Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6909/16.2T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FEITAS
Descritores: PROCESSO DISCIPLINAR
MEIOS DE PROVA
SISTEMA DE VIDEOVIGILÂNCIA
Nº do Documento: RP201706266909/16.2T8PRT.P1
Data do Acordão: 06/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO (SOCIAL),(LIVRO DE REGISTOS N.º 259,FLS.171-181)
Área Temática: .
Sumário: I - Do quadro normativo que regula a reserva da vida privada e, em particular, os meios de vigilância à distância, ressalta que, verificados os pressupostos legais, mormente a autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados, a lei não obsta à instalação dos meios de vigilância à distância, incluindo a captação de imagem, nos locais de trabalho.
II - Contudo, dele decorre igualmente que essa vigilância apenas poderá ser utilizada quando vise a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem, não podendo nunca ter a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.
III - É de aceitar as imagens captadas por sistema de videovigilância como meio de prova em processo disciplinar e na subsequente acção judicial em que se discuta a aplicação de sanção disciplinar, mormente o despedimento, desde que sejam observados os pressupostos que decorrem da legislação sobre a protecção de dados e concomitantemente se conclua que a finalidade da sua colocação não foi exclusivamente a de controlar o desempenho profissional do trabalhador. Num quadro circunstancial assim apurado, o trabalhador não merece – nem a lei lhe confere - maior protecção do que aquela que é conferida aos demais cidadãos e, logo, o meio de prova é lícito e admissível.
IV - Concluindo-se que foram observados os pressupostos que decorrem da legislação sobre a protecção de dados no que respeita à autorização do sistema de videovigilância, que nem a sua colocação nem as imagens captadas visam exclusivamente controlar o desempenho profissional dos trabalhadores e que a autora tinha conhecimento da existência do sistema de videovigilância e, logo, que estariam a ser captadas imagens quando, na versão do R., “ inesperadamente e na presença de uma cliente, tenha começado a agredir a sua colega de trabalho, E…, com murros, bofetadas e puxões de cabelo”, ou, na sua versão, foi ela a agredida, inicialmente pela aludida E… “com bofetadas na cara e pontapés nas pernas”, que depois foi secundada pela irmã que “decid(iu) participar nas agressões à aqui A. e lança-se nas suas costas, puxando-lhe o cabelo com extrema violência”, não se verifica qualquer violação dos princípios enunciados no art.º 20.º n.ºs 1, 2 e 3, bem como do n.º1, do art.º 21.º., do CT e, logo, crê-se que a prova obtida pelo sistema de videovigilância é não só lícita e válida para sustentar o processo disciplinar quanto àquela imputação, como também deveria ter sido admitida para ser visionada na audiência de julgamento, confrontando-se as testemunhas e a própria autora com as mesmas, relevando, no conjunto da prova produzida, para ser apreciada livremente segundo a prudente convicção do Senhor Juiz (art.º 607.º n.º5, do CPC).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 6909/16.2T8PRT.P1
SECÇÃO SOCIAL

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I. RELATÓRIO
I.1 No Tribunal da Comarca do Porto – Inst. Central – 1.ª Sec. Trabalho, B… deu início à presente acção especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento, através da apresentação do requerimento em formulário próprio a que se referem os artigos 98.º C e 98.º D do Código de Processo do Trabalho, demandando C…, com o propósito de impugnar o despedimento que por esta lhe foi comunicado por escrito, na sequência de procedimento disciplinar.
Pede que que se condene o Réu a ver declarada e reconhecida a ilicitude do despedimento pelo mesmo promovido, bem como a pagar-lhe o montante global de €5.518,91, acrescido de juros de mora, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto, em suma, que foi despedida pelo R. sem justa causa e que tem sobre aquele créditos salariais.
Foi designado dia para a audiência de partes a que alude o art.º 98º-F, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, a qual veio a ser realizada, mas sem que se tenha logrado alcançar a resolução do litígio por acordo.
O Réu, notificado para o efeito, apresentou articulado motivador do despedimento, alegando os factos e fundamentos que motivaram a decisão de despedimento, em síntese, sustentando que ocorreu justa causa para o despedimento da A., porquanto esta, para além de ter agredido fisicamente, no seu local de trabalho, uma sua colega, ausentava-se por longos períodos sem autorização do empregador, utilizava a internet durante o horário de trabalho, para fins pessoais, e permitiu a permanência de estranhos à loja do lado de dentro do balcão.
Juntou o respectivo processo disciplinar.
Notificada para o efeito, a trabalhadora veio contestar. Em defesa por excepção arguiu a ilegalidade da prova e consequente invalidade do processo disciplinar, alegando que a decisão de despedimento assenta, sobretudo, nas imagens captadas por meio de câmaras de vigilância, não tendo o R. feito prova que estava devidamente licenciada pela C.N.P.D para captar tais imagens. Mas ainda que esteja licenciado, essa prova não tem valor probatório para fins disciplinares, já que a trabalhadora não praticou qualquer comportamento passível de responsabilidade, nomeadamente criminal, sendo o despedimento ilícito.
