Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3049/22.9T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA OLÍVIA LOUREIRO
Descritores: CONTRADIÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
DANO DE PERDA DE CHANCE
Nº do Documento: RP202510133049/22.9T8AVR.P1
Data do Acordão: 10/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A contradição entre factos provados e entre estes e os não provados não consubstancia causa de nulidade da sentença à luz do artigo 615º, número 1 c) do Código de Processo Civil (nem de nenhuma outra das suas alíneas) que apenas prevê como causa de nulidade a contradição entre os fundamentos e a decisão e a obscuridade ou ambiguidade da sentença que a torne ininteligível.
II - A contradição da decisão da matéria de facto quanto a pontos determinados da matéria de facto é, antes, causa de anulação da sentença pelo tribunal de recurso, que, todavia, só operará se dos autos não resultarem já os elementos necessários à alteração da matéria de facto nos termos do artigo 662.º, número 2 c) do Código de Processo Civil.
III - A contradição a que se refere tal preceito implica que os factos choquem entre si de forma que não possa ser explicada e, portanto, impeça que coexistam na mesma decisão.
IV - A dificuldade de prova de um facto, nomeadamente por se tratar de um facto negativo não é causa de inversão do ónus de prova.
V - Alegado dano de perda de chance decorrente de tardia apresentação de recurso por advogado, o mero reconhecimento de que o mesmo deveria ter usado de maior zelo e diligência para evitar a não admissão do recurso com fundamento em intempestividade não é bastante à sua condenação em pagamento de indemnização por responsabilidade contratual.
VI - Deve decorrer dos factos alegados e provados pelo lesado a conclusão de que existia probabilidade de que um comportamento adequado do seu mandatário – nomeadamente por via da apresentação do recurso em prazo -, poderia vir a evitar o dano decorrente da sentença objeto de recurso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 3049/22.9T8AVR.P1, Juízo Central Cível de Aveiro, Juiz 2.

Recorrente: AA

Recorridos: BB e “A... SE, Sucursal en España

Relatora: Ana Olívia Loureiro

Primeiro adjunto: Manuel Fernandes

Segunda adjunta: Filipe Castro Osório

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

1. AA propôs ação contra BB e A... SE, Sucursal en España, pedindo a sua condenação solidária no pagamento de 80.000 €. Alegou, em suma, que mandatou o primeiro réu, que é advogado, para a representar em processo crime em que era arguida e demandada civil. Nele foi condenada pela prática dos crimes de infração de regras de construção agravado pelo resultado (falecimento de um trabalhador da sociedade de que é legal representante) e de violação de regras de segurança.

Tendo a autora sido ali condenada em pena de prisão suspensa por três anos na condição de pagamento aos demandantes de 20.000 € por conta da indemnização de 60.000€ que também foi condenada a pagar-lhes, o réu sugeriu-lhe recorrer da sentença, o que a mesma aceitou. Todavia, o mesmo interpôs o recurso fora de prazo e o mesmo não foi admitido, não obstante a reclamação interposta do despacho de não admissão para o Tribunal da Relação do Porto, seguida de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que também indeferiu a sua pretensão, o que foi objeto de recurso para o Tribunal Constitucional que o julgou, também, intempestivo. Não tendo qualquer destas instâncias deferido às pretensões da autora representada pelo seu advogado, o réu apenas deu conhecimento à autora de que reclamaria do despacho de não admissão do recurso para o Tribunal da Relação do Porto nada mais lhe transmitindo sobre o posterior andamento dos autos. Apenas por ter constatado ser devedora de custas não pagas ao Tribunal Constitucional é que a autora percebeu não estar a par do andamento do seu recurso o que a levou a questionar o réu, que lhe disse não ter novidades sobre o processo. A autora recorreu então a advogada na companhia de quem consultou o processo e constatou a sua tramitação, tendo sido informada de que a sua condenação estava transitada em julgado, tendo já começado a correr o prazo de suspensão da pena e da condição de pagamento de 20 000 € aos demandantes. A autora perdeu, em função disso, a possibilidade de parcelar tal pagamento ao longo de trinta e seis meses, viu comunicada à Autoridade Tributária a dívida de custas não pagas no Tribunal Constitucional e perdeu a chance de recorrer a sua condenação graças ao comportamento omissivo do primeiro réu. Ora, segundo a autora, se o recurso tivesse sido tempestivamente interposto, seriam fortes as possibilidades de vir a ser alterada a sentença de condenação, na medida em que entende que não ficou provado que lhe cabia exercer vigilância sobre a execução dos trabalhos ou sobre o cumprimento de regras de segurança pelo trabalhador falecido em acidente de trabalho, tendo sido o seu companheiro a contratar o referido trabalhador e sendo aquele quem definia as obras e dirigia trabalhos. Segundo ela, o Tribunal que proferiu a sentença condenatória terá considerado, erradamente, que a autora, ali arguida, era gerente de facto da sociedade empregadora. Alegou, ainda, que no referido processo comum singular não foi feita prova de que a autora representou o perigo de funcionamento da máquina que o sinistrado se encontrava a manobrar no momento do acidente nem de qualquer nexo de causalidade entre a violação de qualquer norma de segurança com o decesso desse trabalhador. Segundo a autora, ficou mesmo demonstrado que a morte do trabalhador se deveu à ausência de um colega de trabalho que devia estar a acompanhar a manobra e que abandonou o local nesse momento, bem como ao facto de o próprio sinistrado ter continuado a manobra, apesar de saber que não o podia fazer desacompanhado. Mais afirmou que mesmo em face dos factos dados por provados na decorrência de indevida análise da prova, a pena que lhe foi aplicada foi desajustada por não ter sido ponderada devidamente a falta de antecedentes criminais da arguida e a sua situação socioeconómica, revelando-se desproporcional a sujeição da suspensão da pena à condição de pagamento de um valor tão elevado. Alegou, ainda, que uma das demandantes civis, viúva do sinistrado, já tinha recebido 35 000 € de indemnização por parte da seguradora com quem a entidade patronal celebrara contrato de seguro obrigatório por acidentes de trabalho sem que, nessa altura, tenha exigido maior valor. Finalmente alegou que também o recurso para o Tribunal Constitucional foi julgado intempestivo e que se tivesse sido tempestivamente interposto seria procedente. Em face dos danos emocionais que descreveu e do valor que teve que pagar aos demandantes civis, entende ser-lhe devido o pagamento do valor de 20.000 € para ressarcimento dos primeiros e de 60.000€ para indemnização dos danos patrimoniais sofridos.

A demanda da seguradora foi justificada pela autora pela alegação da celebração entre ela e o primeiro réu de contrato de seguro de responsabilidade civil profissional.

2. O primeiro réu contestou impugnado grande parte dos factos alegados pela autora, nomeadamente quanto à sua condenação no pedido de indemnização civil, já que também a sociedade coarguida (que era entidade patronal do trabalhador e da qual a arguida era legal representante) foi condenada em regime de solidariedade no pagamento da indemnização fixada. Mais argumentou que a forma como contou o prazo de interposição de recurso para o Tribunal da Relação do Porto foi correta, pois ocorreu um intervalo de tempo entre a leitura da sentença, o seu depósito sem efetiva disponibilização do texto da mesma via citius, e, só depois, a sua notificação ao defensor, na decorrência das suas solicitações, pelo que este entendeu que apenas quando efetivamente notificado da sentença - que até então não estava disponível para consulta no sistema eletrónico de apoio aos tribunais - poderia contar-se o prazo para recorrer. Defendeu que foram erradas as decisões do tribunal recorrido e do Tribunal da Relação do Porto que não admitiram o recurso por intempestividade. Alegou que a autora foi sempre informada das várias diligências e requerimentos processuais e que a mesma assinou até uma declaração em que afirmava saber das diligências feitas pelo réu no sentido de ser notificado da sentença e da data em que realmente tal veio a suceder, bem como reconheceu saber do resultado da reclamação para o Tribunal da Relação do Porto e ali afirmou, por escrito, não assacar ao réu qualquer responsabilidade pela ultrapassagem do prazo de recurso. Concluiu que a autora litiga com má-fé.

3. A segunda ré também contestou impugnando os factos alegados na petição inicial e alegando que, mesmo atendendo ao alegado pela autora, o réu teria razão quanto à contagem do prazo para interposição de recurso da sentença condenatória e que não estão alegados factos que permitam concluir que era provável que tal recurso viesse a ser bem sucedido, nomeadamente por causa da motivação constante da sentença relativamente aos factos dados por provados e em face da sua fundamentação jurídica, que foi correta. Também quanto ao recurso para o Tribunal Constitucional entende a ré seguradora que não havia fundamentos para a sua procedência sendo expectável que o mesmo viesse a ser indeferido, mesmo que se tivesse considerado tempestivo. Alegou ainda que o contrato de seguro que celebrou com o primeiro réu fixava uma franquia no valor de 5000 €.

4. Em 05-05-2023 realizou-se audiência prévia em que foi tentada e frustrada a conciliação, tendo-se ordenado que os autos fossem conclusos para prolação de despacho saneador, que veio a ser proferido e 29-05-2023. Ali foi identificado o objeto do litígio e foram enunciados os temas da prova.

5. Tendo o primeiro réu reclamado dos temas da prova, foi designada nova audiência prévia para conhecimento dessa reclamação. Nessa diligência a autora veio alegar não se recordar de ter assinado a declaração referida pelo primeiro réu na sua contestação e junta à mesma como documento número 2 e desconhecer se a assinatura nela aposta era da sua autoria, tendo o Tribunal a quo proferido despacho em que considerou que, em face dessa forma de impugnação, se devia considerar a referida assinatura como verdadeira.

Foi deferida a reclamação à enunciação dos temas da prova, tendo-se entendido ocorrer “nulidade” por inclusão, nos mesmos, de factos não alegados, relativos ao conhecimento, pela autora, da não admissão do recurso interposto da sentença condenatória e à sua vontade de desonerar o réu de responsabilidade relacionada com esse facto. Foram admitidos os requerimentos de prova e foi designada data para audiência de julgamento.

6. Em 23-10-2023 a autora veio alegar que se encontrava indevidamente transcrito para a ata o teor do seu requerimento quanto ao teor do documento número 2 junto com a contestação e pediu a sua retificação.

7. Em 02-11-2023 a autora interpôs recurso de apelação do despacho proferido em audiência prévia em que se declarou que a autora não arguira qualquer vício de vontade relativamente ao teor da declaração junta como documento número 2 da petição inicial, ordenando a eliminação de dois temas de prova.

8. Em 05-12-2023, o tribunal deu acolhimento à pretensão da autora de ver retificada a ata da audiência prévia e alterou, em consequência, o despacho que deferira a reclamação à enunciação dos temas da prova, indeferindo agora tal reclamação e mantendo a enunciação original dos mesmos.

9. Em 18-12-2023 a autora veio declarar que em face do despacho de 05-12-2023 perdia interesse no recurso interposto.

10. A 22-01-2022 foi ordenada a restituição da taxa de justiça que fora paga pela sua interposição.

11. A audiência de julgamento iniciou-se em 29 de janeiro de 2025 tendo sido lavrada assentada quanto ao depoimento de parte da autora.

12. Em 30-01-2025 o primeiro réu veio arguir a omissão, na assentada, da confissão feita pela autora relativamente ao teor da alínea n) dos temas da prova e a consequente “nulidade” dessa assentada.

13. Na sessão da audiência de julgamento de 25-02-2025 foi proferido despacho que considerou intempestiva a reclamação sobre o teor da assentada, mas que, em face dos esclarecimentos então prestados pela autora nessa diligência considerou que a mesma admitiu que o réu fez diligências com vista a que o pagamento de 20 000 € aos demandantes civis fosse feito em prestações, com o consentimento da autora. Desse despacho consta ainda que “o Tribunal anotará tal admissão de factos no âmbito da sentença a elaborar, valorando essa admissão de facto nos termos do disposto no artigo 361.º do CPC.”.

14. Em 16-03-2025 foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo os réus dos pedidos.


*

II - O recurso:

É desta sentença que recorre a autora, arguindo a sua nulidade, pretendendo a alteração parcial do julgamento da matéria de facto e a sua revogação com a consequente declaração de procedência da ação.

Para tanto, alega o que sumaria da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:

“A. A sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, por se verificar uma contradição insanável entre os factos dados como provados e os não provados, nomeadamente entre os factos "mm" e "pp" (suposto conhecimento da Recorrente sobre o andamento do processo) e o facto "ccc" (deslocação ao Tribunal de Amarante para consulta do processo).

B. O tribunal de 1.ª Instância considerou como provado, no facto “mm” e “oo” “Do teor das decisões referidas nas precedentes alíneas bb) a kk) foi dado conhecimento à Autora pela equipa de advogados que defendia as arguidas no processo crime n.º ...”

C. E no facto “pp” que “Ainda durante o ano de 2020, as diligências do 1.º Réu para o pagamento, pela Autora, da quantia de €20.000 em prestações, no âmbito do processo executivo apenso ao processo crime de Amarante (proc. n.º ...), foram feitas com o seu conhecimento”

D. Para depois dar também como provado no facto “ccc” que “A Autora, em maio de 2022, deslocou-se ao tribunal de Amarante para consultar o processo.”

E. Como é que pode ser compreensível que a Recorrente fosse ela própria consultar o processo com outra advogada se estivesse contente e informada pelo seu anterior advogado aqui Recorrido?

F. A recorrente foi consultar o processo percorrendo 125 km porque se deparou com as custas do Tribunal Constitucional na sua página das finanças sem que fizesse a menor ideia do que se tratava.

G. Ao considerar se nos factos “mm”, que foi dado conhecimento à Autora do teor das decisões precedentes das alíneas “bb” a “kk” mas por sua vez que a mesma se deslocou a Amarante para consultar o processo facto “ccc”, o tribunal de 1.º instância faz colidir os factos que determinariam se a Autora conhecia ou não o desfecho do processo.

H. Essa contradição torna incompreensível a decisão e compromete a coerência lógica exigida pela lei, devendo a sentença ser declarada nula.

I. Existe também uma contradição entre factos provados e não provados.

J. Com efeito, o tribunal de primeira instância considera provado facto “ccc” que “A Autora, em maio de 2022, deslocou-se ao tribunal de Amarante para consultar o processo.”.

K. Por outro lado, considera não provado que a Recorrido: h) Não informou da notificação que lhe foi feita com as guias para pagamento das taxas de justiça; i) Sempre que abordado pela Autora para saber do ponto de situação o Dr. BB referiu que o recurso se encontrava em análise; j) Nunca referindo que já havia esgotado todos os graus de jurisdição; k) Pelo que apenas em maio (2022) a Autora desconfiou que algo não estaria a correr bem; l) Tendo ficado em estado de alerta, quando ao consultar a sua página das finanças constatou que tinha uma dívida oriunda de custas não pagas ao Tribunal Constitucional; m) O que levou a Autora a procurar aconselhamento jurídico após questionar novamente o 1.º Réu sobre o estado do processo, daí obtendo a mesma resposta “ainda não há novidades”; n) Nunca informou a sua Cliente de que a situação se tinha efetivado com o trânsito em julgado da decisão; o) A Autora desconhecia que tinha começado a correr o prazo de suspensão da sua pena de prisão; p) Desde 2017 que a Autora tem vindo a questionar o estado do processo;

L. Repare-se que se dá como não provado que a Recorrente apenas em 2022 desconfiou que algo não estaria a correr bem (facto não provado “k”)

M. Para depois dar como provado que a Recorrente se deslocou ao tribunal de Amarante em 2022 para consultar o processo.

N. Pelo que face ao exposto, é por demais evidente que é impossível fazer conciliar os factos provados “mm” com o facto “ccc” entre si.

O. E ainda que o facto provado n.º “ccc” se coadune com os factos não provados da alínea “h” a “p” dos factos não provados.

P. Face ao exposto, deverá ser declarada a nulidade da sentença recorrida, e ordenada a renovação ou a produção de nova prova, nos termos do art.º 615.º n.º 1 al. c), e 662.º n.º 2 al. c) e n.º 3 do C.P.C. ou ser a mesma substituída por Acórdão que – no respeito pelo disposto no art.º 615.º, n.º 1, al. c), e do art.º 665.º n.º 1, do C.P.C., – não incorra na assacada nulidade.

Q. Acresce que a sentença é nula quer por contradição entre factos provados e não provados quer por obscuridade e ambiguidade, ao considerar que a Recorrente estava plenamente informada, mas que ainda assim se deslocou presencialmente ao tribunal por desconhecimento do estado do processo.

R. Verifica-se igualmente a nulidade da sentença por falta de fundamentação, violando os artigos 154.º do CPC e 205.º, n.º 1, da CRP, ao não explicitar de forma suficiente e convincente os fundamentos fácticos e jurídicos que sustentam o juízo de facto.

S. O tribunal a quo valorizou unicamente o depoimento do próprio Réu e de advogado seu colega de escritório para concluir que a Autora foi informada, ignorando a ausência de qualquer elemento documental, como emails, notificacões, registos ou comprovativos.

