do negócio jurídico e, portanto, está sujeita ao regime do art. 287º do Código Civil.
Nos termos da aludida norma, deve considerar-se interessado para efeito de arguição da referida anulabilidade, apenas o incapacitado ou o seu representante, por ser no interesse daquele que foi estabelecida a invalidade do negócio.
No caso, é inequívoco que o Requerente, apesar de alegar que pretende proteger os interesses do doador, seu pai, não atua em nome e como representante deste, tanto mais que também contra ele deduziu o arrolamento em análise.
Tão pouco alega que tal qualidade lhe foi atribuída (ou sequer que reúne as condições para lhe ser atribuída a qualidade de acompanhante no processo de maior acompanhado que entretanto já interpôs). E o certo é que a qualidade de herdeiro legitimário do primeiro Requerido, que também invoca, e a defesa da sua legítima, não lhe conferem a necessária legitimidade para invocar a anulabilidade do aludido negócio de doação. É que, encontrando-se o doador vivo, o Requerente, enquanto herdeiro legitimário do mesmo, tem somente uma expectativa jurídica de vir a suceder àquele Requerido e a herdar os bens que este possa deixar.
Como se refere no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.12.2013 (processo n.º 282/13.8TVLSB.L1-6, in www.dgsi.pt), “1.Na ação de anulação de um negócio jurídico por virtude de incapacidade, erro, dolo ou coação, só terá legitimidade como Autor o titular do direito de anulação, a pessoa a quem a incapacidade se refere, seu representante ou sucessor; o enganado ou o coagido. 2. A herdeira legitimária não tem, em vida da doadora, mais que meras expectativas de suceder ao vendedor, pelo que não têm legitimidade para pedir a anulabilidade de doação, invocando a incapacidade acidental da doadora, já que a anulabilidade foi instituída para protecção do incapacitado ou daquele que foi explorado pela sua situação de dependência ou estado mental. (..)” (no mesmo sentido, confronte-se o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 5.12.2012, processo n.º 10/11.2T2AVR, in www.dgsi.pt).
Por outro lado, a causa de pedir da ação definitiva que o Requerente pretende propor não é subsumível à hipótese prevista no art. 294º do Código Civil – que confere legitimidade aos herdeiros legitimários para, ainda em vida do autor da sucessão, arguirem a nulidade (e não a anulabilidade) dos negócios simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar – porquanto o que está em causa não é qualquer situação de simulação, mas antes uma situação suposta incapacidade acidental geradora da anulabilidade do negócio.
Conclui-se, assim, que o Requerente não tem legitimidade para instaurar a ação definitiva a que se propõe, razão pela qual não terá também legitimidade para requerer o presente procedimento cautelar de arrolamento que daquele é dependente”.
Insurge-se o apelante contra o decidido, por entender que a expetativa da qualidade de herdeiro legitimário é enorme quanto à probabilidade de vir a suceder a curto prazo, para além de ter as condições e qualidades exigidas para exercer as funções de acompanhante do requerido, por nomeação no processo de maior acompanhado que instaurou contra o requerido.
A questão que se coloca consiste em determinar se perante a simples análise da petição se pode concluir que não assiste ao requerente o direito de peticionar a anulação da doação, o que obsta ao arrolamento do imóvel, sendo o pedido manifestamente improcedente.
De acordo com o disposto no art.590º/1 CPC:
“[…]a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente […]”.
A petição “manifestamente improcedente” está associada a razões de fundo, por falta de condições necessárias para a procedência da ação.
Mostram-se atuais os ensinamentos de ALBERTO DOS REIS, quando considerava que se justificava o indeferimento liminar da petição inicial quando “[…] a improcedência da pretensão do autor for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão de ser, seja desperdício manifesto de atividade judicial”[2].
O vício em causa determina que a simples inspeção da petição leva o juiz a concluir que o autor não tem o direito que se arroga.
Nos termos do art. 403ºCPC sob a epígrafe “Fundamento” prevê-se:
“1. Havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles.
2. O arrolamento é dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas”.
O arrolamento enquanto providência cautelar, visando a conservação de bens no património, funda-se na descrição de bens de forma a assegurar que os mesmos não possam ser objeto de extravio, ocultação ou dissipação.
O âmbito de previsão da providência generalizou-se ao longo dos tempos, como disso dá nota, o Professor ALBERTO DOS REIS. Inicialmente esteve previsto como ato preparatório do inventário e de abandono de bens e herança jacente. O Código de Processo Comercial veio permitir que se lançasse mão do arrolamento como ato preparatório ou incidente da ação de dissolução de sociedade. O Decreto 03.11.910 passou a prever que a mulher podia requerer o arrolamento em conexão com a ação de divórcio, regime que era extensivo à ação de separação de pessoas e bens.
O Código de Processo Civil de 1939 passou a admitir o arrolamento sempre que houvesse interesse na conservação dos bens. O Professor ALBERTO DOS REIS ensinava, então, que o interesse na conservação dos bens podia assumir dois aspetos: “ser consequência do direito aos bens, direito já existente e constituído ou ser o resultado de uma pretensão jurídica que carece de ser apreciada e julgada”[3].
O Código de Processo Civil de 1961 veio acolher tal interpretação, com a redação do art. 422º/2 CPC. As alterações introduzidas pelo DL 329-A/95 não visaram introduzir uma alteração substancial[4].
Presentemente e como se prevê no art. 403º/2 CPC, o arrolamento de bens é dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas.
