Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
115/09.0TBCHV-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
TRANSMISSÃO ENTRE VIVOS DA COISA OU DIREITO LITIGIOSO
DAÇÃO PRO SOLVENDO
Nº do Documento: RP20120130115/09.0TBCHV-A.P1
Data do Acordão: 01/30/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 713º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I - O incidente de habilitação da cessionária permite apenas duas opções: ou a cedente continua na lide, já que a habilitação decorrente da transmissão entre vivos da coisa ou direito litigiosa, é facultativa, ou a cessionário intervém na lide, através da habilitação e, nesse caso, substituiu a cedente adquirindo a posição processual in totum que a mesmo tinha no pleito.
II - Não há a possibilidade de ambas permanecerem na lide, nem a possibilidade de se cindir o objecto da mesma, excluindo a apreciação do pedido reconvencional, por força da substituição do sujeito processual cedente pelo sujeito processual cessionário, quando este não adquiriu, na totalidade, por via do negócio transmissivo, a posição contratual do cedente.
III - Para efeitos do n.° 7 do artigo 713.° do CPC, tendo a autora apenas cedido a terceiro, através de uma dação pro solvendo, o direito de crédito que invoca ter sobre a ré, a cessionária não pode ser habilitada por daí decorrer a impossibilidade de apreciação da reconvenção que já tinha sido deduzida contra a cedente em momento anterior à celebração.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 115/09.0TBCHV-A.P1 Apelação)
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial de Chaves (1.º Juízo Cível)
Apelante: B…, Ld.ª
Apelada: C…

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
Por apenso à acção declarativa de condenação que corre termos sob o n.º 115/09.6.0TBCHV, na qual é autora B…, Ld.ª e ré a C…, a autora veio deduzir incidente de habilitação de cessionário, ao abrigo do artigo 376.º e seguintes do Código de Processo Civil (CPC), requerendo a habilitação de D…, Ld.ª.
Para o efeito alegou, em suma, que por escritura pública de dação em função do cumprimento, outorgada em 03/09/2010, cedeu à sociedade D…, Ld.ª, o crédito que detém sobre a ré, e em discussão na causa principal, no montante de €302.144,86, acrescido de juros de mora, para que, após o pagamento por parte da ré, a referida sociedade D…, Ld.ª possa ficar reembolsada parcialmente do valor que, por sua vez, detém sobre a ora requerente, no montante de €534.553,62.
Conclui nos seguintes termos: “Pelo que deve a habilitação proceder, declarando-se a cessionária do referido direito litigioso, a sociedade comercial por quotas, D…, Ld.ª (…), habilitada na indicada acção, assumindo a qualidade e posição processual da A., substituindo esta na dita acção (com exclusão óbvia no que concerne à reconvenção), seguindo-se os demais termos.”
Notificada a requerida, contestou o incidente de habilitação, não porque ponha em causa o acto formal invocado pela requerente, mas porque nega a existência do crédito peticionado na acção, e nesse sentido, impugna a existência de dação em função do cumprimento e invoca a falsidade das declarações prestadas perante a notária. Contesta, ainda, a habilitação por ter deduzido reconvenção, que foi admitida, pelo que, nessa parte, entende não poder a cessão da posição processual proceder, concluindo que a autora/requerente deve permanecer nos autos na qualidade de reconvinda.
A requerente juntou certidão da escritura pública de dação em função do cumprimento.
Foi produzida prova testemunhal e proferida a decisão de fls. 28 a 31, que indeferiu a habilitação, sintetizando a fundamentação nos seguintes termos:
“Ora, atento o teor do articulado deduzido pela B… e a prova documental (documento de cessão da posição contratual) e testemunhal produzida, poderíamos, eventualmente, concluir pela verificação dos pressupostos necessários à procedência da requerida cessão da posição contratual.
Contudo, há um dado relevante que impõe, a nosso ver, que o pedido da B… não possa obter procedência.
Na verdade, na acção principal pela Ré C… veio, no momento próprio, deduzir reconvenção contra a B…, a qual foi admitida por despacho transitado em julgado.