T. A pergunta que a Recorrente coloca é: COMO É QUE A MESMA PODE PROVAR FACTOS NEGATIVOS?

U. Se a Autora alega que nunca foi informada como é que pode provar que nunca foi informada de nada além de que o recurso para o tribunal da Relação não tinha sido aceite? V. Ora, o 1.º Reu aqui recorrido, não demonstrou com que periodicidade fez as reuniões.

W. Não há um único email trazido ao processo do Recorrido BB a informar a Autora de rigorosamente nada.

X. Veja-se num prazo de 2017 a 2022 não há um email com uma peça processual, com um Acórdão com uma decisão, com uma taxa de justiça com umas custas, nem uma mensagem. NADA!

Y. Tal atuação representa uma inversão ilegítima do ónus da prova, exigindo à Recorrente a prova de factos negativos, em prejuízo do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.

Z. Face ao exposto, deverá ser declarada a nulidade da sentença recorrida, e ordenada a renovação ou a produção de nova prova, nos termos do art.º 615.º n.º 1 al. c), e 662.º n.º 2 al. c) e n.º 3 do C.P.C. ou ser a mesma substituída por Acórdão que – no respeito pelo disposto no art.º 615.º, n.º 1, al. c), e do art.º 665.º n.º 1, do C.P.C., – não incorra na assacada nulidade.

AA. A matéria de facto foi incorretamente julgada, devendo os factos "mm" ser dados como não provados, e os factos "b” a "p” dos não provados passarem a provados, face à prova testemunhal e documental junta aos autos.

BB. O tribunal também se basta com o depoimento do Réu e do seu colega de escritório por terem referido que sempre informaram a Autora de tudo, como se fosse expectável que dissessem o contrário.

CC. Atente-se no depoimento do 1.º Réu BB primeiro na sua instância (cfr. 00:33:12 a 00:33:26 do seu depoimento, prestado a 29/01/2025, com início às 10:23 e fim às 12:02): Dr BB: (...) E ela traz-me esta documentação. Quando em 2020 já eu lhe tinha dado a guia do tribunal constitucional que já era de 2019 penso eu. Já lhe tinha dado a guia para ela pagar. Que ela disse também que não ia pagar, diz que não tinha dinheiro para pagar. Também me desinteressei disso é facto.

DD. Da prova gravada melhor descrita nos artigos 74.º a 75.º do presente recurso pode concluir-se que que trabalhou a custo zero por considerar uma situação injusta, mas não considerou importante informar a sua cliente que o transito em julgado tinha ocorrido e que se não pagasse no espaço de três anos a Autora com um filho pequeno, seria presa.

EE. Atente-se no depoimento do 1.º Réu BB instância da Autora (cfr. 00:03:35 a 00:10:56 do seu depoimento, prestado a 29/01/2025, com início às 14:45 e fim às 15:15) – transcrito no art. 84 do presente recurso. – o 1.º Réu admite que não tomou diligências para informar a Autora do transito em julgado da decisão e da possibilidade desta ser presa se não pagasse a pena de multa.

FF. Em suma, resulta da prova gravada que: d) O Dr. BB nunca pediu honorários por todas as peças processuais que desenvolveu ao longo de anos. Porquê? Se entende que contou corretamente o prazo de recurso? e) O Dr. BB admitiu que nunca comunicou por email nem por mensagens apesar da Autora ter naquela altura uma empresa e portanto tinha email. f) O Dr. BB admite que nunca a informou do trânsito em julgado quando só ele poderia ter essa informação e prestá-la à sua cliente sendo que isso revelava extrema importância na medida em que começava. A correr o prazo de suspensão da pena dentro do qual tinha de ser feito um pagamento.

GG. Ora tudo isto passou ao lado do tribunal apenas e só porque o Dr. BB RÉU, disse que informou a Recorrente de tudo, e o seu colega de escritório também ele advogado da Autora, confirmou.

HH. E o ponto a) a p) da matéria de facto considerada como não provada tem que passar a ser considerado como provado.

II. O tribunal a quo deu como provado no facto “y” que “Nessa altura, a Autora, na qualidade pessoal e na qualidade de legal representante da sociedade arguida “B..., Unipessoal, Lda.”, apôs pelo seu próprio punho a assinatura que a si é imputada no documento denominado “Declaração”, que se encontra junto aos presentes autos como doc. n.º 2 anexo à contestação do 1.º Réu (cf. fls. 77v’), previamente elaborada pelo 1.º Réu”.

JJ. Repare-se porém, nos temas da prova do Despacho Saneador que o tribunal a quo ignorou por completo: “e) Apurar se com a assinatura da declaração junta aos autos pelo réu como documento n.º 2 da sua contestação, a autora tinha conhecimento de que o recurso interposto da decisão da primeira instância não tinha sido admitido e conhecia os seus motivos... g)Pretendendo desonerar o réu de qualquer responsabilidade relacionada com esse facto;”(negrito nosso)

KK. Resulta da transcrição do art. 98.º e 102.º do presente recurso que o Dr. BB considerou fundamental para continuar a trabalhar no caso da sua cliente, que a mesma assinasse uma declaração onde reconhecia que não lhe podiam ser assacadas responsabilidades pela extemporaneidade do recurso.

LL. Porém lembrou-se disso já depois de ter reclamado do despacho de não admissão do recurso, e do recurso para o supremo.

MM. Repare-se no grotesco que é o Advogado começar por não se lembrar bem quem tinha feito o documento quando confrontado com o facto de o mesmo estar incompleto, mas depois lembrar-se que o documento foi feito lá e até foi explicado à Recorrente.

NN. O tribunal a quo deu como não provado os factos “S” a “GG”. Porém é o próprio Réu Dr BB que acaba por confessar que do seu conhecimento resultava que a Sra AA apenas desenvolvia algumas funções dentro da empresa.

OO. Funções mais administrativa e de recursos humanos, mas não de direção e fiscalização de obra ou cumprimento de obrigações, conforme resulta das transcrições do art. 114.º e 119.º do presente recurso.

PP. O tribunal a quo deu como não provado que: “ii) A Autora tem tido ataques de ansiedade por se sentir envergonhada com a confiança que depositou no seu advogado, e tem perdido noites de sono a imaginar como podem vir a ser os seus dias estando presa por 3 anos; a Autora tem tido dificuldades em executar as suas funções básicas, de trabalhar e de cuidar do seu filho; jj) Tendo inclusivamente perdido a possibilidade de ter faseado o pagamento da indemnização ao longo de pelo menos 36 meses”.

QQ. Ora, para além de ser completamente descabido considerar que uma pessoa normal com uma vida normal, com um filho pequeno e sem registo criminal não ficou angustiada e com ataques de ansiedade com a possibilidade de ir presa por três anos, também resulta da prova gravada essa indicação e transcrita no art. 128.º do presente recurso.

RR. Assim o que se impõe não só por uma questão de lógica que uma pessoa condenada a três anos de prisão sofre uma natural angústia e vexame, mas porque também resulta de uma dor que só a própria poderia descrever, deveria ter sido dado como provado os factos “ii” e “jj” da matéria de facto não provada.

SS. A sentença incorre ainda em erro de julgamento de direito, ao afastar indevidamente a figura da perda de chance, exigindo a prova do resultado final favorável em sede de recurso penal.

TT. A jurisprudência maioritária e o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 2/2022 admitem que a perda de uma oportunidade real de reversão de uma decisão judicial configura um dano autónomo e indemnizável.

UU. O tribunal a quo violou os artigos 563.º e 566.º, n.º 3, do Código Civil ao não aplicar a doutrina da causalidade adequada nem recorrer à equidade para a fixação de um dano que, embora incerto, é juridicamente tutelado.

VV. A perda da possibilidade de ver reapreciada uma sentença penal com fortes indícios de injustiça material representa uma lesão séria e relevante, sobretudo quando esteve em causa uma pena de prisão e o pagamento de uma indemnização de 20.000€.

WW. O comportamento do advogado, ora Réu, ao apresentar recurso fora de prazo, sem comunicação eficaz com a sua cliente, impediu o Tribunal da Relação de conhecer do mérito do recurso e esgotou as vias de impugnação, sendo esta conduta culposa e geradora de responsabilidade civil contratual.

XX. O tribunal violou os artigos 483.º, 563.º e 566.º do Código Civil, ao afastar a responsabilidade do advogado, ignorando a relação de causa adequada entre a sua conduta e o dano sofrido.

YY. Não obstante o dano não ser quantificável com precisão, o mesmo deve ser reparado por recurso à equidade, como forma de compensar a perda da possibilidade séria de alteração do desfecho penal e cível.

ZZ. Em face do exposto, deve a sentença recorrida ser declarada nula ou, caso assim não se entenda, revogada e substituída por acórdão que reconheça a responsabilidade civil do Réu e fixe indemnização justa à Recorrente, com base na figura da perda de chance.


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O primeiro réu contra-alegou defendendo a confirmação da sentença de primeira instância.

Formulou as seguintes conclusões de recurso:

(…)


*

Também a segunda ré contra-alegou defendendo a confirmação da sentença recorrida.

III – Questões a resolver:

Em face das conclusões do Recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:

1- Nulidades da sentença:

a) Por contradição entre os factos dados por provados nas alíneas mm), oo) pp), por um lado e o que ficou provado sob a alínea ccc) e entre esta alínea e os factos dados por não provados sob as alíneas h), i), j), k), l), m), n), o) e p);

b) Por obscuridade, com base nas mesmas alegadas contradições; e

c) Por falta de fundamentação por não estar suficiente e convincentemente explicitada a motivação do juízo de facto.

2- Modificabilidade da matéria de facto, por via:

a) da alegada contradição entre factos provados e não provados;

b) da aplicação das regras relativas à distribuição do ónus da prova;

3- da impugnação da decisão quanto às alíneas mm) dos factos provados e a) a p) e s) a jj) dos não provados.

4- A violação pelo primeiro réu do dever de informar a autora do andamento dos autos;

5- A dedução pelo réu de recurso fora de prazo;

6- O dano da autora por perda de chance.

IV – Fundamentação:

1. Nulidades da sentença.

A recorrente sustenta que a sentença é nula por contradição entre factos provados e entre estes e os não provados, por obscuridade e por falta e fundamentação.

a) A primeira causa de nulidade que aponta à sentença decorre, no seu entender, do que a recorrente qualifica como contradição entre os factos dados por provados nas alíneas mm), oo) pp), por um lado e o que ficou provado sob a alínea ccc) e entre esta alínea e os factos dados por não provados sob as alíneas h), i), j), k), l), m), n), o) e p). Pede, em consequência, que se julgue que a sentença é nula à luz do previsto no artigo 615.º, número 1 c) do Código de Processo Civil e do artigo 662.º, número 2 c) do mesmo diploma. Em alternativa, pede que o acórdão a proferir substitua a sentença recorrida sem incorrer na mesma nulidade.

A arguida contradição entre factos provados e entre estes e os não provados não consubstancia causa de nulidade da sentença à luz do artigo 615º, número 1 c) do Código de Processo Civil ou de qualquer outra das suas alíneas. A norma citada pela recorrente refere as contradições entre os fundamentos e a decisão e a obscuridade ou ambiguidade da sentença que a torne ininteligível.

A contradição da decisão da matéria de facto quanto a pontos determinados da matéria de facto está expressamente prevista no artigo 662.º, número 2 c) do Código de Processo Civil como causa de anulação da sentença pelo tribunal de recurso, que, todavia, só operará se dos autos não resultarem já os elementos necessários à alteração da matéria de facto.

Assim, o que a apelante alega como fundamento de nulidade da sentença poderia, quando muito conduzir à sua anulação se, verificada a contradição, se não pudesse eliminá-la no âmbito da decisão a proferir sobre a modificabilidade da matéria de facto, que também é objeto do recurso.

A letra dos dois preceitos convocados pela recorrente não nos parece oferecer a menor dúvida sobre o alcance de cada um deles. Todavia, dada a frequência com que são infundadamente arguidas nulidades da sentença em sede de recurso, é vasta a jurisprudência que tenta clarificar a interpretação dos artigos 615.º, número 1 e 662.º do Código de Processo Civil. É uniformemente afirmado em inúmeros acórdãos dos tribunais superiores que estão publicados em sites de jurisprudência e são facilmente acessíveis, que “O vício de nulidade da sentença por os fundamentos estarem em oposição com a decisão ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão. Assim, e por outras palavras, só ocorrerá essa causa de nulidade quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma conclusão oposta à que logicamente deveria ter extraído. III. A contradição entre factos provados e não provados não configura nulidade do acórdão, por contradição entre os fundamentos e a decisão, antes determinando a baixa do processo ao tribunal recorrido, mas apenas se tal contradição inviabilizar a decisão jurídica do pleito”[1].

Ora, em face do argumentário da recorrente é de concluir que não está alegada nem ocorre a contradição entre a decisão e os seus fundamentos, não podendo, pois, considerar-se a sentença nula por via da aplicação do disposto no artigo 615.º, número 1 c) do Código de Processo Civil.

A questão da eventual necessidade de anulação da sentença por força da contradição entre factos provados e entre estes e os não provados deve ser resolvida em sede de apreciação da modificabilidade da matéria de facto, que também foi objeto de impugnação. Assim, havendo que conhecer da impugnação da matéria de facto será esse o momento adequado para aferir da alegada contradição. O que também se imporia por outra razão: caso proceda qualquer outro dos alegados fundamentos de nulidade da sentença que também foram arguidos com base no disposto no artigo 615.º, número 1 do Código de Processo Civil, pode tornar-se inútil a apreciação da contradição apontada à luz do artigo 662.º do mesmo Diploma.

De todo o modo, desde já se adianta que no caso dos autos, encontrando-se a prova gravada terá este Tribunal ao seu dispor todos os elementos que permitam a alteração da decisão da matéria de facto por forma a corrigir a apontada contradição, caso se admita que a mesma ocorre.

Improcede assim a primeira pretensão da recorrente quanto à nulidade/anulação da sentença recorrida.


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b) Segue-se a defesa de que a sentença é nula por ambiguidade ou obscuridade, que a recorrente sustenta nas mesmas contradições entre factos provados e não provados.

A repetição dos mesmos argumentos com vista a sustentar outra causa de nulidade da sentença é bastante, a nosso ver, para que se evidencie a falta de razão da recorrente, que mais não faz do que rebatizar a mesma questão.

A recorrente alega que não logrou perceber os fundamentos que levaram o Tribunal a quo a dar como provado que ela tinha conhecimento de todas as decisões dos recursos e reclamações referidos na alínea mm) dos factos provados. A seu ver era impossível dar como provado o teor dessa alínea e não provado o teor das alíneas h) a p) dos factos não provados.

Da sua argumentação retira-se que a autora não teve qualquer dificuldade em compreender o teor dos factos provados e não provados que diz serem ambíguos por estarem em contradição entre si, apenas discordando da decisão de facto quanto a concretos pontos da mesma. O elenco dos factos provados e não provados não é obscuro ou ambíguo e a autora compreendeu-o integralmente tendo enunciado sem dificuldade as razões da sua discordância que se estribam na contradição que divisa entre a prova de que teve conhecimento de certos requerimentos do seu advogado e das decisões que sobre ele incidiram e o facto de, em 2022, ter acompanhado a sua atual mandatária na consulta presencial, no tribunal, do processo comum singular em que foi condenada e que correu termos no juízo local criminal de Amarante.

Desta única razão de discordância concretamente alegada pela recorrente resulta, como aliás acontece com frequência, que a mesma pretende sustentar a nulidade da sentença em motivações que se prendem com o seu mérito confundido invalidade da sentença com erro de julgamento que entende ter ocorrido.

É inúmera a jurisprudência que contribui de forma positiva para a clarificação dessa distinção, convocando-se aqui apenas o sumário de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por particularmente inteligível e sucinto: “I- Não se verifica a nulidade da al. c) do nº 1, do art. 615º, do CPC, quando o reclamante manifesta discordância com a decisão, pois que, se o reclamante manifesta discordância é porque entendeu o conteúdo dessa mesma decisão, logo, esta não é ambígua. II- A ambiguidade só relevará se vier a redundar em obscuridade, ou seja, se for tal que do respetivo texto ou contexto não se torne possível alcançar o sentido a atribuir ao passo da decisão que se reclama de ambíguo.”[2].

Acompanham-se a este propósito as pertinentes considerações de Abrantes Geraldes[3] “Não se compreende a atração que é revelada em múltiplos recursos de apelação e de revista pela arguição de “nulidades” da sentença da 1ª instância ou do acórdão da Relação e que, com muita frequência apenas têm subjacente o inconformismo em relação à decisão da matéria de facto ou à respetiva integração jurídica. Se essa “técnica” se instalou numa altura em que o prazo para a interposição de recurso apenas se contava a partir da notificação da decisão sobre arguição de nulidades, visando ampliar o prazo para a interposição do recurso e subsequente apresentação das respetivas alegações, agora nenhum benefício se alcança (…).

A sentença em apreço elenca, de entre factos alegados por recorrente e recorridos, factos provados e não provados, motiva a decisão de facto com indicação dos meios de prova que criaram a convicção a que chegou em relação a cada um desses factos e fundamenta juridicamente a decisão com indicação dos respetivos pressupostos e do direito que considerou aplicável e encontra-se redigida de forma escorreita e clara que, de todo, pode qualificar-se como ininteligível.

Pelo que improcede também esta via recursória.