A formulação genérica da lei aponta para ação em que esteja em causa – ou de cuja procedência possa resultar estar em causa – a determinação, para qualquer fim, dos bens de um património, geral, separado ou colectivo[5].
O arrolamento pode assim ser declarado na dependência de ações em que se tenha que proceder à especificação dos bens, como seja, o processo de inventário, partilha de património conjugal, liquidação de sociedade, reivindicação de estabelecimento ou universalidade de facto, prestação de contas.
Contudo, pode também ser declarado na dependência de ações que tenham por objeto a questão prévia da determinação de um estado, direito ou facto de cuja existência dependesse uma futura especificação, nas quais se incluem as ações de divórcio, separação de pessoas e bens, anulação de casamento, dissolução de sociedade, interdição, investigação de paternidade ou maternidade, anulação de testamento, doação, de negócio translativo de uma universalidade.
No caso presente o pretendido arrolamento enquadra-se neste segundo grupo.
O interesse do requerente-apelante na conservação dos bens resulta de uma pretensão jurídica que carece de ser apreciada e julgada: a ação de anulação da doação celebrada por escritura pública.
Contudo, tal como o apelante configura a sua pretensão não lhe assiste tal direito.
O requerente sustenta a pretensão de anulação da doação na incapacidade acidental do requerido, ato praticado em data anterior à instauração da ação especial de Maior Acompanhado.
Conforme se prevê no art. 154º/3 do CC “aos atos anteriores ao anúncio do início do processo aplica-se o regime da incapacidade acidental”.
O regime da incapacidade acidental vem previsto no art. 257º CC e do mesmo decorre que a declaração negocial é anulável.
Contudo, por aplicação do regime geral, (já que a lei não faz uma indicação concreta da pessoa legitimada), nos termos do art. 287º/1 CC, a anulação do negócio apenas pode ser arguida “pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece”.
Na situação presente apenas o requerido, a pessoa afetada com a alegada incapacidade, tem legitimidade para requerer a anulação da doação[6], por ser no seu interesse que se atribui o direito de anular o ato ( art. 154º/3 CC).
Observa a este respeito MAFALDA MIRANDA BARBOSA: “[…]por referência aos atos praticados antes do anúncio do início do processo de acompanhamento. Quanto à anulabilidade destes, a verificar-se, tem legitimidade para a invocar o sujeito que, no momento da celebração do negócio, estava incapacitado de entender e querer, no prazo de um ano a contar do momento em que as suas capacidades cognitivas e volitivas lhe permitem a correta perceção do alcance do ato que praticou e o perfeito domínio da sua vontade. Quanto ao acompanhante, ele terá legitimidade, desde que o ato em questão seja um daqueles em relação ao qual há necessidade de representação ou de assistência”[7].
Daqui resulta que o requerente, apesar de filho não tem tal direito, até porque não foi investido na qualidade de acompanhante.
O apelante nas conclusões de recurso não questiona o nexo de instrumentalidade entre a providência e a concreta ação de anulação, nem os fundamentos da decisão quando considera que por aplicação do regime previsto no art. 287º CC não lhe assiste o direito de peticionar a anulação da doação.
Argumenta apenas, sob as alíneas C) a J), que reúne as condições para ser designado acompanhante do requerido no âmbito do processo especial de acompanhamento de maior e por isso, estar em condições de agir em defesa do património do requerido.
Contudo, tal via de argumentação não foi oportunamente apresentada na petição, sendo certo que a providência não foi instaurada pelo apelante na qualidade de representante do requerido, poderes que o apelante não tem e nos quais não foi investido na referida ação, pois o próprio admite que foi nomeado acompanhante provisório uma neta do requerido (alínea D) das conclusões de recurso) e com poderes muito limitados.
Numa segunda ordem de argumentos, também sob as alíneas C) a J), invoca a sua qualidade de herdeiro legitimário, para justificar a necessidade de conservação dos bens.
Também sob este aspeto não se pode acolher os argumentos apresentados, porque encontrando-se vivo o doador, pai do requerente, o requerente como herdeiro legitimário apenas tem uma expetativa do direito, não podendo impedir aquele de dispor dos seus bens como melhor lhe aprouver. Não tem um direito a um bem certo e determinado numa eventual partilha que venha a ocorrer por morte de seu pai e nessa medida tal posição não lhe concede o direito de requerer o arrolamento do imóvel.
A mesma linha de raciocínio seguiram os Ac. Rel. Porto 07 de outubro de 2021, Proc. 1139/21.4T8PVZ.P1 e o Ac. Rel. Lisboa de 27 de maio de 2021, Proc. 5114/21.0T8LSB.L1-2, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
Conclui-se perante a análise da petição que não assiste ao requerente o direito que visa acautelar com a presente providência de arrolamento, sendo pois manifestamente improcedente.
Improcedem, desta forma, as conclusões de recurso.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
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Custas a cargo do apelante.
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Porto, 10 de janeiro de 2022
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição Reimpressão, Coimbra Editora, Lim, Coimbra 1982, pag. 385
[3] Cfr. JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição Reimpressão, Coimbra Editora, Lim, Coimbra, 1981, pag. 105-106
[4] JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, pag. 186
[5] JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, ob. cit., pag. 184
[6] Cfr. CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1976, pag. 472
[7] MAFALDA MIRANDA BARBOSA, MAIORES ACOMPANHADOS- Primeiras Notas Depois da Aprovação da Lei Nº 49/2018, de 14 de agosto, pag. 75