Assim sendo, ainda que pudesse eventualmente ser admitida a cessão da posição contratual nos termos invocados pela Autora, já não poderá ter êxito face ao facto de ter sido admitida a reconvenção pelo que terá a Autora B…, Lda de permanecer nos autos principal, indeferindo-se a cessão de posição processual requerida nestes autos.”

Inconformada, apelou a requerente, pugnando pela revogação da sentença e pela prolação de outra decisão que decrete a habilitação da cessionária nos termos peticionados.
Respondeu a ré, contra-alegando no sentido da manutenção da sentença recorrida.
Nesta Relação, foi ordenada a complementação da instrução do presente apenso com a junção de todos os articulados apresentados na acção principal.

Conclusões da apelação:
1-A instância pode modificar-se, quanto às pessoas, em consequência da substituição de alguma das partes, por sucessão ou por actos entre vivos, na relação substantiva do litígio, como prevê a alínea a) do artigo 270º do C.P.Civil.
2-Duvidas não subsistem que esta substituição ocorreu mediante a escritura de dação em cumprimento, pelo qual se operou a indicada cessão de créditos, passando a ser parte na relação substantiva do litígio o cessionário.
3-Preceitua o nº 1 do artigo 271º do C.P.C. que no caso de transmissão, por acto entre vivos, de coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substitui-lo; e o nº 2 deste artigo dispõe que na falta de acordo só deve recusar-se a substituição quando se entenda que a transmissão foi efectuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária.
4-Como se disse o pedido da A. e o pedido reconvencional da Ré assentam em causa de pedir distintas, são autónomos e não estão dependentes um do outro, sendo que nos autos co-existem duas acções distintas e cindíveis, uma instaurada pela A. e outra pela R, onde deduziu pedido reconvencional.
5-A A. requereu e cingiu a habilitação da cessionária na acção que promoveu.
6-Não obsta `a requerida habilitação a existência de reconvenção promovida pela R pois em nada contende, material ou processualmente, com a pretensão deduzida pela Ré.
7-A rejeição da habilitação requerida com o fundamento de haver reconvenção carece de suporte e previsão legal.
8-Sendo que a prova produzida no julgamento do incidente, mostra-se bastante para que a habilitação da cessionária seja decretada.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objecto do Recurso:
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objecto do recurso nos termos dos artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1 e 2 do CPC (redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24.08, por ser a aplicável aos presente processo), sem prejuízo do disposto no artigo 660.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, importa decidir se a dedução de reconvenção impede a habilitação da cessionária para com ela prosseguir a lide em substituição da cedente, autora na mesma.

B- De Facto
Os elementos factuais relevantes para conhecimento do recurso constam do antecedente relatório.

III- DO CONHECIMENTO RECURSO
Está em discussão se a dedução de pedido reconvencional impede a habilitação da cessionária, substituindo, no lado activo da demanda, a cedente.
No caso, e da leitura dos articulados apresentados na acção principal, resulta que a requerente B…, Ld.ª demandou a C… invocando incumprimento, por parte da ré, do contrato de empreitada celebrado pelas partes, mediante o qual a ora requerente procedeu à construção da Igreja referida, não tendo a ré pago parte dos trabalhos realizados no montante peticionado.
Por sua vez, a ré deduziu pedido reconvencional, invocando incumprimento contratual da autora traduzido, para além do mais, na realização da obra com defeitos, atrasos na sua conclusão, pagamentos indevidos, pedindo a condenação da ré a reconhecer os atrasos, os defeitos, a corrigi-los e a devolver-lhe as quantias pagas indevidamente.
Resulta também do alegado pela recorrente e recorrida que a reconvenção veio a ser admitida.
Entretanto, durante a pendência da acção, a autora celebrou com D…, Ld.ª o contrato junto a fls. 7 a 11, que intitularam de “Dação em função do cumprimento”, mediante o qual, e conforme ali se pode ler, a ora requerente declara que cede à outorgante D…, Ld.ª, sua credora, e para que esta obtenha mais facilmente a satisfação do seu crédito ou de parte do seu crédito, o crédito que detém sobre a C…, para que após o pagamento por parte desta possa a sociedade credora ficar reembolsada do correspondente valor do seu crédito, extinguindo-se a dívida na medida em que for satisfeito.