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c) Ainda por outro fundamento foi arguida pela a apelante: a falta de fundamentação da sentença, a seu ver decorrente de não estar suficiente e convincentemente explicitada a motivação do juízo de facto.

Para sustentar esta alegação a apelante questiona como poderia provar factos negativos (referindo-se ao teor das alíneas a) a p) dos factos não provados) e defende que tendo alegado que o primeiro réu não lhe deu conhecimento de vários trâmites processuais cabia a este provar que o fez, pois a efetiva prestação de informações constituía um “facto impeditivo, modificativo ou extintivo”. Segue-se a alegação de que o réu não apresentou qualquer meio de prova tendente a infirmar o que a autora articulou na petição inicial a esse respeito e conclui que a sentença não contém fundamentação da matéria de facto. Cita em abono da sua tese o sumário de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que não logramos consultar em face da deficiente indicação da sua publicação, mas que, dando por boa a transcrição feita pela apelante, contraria expressamente o que ela defende.

A sentença recorrida motivou a decisão da matéria de facto ao longo de nove páginas, em que o Tribunal a quo se demorou na referência aos meios de prova valorados, analisou os mesmos de forma concatenada, indicou em relação a cada facto ou grupo de factos quais os concretos meios de prova que conduziram à sua convicção e fez uma apreciação crítica da prova.

Foi assim inteiramente cumprido o disposto no artigo 607.º, número 4 do Código de Processo Civil, não se verificando a apontada falta de motivação.

De todo o modo, cumpre acentuar que do disposto no artigo 615º número 1 b) do Código de Processo Civil não resulta que a falta de motivação da decisão de facto quanto a alguns pontos seja fundamento da nulidade da sentença. Assim tem a jurisprudência entendido - entre ela a citada pela recorrente com mera referência ao seu sumário - que apenas se a decisão “não especificar, em absoluto, os fundamentos de facto ou de direito que a justificam” ocorre nulidade da sentença. A jurisprudência dos Tribunais superiores tem sido unânime na afirmação do que resulta deste sumário de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça transcrito pela recorrente. Como não podia deixar de ser, porque apenas a não especificação dos fundamentos de facto e/ou de direito está prevista como causa de nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, número 1 b) do Código de Processo Civil cuja redação, mais uma vez o afirmamos, não nos parece suscitar dúvidas que justifiquem o constante uso da invocação desta nulidade quando o que o recorrente pretende é a reapreciação da decisão recorrida, de que discorda. É o caso dos autos em que a recorrente pretende apenas ver alterada a decisão de facto quanto a determinadas alíneas dos factos não provados que entende que devem ser julgadas provadas porque, a seu ver, cabia ao réu fazer prova do contrário.

A apelante, em boa verdade, nem alega concretamente a omissão de fundamentação quanto aos factos provados e não provados, mas apenas que incumbia ao réu o ónus de provar as comunicações/informações prestadas à autora, o que não fez, pelo que não podia ter sido julgado não provado o teor das alíneas a) a p) dos factos não provados. Acrescenta, em jeito de pergunta, que não sabe como poderia provar o teor de tais alíneas por se tratarem de factos negativos.

Esta questão, tal como a relativa à alegada contradição entre factos provados e entre estes e um dos factos não provados, será conhecida de seguida, em sede de apreciação da modificabilidade da matéria de facto à luz do artigo 662.º do Código de Processo Civil, uma vez que também foi impugnada a decisão de facto pela recorrente. É assim pertinente que a eventual modificação da matéria de facto seja apreciada em conjunto em face dos vários fundamentos arguidos pela apelante.

Improcede, assim, na sua totalidade, a arguição de nulidade da sentença.


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2- Modificabilidade da matéria de facto.

A recorrente arguiu, quanto à decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, (a)) que ocorre contradição entre factos provados e não provados e (b)) que cabia ao réu a prova de factos que contrariassem o teor das alíneas a) a p) dos factos provados, factos esses negativos que a mesma não tinha como provar. Para além disso impugnou a decisão quanto às alíneas mm) dos factos provados, a) a p) e s) a jj) dos não provados.

Começaremos pela análise das duas primeiras vias de argumentação, que, como se viu, também serviram à alegação da nulidade da sentença, que improcedeu, mas que poderão, sendo procedentes, levar à modificação da decisão de facto à luz do artigo 662º do Código de Processo Civil.


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a) Estipula o número 1 desse artigo que: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

Daqui decorre o dever de reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto pelo tribunal da Relação, que deve formar a sua própria convicção quanto à prova produzida que tenha que reapreciar, dever esse que surge desde logo por via da impugnação da matéria de facto por banda do recorrente nos termos do artigo 640.º do Código de Processo Civil.

Do número 2 do mesmo preceito resulta, todavia, a obrigação de também oficiosamente serem supridos alguns vícios da decisão de facto, entre eles, e no que ora releva, a contradição, como prevista na sua alínea c).

Ora, a alegada contradição entre factos provados e não provados resulta, aos olhos da apelante, de ser incongruente a prova (alínea ccc)) de que a mesma se deslocou ao juízo local criminal de Amarante em maio de 2022 para consultar o processo, com a prova (na alínea mm)), de que o primeiro réu a informou da interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, da não admissão desse recurso pelo Tribunal da Relação do Porto, da reclamação que foi deduzida contra tal não admissão, da decisão do Supremo Tribunal de Justiça que confirmou o despacho reclamado, da reclamação desta decisão para o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, da decisão da vice presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu tal reclamação, da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e da não admissão deste recurso por tal tribunal.

Segundo a apelante caso tivesse tido conhecimento de todo este processado, não se explicaria a sua ida ao juízo local de Amarante para consultar o processo.

Não tem a mesma razão quando argui a contradição entre estes dois factos pois os mesmos podem subsistir em conjunto.

Segundo Alberto dos Reis[4] as repostas relativas aos quesitos sobre a matéria de facto apenas seriam “contraditórias quando têm um conteúdo logicamente incompatível, isto é, quando não podem subsistir ambas utilmente”. A contradição a que se refere o artigo 662.º, número 2 c) do Código de Processo Civil implica que os factos choquem entre si de forma que não possa ser explicada e, portanto, impeça que coexistam na mesma decisão.

Ora, no caso em apreço está provado, como aliás foi alegado pela autora, que a mesma mandatou nova advogada para a representar no processo comum singular em 24 de agosto de 2021. Ora, todas as decisões que primeiro réu lhe comunicou de acordo com o que ficou provado, foram anteriores a 2020, data em que também ficou provado que o primeiro réu ainda fez diligências com vista ao pagamento em prestações de 20 000 € pela autora, em execução que correu por apenso ao referido processo comum singular. Donde deve concluir-se que a necessidade de consulta do processo pela autora apenas surgiu mais de dois anos depois das comunicações que lhe foram feitas pelo primeiro réu. E tais realidades não são incompatíveis. Note-se que pelo menos desde agosto de 2021 a autora tinha mandatária constituída e que, portanto, tinha quem a informasse sobre o andamento dos autos sem necessidade de ser a própria autora a deslocar-se ao tribunal para os consultar. Deve assim concluir-se que a consulta física do processo em maio de 2022 - cerca de oito meses depois de ter mandatado nova advogada que tinha acesso ao processo eletrónico e que podia, ela mesma, informar a autora sobre o andamento do processo -, terá necessariamente uma causa diversa da que a autora quer fazer crer. A apelante alega que se soubesse das diligências processuais encetadas pelo primeiro réu e das decisões que sobre as mesmas incidiram nos termos que ficaram provados não tinha necessidade de ir consultar o processo. Ora a verdade é que desde a constituição de nova mandatária a autora podia ter sabido do teor do processado sem necessidade de ir ela mesma consultar fisicamente o processo. Pelo que não foi necessariamente para saber dos trâmites processuais que o primeiro réu, segundo ela, não lhe transmitiu, que se deslocou ao juízo local criminal de Amarante. Note-se, aliás, que quando juntou aos autos de processo comum singular a procuração datada de 24 de agosto de 2021 a autora, ali arguida, já tinha apresentado participação disciplinar contra o réu em que lhe imputava a falta de comunicação do desfecho do requerimento para interposição de recurso. Disso deu conta no requerimento de junção da procuração a favor da nova mandatária, como resulta da alínea tt) dos factos provados. Pelo que não faz qualquer sentido que só oito meses volvidos tivesse sentido necessidade de consultar o processo por ainda não saber dos referidos trâmites processuais. A sua queixa dirigida à Ordem dos Advogados, junta com a nova procuração, revela que já os conhecia.

Assim, é perfeitamente plausível que a autora se tenha deslocado a Amarante para consultar os autos de processo comum singular em maio de 2022, apesar de ter conhecimento de tudo o que no mesmo se passara até finais de 2019 e de ter ainda sido acompanhada e representada pelo primeiro réu na formulação do pedido de pagamento em prestações da quantia exequenda em execução que correu por apenso a tais autos, de que admitiu ter conhecimento. Do mesmo modo também a prova dessa deslocação não é bastante para que se julgue provado que o réu não lhe comunicou nenhum dos trâmites processuais referidos nas alíneas a) a p) dos factos provados.

A este respeito não podemos ainda deixar de afirmar a perplexidade que causa a afirmação da autora de que apenas em maio de 2022 desconfiou que algo não estaria a correr bem (alínea k) dos factos não provados), quando está provado que a mesma constituiu nova mandatária em agosto de 2021, data em que já participara disciplinarmente contra o primeiro réu. Entre este facto, dado por provado na alínea tt), e o que a autora quer ver provado e consta da alínea k) é que se divisa contradição que impediria claramente a afirmação de ambos.

Pelo que não há qualquer contradição entre factos provados ou entre estes e os não provados que importe corrigir à luz do artigo 662º, número 2 c) do Código de Processo Civil.


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b) A apelante pretende ainda que este Tribunal modifique a matéria de facto caso não seja necessária a anulação da sentença, porque entende que cabia ao réu a prova de factos que contrariassem o teor das alíneas a) a p) dos factos provados, factos esses negativos que a mesma não tinha como provar.

Salvo o devido respeito a recorrente confunde os conceitos de ónus de produção de prova - questão se prende com a instrução da causa e que serve de base à decisão da matéria de facto -, com as regras de distribuição do ónus de prova, de que decorre o critério de decisão no caso de dúvida sobre a ocorrência de um facto, o que é questão de direito.

Impõe o artigo 413º do Código de Processo Civil que: “O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado.”

O artigo 411º do mesmo Diploma, que consagra o “princípio do inquisitório” como demonstrado pela epígrafe do mesmo, impõe que o juiz realize ou ordene, “(…) mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer”.

Já o artigo 414º que determina que a dúvida sobre a realidade de um facto se resolve contra a parte a quem o mesmo aproveita é uma norma de caráter substantivo[5] que está em consonância com o disposto nos artigos 342.º e 346.º do Código Civil quanto às regras a aplicar em caso de dúvida.

Na apreciação da prova não pode, assim, espartilhar-se a produzida a pedido de cada uma das partes esquecendo todos os meios de prova adquiridos oficiosamente e/ou por via da prova trazida aos autos pela contraparte.

Só no caso de não ser atingido um patamar de “probabilidade prevalecente” sobre a realidade de um facto após a valoração da prova é que “entra em campo a solução prescrita” no artigo 414.º do Código de Processo Civil[6]. Tal preceito não se destina, assim, a resolver as dúvidas do julgador sobre a prova produzida durante o processo de formação da sua convicção.

Apenas em face do elenco final dos factos provados e não provados funcionará a regra da repartição do ónus da prova como critério de decisão. E essa é questão de direito que não pode servir de fundamento à pretendida alteração para provados dos factos constante das alíneas i) a p) dos factos não provados.

Não assiste razão à apelante quando defende que cabia ao primeiro réu a prova da prática dos factos que a mesma diz que ele omitiu – consistentes no /in)cumprimento de deveres de informação à mandante -, pois a arguição de que tais deveres contratuais foram incumpridos é facto essencial constitutivo do direito que a autora quer exercer. Essa omissão constitui uma das causas de pedir da ação, sendo nela que se poderia divisar a ilicitude no comportamento do primeiro réu (além da alegadamente decorrente da incúria quanto à data de apresentação do recurso) que poderia levar à sua condenação no pagamento à autora de indemnização pelos danos daí decorrentes. Pelo que nos termos do previsto no artigo 342.º, número 1 do Código Civil, cabia à autora a sua alegação e a sua prova.

Finalmente não colhe a argumentação de que tais factos, negativos, seriam de prova impossível pela autora/apelante. Tal afirmação é até contraditória com o seu pedido expresso para que sejam dados por provados porque da prova produzida os mesmos resultaram, afinal, confirmados.

Também a mera circunstância de um facto ser de difícil prova, nomeadamente por se tratar de um facto negativo[7], não conduz necessariamente à inversão do ónus de prova, o que não tem qualquer fundamento legal, fundamento esse que, aliás, a apelante não alega qual seja.

Cumpre assinalar ainda, a propósito desta questão, que o Tribunal a quo considerou tais factos não provados não por força da não apresentação de meios de prova que os confirmassem, mas com base em demoradas considerações sobre a prova produzida em sentido contrário que levou, depois de devidamente esmiuçada, à seguinte conclusão: “Existem, assim, suficientes evidências de que ocorreram consultas regulares entre a Autora e o 1.º Réu durante o período em que estiveram pendentes os incidentes e recursos que conduziram às decisões judiciais referidas nas alíneas bb) a kk) dos Factos Provados; por outra parte, a Autora não indicou uma situação concreta em que o 1.º Réu não lhe tenha prestado informação sobre os trâmites processuais ou que alguma vez se tenha deslocado ao escritório daquele e que o mesmo se tenha negado a recebê-la”.

Pelo que também por esta via de argumentação improcede a pretensão da apelante de ver alterada a decisão sobre a matéria de facto.


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c) Cumpre conhecer finalmente da impugnação da matéria de facto.

A apelante pretende, por um lado, que se altere o teor da alínea mm) dos factos provados e que passem a provadas as alíneas a) a p) dos factos julgados não provados.

Quer ainda que se aditem dois factos ao elenco dos provados, com o seguinte teor:

“a) Com a assinatura da declaração junta aos autos pelo réu como documento n.º 2 da sua contestação, a autora não tinha conhecimento de que o recurso interposto da decisão da primeira instância não tinha sido admitido e conhecia os seus motivos...

b) a Autora não pretendeu desonerar o réu de qualquer responsabilidade relacionada com esse facto.”.

Finalmente requer que passem a provados os factos constantes das alíneas s) a jj) dos factos não provados.

Apreciaremos separadamente cada uma dessas pretensões nomeadamente aferindo se, em relação a cada uma delas, foi dado cumprimento aos ónus de impugnação da decisão da matéria de facto que estão previstos no artigo 640.º, números 1 e 2 do CPC.


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Pretende a apelante que se julgue provado que “Do teor das decisões referidas nas precedentes alíneas bb) a kk) não foi dado conhecimento à Autora pela equipa de advogados que defendia as arguidas no processo crime n.º ...” assim alterando o teor da alínea mm) dos factos provados que é atualmente este: “Do teor das decisões referidas nas precedentes alíneas bb) a kk) foi dado conhecimento à Autora pela equipa de advogados que defendia as arguidas no processo crime n.º ...”.

E, ainda, que passem a provadas as seguintes alíneas dos factos não provados:

“a) Até à presente data o 1.º Réu nunca informou a Autora do indeferimento da reclamação pelo Tribunal da Relação do Porto;

b) Pelo que até maio do corrente ano (2022) a Autora foi induzida a pensar que a situação estaria ainda em análise;

c) O 1.º Réu não informou que reclamou do despacho de rejeição do Recurso;

d) Não informou que recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça;

e) Não informou que reclamou do despacho de não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça;

f) Não informou que recorreu para o Tribunal Constitucional;

g) Não informou que o mesmo foi considerado, também, extemporâneo;

h) Não informou da notificação que lhe foi feita com as guias para pagamento das taxas de justiça;

i) Sempre que abordado pela Autora para saber do ponto de situação o Dr. BB referiu que o recurso se encontrava em análise;

j) Nunca referindo que já havia esgotado todos os graus de jurisdição;

k) Pelo que apenas em maio (2022) a Autora desconfiou que algo não estaria a correr bem;

l) Tendo ficado em estado de alerta, quando ao consultar a sua página das finanças constatou que tinha uma dívida oriunda de custas não pagas ao Tribunal Constitucional;

m) O que levou a Autora a procurar aconselhamento jurídico após questionar novamente o 1.º Réu sobre o estado do processo, daí obtendo a mesma resposta “ainda não há novidades”;

n) Nunca informou a sua Cliente de que a situação se tinha efetivado com o trânsito em julgado da decisão;

o) A Autora desconhecia que tinha começado a correr o prazo de suspensão da sua pena de prisão;

p) Desde 2017 que a Autora tem vindo a questionar o estado do processo”

A apelante sustenta estas pretensões na alegação de que não devia ter sido dada credibilidade ao depoimento do primeiro réu e do seu colega de escritório (testemunha que sequer identifica pelo seu nome) pois era expectável que o seu depoimento fosse no sentido do que ficou provado e indicou, para reapreciação, os depoimentos de parte do primeiro réu e da testemunha CC, companheiro da autora, de cuja conjugação entende que resulta confirmado que o primeiro réu nunca informou a autora de nenhum trâmite processual desde o indeferimento pelo Tribunal da Relação do Porto da reclamação do despacho que não admitiu o recurso da sentença condenatória.