Apresentou, ainda, defesa por impugnação, para além do mais contrapondo a sua versão dos factos, para concluir que não foi ela que agrediu quem quer que fosse, antes tendo sido alvo de injúrias, ameaças e agressões bárbaras.
Deduziu reconvenção, na qual pede a condenação da entidade patronal no pagamento de diferenças retributivas, alegando que ao contrário do alegado por aquela auferia a retribuição mensal líquida de €630,00 e não de €530,00, bem assim em indemnização pelo despedimento ilícito, tudo perfazendo €5.518,91. Pede, ainda, as retribuições que deixou de auferir desde o seu despedimento até ao trânsito em julgado da decisão.
Respondeu a entidade patronal, para além do mais fazendo a junção da autorização da Comissão de Protecção de Dados que lhe autoriza a captação de imagens no interior do estabelecimento comercial e pugnando pela legalidade das imagens recolhidas como meio de prova no processo disciplinar.
Foi designado dia designo para a realização de audiência preliminar, (destinada aos fins constantes do art.º 591.º, n.º 1, alíneas a), c), d), f) e g) do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do art.º 62.º, n.º 2 do Código de Processo do Trabalho.
Nesse acto, para além do mais, foi fixado o valor da acção em €5.569,91.
I.2 Procedeu-se ao julgamento e, subsequentemente, foi proferida sentença, onde conheceu “a título prévio (..) da alegada ilegalidade da prova obtida através da recolha de imagens captadas por uma câmara de vigilância instalada no interior da loja explorada pelo R. e na qual a A. trabalhava”, questão que foi decidida nos termos seguintes:
-“(..)
De todo o exposto se conclui que o tribunal considera legalmente inadmissíveis, por constituírem provas nulas, para efeitos disciplinares, os registos de imagens juntos aos autos, o que se declara.
(..)
Concordando nós inteiramente com os argumentos expendidos no trecho acabado de transcrever, outra solução não resta que não seja a de considerar válido o procedimento disciplinar em apreço, o que também se declara.
(..)».
A sentença prossegue com a fixação da matéria de facto provada, fundamentação dessa decisão, para depois aplicar o direito aos factos, concluindo co o dispositivo seguinte:
-“Pelo exposto, julgo a presente ação de impugnação do despedimento totalmente procedente, por provada, e o pedido reconvencional igualmente procedente, pelo que declaro a ilicitude do despedimento da A. B…, e, em consequência:
i) Condeno o R., C…, no pagamento à A. da quantia de €4.410 (quatro mil quatrocentos e dez euros) a título de indemnização pelo despedimento ilícito;
ii) Condeno o R. no pagamento à A. das retribuições que esta deixou de auferir, desde 15 de março de 2016 até ao trânsito em julgado da presente decisão, deduzindo-se o montante do subsídio de desemprego que a A. entretanto tenha recebido;
iii) Condeno o R. a pagar à A., a título de diferenças salariais, retribuição do mês de março de 2016, férias e subsídio de férias vencidas em 1 de janeiro de 2016, e proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal relativos ao trabalho prestado no ano de 2015, a quantia global de €1.005,90 (mil e cinco euros e noventa cêntimos);
iv) Àquelas quantias deverão acrescer juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação, até efetivo e integral pagamento;
v) Absolvo a A. do pedido de condenação como litigante de má fé contra a mesma formulado.
Custas pela R. e pelo A. na proporção de quinze por cento para a primeira e de oitenta e cinco por cento para o segundo.
Fixo à causa o valor de €5.415,90 (art.º 98.º-P n.º 2 do C. P. do Trabalho).
(..)”.
I.3 Inconformado com esta sentença, o Réu empregador apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito adequados. As alegações foram sintetizadas nas conclusões seguintes:
1- O R. possui autorização da CNPD para ter instalado equipamento de videovigilância no estabelecimento que possui e em causa nos autos destinado a protecção e segurança de pessoas e bens.
2- As imagens da actuação da A. foram captadas em local aberto e acessível ao público, e no âmbito da autorização obtida.
3- Não está em causa, na questão dos autos a protecção de um direito de personalidade da A. que tivesse que ser de alguma forma comprimido.
4- Estando em causa uma das finalidades legalmente previstas no nº 2 desse artigo, concretamente a protecção e segurança de pessoas e bens, as actuações ilícitas do trabalhador lesivas de pessoas e bens podem ser licitamente verificadas, tanto quanto o podem ser idênticas condutas de terceiros, como uma consequência fortuita ou incidental da utilização dos meios de vigilância à distância, podendo os dados obtidos servir de meio de prova em procedimento disciplinar e no controlo jurisdicional da licitude da decisão disciplinar.