Invocando este acto negocial, a autora requereu a habilitação da sociedade D…, Ld.ª, para que assuma, em substituição, a posição que a mesma tem na acção principal.
Importa, assim, em primeiro lugar qualificar o negócio jurídico celebrado e que se encontra na base do pedido de habilitação.
Conforme decorre do contratualizado a requerente transmitiu a terceiro um crédito sobre a ré, cuja existência se encontra controvertida judicialmente, ou seja, trata-se de um crédito litigioso, sendo certo que, em face do artigo 399.º do CC, a cessão tanto opera em relação a créditos já existentes como em relação a créditos não existentes ou futuros, desde que a constituição ou aquisição do crédito se venha a confirmar.[1]
Ora, nos artigos 577.º a 588.º do Código Civil (CC), que regulam a transmissão de créditos e dívidas, está prevista a cessão enquanto negócio translativo da posição activa ou passiva do sujeito da relação controvertida consubstanciada em vários tipos de negócios.
Nesse sentido, dispõe o artigo 577.º, n.º 1 que “O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contando que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligada à pessoa do credor.”
Por sua vez, o artigo 581.º, alínea c) do CC, permite excepcionalmente a cessão de créditos litigiosos[2] “Quando a cessão se fizer ao credor em cumprimento do que lhe é devido.”
Assim, em face destas normas e à luz do convencionado pelas partes, o acordo celebrado, juridicamente configura-se como uma transmissão do alegado direito de crédito da autora sobre a ré, designada na lei como cessão de créditos, através da qual a credora (cedente) transferiu para terceiro, a sociedade D…, Ld.ª (cessionária), independentemente do consentimento da devedora C… (devedora cedida ou debitor cessus), a titularidade de um direito de crédito, resultante da relação negocial estabelecida entre cedente e cedida consubstanciada no contrato de empreitada, subjacente à referida cessão (cfr. artigo 578.º, n.º 1 do CC).
Como a cessão visou facilitar a satisfação do crédito da cessionária sobre o cedente através da cobrança do crédito cedido, trata-se de uma situação enquadrável e admissível no artigo 840.º do CC, ou seja, o negócio veicula uma dação pro solvendo ou em função do cumprimento[3], aliás, como as partes a designaram, mediante o qual a cedente se exonera da sua obrigação à medida (e na medida) que a cessionária obtenha a cobrança do crédito cedido.
Através da cessão de créditos, na falta de convenção em contrário, conforme prescreve o artigo 582.º, n.º 1 do CC, transmite-se para o cessionário, a par do crédito, as garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente.[4]
Assim, por mero efeito da cessão de créditos opera-se uma mudança de credor, sem consentimento do devedor, que dá lugar a uma modificação subjectiva da relação obrigacional.
Porém, e conforme adverte ANTUNES VARELA, apesar do direito de crédito transmitido pelo cedente ter como fonte, na maior parte da vezes um contrato, “ao efectuar a cessão, o cedente não transmite toda a posição jurídica que adquiriu no contrato…”[5], não transmitindo para o adquirente/cessionário, por exemplo, o direito de resolver o contrato por falta de cumprimento do devedor ou por alteração anormal das circunstâncias que integram a base negocial, bem como o direito de anulação do contrato, de confirmação, o direito de denúncia nos contratos de prestação duradoura, etc., ou seja, para além das situações em que não há transmissão por as garantias e os acessórios do direito serem inseparáveis da pessoa do devedor, conforme prescreve a parte final do n.º 1 do artigo 582.º do CC, há ainda que levar em conta que a cessão de créditos não corresponde a uma cessão da posição contratual, figura jurídica que exige o consentimento da outra parte contratante e através da qual é transmitido para terceiro o conjunto de direitos e obrigações correspondentes a um determinado sujeito contratual (artigo 424.º do CC). E compreende-se que assim seja por a cessão de créditos não produzir “a substituição da obrigação antiga por uma nova, mas uma simples modificação subjectiva que consiste na transferência daquela pelo lado activo.”[6]
No caso em apreço, a cessão de créditos apenas visou transmitir o crédito que a autora se arroga ter contra a ré, incluindo acessórios e garantias se as houver, e não a posição contratual global da cedente no contrato de empreitada celebrado com a cedida.