Transcreveu partes desses depoimentos e enunciou as razões pelas quais entende que os mesmos devem conduzir à pretendida alteração.

Fê-lo de forma conjunta, isto é, analisando cada um dos depoimentos com vista à alteração de todas as indicadas alíneas 17 alíneas que impugna.

Entendemos que o recorrente que pretende impugnar a matéria de facto pode indicar de forma conjunta os meios de prova tendentes a alterar a decisão respeitante a um grupo de factos que se relacionem com uma mesma temática ou tema da prova. Deve dispensar-se a indicação da prova a reapreciar em relação a cada uma das alínea dos factos provados e não provados, se tal exigência redundar em repetições inúteis e desde que seja claro e percetível para o tribunal de recurso quais os meios de prova cuja reapreciação se pretende.

Doutra forma estar-se-ia a exigir uma repetição das mesmas considerações sobre os meios de prova a reapreciar, a propósito de cada uma das várias alíneas respeitantes ao mesmo tema da prova, o que se traduziria num esforço desnecessário e resultaria numa maior complexidade das alegações, sem qualquer vantagem, quando for perfeitamente percetível em que medida os recorrentes pretendem que os depoimentos que transcrevem aproveitem à prova dessa matéria.

Neste pressuposto, ouvimos os depoimentos do primeiro réu e da testemunha CC e deles não resultam motivos para que se alterem as alíneas mm) dos factos provados e a) a p) dos não provados, como pretende a recorrente.

O primeiro réu, ao contrário do que a apelante pretende retirar do seu depoimento, não admitiu que se desinteressou do processo, mas apenas que se desinteressou da questão do pagamento das custas em dívida ao Tribunal Constitucional. Afirmou que a cliente lhe revelou ter dificuldade em pagá-las quando ele lhe entregou a guia para pagamento. Só depois disso, admitiu, se desinteressou desse assunto e nunca mais a questionou sobre essa questão.

O mesmo alegou que as conversas com a autora eram quase sempre presenciais, no escritório do réu e na presença deste e/ou do seu colega DD, e que quando tinham necessidade de com ela falar, lhe ligavam para que fosse ao referido escritório. O que explica que não existam comunicações escritas desde 2017 a 2022, como alega a autora. Note-se, contudo, que também antes dessa data não está comprovado que as partes do contrato de mandato comunicassem entre si por escrito.

O facto, admitido pelo primeiro réu, de não ter pedido o pagamento de adiantamentos de honorários a partir da reclamação para o Tribunal da Relação do Porto do despacho que não admitiu o recurso não é bastante para concluir que desde então não foi dado conhecimento do andamento dos autos à cliente, pois o que disse o réu foi que até maio de 2018 a autora apenas tinha pago 500 €, por conta dos honorários, apesar de todo o trabalho por ele desenvolvido. Ou seja, já muito antes do processo comum singular ter atingido a fase da sentença a autora não pagava quaisquer quantias para adiantamento de honorários e nem para remuneração do trabalho já prestado pelo seu advogado.

O réu BB foi muito seguro em afirmar que a autora sabia o estado em que se encontrava o processo, desde logo porque ela mesma lhe ligou no dia 21 de maio de 2018, alegando que estava a decorrer penhora em sua casa, e pedindo-lhe a confirmação de que o recurso ainda estava pendente, tendo ele confirmado que o mesmo estava ainda pendente no Tribunal Constitucional. Após, passou a representá-la, a seu pedido, na referida execução.

Tal intervenção no processo executivo está provada, tendo a autora admitido a mesma como consta da ata da segunda sessão da audiência de julgamento. E ficou provado sob a alínea v) – que a apelante não impugna – que foi a autora quem ligou ao réu dizendo que estavam a efetuar penhora em sua casa. Pelo que nesta parte o depoimento do réu é consentâneo com o teor de outros factos provados.

Segundo o réu foi, nessa altura, após o referido telefonema, que falaram com a autora (ele e o colega) da necessidade de a mesma não lhes assacar qualquer responsabilidade pelo desfecho do recurso, pois estavam a ter muito trabalho, sabendo ela a data em que tinham efetivamente tido acesso à sentença de que pretendiam recorrer e não podendo eles correr o risco de a mesma vir mais tarde a responsabilizá-los por qualquer decisão desfavorável, apesar de há muito estarem a realizar sucessivos requerimentos e de apenas terem auferido 500 €. Foi, segundo o depoente, nesse contexto que a autora assinou o documento número 2 junto à contestação em que a mesma declarou que apenas no dia 2 de fevereiro de 2002 foi remetida a sentença condenatória ao seu mandatário, não estando até então acessível no sistema citius. Ali dá ainda nota de saber que o Tribunal da Relação do Porto não admitiu o recurso.

Segundo o réu a assinatura deste documento foi aposta depois de explicada a sua motivação: o de se certificarem de que a autora não os responsabilizaria no caso de o recurso vir a não ser conhecido.

Depois disso foi pedida pelo réu a suspensão da execução com base na alegação de que ainda pendia recurso que poderia vir a resultar no conhecimento da apelação da sentença condenatória.

Em 2020, quando já estavam esgotadas todas as possibilidades de recurso, pediu à cliente que lhe trouxesse uma série de documentos comprovativos da sua alegada incapacidade económica para ele instruir pedido dirigido aos autos de processo comum singular, com vista à alteração das condições de suspensão. Nessa altura, expressamente alertada para o facto de poder vir a cumprir pena de prisão no caso de não haver pagamento nem justificação para o incumprimento, a mesma, segundo ele, entregou-lhe os documentos pedidos que, de facto, instruíram o requerimento de 11-02-2020, dado por provado na alínea nn) dos fatos provados, com o seguinte teor: “Tratando-se de arguida que vive com dois filhos menores, com um salário de 300,00€ para fazer face às necessidades básicas de alimentação, vestuário, energia eléctrica, água e gás e, não resultando provado que a casa onde se aloja lhe pertença, demonstrada está a insuficiência económica e financeira da arguida, restando concluir que o não pagamento da indemnização/multa de substituição não lhe é imputável, devendo ser suspensa a execução da pena de prisão decretada na sentença proferida nos autos, subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Cfr. Artigo 50º e 51º do CP O que requer!

Termos em que requer a V. Exa. Seja suspensa a execução da pena de prisão decretada na sentença proferida nos autos, subordinada a mesma ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro ou o que julgar por mais conveniente”.

Estando provada a entrega deste requerimento instruído com documentos que só a autora podia ter entregado ao primeiro réu, não é plausível que a mesma não soubesse que a prova da sua situação económica era necessária para evitar a sua prisão efetiva, o que só podia vir a suceder em face do insucesso das várias tentativas de ver apreciado o recurso interposto da sentença condenatória. Tratam-se de declarações fiscais, da junta de freguesia e outras, como da segurança social, datados de 2017 a 2020 (já que a declaração fiscal relativa ao ano de 2019 teria de ter sido entregue em 2020), já posteriores à decisão do Tribunal Constitucional.

O primeiro réu não admitiu ter obtido tais documentos no âmbito do patrocínio da mesma cliente noutros processos, nem se recordava em concreto de nenhuma outra causa em que a tivesse patrocinado, apenas admitindo que possa ter representado a autora nalguma “questão mínima” como, eventualmente, uma de natureza contraordenacional. Admitiu como possível que o seu colega de escritório pudesse ter recebido da mesma cliente declarações fiscais para as juntar a outro processo, nomeadamente para instruir o pedido de concessão do benefício do apoio judiciário. Esta afirmação foi feita em resposta a interpelação da mandatária da autora que referiu, em concreto, o documento número 5 junto com a contestação para demonstrar que o réu poderia ter tido acesso aos documentos fiscais e outros, da autora, através do seu colega de escritório que os teria recebido da cliente no âmbito desse outro processo. Ora, o documento número 5 junto à contestação do primeiro réu constitui uma contestação dirigida a outro processo pelo seu colega de escritório em representação não da aqui autora, mas de uma sociedade de que ela era legal representante e foi instruída com pedido de concessão do benefício do apoio judiciário a tal sociedade.

Pelo que dele não resulta a junção de qualquer documento fiscal ou de rendimentos da autora, mas sim da ali requerente, pessoa coletiva.

O depoente ainda afirmou, de forma absolutamente correta, que a declaração de IRS relativa a 2019 a que teve acesso, só podia ter sido junta em 2020, depois da data da sua apresentação na Autoridade Tributária, pelo que só a autora poderia ter entregue tal documento ao seu advogado para instruir pedido de alteração das condições de suspensão da pena de prisão.

Ainda a pedido da cliente, segundo o primeiro réu, este tentou junto do mandatário dos credores, acordar o pagamento em prestações do valor em dívida no âmbito do processo executivo. O que, recorde-se, a autora admitiu expressamente quando ouvida na segunda sessão da audiência de julgamento.

A autora ter-lhe-á pedido, ainda, a fotocópia do processo para “ir para a televisão”. Nessa conversa o depoente disse ter-lhe sugerido que recorressem para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ao que ela acedeu, tendo-lhe dito que ela teria que fazer algum pagamento de honorários. Desde então, contudo, a cliente passou a não procurar contactos com o depoente, apesar de ainda ir algumas vezes ao escritório para falar com o outro colega que a patrocinava noutros processos. Também nestes a mesma nada pagou apesar de ter tido ganho de casa, nunca mais aparecendo.

Pelo que deste depoimento não resultam – pelo contrário -, incongruências que ponham em dúvida a credibilidade que lhe foi atribuída,

E, menos ainda, dele não resulta a admissão de qualquer facto de que possa deduzir-se que a autora não foi informada pelo seu advogado do estado dos autos desde que o Tribunal da Relação do Porto proferiu decisão de não admissão do recurso.

Também o depoimento da testemunha CC, companheiro da autora, foi ouvido na íntegra.

Do mesmo resultou a admissão de um facto que fora descrito pelo primeiro réu no seu depoimento: o de que havia contactos telefónicos entre a autora e o primeiro réu, embora, segundo a testemunha CC fosse a sua companheira quem ligava ao seu advogado. Esta testemunha afirmou, contrariamente ao confessado pela autora na primeira sessão da audiência de julgamento (e como resulta da assentada), que a mesma não soube da não admissão do recurso até ao momento da penhora, quando o solicitador “apareceu lá em casa”. Ora autora confessou que “teve conhecimento, antes da penhora, da não admissão do recurso interposto da sentença penal condenatória”. Mais adiante, CC, guiado pelas questões feitas pela sua mandatária, disse que, afinal, o Dr. BB lhes tinha sugerido reclamar da não admissão do recurso, o que terá feito. Mais adiante ainda já disse que só desconfiaram de que a reclamação não tinha tido sucesso quando foram notificados pela Autoridade Tributária para pagar custas. E que só depois disso foi falar com a sua atual mandatária, para perceber o que se estava a passar. Ora a autora mandatou a atual advogada por procuração de agosto de 2021, ou seja, muito depois da data da tentativa de penhora, de maio de 2018.

Este depoimento revelou-se assim, contraditório e contrariado por factos admitidos pela própria autora e documentados, pelo que não é de molde a contrariar a credibilidade dada ao depoimento do primeiro réu. Mais, dele não resulta convicção segura das alegadas omissões de comunicação descritas nas alíneas a) a p) dos factos não provados. Tal depoimento contraria frontalmente, aliás, o teor da alínea k) – de que apenas em maio de 2022 a autora desconfiou de que algo não estava a correr bem.

Assim, conclui-se que os depoimentos cuja reapreciação foi pedida não são de molde a pôr em causa o teor das alíneas mm) dos factos provados e a) a p) dos não provados, que se mantém inalterado.


*

A recorrente pretende, de seguida, que se incluam nos factos provados duas novas alíneas do seguinte teor:

“a) Com a assinatura da declaração junta aos autos pelo réu como documento n.º 2 da sua contestação, a autora não tinha conhecimento de que o recurso interposto da decisão da primeira instância não tinha sido admitido e conhecia os seus motivos...

b) a Autora não pretendeu desonerar o réu de qualquer responsabilidade relacionada com esse facto.”

Alega que o Tribunal a quo não tomou posição sobre tais factos, apesar de constarem dos temas da prova.

Ora quanto à primeira alínea que sugere aditar contém factos contrários aos provados sob as alíneas s) e mm) de que resulta que foi dado conhecimento à autora de que o recurso fora julgado extemporâneo e de que apenas depois da assinatura da declaração de 25 de maio de 2018, ocorreram os trâmites processuais relativos ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e demais subsequentes. Como já se afirmou, também a sua confissão lavrada em assentada fez prova de que a autora teve conhecimento, antes da penhora (que como resulta do histórico do respetivo processo executivo que foi tentada em 25 de maio de 2018), da não admissão do recurso da sentença penal condenatória.

Pelo que nunca tal alínea podia ser dada por provada – sob pena de ser contraditória com o teor das alíneas s) e mm) e com o depoimento, confessório, da própria autora em audiência de julgamento. Além de que não é correto afirmar que o Tribunal tenha omitido tomar posição sobre a concreta questão do conhecimento que a autora tinha do andamento processual aquando a assinatura do referido documento.

Quanto à alegada vontade da autora – que não pretenderia desonerar o réu de qualquer responsabilidade relacionada com a interposição intempestiva do recurso da sentença condenatória -, não tinha o Tribunal a quo que se pronunciar sobre a real vontade da autora, que agora a mesma diz ser contrária ao que consta da declaração, já que na petição inicial a mesma não alegou o facto que ora quer ver julgado provado e, quando impugnou o documento junto pelo réu sob o número 2 da contestação, não pôs validamente em causa a veracidade da sua assinatura e nem alegou que com tal documento não pretendia desonerar o réu.

Como consta da ata da audiência prévia, já após correção pedida e deferida pelo Tribunal, a autora pronunciou-se nestes termos quanto a tal documento (número 2 junto à contestação): “A autora vem impugnar a junção do doc. 2 junto com a contestação (fls. 77v), nos termos do artigo 3.º, n.º 4 do Código de Processo Civil (uma vez que ainda não lhe foi dada a oportunidade de exercer o contraditório), quer porque a autora não se recorda ter assinado a referida declaração quer porque não sabe se assinatura aposta no documento é sua, porque assinou vários documentos no escritório do réu, por diversas ocasiões, podendo eventualmente um deles ser este e consequentemente, não reconhece os efeitos que o Réu quer fazer valer com a junção do mesmo.” .

Em momento nenhum, portanto, a autora alegou o facto, negativo, que ora quer ver julgado provado: que “não pretendeu desonerar o réu de qualquer responsabilidade relacionada com esse facto”.

A matéria de facto que deve constar da sentença é aquela que, tendo sido alegada pelas partes, nos termos do previsto nos artigos 5º, número 1 e 552º, número 1 d) do Código de Processo Civil, seja relevante para a solução jurídica das pretensões das partes que tenha de conhecer.

Quer o artigo 5º, número 1, quer a alínea d) do número 1 do artigo 552º referem a obrigação das partes de alegarem os factos essenciais que constituem a causa de pedir ou o suporte para as exceções que invocam.

O número 2 do referido artigo 5º, todavia, obriga a que se considerem ainda outros factos, não articulados pelas partes sendo eles:

“a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;

c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

A produção de prova em processo civil tem por objeto os temas da prova enunciados – cfr. artigo 410º do Código Civil. O legislador não explicita em nenhum preceito o que sejam os temas da prova a selecionar nos termos do artigo 596º, número 1 do Código de Processo Civil. O que resulta claro do uso desse conceito, em contraponto com a anterior obrigação de seleção de factos assentes e a instruir, é que já não se exige em sede de saneamento a quesitação de cada facto controvertido, satisfazendo-se o legislador com a enunciação das questões de facto essenciais à decisão sobre que deve ser produzida prova[8].

É, pois, de admitir que a seleção dos temas da prova tenha um caráter genérico e até que possa agrupar vários factos essenciais à decisão numa formulação ampla, por temas/assuntos relevantes, desde que tal seleção respeite os limites que decorrem da causa de pedir e das exceções invocadas, tendo em conta as soluções plausíveis de direito.

Na sentença, todavia, o legislador obriga a que se discriminem os factos que se julgam provados e não provados, como resulta do disposto nos números 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil [9].

Tendo presente estas considerações, e olhando agora aos temas da prova fixados sob a alínea e) e f) verifica-se que na segunda dessas alíneas o que se considerou ser tema de prova foi a pretensão da autora de desonerar o réu de qualquer responsabilidade, o que foi alegado pelo réu, e não a inexistência dessa pretensão que a autora nunca alegou. Foi o primeiro réu, no artigo 28º da contestação, quem alegou que a autora reconheceu, por via dessa declaração, não ser de assacar qualquer responsabilidade aos mandatários ali referidos pela extemporânea apresentação do recurso. Assim, a ter de ser aditado algum facto aos que o Tribunal selecionou na sentença seria este, tal como alegado, na positiva, portanto, e não o proposto pela autora/apelante em sede de recurso.