5- É incompreensível que a A., que alega ter sido agredida de forma inopinada pela sua colega E..., se oponha ao uso de um meio que, a ser verdade tal alegação, demonstraria de forma evidente a sua razão.
6- Estando em causa um comportamento criminoso, sempre constituiria abuso de direito que a A., pelo facto de ser trabalhadora, pudesse opor-se, sustentada na protecção de direitos de personalidade que são os que se pretendem defender nos artigos 20º e 21º do CT, ao uso de tal meio de prova.
7- Deverá assim ser revogada a decisão de fls. que julgou nula a prova obtida por meio de imagens e videovigilância autorizada pelo CNPD, e substituída por outra que autorize o seu visionamento e utilização como meio probatório.
8- Consequentemente deverá anular-se o julgamento por forma a permitir o exercício pleno do contraditório, e confronto com a prova testemunhal produzida.
Da decisão de facto
9- Deverá ser alterada a decisão de facto julgando-se como provado que:
- Nas circunstâncias de tempo e de lugar descritas em f), ocorreu uma discussão, em tom exaltado, entre D… e E…;
- as mesmas circunstâncias de tempo e de lugar a A. nada fez para acalmar as D…, a sua empregada e a funcionária da R. E….
10- O que é imposto pelas declarações da parte da A. que o tribunal considerou confessadas e confirmado pela testemunha F… no seu depoimento gravado minutos 6m24s a 7m49s e auto de inquirição no processo disciplinar com que foi confrontada em julgamento - depoimento de minuto 11m21s a 14m.
11- A fundamentação para o Tribunal dar como não provada que Inesperadamente a A. começou a agredir a sua colega de trabalho E…, com arranhões na cara, murros bofetadas e puxões de cabelo não possui qualquer suporte fáctico.
12- O Tribunal considera que estão em confronto duas versões da mesma factualidade o que não corresponde á realidade pois a testemunha G…, referida como apresentando uma das versões dos factos, expressamente declara no seu depoimento que não assistiu ao início dos factos mas apenas que terá chegado mais tarde.
13- As contradições entre o depoimento desta testemunha G… e as restantes testemunhas, nomeadamente a testemunha F… quanto à sua intervenção nos factos e nenhuma das testemunhas a referirem como tendo estado no local naquele dia e hora, abala totalmente a sua credibilidade.
14- A audição do depoimento das testemunhas E… depoimento do minuto 13m44s a 15m41s; da testemunha H… do minuto 6m50s a 7m56s; da testemunha G… do minuto 4m16s a 6m17s, impõem que seja dado como facto provado que Inesperadamente a A. começou a agredir a sua colega de trabalho E…, com arranhões na cara, murros bofetadas e puxões de cabelo.
15- Tal alteração poderá ser reforçada com a visualização das imagens obtidas por videovigilância como supra se requer.
16- A audição das mesmos depoimentos referidos em 14, impões que seja alterada a decisão que considerou como não provado que “13) A A. tenha agido livre e conscientemente, com perfeito conhecimento que estava a cometer infrações disciplinares suscetíveis de pôr em causa a relação de confiança da entidade patronal, lesando interesses patrimoniais da empresa.”
Julgando como facto provado que:
A A. agiu livre e conscientemente, com perfeito conhecimento que estava a cometer infrações disciplinares suscetíveis de pôr em causa a relação de confiança da entidade patronal, lesando interesses patrimoniais da empresa.
17- A audição do depoimento da testemunha F… e o auto do seu depoimento prestado no processo disciplinar, além de se tratar de facto que é de conhecimento geral, impõem que seja alterada a decisão de não provado e assim julgado como facto provado que “Os comportamentos da A. prejudicaram a imagem do estabelecimento comercial, bem como a sua produtividade, repercutindo-se negativamente no regular funcionamento do mesmo”.
18- O testemunho de I… que suporta a decisão de julgar como provado que:
“m) Ao tempo do despedimento a A. auferia o salário base mensal de €530 ilíquidos, acrescido de €100 líquidos por mês.”
Porque parte interessada no desfecho do processo por ser o companheiro da A, tendo contas em comum não pode ser valorado como totalmente independente.
19- Ao mesmo tempo que sobre a mesma questão depôs a testemunha E… que auferia salário igual à da A. e é peremptória a afirmar que apenas recebia €530 ilíquidos por mês de salário base.
20- A audição do depoimento da testemunha I… do minuto 5m26s a 7m03s e a audição do depoimento da testemunha E… do minuto 34m27s aos 35m00s impõe que seja revogada a identificada decisão de facto e substituída por outra que considere com apenas como provado que “Ao tempo do despedimento a A. auferia o salário base mensal de €530 ilíquidos”.