Pelo que, neste aspecto, é pertinente a referência que a apelante faz quanto ao erro em que incorre a sentença recorrida ao mencionar que ocorreu uma transmissão da posição contratual.
Porém, no demais não se afigura que a apelante tenha razão.
Vejamos porquê.
Tendo ocorrido uma cessão de créditos, quer a cedente quer a cessionário, poderiam, facultativamente, deduzir incidente de habilitação por recurso aos artigos 271.º e 376.º do CPC.
Rege no nosso ordenamento jurídico o princípio da estabilidade da instância, conforme prescreve o artigo 268.º do CPC. Porém, este princípio tem excepções e uma delas é a possibilidade da modificação subjectiva da instância em virtude de transmissão por acto inter vivos da coisa ou direito litigioso, conforme prescreve o artigo 271.º do CPC. O meio processual é o incidente de habilitação, o qual visa, assim, certificar que determinada pessoa sucedeu a outra na posição jurídica que esta ocupava na lide, prescrevendo o n.º 1 deste preceito que “No caso de transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo.”
Estamos, pois, perante uma habilitação-incidente, de carácter facultativo, já que visa colocar o adquirente/cessionário[7] do direito litigioso na posição do transmitente/cedente, se assim for requerido por qualquer deles – cfr. n.º 7 do artigo 376.º do CPC. Enquanto tal não suceder, o transmitente/cedente continua a ter legitimidade para a causa e se nunca ocorrer a habilitação do adquirente/cessionário, a sentença produz caso julgado em relação ao mesmo, excepto nos casos mencionados na parte final do n.º 3 do artigo 271.º do CPC (acção sujeita a registo e se o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da acção).
Se a habilitação for deferida, o adquirente/cessionário substitui o transmitente/cedente na posição que o mesmo tinha no processo. Convém precisar que “…este incidente visa a modificação dos sujeitos na lide, pelo que os seus efeitos são de natureza meramente processual, ou seja, não comporta a discussão e decisão sobre o direito que constituiu o próprio objecto da causa.”[8]
Por outro lado, resulta da conjugação dos artigos 271.º, n.º 2 e 376.º, n.º 2 do CPC, que a parte contrária pode opor-se à substituição. E pode fazê-lo com dois fundamentos:
- por entender que o acordo subjacente à transmissão/cessão não é válida;
- por entender que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo.
Perante a oposição da parte contrária, e após a produção das provas apresentadas (mormente o título de aquisição ou cessão, quando a habilitação é feita através de incidente de habilitação, como ocorre no caso presente – cfr. artigo 376.º, n.º 2 e 3, alínea a) do CPC), o juiz aprecia, sempre, a validade do acto, quer em função do objecto, quer em relação à qualidade dos intervenientes, e apreciará, igualmente, se o mesmo visou dificultar a posição da parte contestante, se também tiver sido esse fundamento invocado e, finalmente, pronunciar-se-á sobre a admissão ou não da habilitação.
Resulta da análise do teor da escritura pública junta aos autos que as partes ali manifestaram a vontade de cede e de adquirir um determinado direito de crédito.
Trata-se do direito de crédito em discussão na acção principal. A ora requerente declarou que detém tal direito, embora esteja em cobrança na referida acção. A ré vem dizer que se trata de uma declaração falsa por o direito estar em discussão, ser litigioso. Ainda que lhe assista razão na medida em que o direito em causa ainda não se encontra declarado judicialmente, a questão é irrelevante para a admissão ou não do incidente, já que o que releva é se a transmissão operada através daquele acto negocial é válida atenta o objecto e a qualidade dos intervenientes.
A apelada nada invoca donde se possa concluir pela invalidade do acto. Da leitura do seu conteúdo resulta de forma expressa que a cedente tem poderes para ceder o direito e o cessionário para o adquirir. Quanto ao objecto – direito de crédito – também nenhum obstáculo é mencionado ou percepcionado que determine a nulidade da transmissão
Assim sendo, dada a validade do acto, conclui-se que nada obsta à habilitação da cessionária.