Sucede que o recorrido não pediu, nem subordinadamente, o aditamento desse facto, o que está em consonância quer com a sua defesa – que não fez assentar na alegada renúncia da autora a quaisquer direitos, mas na impugnação dos factos que a mesma alega para os sustentar -, quer com a sentença, na qual a absolvição do pedido decorreu da consideração de que não ocorreu perda de chance processual, nem incumprimento pelo primeiro réu de deveres profissionais ou contratuais de informação no âmbito do mandato e não da valoração de qualquer declaração abdicativa por parte da autora.

Assim improcede também a pretensão de aditamento de duas novas alíneas ao elenco dos factos provados.


*

Cumpre agora apreciar se devem passar a provados os factos constantes das alíneas s) a jj) do elenco dos não provados.

A autora indicou os meios de prova a reapreciar com vista a fundar apenas uma parte desta sua pretensão, sendo eles o depoimento da testemunha CC e o do primeiro réu, indicou e transcreveu em parte as passagens dos depoimentos que entende relevantes. Pelo que cumpriu quanto a parte das alíneas indicadas os ónus impostos ao recorrente que impugna a matéria de facto, nos termos do artigo 640º, número 1 a) e número 2 b) do Código de Processo Civil.

É o seguinte o teor das alíneas sob censura:

“s) Nos autos do processo ..., não se provou que a Autora enquanto representante legal da sociedade lhe cabia dirigir, executar a obra contratada ou fiscalizar as regras de segurança da mesma, pelo que os crimes não lhe poderiam ter sido imputados;

t) Assim como não se provou que a Autora enquanto gerente da empresa, lhe coubesse acompanhar os trabalhos de lavagem e impermeabilização da fachada do edifício ou que fosse ela a responsável pelo plano de segurança da obra ou que tivesse atuado em conjugação de esforços com o companheiro CC tendo conhecimento da perigosidade associada à tarefa;

u) Foi CC quem contratou os trabalhadores e definiu os seus pagamentos mensais, definiu as obras e geriu os trabalhos, foi quem falou com os trabalhadores na manhã do acidente e também foi ele que recebeu a notícia da morte do trabalhador;

v) Era o CC quem contratava os trabalhadores, quem definia as obras e geria os trabalhos;

w) Para considerar a Autora/Arguida como gerente de facto e de direito o tribunal bastou-se com a ordem que a mesma havia dado para abastecerem o carro;

x) Para que a Autora assumisse as qualidades a que se refere a norma incriminadora, seria necessário que a mesma tivesse atuado no âmbito do planeamento, direção ou execução de obra, demolição ou instalação;

y) Também não se tendo provado que a Autora representou o perigo que o funcionamento da máquina constituía para a vida ou o perigo grave de ofensa para o seu corpo ou saúde do trabalhador;

z) Pelo que apenas se poderia considerar provado que a mesma não dirigia executava ou fiscalizava o cumprimento das regras de segurança;

aa) Ademais, não resultou provado qualquer nexo de causalidade entre a ficha de procedimento de segurança, falta de formação com a causa de morte do trabalhador;

bb) Antes pelo contrário se tendo demonstrado que o que verdadeiramente propiciou o acidente fora a ausência do trabalhador EE, pelo facto de este ter abandonado o seu colega de trabalho aquando da realização de uma manobra com piso escorregadio;

cc) Também a própria vítima detinha experiência para saber que não poderia prescindir de tal auxílio;

dd) Não poderia ter sido a Autora a responsável por essa falta de auxílio já que o mesmo foi dispensado pela própria vítima mortal;

ee) Não se provou o nexo de causalidade entre a inobservância de regras de segurança e o acidente ocorrido;

ff) A pena deveria ser proporcional e adequada, o que não foi;

gg) A condenação não respeitou o princípio da razoabilidade plasmado no art. 51.º n.º 1 al. a) do CP ao ter condenado a Autora/arguida ao pagamento de 1/3 da indemnização destinada a ressarcir os danos emergentes desse crime;

hh) Nem era previsível que as condições socioeconómicas da Autora se alterassem drasticamente ao ponto de lhe permitirem fazer esse pagamento, tendo assim o tribunal violado os arts. 50.º, 51.º e 52.º do CP;

ii) A Autora tem tido ataques de ansiedade por se sentir envergonhada com a confiança que depositou no seu advogado, e tem perdido noites de sono a imaginar como podem vir a ser os seus dias estando presa por 3 anos; a Autora tem tido dificuldades em executar as suas funções básicas, de trabalhar e de cuidar do seu filho;

jj) Tendo inclusivamente perdido a possibilidade de ter faseado o pagamento da indemnização ao longo de pelo menos 36 meses.”.

Em face do objeto da ação ressalta de imediato que é insuficiente por manifestamen conclusiva a redação dada às alíneas s) a hh), contendo algumas meras conclusões e/ou conceitos de direito, referindo mesmo normas jurídicas alegadamente violadas pelo juízo local criminal de Amarante. Esta forma de redação é, contudo, a que resulta da forma como foi alegada tal matéria na petição inicial.

Como já cima se afirmou, da sentença devem constar os factos essenciais à pretensão das partes tais como por ela alegados (cfr. artigos 607.º, número 4 e 5ºnº 1 do Código de Processo Civil)[10].

Nas palavras de Abrantes Geraldes[11], um dos vícios da decisão da matéria de facto “pode traduzir-se na integração na sentença, na parte em que se enuncia a matéria de facto provada (e não provada) de pura matéria de direito e que nem sequer em termos aproximados se possa qualificar como decisão de facto”. Em face da forma como devem ser delimitados os temas da prova, admite este Autor que mesmo em sede de sentença possam hoje ser admitidas com “mais naturalidade” asserções que possam não ser “puras questões de facto” desde que também não correspondam, “no contexto da concreta ação” a “puras questões de direito”.

A questão há de ser assim resolvida em função do que seja o objeto de cada concreta ação.

Lançando mão da dicotomia entre os conceitos de “facto material” e “facto jurídico” Alberto dos Reis[12], dando inúmeros exemplos de factos jurídicos que não deviam integrar o questionário, punha, também ele, sempre a tónica no objeto do processo como critério aferidor entre factos e direito. Entendemos transponível para o elenco de factos que deve constar da sentença o que tal autor afirmava então a propósito da seleção dos mesmos em sede de questionário: “Força é confessar que a organização dum questionário perfeito é tarefa que desafia a inteligência mais experimentada”. Admitida essa dificuldade não pode, contudo, a mesma ser ultrapassada senão pela cuidadosa destrinça, em cada litígio, do que constitui facto material e do que constitui conclusão ou asserção que contenha já raciocínio ou significado jurídico.

Tendo presente estas considerações é de atentar à forma como está configurada a ação.

Ora a autora pretende a condenação dos réus alicerçada na alegação ora da prática ora da omissão de atos por banda do primeiro réu, no âmbito do contrato de mandato que com ele celebrou, que conduziram aos danos alegadamente sofridos pelos quais quer ser ressarcida. Em grande medida esses danos, que descreve, decorreram da impossibilidade de vir a ser absolvida da acusação pela prática de crime e do pedido de indemnização cível, em sede de recurso para o Tribunal da Relação do Porto da sentença condenatória proferida pelo juízo local criminal de Amarante. Ou de, pelo menos, ter perdido a possibilidade de a pena e a indemnização em que foi condenada serem menores.

A ação está assim configurada pela autora como baseada na perda de chance. Pelo que lhe cabia alegar e provar (no que aqui releva agora convocar) que, caso o recurso tivesse sido tempestivamente interposto, teria a probabilidade de vir a ser procedente ou, pelo menos, parcialmente favorável à recorrente.

Conforme decorre da uniformização de jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 26-01-2022[13], “O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade”.

No caso, portanto, e como aliás decorre claramente do disposto no artigo 342.º, número 1 do Código Civil, cabia à autora alegar e provar factos de que resultasse que a sentença condenatória poderia, com consistente grau de probabilidade, vir a ser revogada. A autora afirma que assim seria e alega que parte do sucesso desse recurso decorreria, em suma da não prova de certos factos em sede de processo comum singular e da prova de outros que ali não foram considerados.

Sucede, porém, que a autora não se referiu à concreta prova produzida no âmbito daquele julgamento, apenas afirmando conclusivamente que nele se se provaram ou não provaram certos factos.

Para apreciar em concreto se o recurso tempestivamente interposto tinha chance de ser procedente tinha o Tribunal a quo que estar habilitado a fazer o que a doutrina e jurisprudência apelidam, recorrendo a um inglesismo, de “trial within a trial”. Ou seja, teria que se aferir se a prova produzida no processo comum singular justificava, uma vez reapreciada, a modificação dos factos ali julgados provados e não provados. Ora a recorrente apenas alegou na petição inicial e, de novo agora, no recurso, conclusivamente, que se provaram certos factos e não outros, sem alegar quais os meios de prova que ali foram produzidos num e noutro sentido. A forma conclusiva como afirma o que ali resultou como provado ou não provado nas alíneas s) a hh) não pode ser considerada suficiente, por não consistir na alegação de concretos factos de que pudesse resultar a fragilidade da sentença condenatória, mas na mera afirmação de convicções da autora sobre o que ali se provou ou não. O que a autora teria que ter alegado e provado era que a prova produzida em processo comum singular foi erradamente apreciada e que teria a chance de vir a ser alterada em função dos meios de prova que foram produzidos perante o juízo local criminal de Amarante.

A título de exemplo, quanto ao teor dos factos dados por não provados nas alíneas u) e v), relativos à concreta questão das funções desempenhadas por CC na sociedade coarguida e na sua responsabilidade direta na contratação dos trabalhadores e orientação dos trabalhos, a autora não alegou que tal tenha sido demonstrado no processo criminal, não tendo alegado que meios de prova ali produzidos deveriam ter conduzido à prova desses factos.

Pelo que quanto a todas as referidas alíneas a sua eventual prova em nada poderia aproveitar à autora, já que delas poderia resultar quando muito, ainda que se desprezasse a sua natureza conclusiva, que determinados factos não foram provados no processo crime apesar de serem verdadeiros e que outros o foram apesar de falsos, o que não é o mesmo que dizer que, em face da prova ali produzida era reversível a decisão da matéria de facto. Nem sequer era suficiente à autora alegar que determinados factos provados naquele processo não correspondem à verdade e que outros, ali dados por não provados, são verdadeiros. A mesma tinha que alegar que a prova ali produzida deveria ter levado a diferente julgamento da matéria de facto e que o recurso intempestivamente apresentado tinha chance de alterar o decidido.

Nada disso alegou, sendo insuscetíveis de serem julgadas provadas as conclusões que formulou sobre o que se provou ou não no processo criminal. O que ali se provou ou não é o que consta da sentença condenatória e o que devia ter sido alegado e provado pela autora nestes autos era o se devia ter julgado como provado e não provado em face da prova ali produzida.

Acresce que a autora pretende que tais afirmações sejam julgadas provadas apenas com base na prova produzida perante o Tribunal a quo por via do seu depoimento e do prestado primeiro réu. Ora nem este, que ali era seu advogado, nem a autora – que se recusou a prestar declarações no processo criminal como decorre da alínea c) dos factos provados – foram ouvidos pela Mmª juíza do juízo local criminal de Amarante. Pelo que ainda que dos depoimentos prestados nestes autos resultasse a convicção de que a autora não era gerente de facto da sociedade entidade patronal do trabalhador sinistrado, de que não acompanhava os trabalhos em curso nem elaborava e fiscalizava os planos de segurança ou de que a morte do trabalhador não decorreu da violação destes, disso não decorreria que a sentença condenatória tivesse incorrido em erro de julgamento em face dos meios de prova que foram produzidos perante a respetivo juíza e que seguramente não foram os que agora convoca a apelante.

Dispõe então o artigo 410.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “Fundamentos do recurso”, o seguinte:

“1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.

2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”.

Por sua vez, dispõe o art.º 412.º do mesmo diploma legal, na parte que para aqui releva, o seguinte:

“(…) 3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve

especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.”

Assim, cabia à autora alegar e provar que pontos concretos da matéria de facto que sustentou a sua condenação forram erradamente julgados provados e/ou não provados e em que provas ali produzidas deveria ter assentado diferente decisão.

De todo o modo sempre se dirá que foram ouvidos os depoimentos da autora e do primeiro réu e de nenhum deles resulta sequer que aquela não exercia funções compatíveis com a gerência de facto da sociedade empregadora do sinistrado. A autora, naturalmente, afirmou-se como “mera gerente de direito”, expressão usualmente convocada para descrever quem não exerce quaisquer funções relacionadas com a gerência apesar de ter essa função, mas acabou por admitir que “raramente ia às obras” e que exercia funções no escritório, o que não se coaduna com a mera gerência de direito. De todo o modo, seria necessário bem mais que o depoimento da autora sobre essa questão para se ilidir a presunção resultante do artigo 11º do Código de Registo Comercial. Dele resulta que o registo por transcrição definitivo constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida. Ora era a autora a sócia gerente da sociedade empregadora, sua coarguida, inscrita no registo comercial.

O depoimento do primeiro réu, ao contrário do que alega a recorrente, não foi no sentido de que os factos que a mesma conclui estarem provados nas alíneas s) a gg) foram indevidamente julgados na sentença condenatória. Aquele afirmou mesmo que a sentença era em grande medida favorável à autora, que com ela ficou satisfeita, mas que por dever de patrocínio e antes mesmo de conhecer o texto da sentença lhe sugeriu a possibilidade de recurso direcionado à tentativa de afastar a efetiva intervenção da arguida em qualquer ato de gerência e de direção de trabalhos. O que não é o mesmo que dizer que a sentença, cuja fundamentação então era desconhecida de ambos, continha erro de julgamento suscetível de ser reconhecido em recurso. O réu, aliás, afirmou expressamente no seu depoimento que a autora tinha conhecimento de tudo o que se passava nas obras e que sabia perfeitamente que nenhum dos trabalhadores tinha formação, sendo ela quem geria o planeamento das obras.

Quanto às reais causas do acidente, que constam das alíneas cc) e dd) dos factos provados a apelante sequer indicou qualquer meio de prova a reapreciar que pudesse conduzir à sua prova.

Quanto às alíneas ii) e jj) dos factos não provados, relativa aos alegados danos morais sofridos pela autora e à impossibilidade de pagamento prestacional da quantia de 20 000 €, a apelante limita-se a arguir que da prova gravada resulta a “indicação” de que ficou angustiada e com ataques de ansiedade e a convocar o seu próprio depoimento a esse respeito. Alega mesmo que não sabe que prova queria o Tribunal a quo, quanto ao seu estado de ansiedade, questionando-se se se pretendia que um psiquiatra explicasse a mesma. Essa questão, assim colocada, merece-nos resposta afirmativa. De facto, a junção aos autos de um relatório médico ou de psicólogo ou o depoimento de um destes profissionais que tivesse acompanhado a autora seria provavelmente bastante à demonstração desses sintomas. Ou, pelo menos, a produção de prova testemunhal relativa à situação anímica da autora. Prova essa que a apelante não veio indicar para reapreciação, como lhe cabia fazer à luz do artigo 640º, número 1 b) do Código de Processo Civil, depositando no seu depoimento próprio toda a sua argumentação.

Ora o depoimento da autora não pode ser tido por bastante à prova de nenhum desses factos. No que se refere à alínea ii) dela consta a descrição de “ataques de ansiedade”, “perda de sono” e “dificuldade em executar tarefas básicas, de trabalhar e de cuidar do seu filho”. O que é diverso do que a autora afirmou no seu depoimento (que ficou angustiada e teve ataques de pânico.) Acresce que a autora sequer descreveu qualquer concreto ataque de pânico, dizendo quando instada a concretizar, que explodia quando alguém falava consigo. Das regras da experiência comum pode retirar-se que é plausível que a autora tenha ficado muito preocupada e ansiosa com a possibilidade de vir a cumprir prisão efetiva. Todavia o que a mesma alegou e quer ver provado vai para além disso. A mesma descreveu sintomas de patologia que não demonstrou por qualquer via nem confirmou no seu depoimento.

Mais, relacionou-os com o facto de só em maio de 2022 ter sabido que já não havia possibilidade de ser alterada a decisão de suspensão da pena de prisão condicionada ao pagamento de 20 000 €. Ora, está provado nas alíneas oo) e vv) a xx) que como consequência de requerimento apresentado pelo primeiro réu em 11-02-2022, a autora foi ouvida no âmbito do processo comum singular em 03-11-2022, já representada pela sua atual advogada e lhe foi prorrogado o prazo de suspensão da pena de prisão com a condição de pagamento da quantia de 20 000 €, pena essa que foi declarada extinta em 04-07-2024. Pelo que é inverosímil que em maio de 2022 a autora tivesse ficado convicta de que nada mais havia a fazer. Acresce que datando a condenação de 06-01-2017, data de leitura da sentença, a autora sempre soube da possibilidade de ter que pagar a quantia de 20 000 € para evitar a prisão efetiva, tendo, por via da diligência do réu, tido um prazo muito superior aos três anos inicialmente fixados para o fazer. Pelo que não se percebe porque seria apenas em maio de 2022 que a autora, que se provou que estava ciente do andamento dos autos, ficaria especialmente ansiosa com a possibilidade de vir a cumprir pena de prisão.

O mesmo raciocínio vale para a alegada “pressa” com que teve de angariar tal quantia, que desde 2017 sabia que teria de pagar. Recorde-se que a autora foi condenada a pagar solidariamente com a coarguida sociedade a quantia total e 60 000 €. Pelo que tinha que contar, desde a leitura da sentença, com a necessidade e pagar por si ou em via de regresso, pelo menos 30 000€ (cfr. artigo 524.º do Código Civil). A condenação no pedido de indemnização civil assim impunha, pelo que mal se compreende que afirme que perdeu a possibilidade de fasear o pagamento da indemnização e que tenha afirmado em depoimento de parte que teve de pedir 20 000 € emprestados a familiares num prazo de apenas quinze dias. Acresce que se provou que em 2020 o primeiro réu fez diligências com o conhecimento da autora com vista a que fosse pago em prestações o referido valor de 20 000 € no âmbito de ação executiva movida por apenso ao processo comum singular (cfr. alínea pp) dos factos provados). O que é contrário ao teor da alínea jj) que a apelante quer ver provada.

Pelo que improcede totalmente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto


*

3. Em face da total improcedência da impugnação da matéria de facto cumpre conhecer dos fundamentos de direito do recurso, que se podem resumir a duas grandes vias argumentativas: a de que o primeiro réu omitiu deveres de informação e de interposição atempada do recurso da sentença condenatória e a de que dessas condutas resultou para a autora perda da chance de vir a ser absolvida ou, pelo menos de ver a sua condenação ser alterada de forma mais favorável.

Foram os seguintes os factos selecionados pelo tribunal recorrido como relevantes para a decisão da causa:

Provados:

“a) No âmbito do processo n.º ..., que correu termos no Juízo Local Criminal de Amarante, a Autora passou procuração ao 1.º Réu para a representar naquele processo, com o teor a seguir indicado, e que foi junta àqueles autos em 15/09/2016, através de requerimento enviado por telecópia assinado pelo 1.º Réu (cf. fls. 331 e 332 daqueles autos):

b) Entretanto, em 08/09/2016, no âmbito do mesmo processo (...), foi proferido o seguinte despacho:

“Req. de fls. 329 a 332, apresentado pela arguida AA:

A arguida não pode subscrever, em seu nome, a contestação apresentada nestes autos. Tê-lo-á que ser através de Defensor.

A arguida veio juntar uma procuração a favor do Exm.º Sr. Dr. BB (fls. 332), porém, não resulta do requerimento que este Ilustre Causídico tenha aceite o mandato, pois não subscreveu qualquer requerimento a juntar a contestação, nem a procuração. Acresce que o Ilustre Causídico não assinou a contestação que foi apenas subscrita pela própria arguida AA.

Assim sendo, por ora, mantém-se em funções o Ilustre Defensor Oficioso nomeado que deverá, sob pena de não ser recebida a contestação, ratificá-la.

Ou então, deverá o Ilustre Causídico indicado na procuração de fls. 332 (Dr. BB) regularizar o mandato, aceitando-o expressamente nos autos.

Saliente-se que a arguida foi notificada do despacho que recebeu a acusação e teve esse prazo para juntar a procuração e contestar.

Com efeito, aguardem os autos pela audiência de julgamento, no início da qual poderá ser regularizado o mandato e ser admitida a contestação. (…).”

c) Também no âmbito dos mesmos autos, em 16/09/2016, foi realizada a 1.ª sessão da audiência de discussão e julgamento, tendo sido consignado na respetiva ata o seguinte:

“(…) Dada a palavra ao Dr. BB, pelo mesmo foi proferido o seguinte:

A contestação apresentada a fls. 330 foi subscrita pela arguida AA. Todavia, e por lapso, não foi outorgada como exigência legal pelo mandatário que ora a representa.

Nestes termos, e aferindo todo o seu teor, bem como o auto de testemunhas também aí constante, ratifica todo esse processado, requerendo a V. Ex.ª que considere em todo o seu teor e pede deferimento.

De seguida, pela Mm.ª Juíz foi proferido o seguinte:

DESPACHO

Em face da junção das duas procurações pelas arguidas, notifique as ilustres defensoras oficiosas que cessaram as suas funções.

Em face do requerido pelo Ilustre Mandatário da arguida AA, a contestação é tempestiva e está legal, admite-se a sua junção e bem assim o rol de testemunhas que a acompanha.

Notifique.”

E mais ficou consignado o seguinte:

“(…) Em seguida, a Mmª Juiz de Direito advertiu a arguida de que é obrigada a responder com verdade às perguntas sobre a sua identidade, sob pena de poder incorrer em responsabilidade criminal e informou-a de que tem o direito de prestar declarações em qualquer momento da audiência desde que elas se refiram ao objeto do processo, sem que no entanto a tal seja obrigada e sem que o seu silêncio a possa desfavorecer – art.ºs 342º e 343º, n.º 1, ambos do C. P. Penal, passando de imediato à produção de prova:

ARGUIDA

AA, estado civil: solteira, profissão: gerente; BI: ..., domicílio: ... - ..., ... Ílhavo.

Pelo arguido foi dito que não deseja prestar declarações.

De seguida, a Mm.ª Juiz questionou se a arguida queria prestar declarações quanto à sua situação sócio-económica, tendo a mesma afirmado que sim, o que fez, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 10 horas e 08 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 24 minutos. (…).”

d) Nesses mesmos autos, e nos dias 14/10/2016, 17/10/2016, 10/11/2016 e 09/12/2016 realizaram-se sessões da audiência de discussão e julgamento com produção de prova; em todas as sessões, a Autora foi representada pelo 1.º Réu, que esteve presente;

e) Ainda no âmbito dos mesmos autos, em 06/01/2017, realizou-se a última sessão da audiência de discussão e julgamento, tendo ficado consignado o seguinte:

“(…)

ACTA DE AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO E JULGAMENTO

Em 06-01-2017 - Hora: 14.00 horas.

Juiz de Direito: Dr(a). FF

Procurador-Adjunto: Dr(a). GG

Escrivão Auxiliar: HH

Presentes:

Arguido: AA

Arguido: B..., Unipessoal, Ldª

Mandatário: DD, o qual protesta juntar substabelecimento em cinco dias.

Faltosos:

Mandatário: BB

Mandatário: II

Aberta a audiência às 14.50 horas, a M.ma Juiz proferiu o seguinte DESPACHO gravado a 14.51, do seguinte teor:

O Ministério Público deduziu acusação, ao abrigo do disposto no art.º 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, em processo comum e com intervenção do tribunal singular, contra B..., UNIPESSOAL, LDA., e AA, imputando-lhes, em co-autoria material e na forma consumada, a prática de um crime de infracção de regras de construção agravado pelo resultado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas nos art.ºs 277.º, n.ºs 1, al. a) e 2, 285.º e 11.º, n.º 2, do Código Penal, com referência ao Regulamento de Segurança no Trabalho de Construção Civil, publicado pelo DL 41.821 de 11.08.1958 – art.º 66.º conjugado com a al. d) do n.º 1 do art.º 22.º do DL 273/2003, de 29/01, em concurso aparente com um crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo art.º 137.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

Entende o tribunal que os factos aqui em causa se subsumem à previsão, em autoria material e na forma consumada, um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 152.º-B, n.os 1, 2 e 4 al. c) e ainda art.º 11.º, n.º 2, ambos do Código Penal.

É este o nosso entendimento porquanto em causa está somente a violação de regras de segurança que se impunham às arguidas enquanto entidade patronal e não infracção de regras de construção, como aliás, resulta dos factos descritos na acusação.

Assim sendo, decide-se imputar agora às arguidas, em autoria material e na forma consumada, um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 152.º-B, n.os 1, 2 e 4 al. c) e ainda art.º 11.º, n.º 2, ambos do Código Penal.

Em face do exposto, decide-se comunicar tal alteração às arguida, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal para, querendo, requererem o que tiverem por conveniente.

Notifique. Gravado a 14.51.

Dada a palavra ao MP e ao defensor das arguidas, disse nada ter a requerer.

Pelo Ministério Público foi dito que mantém a acusação ao abrigo do disposto no art.º 16.º, n.º 3, do CPP.

§ De seguida, a M.ma Juiz proferiu a sentença que antecede.

Da sentença que antecede foram todos os presentes devidamente notificados. (…).”

f) A declaração de depósito dessa sentença tem o seguinte teor:


g) Nesses autos, a Autora foi condenada “pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violação de regras de segurança, p. e p. pelo art. 152.º-B, nºs 1, 2 e 4, al. b), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, subordinada porém ao dever de pagar aos demandantes JJ, KK e LL, a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), durante o período da suspensão da execução da pena de prisão, pagamento esse que deverá demonstrar nos autos e que será feito por conta da indemnização a que vai condenada no pedido de indemnização civil deduzido”;

h) A outra arguida, “B..., Lda.”, com a matrícula n.º 754 414 e com sede na Rua ..., Ílhavo, ali representada pela sua sócia-gerente e também arguida AA, foi condenada “pela prática do mesmo crime, nos termos do art. 11.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, na pena de 360 (trezentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €100,00 (cem euros), o que perfaz um total de € 36.000,00 (trinta e seis mil euros)”;

i) No âmbito daqueles autos, mais foi decidido:

“Quanto aos pedidos de indemnização civil:

E) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante JJ parcialmente procedente, por parcialmente provado e, consequentemente, decide-se condenar as arguidas/demandadas AA e “B..., Lda.”, no pagamento solidário a JJ, da quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela própria resultante da morte de MM, indo no mais absolvidas do mais peticionado;

F) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante KK parcialmente procedente, por parcialmente provado e, consequentemente, decide-se condenar as arguidas/demandadas AA e “B..., Lda.”, no pagamento solidário a KK da quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo próprio resultante da morte de MM, indo no mais absolvidas do mais peticionado;

G) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante LL parcialmente procedente, por parcialmente provado e, consequentemente, decide-se condenar as arguidas/demandadas AA e “B..., Lda.”, no pagamento solidário a LL, da quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela própria resultante da morte de MM, indo no mais absolvidas do mais peticionado;

H) Condenar as arguidas/demandadas AA e “B..., Lda.”, no pagamento dos juros de mora, contados à taxa legal sobre as quantias a que foram condenadas nos pedidos de indemnização civil, desde a presente data e até efectivo e integral pagamento, indo no mais absolvidas do mais peticionado. (…)”.

j) Apesar de constar na plataforma CITIUS o depósito da sentença no mesmo dia da sua leitura, o conteúdo da mesma não se encontrava disponível para consulta;

k) Dessa circunstância (o conteúdo da sentença não se encontrar disponível para consulta) foi informada a Autora pela equipa de advogados que defendia as arguidas no processo crime;

l) Em 01/02/2017, o 1.º Réu enviou àqueles autos, por mensagem de correio eletrónico, requerimento com o seguinte teor:

“Exmo. Senhor Dr. Juiz de Tribunal da comarca de Porto Este

Processo: ..., Juízo Local Criminal de Amarante

B... Lda e AA, arguidas nos autos vêm requer a V. exa. O seguinte: Não se encontra disponível a sentença nos autos, porquanto, ainda que depositada a mesma não está acessível, nem tão pouco, foi dirigida aos seu mandatários.

Requer, pois pela via mais célere sejam os aqui mandatários notificados do teor da mesma. Não se opõem os aqui mandatários, a que tal seja realizada pela via e-mail ..........@......

P. a V. Exa. Deferimento.”

m) Em 02/02/2017, a secção de processos do do Juízo Local Criminal de Amarante enviou para o 1.º Réu, através de mensagem de correio eletrónico, a sentença proferida no processo n.º ...;

n) A Autora foi informada pela mesma equipa de advogados que a sentença só chegou nessa data;

o) Não se conformando com a mesma, a Autora aceitou a sugestão do seu mandatário, Dr. BB, para interpor Recurso para o Tribunal da Relação do Porto; o requerimento de interposição do recurso e respetiva motivação deu entrada em 17/02/2017;

p) Em 22/02/2017, ainda no âmbito daqueles autos, foi proferido despacho com o seguinte teor:

Por serem legais e tempestivos, admite-se o recurso da sentença proferida nestes autos interposto pelas arguidas B..., Lda e AA, o qual sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (art.ºs 401.º, n.º 1, alínea b), 407.º, n.º 2, al. a); 406.º, n.º 1 e 408.º, n.ºs 1, al. a), todos do Código de Processo Penal).

Notifique o Ministério Público e os Assistentes, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do art.º 413.º do CPP. (…)”.

q) Em 08/03/2017, também no âmbito daqueles autos, foi proferido despacho com o seguinte teor:

“Tendo sido induzida em erro pela conduta processual da parte no requerimento de fls. 631 proferimos despacho de admissão do recurso interposto pelas arguidas.

Acontece que, melhor compulsados os autos, verificamos que a interposição do recurso foi intempestiva e, por conseguinte, que assiste razão aos assistentes no seu pedido de aclaração de fls. 699 a 702.

Contudo, por entendermos que não se trata de um despacho de mero expediente – sendo este entendido como um despacho que se destina a prover ao andamento regular do processo sem interferir, por qualquer razão de forma ou de fundo, no conflito de interesse entre as partes -, pois o despacho de admissão do recurso pode afectar direitos e interesses do arguido, julgamos que se mostra esgotado o nosso poder jurisdicional, pelo que se decide não alterar tal despacho.

Nesta conformidade, deverá o recurso, após o decurso do prazo das respostas, subir ao Tribunal da Relação do Porto a fim de, eventualmente, ser proferido o despacho a que alude o art.º 420.º, n.º 1, al. b), que remete para o art.º 414.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

Em face de todo o exposto, decide-se indeferir o requerido. (…).”

r) Por decisão sumária do Relator do Tribunal da Relação do Porto, em 21 de março de 2018, foi aquele recurso rejeitado com fundamento na sua intempestividade;

s) Decorridos alguns dias, a Autora foi informada pela mesma equipa de advogados que o recurso havia sido julgado extemporâneo pelo Tribunal da Relação do Porto;

t) Através de requerimento dirigido ao Presidente do Tribunal da Relação do Porto, veio a Autora, representada pelo 1.º Réu, reclamar contra aquela decisão sumária;

u) Por acórdão datado de 08/05/2018 do mesmo Tribunal da Relação, tirado em conferência, foi decidido indeferir a reclamação da recorrente;

v) Em 21/05/2018, a Autora telefonou ao 1.º Réu, dizendo que estavam a efetuar uma penhora em sua casa;

w) A Autora teve conhecimento, antes da penhora (realizada em 21/05/2018 no âmbito dos autos sob o n.º ...), da não admissão do recurso interposto da sentença penal condenatória através de um dos advogados do escritório, Dr. BB ou Dr. DD;

x) Em 25/05/2018, a Autora deslocou-se ao escritório do 1.º Réu;

y) Nessa altura, a Autora, na qualidade pessoal e na qualidade de legal representante da sociedade arguida “B..., Unipessoal, Lda.”, apôs pelo seu próprio punho a assinatura que a si é imputada no documento denominado “Declaração”, que se encontra junto aos presentes autos como doc. n.º 2 anexo à contestação do 1.º Réu (cf. fls. 77v’), previamente elaborada pelo 1.º Réu;

z) Esse documento tem os seguintes dizeres:

aa) Em 29 e 31 de maio de 2018, o 1.º Réu, com conhecimento da Autora, juntou aos autos sob o n.º ... requerimentos com a finalidade de sustar a execução (de sentença, no que se refere aos pedidos de indemnização civil), e com o fundamento de que havia recursos pendentes, nomeadamente no STJ;

bb) A Autora interpôs recurso para o supremo Tribunal de Justiça, que foi objeto de despacho de não admissão, proferido a 11 de julho de 2018, pelo Tribunal da Relação do Porto, com fundamento no artigo 400.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal;

cc) Notificada deste despacho, em 06/09/2018, a Autora apresentou reclamação, nos termos do artigo 405.º do mesmo Código; apreciando aquela reclamação, por decisão datada de 19/10/2018, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a reclamação e confirmou a não admissão do recurso com base no disposto nos artigos 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. c), ambos do mesmo Código, decisão essa que transitou em julgado em 05/11/2018;

dd) O mandatário (aqui, 1.º Réu) apresentou nova reclamação invocando o art. 405.º do CPP, dirigida ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;

ee) A Sr.ª Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferiu despacho a 4 de junho de 2019, no qual fez constar:

“(...) o requerimento não é processualmente admissível. Com efeito, não se integra em qualquer das competências deferidas ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça – artigo 11.º n.º 2 do CPP.

Trata-se, assim, de incidente anómalo constituindo pedido não previsto em qualquer disposição legal.

Com efeito, a decisão da reclamação contra despacho que não admite recurso, nos termos do art. 405.º do CPP, é definitiva, quando confirma o despacho de indeferimento, de harmonia com o disposto no n.º 4 do referido preceito.

Proferido despacho de indeferimento da reclamação, esgotou-se o poder jurisdicional de apreciação.