Reitera-se que a habilitação não resolve, já que não é essa a sua finalidade, se o direito transmitido existe ou não, ou seja, se a cedente tinha ou não o direito reclamado na causa e transmitido à cessionária. Essa questão mantém-se em discussão, razão pela qual o direito transmitido tem carácter litigioso.
Quanto ao segundo fundamento previsto na lei que permite a oposição da parte contrária – a transmissão ter sido feita para tornar mais difícil a posição da parte contrária no processo -, também não vislumbramos na contestação da ora apelada alegação nesse sentido. O que a oponente contestou foi que fosse admissível a habilitação por ter sido deduzida uma reconvenção.
Também foi por essa razão que a sentença recorrida não admitiu a habilitação e, salvo o devido respeito, bem.
A ré na causa principal deduziu contestação, negando o seu incumprimento contratual e, contra-atacou, reconvindo, alegando que a autora incumpriu o contrato de empreitada, não só porque o cumpriu defeituosamente, mas também porque o fez com atraso, retendo quantias indevidamente pagas, pedindo, para além do mais, a condenação da autora no reconhecimento da existência dos defeitos que alega, na correcção dos mesmos, na devolução dos valores indevidamente cobrados, no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos causados.
A reconvenção foi admitida.
Considerando a causa de pedir em que assenta a acção e a alegação com base na qual é deduzida a reconvenção, o pedido reconvencional emerge de facto jurídico que serve de fundamento à acção (artigo 274.º, n.º 1 e 2, alínea a) do CPC). O factor de conexão, neste caso, entre o objecto da acção e da reconvenção, que a torna admissível, é o mesmo contrato (contrato de empreitada), sendo que os pedidos na acção e na reconvenção procedem dos mesmos factos, ou parcialmente dos mesmos factos, ou seja, do incumprimento do contrato, ainda que visto na diferente perspectiva das partes. Assim, a reconvenção inequivocamente procede do facto jurídico que serve de fundamento à acção. Em face do n.º 6 do artigo 274.º do CPC, a reconvenção sempre será apreciada, ainda que improceda a acção, já que não se vislumbra incompatibilidade ou dependência do segundo em relação ao primeiro, que a tal obste.[9]
A eventual responsabilidade da autora pelo incumprimento contratual alegado pela ré, ou seja, a responsabilidade obrigacional decorrente desse incumprimento, não foi objecto da transmissão, já que a autora apenas fez uma cessão de créditos e não uma cessão da sua posição contratual.
Como se referiu, a cedente apenas cedeu o eventual direito de crédito sobre a ré e não a sua responsabilidade obrigacional resultante do incumprimento do contrato perante a ré.
Por conseguinte, se fosse admitida a habilitação, a ré ficaria impedida de discutir na lide o direito que se arroga sobre a autora, já que a substituição da cedente apenas visa colocar na lide a cessionária na posição que a cedente detinha relativamente ao pedido subjacente ao direito litigioso objecto da cessão, ou seja, o invocado na acção.
Quanto ao pedido formulado na reconvenção, a substituição processual operada por via da habilitação da cessionária, ficaria impossibilitada, porque a cessionária não assume na lide a posição que integralmente a autora detinha na relação substantiva litigada, ou seja, nunca poderá responder perante a ré pelo incumprimento contratual da cedente.
Sucede que a própria requerente veio requerer a habilitação da cessionária, sublinhando que o fazia com exclusão óbvia da reconvenção. Esta alegação não prima pela clareza, embora se subentenda que a habilitada não a substituiria na lide em relação ao pedido reconvencional. Mas sendo assim, não se entende se a requerente defende a sua continuação na lide apenas e tão só para efeitos de apurar a sua responsabilidade relativamente ao pedido reconvencional.
O que se nos afigura claro é que esta última possibilidade – manutenção na lide da autora para efeito de apreciação do pedido reconvencional e sua substituição pela cessionária quanto à apreciação do pedido formulado pela mesma na acção -, não tem cabimento legal, já que o elemento caracterizador do incidente de habilitação do adquirente/cessionário é precisamente a substituição processual de um dos sujeitos e não a substituição para um segmento da causa e a sua manutenção para outro.