3. Pelo exposto, indefere-se o requerimento apresentado em 30 de maio de 2019.”

ff) Notificado deste despacho, o mandatário Dr. BB, aqui 1.º Réu, prosseguiu interpondo recurso para o Tribunal Constitucional por requerimento remetido a 18 de junho de 2019; o recurso foi delimitado da seguinte forma:

“Pretende-se ver apreciada a constitucionalidade da interpretação das normas constantes dos artigos 411.º n.º1, al. ) do Código de Processo Penal, conjugada com as normas dos artigos 138.º A, n.os 1 e 2 e 259.º do Código de Processo Civil e as normas supracitadas e porquanto violam as normas dos artigos 19.º n.º1 e 25.º n.º1 e 2 da Portaria 280/2013 de 6 de agosto, interpretadas no sentido de permitir aos tribunais considerar validamente notificadas as suas sentenças pela mera declaração de depósito na secretaria, mesmo quando estas não se achavam efetivamente disponíveis e acessíveis para consulta pelos mandatários no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais.

(...) Como as interpreta, esta e todas as decisões proferidas nos autos, conduz a uma interpretação inconstitucional das normas supracitadas porquanto violam as normas dos artigos 32.º n.º1, conjugado com os artigos 2.º, 9.º, al. b) e 205, n.º 1 da Constituição da Républica Portuguesa, que comina que aqueles preceitos legais devem ser interpretados e integrados de forma a não prejudicar as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso, que assustem ao arguido.”

gg) As alegações do recurso para o Tribunal Constitucional foram elaboradas com a colaboração da testemunha NN, o que foi dado a conhecer à Autora;

hh) No requerimento de interposição de recurso, dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça, a recorrente (aqui Autora) identifica, como decisão recorrida, a proferida pela Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça em 19/10/2018;

ii) O 1.º Réu contou os 10 dias do prazo para recorrer para o TC a partir do dia 19 de outubro de 2018, data em que foi proferida pela Sr.ª Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça decisão que indeferiu a reclamação apresentada nos termos do art. 405.º do CPP, para o Presidente do Supremo

Tribunal de Justiça; no entanto, tal reclamação foi considerada um meio impugnatório anómalo e como tal inidóneo para obstar ao trânsito em julgado da decisão proferida;

jj) Na Decisão Sumária n.º 712/2019, proferida no âmbito daquele recurso para o TC, pode ler-se:

“No caso dos autos, o tribunal aqui deixou consignada, no despacho que proferiu a 4 de junho de 2019 – cuja fundamentação se encontra reproduzida supra, no ponto 2. – a qualificação expressa da segunda reclamação deduzida pela recorrente como incidente anómalo constituindo pedido não previsto em qualquer disposição legal.

Ora, concorda-se com tal qualificação, considerando-se que a insistência da recorrente na dedução de reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de decisão da Vice-Presidente desse tribunal, já proferida, nos termos do art. 405.º do CPP, não sendo legalmente prevista, corresponde a um comportamento processual anómalo, concluindo-se por isso, pela extemporaneidade do recurso de constitucionalidade. De facto, a utilização de incidente não previsto na lei, por ser abusiva, é inidónea a operar a prorrogação do prazo de recurso de constitucionalidade. (…)

Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não conhecer do objeto do recurso, face à extemporaneidade do requerimento de interposição respetivo.”

kk) E condenando-se a Recorrente em custas fixadas em 7 (sete) unidades de conta;

ll) A referida decisão foi notificada ao mandatário (aqui 1.º Réu) em outubro de 2019 por carta registada, assim como a conta de custas, com o prazo de pagamento até 03/12/2019;

mm) Do teor das decisões referidas nas precedentes alíneas bb) a kk) foi dado conhecimento à Autora pela equipa de advogados que defendia as arguidas no processo crime n.º ...;

nn) A sentença referida nas precedentes alíneas g) a i) transitou em julgado a 31/10/2019;

oo) Em 11/02/2020, o 1.º Réu, em representação e com conhecimento da Autora, dirigiu ao processo crime n.º ... um requerimento em que, afinal, peticionava:

“23. Tratando-se de arguida que vive com dois filhos menores, com um salário de 300,00€ para fazer face às necessidades básicas de alimentação, vestuário, energia eléctrica, água e gás e, não resultando provado que a casa onde se aloja lhe pertença, demonstrada está a insuficiência económica e financeira da arguida, restando concluir que o não pagamento da indemnização/multa de substituição não lhe é imputável, devendo ser suspensa a execução da pena de prisão decretada na sentença proferida nos autos, subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Cfr. Artigo 50º e 51º do CP O que requer!

Termos em que requer a V. Exa. seja suspensa a execução da pena de prisão decretada na sentença proferida nos autos, subordinada a mesma ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro ou o que julgar por mais conveniente.”

pp) Ainda durante o ano de 2020, as diligências do 1.º Réu para o pagamento, pela Autora, da quantia de €20.000 em prestações, no âmbito do processo executivo apenso ao processo crime de Amarante (proc. n.º ...), foram feitas com o seu conhecimento;

qq) (…) também surgiu a hipótese de instauração de uma ação contra o Estado Português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem; a Autora, inicialmente, aceitou, mas, depois, não deu ordem para apresentar essa ação;

rr) (…) a Autora não mais voltou ao escritório do 1.º Réu;

ss) Algumas das diligências promovidas pelo Ministério Público, no âmbito do processo crime n.º ..., com vista a averiguar a situação económica da ali arguida e aqui Autora foram notificadas ao 1.º Réu em 14/02/2020 e 09/03/2020; após esta data, não existem outras notificações feitas pela secretaria ao 1.º Réu que sejam relativas àquelas diligências;

tt) Entretanto, por requerimento datado de 12/09/2022, a Autora juntou aos autos de processo crime n.º ... uma procuração, com o seguinte teor, acompanhada de uma participação disciplinar contra o 1.º Réu:

uu) Em 26/09/2022, o Réu juntou aos autos de processo crime n.º ... requerimento, com o seguinte teor:

“BB, vem muito respeitosamente, revogar a procuração que lhe foi conferida pela arguida com efeitos imediatos, porquanto, a postura da aqui arguida só a isso poderia conduzir.

Vem informar V. Exa. que os factos pelo qual a denunciante acusa o aqui anterior seu mandatário são diametralmente, falsos, concretamente, a falta de comunicação do aqui visado à arguida do desfecho dos processos, bem assim o alegado pagamento da quantia referida a título de honorários.

Naquela sede, fará prova do que ora alega sendo que, o presente processo disciplinar movido contra o aqui visado é uma ofensa ao trabalho e dedicação tidos pelo aqui mandatário. Queira V. Exa. aceitar a presente revogação com efeitos imediatos.”

vv) Em 03/11/2022, é efetuada pela secretaria a notificação da Autora, para a sua audição nos termos do n.º 2 do art. 495.º do CPP, tendo sido também notificada, na mesma data, na qualidade de Mandatário desta arguida, a Sr.ª Advogada Dr.ª OO;

ww) (…) na audiência relativa àquela diligência, a Autora esteve presente e foi representada pela Sr.ª Advogada Dr.ª OO;

xx) No decurso do período de prorrogação da suspensão da execução da pena de prisão, a Autora entregou a quantia de € 20.000,00 a que ficou obrigada como condição de suspensão, tendo sido declarada extinta a pena de prisão, por despacho datado de 04/07/2024 proferido nos autos n.º ...;

yy) A Autora não tinha antecedentes criminais;

zz) A Autora tem um filho menor de idade a seu cargo;

aaa) À data em que foi proferida a sentença penal em 1.ª Instância, a Autora auferia mensalmente o vencimento de, pelo menos, € 530 mensais;

bbb) A Autora é solteira, vive com o companheiro CC e tem mais um filho, que é maior de idade;

ccc) A Autora, em maio de 2022, deslocou-se ao tribunal de Amarante para consultar o processo;

ddd) A Autora detém a qualidade de única gerente da sociedade arguida “B...”;

eee) A Ré “A... SE, Sucursal em Espanha” celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional com a Ordem dos Advogados Portugueses, titulado pela apólice de seguro n.º ......, conforme instrumento que se acha a fls. 127 e ss. destes autos, cujos dizeres se dão inteiramente reproduzidos.

Factos não provados:

7. Não se logrou provar a seguinte factualidade:

a) Até à presente data o 1.º Réu nunca informou a Autora do indeferimento da reclamação pelo Tribunal da Relação do Porto;

b) Pelo que até maio do corrente ano (2022) a Autora foi induzida a pensar que a situação estaria ainda em análise;

c) O 1.º Réu não informou que reclamou do despacho de rejeição do Recurso;

d) Não informou que recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça;

e) Não informou que reclamou do despacho de não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça;

f) Não informou que recorreu para o Tribunal Constitucional;

g) Não informou que o mesmo foi considerado, também, extemporâneo;

h) Não informou da notificação que lhe foi feita com as guias para pagamento das taxas de justiça;

i) Sempre que abordado pela Autora para saber do ponto de situação o Dr. BB referiu que o recurso se encontrava em análise;

j) Nunca referindo que já havia esgotado todos os graus de jurisdição;

k) Pelo que apenas em maio (2022) a Autora desconfiou que algo não estaria a correr bem;

l) Tendo ficado em estado de alerta, quando ao consultar a sua página das finanças constatou que tinha uma dívida oriunda de custas não pagas ao Tribunal Constitucional;

m) O que levou a Autora a procurar aconselhamento jurídico após questionar novamente o 1.º Réu sobre o estado do processo, daí obtendo a mesma resposta “ainda não há novidades”;

n) Nunca informou a sua Cliente de que a situação se tinha efetivado com o trânsito em julgado da decisão;

o) A Autora desconhecia que tinha começado a correr o prazo de suspensão da sua pena de prisão;

p) Desde 2017 que a Autora tem vindo a questionar o estado do processo;

q) Ao longo do processo ... que correu termos no tribunal do Juízo Local Criminal de Amarante, a Autora entregou ao 1.º Réu cerca de € 5.000,00 para pagamento dos seus honorários;

r) Nunca lhe foi entregue uma única fatura ou recibo dos valores pagos;

s) Nos autos do processo ..., não se provou que a Autora enquanto representante legal da sociedade lhe cabia dirigir, executar a obra contratada ou fiscalizar as regras de segurança da mesma, pelo que os crimes não lhe poderiam ter sido imputados;

t) Assim como não se provou que a Autora enquanto gerente da empresa, lhe coubesse acompanhar os trabalhos de lavagem e impermeabilização da fachada do edifício ou que fosse ela a responsável pelo plano de segurança da obra ou que tivesse atuado em conjugação de esforços com o companheiro CC tendo conhecimento da perigosidade associada à tarefa;

u) Foi CC quem contratou os trabalhadores e definiu os seus pagamentos mensais, definiu as obras e geriu os trabalhos, foi quem falou com os trabalhadores na manhã do acidente e também foi ele que recebeu a notícia da morte do trabalhador;

v) Era o CC quem contratava os trabalhadores, quem definia as obras e geria os trabalhos;

w) Para considerar a Autora/Arguida como gerente de facto e de direito o tribunal bastou-se com a ordem que a mesma havia dado para abastecerem o carro;

x) Para que a Autora assumisse as qualidades a que se refere a norma incriminadora, seria necessário que a mesma tivesse atuado no âmbito do planeamento, direção ou execução de obra, demolição ou instalação;

y)Também não se tendo provado que a Autora representou o perigo que o funcionamento da máquina constituía para a vida ou o perigo grave de ofensa para o seu corpo ou saúde do trabalhador;

z) Pelo que apenas se poderia considerar provado que a mesma não dirigia executava ou fiscalizava o cumprimento das regras de segurança;

aa) Ademais, não resultou provado qualquer nexo de causalidade entre a ficha de procedimento de segurança, falta de formação com a causa de morte do trabalhador;

bb) Antes pelo contrário se tendo demonstrado que o que verdadeiramente propiciou o acidente fora a ausência do trabalhador EE, pelo facto de este ter abandonado o seu colega de trabalho aquando da realização de uma manobra com piso escorregadio;

cc) Também a própria vítima detinha experiência para saber que não poderia prescindir de tal auxílio;

dd) Não poderia ter sido a Autora a responsável por essa falta de auxílio já que o mesmo foi dispensado pela própria vítima mortal;

ee) Não se provou o nexo de causalidade entre a inobservância de regras de segurança e o acidente ocorrido;

ff) A pena deveria ser proporcional e adequada, o que não foi;

gg) A condenação não respeitou o princípio da razoabilidade plasmado no art. 51.º n.º 1 al. a) do CP ao ter condenado a Autora/arguida ao pagamento de 1/3 da indemnização destinada a ressarcir os danos emergentes desse crime;

hh) Nem era previsível que as condições socioeconómicas da Autora se alterassem drasticamente ao ponto de lhe permitirem fazer esse pagamento, tendo assim o tribunal violado os arts. 50.º, 51.º e 52.º do CP;

ii) A Autora tem tido ataques de ansiedade por se sentir envergonhada com a confiança que depositou no seu advogado, e tem perdido noites de sono a imaginar como podem vir a ser os seus dias estando presa por 3 anos; a Autora tem tido dificuldades em executar as suas funções básicas, de trabalhar e de cuidar do seu filho;

jj) Tendo inclusivamente perdido a possibilidade de ter faseado o pagamento da indemnização ao longo de pelo menos 36 meses.


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4. Do incumprimento do contrato de mandato por violação pelo primeiro réu do dever de informar a autora do andamento dos autos e por dedução de recurso fora de prazo.

A autora propôs a ação com base na alegada responsabilidade civil contratual do primeiro réu decorrente do mau cumprimento do contrato de mandato que com ele celebrou.

O incumprimento desse contrato consubstanciaria, assim, o requisito de ilicitude do comportamento do réu que motivaria a sua obrigação de indemnizar, à luz do previsto nos artigos 798.º e 483.º do Código Civil.

A responsabilidade civil contratual, como é a que nos ocupa, deriva da falta de cumprimento das obrigações resultantes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei. Dos artigos 406º, n.º 1 e 762º do Código Civil, resulta que os contratos devem ser pontualmente cumpridos, e, para além das obrigações específicas que resultam das normas que regulam cada tipo de contrato, as partes estão, também, obrigadas a respeitar os deveres secundários e os deveres acessórios de conduta que a boa-fé impõe, entendendo-se esta como traduzida no dever de lealdade de adequada execução e de cooperação e comportamento cuidadoso entre as partes.

No caso, o incumprimento resultaria, segundo a autora, da violação do dever de informação sobre o andamento do processo e de zelo e diligência na interposição tempestiva de recurso.

Haverá, pois, que chamar a esta fundamentação, antes de mais, o regime jurídico do contrato de mandato cujo incumprimento é alegado pois é face a tal regime contratual que se há de aferir se ocorreu incumprimento.

O artigo 1157º do Código Civil define-o contrato como aquele pelo qual uma das partes se obriga a prestar um ou mais atos jurídicos por conta da outra.

Dos artigos 1157º a 1184º, resultam elencados os deveres contratuais, a prestar por um e outro dos contraentes.

Da parte do mandatário, única que aqui nos ocupa, há previsão das obrigações de “praticar os actos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante, prestar as informações que este lhe peça, relativas ao estado da gestão” de “comunicar ao mandante, com prontidão, a execução do mandato ou, se o não tiver executado, a razão por que assim procedeu, prestar contas findo o mandato ou quando o mandante as exigir e entregar ao mandante o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste, se o não despendeu normalmente no cumprimento do contrato

Os deveres do advogado, mandatário judicial, resultam ainda, do Estatuto da Ordem dos Advogados, decorrente da Lei 145/2015 de 9 de setembro.

Entre eles cumpre salientar - porque é o que aqui pode estar em causa -, os de: “a) dar a sua opinião conscienciosa sobre o merecimento do direito ou pretensão que o cliente invoca, assim como prestar, sempre que lhe for solicitado, informação sobre o andamento das questões que lhe forem confiadas, sobre os critérios que utiliza na fixação dos seus honorários, indicando, sempre que possível, o seu montante total aproximado, e ainda sobre a possibilidade e a forma de obter apoio judiciário; b) Estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e atividade”. Ambos estão previstos no número 1 do artigo 100º relativo aos deveres do advogado para com o cliente.

Ao fim e ao cabo, no cumprimento do mandato forense mais não é exigido do que na comum responsabilidade contratual costuma chamar-se do comportamento diligente do “bom pai de família”, adaptado às especiais exigências e tecnicidade do mandato forense.

A autora faz assentar a ilicitude do comportamento do autor em duas ordens de razões sendo uma delas o incumprimento do dever de informação. Para tanto, no âmbito deste recurso, pretendia a alteração da matéria de facto provada e não provada a esse respeito. Ora, na improcedência dessa pretensão e mantendo-se inalterado o elenco dos factos provados e não provados, não há qualquer razão para considerar que o primeiro réu omitiu quaisquer deveres de prestar informação que lhe tenha sido solicitada ou mesmo que tivesse de prestar espontaneamente.

Pelas razões que já acima se explanaram também não colhe o argumento da recorrente de que cabia ao réu a prova de que prestou tais informações, já que, como se concluiu, a circunstâncias de os factos essenciais em que assenta a pretensão da autora serem factos negativos não faz inverter o ónus da prova dos mesmos.