Também nos parece evidente que a apreciação da reconvenção não pode ficar prejudicada por ter havido uma cessão de créditos pelo lado activo durante a pendência da causa na qual já tinha sido deduzido e admitido o pedido reconvencional.[10]
E sempre se dirá que se a habilitação do adquirente/cessionário não é admitida quando a cessão tenha sido feita com vista a tornar mais difícil a posição do cedido no processo, por maioria de razão também não poderá ser admitida quando implica a impossibilidade de apreciação de um pedido reconvencional deduzido pelo cedido contra o cedente.
Assim sendo, o incidente de habilitação da cessionária, in casu, não pode ser atendido, já que o modo como a lei desenha este incidente permite apenas duas opções: ou a cedente continua na lide, já que a habilitação decorrente da transmissão entre vivos da coisa ou direito litigiosa, é facultativa, ou a cessionário intervém na lide, através da habilitação e, nesse caso, substituiu a cedente adquirindo a posição processual in totum que a mesmo tinha no pleito. Não há a possibilidade de ambas permanecerem na lide, nem a possibilidade de se cindir o objecto da mesma, excluindo a apreciação do pedido reconvencional, por força da substituição do sujeito processual cedente pelo sujeito processual cessionário, quando este não adquiriu, na totalidade, por via do negócio transmissivo, a posição contratual do cedente.
Ou seja, em resumo, nomeadamente para efeitos do n.º 7 do artigo 713.º do CPC, tendo a autora apenas cedido a terceiro, através de uma dação pro solvendo, o direito de crédito que invoca ter sobre a ré, a cessionária não pode ser habilitada por daí decorrer a impossibilidade de apreciação da reconvenção que já tinha sido deduzida contra a cedente em momento anterior à celebração da cessão de créditos; só poderia proceder o incidente de habilitação da cessionária se tivesse havido transmissão da posição contratual da cedente.
Pelo exposto, ainda que por razões não totalmente coincidentes, confirma-se a sentença recorrida, improcedendo a apelação.
Dado o decaimento, a apelante suportará as custas devidas pela apelação (artigo 446.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas apelação pela apelante.

Porto, 30 de Janeiro de 2012
Maria Adelaide de Jesus Domingos
Ana Paula Pereira Amorim
José Alfredo de Vasconcelos Soares de Oliveira
_____________
[1] Conforme adverte ANTUNES VARELA, Manual das Obrigações, Vol. II, 3.ª ed., Almedina, 1985, p. 281.
[2] Definidos no n.º 3 do artigo 579.º do CC como os que tiverem sido contestados em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado.
[3] Cfr. ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Almedina, 1998, p. 981 e MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Vol. II, 6.ª ed., Almedina 2008, p. 189-190.
[4] A regra é a da cedibilidade do direito. Porém, há excepções, por exemplo, o direito a alimentos, o apanágio do cônjuge sobrevivo, créditos emergentes do contrato de serviço doméstico e aqueles quem se tomou em consideração as qualidades ou condições do credor, como a prestação de serviço dos médicos e advogados, conforme refere MENEZES LEITÃO, ob. cit., p. 23. Idem ANTUNES VARELA, ob. cit., p. 266-272.
[5] ANTUNES VARELA, ob. cit, p. 288-289. Cfr. Ac. RL, de 12.05.2011, proc. 445/06.2TVLSB-B.L1-8, www.dgsi.pt.
[6] ALMEIDA COSTA, ob. cit., p. 721.
[7] De referir que o artigo 376.º do CPC se reporta ao adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, enquanto o artigo 271.º se refere apenas a adquirente. Conforme faz notar LOPES- CARDOSO, Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, Livraria Petrony, 1992, p. 357, “o nome “adquirente” designa o terceiro para quem foi transmitida a coisa demandada; o nome de “cessionário” designa o terceiro para quem foi transferido o direito do autor.”
[8] SALVADOR DA COSTA, Os Incidentes da Instância, 5.ª ed., Almedina, 2008, p. 278.
[9] Cfr. LEBRE DE FREITAS et al., Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, Coimbra Editora, 1999, p. 491.
[10] A contestação-reconvenção data de 19.05.2009 e a cessão de créditos de 03.09.2010.