De todo o modo é de salientar que dos factos provados resultou mesmo assente, expressamente, que o réu comunicou à autora vários dos factos relativos ao andamento processual de que a autora alegara não ter sido informada.

Pelo que não se pode imputar ao réu, em face dos factos dados por provados, qualquer violação do dever de informação a que alude o artigo 100.º, número 1 a) do Estatuto da Ordem dos Advogados.


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7. Quanto à alegada violação do prazo de recurso.

A ilicitude da conduta do primeiro réu poderia ainda, segundo a autora, decorrer da violação pelo réu da sua obrigação de zelosamente defender os interesses processuais do seu cliente usando “efeito todos os recursos da sua experiência, saber e actividade”.

Tinha o primeiro réu a obrigação contratual e estatutária de diligentemente contar e não deixar passar o prazo de recurso de acordo com a natureza do processado.

Ora, quanto a esta matéria, provou-se que muito embora tenha sido feita declaração de depósito da sentença que condenou a autora em 09-01-2017 (alínea f) dos factos provados), o seu conteúdo não ficou, de facto, disponível para consulta no sistema informático nessa data.

Em 01-02-2017 o primeiro réu enviou aos autos de processo comum singular pedido de notificação da mesma, o que acabou por ser feito no dia seguinte. No dia 17 de fevereiro de 2017 foi interposto recurso da sentença condenatória.

Nos termos do disposto no artigo 411.º, número 1 b) do Código de Processo Penal o recurso deveria ter sido interposto no prazo de 30 dias a contar do respetivo depósito na secretaria. Com base na cota – de 09-01-2017 -, que dava conta de que o depósito da sentença recorrida fora efetuado, foi julgada intempestiva a apresentação do recurso pelo primeiro réu, em representação da ali arguida.

Sucede que ficou provado que na data do depósito da sentença a mesma não se encontrava, de facto, disponível para consulta no sistema informático de apoio aos tribunais. Demonstrada esta falta de disponibilização da sentença no referido dia, não se afigura que o entendimento do mandatário de que o prazo de recurso ainda não começara a correr se revele totalmente descabido.

Como tem sido entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores, entre ela a deste Tribunal, expressa nomeadamente, no acórdão de 19-04-2023 283/18.0TPRT.P1 de 19-04-2023, o depósito tardio da sentença em nada pode afetar as garantias de defesa do arguido, pois que o prazo para recurso inicia-se com o seu depósito, uma vez que só a partir do momento em que tal peça processual é disponibilizada se verificam as condições adequadas à sua análise e estudo, o que se mostra essencial à interposição e motivação de qualquer recurso.

A portaria 280/2013 de 26 de agosto, no seu artigo 21º prevê que “Os atos dos funcionários são praticados no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais”.

No caso, tratando-se de sentença assinada pela Mmª Juíza que a elaborou verifica-se, contudo do teor de tal documento junto com a petição inicial, que não consta, antes foi omitida, a informação relativa à data da sua assinatura no seu canto superior esquerdo. Sabe-se apenas que embora tenha aposta, a final, a data de 06-01-2017, a sentença não foi, de facto, depositada nessa data, pois a cota de depósito é de 09-01-2017. E sabe-se que nem nesta data a mesma ficou disponível no sistema informático.

O artigo 27º da já referida portaria prevê ainda que a consulta do processo por mandatário seja feita através de sistema informático de suporte à atividade dos tribunais ou junto da respetiva secretaria. Aos mandatários das partes cabe, assim, a possibilidade de consulta por uma dessas duas vias. Ora, provado nestes autos que “Apesar de constar na plataforma CITIUS o depósito da sentença no mesmo dia da sua leitura, o conteúdo da mesma não se encontrava disponível para consulta.”, foi incumprido o dever de disponibilização da mesma por consulta no sistema informático, o que não é de imputar ao mandatário da ora autora.

Assim, provado que, de facto, a sentença não estava ainda acessível para consulta e que apenas foi enviada, a seu pedido, ao mandatário da autora no dia 02-02-2017, resta questionar se o mesmo, usando da diligência exigida a um advogado não deveria ter acautelado a admissibilidade do recurso por uma de duas vias: interpondo-o no prazo de 30 dias a contar da data em que foi registado o depósito no sistema citius (para o que poderia tê-la solicitado mais cedo ou procurado consultá-la no Tribunal), ou alegando expressamente que nessa data a sentença não estava de facto depositada nem nesse sistema eletrónico nem fisicamente, caso viesse a constatar ser esse o caso.

Ora, tendo em conta que se trata de advogado no exercício de mandato forense e que a sua cliente fora condenada em primeira instância em pena de prisão suspensa e em pagamento de 60 000 € em solidariedade com outra demandada, é de concluir que o zelo exigível a um advogado no exercício do patrocínio impunha que o primeiro réu tivesse acautelado o risco de, com base em cota de depósito (ainda que eventualmente falsa), viesse a ser julgado intempestivo o recurso a interpor da sentença.

Acompanhamos, assim, a sentença recorrida quando considera que o dever de diligência do mandatário da autora no exercício do mandato forense exigia maior cuidado e esforço em evitar a não admissão do recurso, o que, no nosso entender poderia ter sido feito nomeadamente por uma dessas duas vias.


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6. Do dano da autora por perda de chance.

Resta saber se dessa omissão de deveres de cuidado e zelo resultou dano para a autora.

No Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 26-01-2022[14] já acima mencionado, foi decidido que “O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade”.

Ora, também aqui a matéria de facto provada – e, neste caso, até a alegada pela autora -, se manifesta insuficiente para a pretendida conclusão.

Antes do referido acórdão uniformizador a apreciação da chamada “perda de chance” ou “perda de oportunidade” como caminho na resolução de situações como a dos autos vinha sendo enquadrada, no âmbito dos requisitos da responsabilidade civil, ora ao nível do dano ora do nexo causal.

Nas palavras de Carneiro da Frada[15] “Uma das formas de resolver este género de problemas é a de considerar a perda de oportunidade um dano em si, como antecipando o prejuízo relevante em relação ao dano final (apenas hipotético, v.g. da ausência de cura, da perda do concurso, do malograr das negociações por outros motivos), para cuja ocorrência se não pode asseverar um nexo causal suficiente”.

Não nos parece que seja este o caminho dogmaticamente mais correto.

A mera perda da oportunidade de recorrer (ou de receber um tratamento, ou de concorrer a um concurso, etc.), não é um dano em si mesmo, mas um iter num processo causal que pode concluir-se ter sido adequado a esse dano, (consubstanciando-se este no ganho da ação, na cura do paciente, no vencimento do concurso, etc.). Sendo para nós correta a asserção de que o dano é a lesão no direito juridicamente tutelado, o que se tutela, no caso da possibilidade de recorrer de uma decisão desfavorável, não é o direito de recorrer em si mesmo mas o direito de, sindicando uma decisão desfavorável, se vir a poder obter ganho da causa.

Lembremos, a propósito, que apenas o dano certo, ainda que futuro, é indemnizável não sendo de ressarcir danos eventuais ou hipotéticos.

Nas palavras de Patrícia Costa, “A doutrina da perda de chance propugna, em tese geral, a concessão de uma indemnização quando fique demonstrado, não o nexo causal entre o facto e o dano final, mas simplesmente que as probabilidades de obtenção de uma vantagem, ou de evitamento de um prejuízo, foram reais, sérias, consideráveis”.

Ora, não podemos, de todo, afirmar que o alegado “resultado danoso” - a condenação da autora nos termos em que foi feita -, foi condicionado inevitável e necessariamente pela omissão do réu. Ou, doutro modo, que este não se teria mantido se não fosse essa sua conduta omissiva. A obrigação do advogado, decorrente do contrato de mandato, é uma obrigação de meios e não de resultados e aqui, importa, na lição de Antunes Varela, chamar “como um auxiliar precioso das dúvidas suscitadas”[16], o fim tutelado pelo contrato.

Isto independentemente ter de se ponderar a probabilidade de um seu comportamento adequado – apresentação do recurso em prazo a contar desde o registo informático do depósito da sentença -, poder vir a evitar o dano decorrente da condenação.

Ora não pode afirmar-se que o recurso evitaria, com toda a certeza, a condenação da ali arguida e demandada, que ali é autora.

Podemos apenas afirmar que há uma aptidão, em abstrato, do recurso vir a atingir tal resultado. O que não basta à procedência da ação.

Era necessário à autora demonstrar a probabilidade de obtenção de êxito do recurso e essa demonstração, enquanto facto constitutivo do seu direito nos termos do artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, não foi feita.

Não ficaram desde logo provadas as alegações da autora de que o que ficou provado no referido processo divergisse do que consta da sentença condenatória.

Pelo que não se afigura que a impugnação da matéria de facto que pudesse ser feita no recurso tardiamente interposto viesse a ter uma probabilidade efetiva de acolhimento. A decisão do juízo local criminal está exaustivamente fundamentada e escuda-se nos meios de prova ali produzidos não se revelando do seu teor qualquer erro de apreciação da prova. E desconhece-se que meios de prova produzidos em processo comum singular poderiam ter conduzido, em sede de impugnação alargada dessa decisão, a outra convicção, pois a autora não os alegou.

Também quanto à concreta pena aplicada e ao seu alegado excesso, nada há a apontar à sentença condenatória, pois a dosimetria abstrata da pena ia de 2 a 8 anos de prisão, nos termos do artigo 152º-B, número 2 b) do Código Penal. A pena de três anos que foi aplicada está, pois, muito próxima do seu limiar mínimo.

Quanto à obrigação, condicionadora da suspensão da pena de prisão, de pagar 20 000 € aos lesados no prazo de três anos, entende a autora que é exagerada em face das condições económicas dadas como provadas. Tal representaria, de facto, um encargo mensal de €555,55, o que pareceria ser desproporcional e, eventualmente, violador do disposto no artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal.

Todavia essa desproporção não se revela no caso concreto.

Desde logo porque tal montante corresponde a apenas 1/3 do valor total de indemnização em que a autora foi condenada no âmbito do pedido de indemnização cível e neste a condenação foi solidária com a da coarguida sociedade. Ou seja, a autora apenas teria a responsabilidade de suportar metade desse valor. Ainda que tivesse de o adiantar na totalidade teria direito de regresso sobe o devedor solidário nos termos do artigo 524.º do Código Civil.

Pelo, estando a autora condenada a pagar um total de 60 000 € em regime de solidariedade com uma sociedade comercial de que era legal representante, não nos parece excessivo que a suspensão da execução da pena ficasse condicionada ao pagamento de 1/3 desse valor, no prazo de três anos.

Até porque, no caso de a arguida não poder cumprir tal obrigação de pagamento, a condição de suspensão poderia ainda vir a ser alterada nos termos do artigo 51.º, número 3 do Código Penal.

Verifica-se, aliás, que a autora, como se demonstrou, veio a gozar de um prazo muito superior para o pagamento desse montante, ainda por consequência de diligência do primeiro réu que fez ao Tribunal que proferiu a condenação um pedido nesse sentido, dando conta das dificuldades de pagamento por banda da arguida.

Finalmente cumpre acentuar que o valor de indemnização pago aos demandantes civis, viúva e filhos do sinistrado, por danos não patrimoniais decorrentes da sua morte, de 20 000 € para cada um, ficou claramente abaixo do que já então era habitual fixar-se em situações semelhantes sendo então normalmente fixados valores que ultrapassavam os 30 000 €. Vejam-se, a esse respeito e a título meramente exemplificativo os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-09-2016 com o número STJ 492/10.0TBBAO.P1.S1 (em que se fixou a indemnização por dano idêntico em 30.000 €), de 27-09-2016; com o número 7559/12.8TBMAI.P1.S1 (em que a mesma indemnização foi fixada em 40.000 €) e de 27-09-2016 245/11.8T2AND.P1.S1 (em que se fixou um valor indemnizatório de 25.000 € pelos danos não patrimoniais resultantes da morte do marido e pai dos autores). Todos estes arestos foram proferidos no ano anterior ao da sentença condenação da aqui arguida.

Pelo que, em face da repartição de responsabilidades que foi fixada na sentença entre as arguidas e a vítima (80% e 20% respetivamente) sempre a ora autora teria de ser condenada em valor idêntico ou até superior ao fixado.

Pelo que se deve concluir que, com a matéria de facto que foi julgada por provada era altamente improvável, senão impossível que a decisão de direito pudesse ser outra que não aquela a que se chegou. E não se provaram, nesta ação, quaisquer factos de que pudesse decorrer que o recurso da sentença condenatória iria, com qualquer probabilidade, redundar em alteração da matéria de facto dada por provada no processo comum singular.

Pelo que, pelos mesmos fundamentos que constam da sentença recorrida, deve a mesma ser confirmada.


*

Apenas uma última nota se impõe em face das afirmações da autora sobre o comportamento do Sr. Juiz que presidiu ao julgamento no Tribunal a quo e proferiu a sentença recorrida. A autora alega vários factos que a seu ver revelam uma relação de grande proximidade do mesmo com o primeiro réu e falta de isenção no julgamento da causa (nos pontos NNN a QQQ das alegações de recurso). O teor de tais afirmações é absolutamente irrelevante para esta decisão, sendo que tais factos, a serem verdadeiros, deveriam ter sido alegados no contexto de incidente de suspeição, no mesmo momento em que alegadamente foram praticados ou conhecidos da autora: a audiência de julgamento. A ter sucedido o que a autora descreve e dando-lhe a mesma a conotação que ora dá, era seu dever, através da sua mandatária, ter suscitado a questão no âmbito de incidente especialmente previsto nos artigos 119.º a 123º do Código de Processo Civil. Não o tendo feito, a alegação desses factos em sede de recurso em nada lhe pode aproveitar, pelo que não tem qualquer finalidade admissível.

É de indeferir o pedido do recorrido para que seja extraída certidão dessas alegações pois não há qualquer fundamento legal para o mesmo. As declarações da autora, ainda que espúrias, não constituem qualquer facto de que este Tribunal tenha que conhecer ou dar conhecimento, nomeadamente por alegadamente constituir infração legal do foro disciplinar ou criminal. Pelo que se entende que o recorrido, querendo, deve extrair dos autos as certidões que pretender e apresentá-las onde julgar conveniente. Vai, assim, indeferida esta pretensão do recorrido.


*

As custas do recurso, por nele ter decaído inteiramente a recorrente, são a suportar por ela nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil.

V – Decisão:

Julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela recorrente nos termos do previsto no artigo 527º, número 1 do Código de Processo Civil.


Porto, 13-10-2025
Ana Olívia Loureiro
Manuel Domingos Fernandes
Filipe César Osório
________________
[1] Socorremo-nos do sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça disponível em STJ 1377/18.7T8LSB.L1.S1, mas neste sentido encontra-se muitos outros. A título meramente exemplificativo deixamos aqui a ligação de acesso a alguns deles: STJ 960/21.8T8GRD.C1.S1 ; TRL 12225/21.0T8SNT.L1-2; STJ 3157/17.8T8VFX.L1.S1.
[2] Disponível na seguinte ligação: STJ 2759/17.7T8VBNG.P2.S1
[3] Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª edição, página 183, nota de rodapé número 318.
[4]Código de Processo Civil anotado, Coimbra Editora, 3ª edição, volume IV página 554.
[5] Neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, Almedina, 3ª edição, página 526.
[6] Op.cit em 2, página 527.
[7] Neste sentido é unânime a jurisprudência, como a que se encontra no acórdão STJ 3424/16.8T8CSC.L1.S1 de 09-03-2021, em cujo sumário se pode ler: “O n.º2 do artigo 342.º do Código Civil não prevê uma inversão do ónus da prova quando esteja em causa a prova de factos negativos. IV. In casu, tendo a A. alegado como factos constitutivos do direito que invoca, o preenchimento abusivo do cheque e a não existência de um contrato de mútuo (facto negativo), que não conseguiu provar, não poderia a acção proceder. V. Mesmo no âmbito do enriquecimento sem causa, que tem carácter subsidiário, competiria ao pretenso empobrecido o ónus de alegação e prova da falta da causa justificativa do enriquecimento”.
[8] Segundo Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 699), “(…) não se trata mais da quesitação atomística e sincopada de pontos de facto que caracterizou o nosso processo civil durante muitas décadas. Numa clara mudança de paradigma, procura-se agora que a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas exceções deduzidas, decorra sem barreiras artificiai e sem quaisquer constrangimentos, assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com atinência para a decisão da causa.”.
[9] A este respeito os mesmos Autores, op. cit, afirmam: “(…) quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, importará que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos, em termos de assegurar a adequação da sentença à realidade extraprocessual.”.
[10] A este respeito os mesmos Autores, op. cit, afirmam: “(…) quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, importará que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos, em termos de assegurar a adequação da sentença à realidade extraprocessual.”.
[11] Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª edição, página 354.
[12] Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 3ª edição, Volume III, páginas 210 a 218
[13] Disponível em: AUJ 2/2022 de 26 de janeiro
[14] Disponível em: AUJ 2/2022 de 26 de janeiro
[15] Direito Civil, Responsabilidade Civil, O Método do Caso, Almedina, página 104.
[16] Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, Vol. I, página 898.