Da decisão de direito
21- Verificada a alteração do julgamento de facto nos termos propugnados, estão verificados os pressupostos de despedimento com justa causa da A. B…, que deverá ser julgado lícito com as legais consequências.
22- Da mesma forma que, deverá revogada a decisão do pedido reconvencional quanto ao pedido de diferenças salariais, substituindo-a por decisão que absolva o R. e ora recorrente do pedido.
23- A revogação da decisão e sentença de fls. e sua substituição que julgue procedente o presente recurso quanto à admissibilidade da prova obtida por videovigilância, altere a decisão de facto e julgue licito o despedimento, e improcedente o pedido de pagamento de diferenças salariais.
I.4 A Recorrida Autora apresentou contra-alegações, mas sem que se mostrem finalizadas com conclusões.
No essencial, acompanha sentença recorrida, pugnando pela improcedência do recurso.
I.5 O Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer nos termos do art.º 87.º3, do CPT, pronunciando-se no sentido do recurso merecer parcial provimento, devendo, por ora, anular-se a decisão recorrida e determinar-se a repetição do julgamento.
Procurando dar nota dos fundamentos que sustentaram essa posição, afirma-se no parecer o seguinte:
- (..) em concreto a prova resultante das imagens colhidas na vídeo vigilância até pode ser relevante uma vez que a restante não permitiu a convicção de quem disse que era desnecessária por haver outros meios de prova.
Aquilo que a sentença recorrida acabou por fazer foi um afastamento não casuístico, não concreto, mas abstracto do meio de prova em causa, utilizando um critério que serve para este como para qualquer outro processo e segundo o qual sempre que houver outros meios de prova as imagens colhidas na videovigilância não são admissíveis.
E esta aferição do meio de prova em abstracto estava vedada à sentença recorrida.
(..)
Assim, pelo que fica exposto, e a nosso ver, importa distinguir duas realidades.
Por um lado, é certo que os dados pessoais colhidos pelas câmaras do sistema de videovigilância e referentes à autora não podia ser utilizados para prova das situações de a) ausência não autorizada do local de trabalho; b) de consulta de internet para fins pessoais e de c) exibição de papéis a terceiros que nada tinham a ver com o exercício da actividade, por não relevarem essas situações no âmbito do interesse tutelado pela finalidade que sustentava a sua recolha; afinal como bem decidido pela decisão recorrida.
Mas, por outro lado, e neste caso ao contrário do decidido na sentença, relativamente à situação de agressão temos como seguro que tais imagens, corporizadas nas reproduções juntas aos autos, recolhidas que foram de forma lícita e em obediência a imperativos legais, podem ser utilizadas pelo tribunal, que as valorará livremente, como meios de prova, na presente acção de impugnação judicial de despedimento.
(..)».
I.6 Cumpridos os vistos legais, remeteu-se o projecto de acórdão aos excelentíssimos adjuntos e determinou-se a inscrição para julgamento em conferência.
I.8 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] a questão suscitada para apreciação consiste em saber se o Tribunal a quo errou o julgamento quanto ao seguinte:
i) Ao declarar “legalmente inadmissíveis, por constituírem provas nulas, para efeitos disciplinares, os registos de imagens juntos aos autos”.
ii) Na apreciação da prova produzida.
iii) No pressuposto de ver alterada a decisão sobre a matéria de facto, na aplicação do direito aos factos.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. MOTIVAÇÃO DE FACTO
O Tribunal a quo fixou o elenco factual seguinte:
a) A A. foi admitida ao serviço do R. em 1 de julho de 2009, para, sob ordem e direção dele, exercer a atividade profissional de operadora de loja;
b) Foi acordado que o local da prestação de trabalho seria no estabelecimento comercial propriedade do R., sito no Centro Comercial J…, …, …, Vila Nova de Gaia, podendo, no entanto, ser prestado noutro estabelecimento comercial propriedade do mesmo, nomeadamente na cidade do Porto;
c) O R. instaurou à A. processo disciplinar, sendo que a respetiva nota de culpa, com data de 2 de fevereiro de 2016, acompanhada da intenção de ser aplicada a sanção disciplinar de despedimento com justa causa, foi enviada àquela em 3 de fevereiro de 2016, mediante carta registada com aviso de receção, pela mesma recebida em 5 de fevereiro de 2016;
d) A A. apresentou resposta à nota de culpa, mediante e-mail enviado à instrutora em 19 de fevereiro de 2016 e, posteriormente, mediante carta registada enviada em 22 de fevereiro de 2016;
e) A decisão de despedimento, datada de 15 de março de 2016, foi enviada à A. nessa data, por meio de carta registada com aviso de receção, tendo sido pela mesma recebida em 21 de março de 2016;
f) No dia 8 de janeiro de 2016, pelas 15h20min, a entidade patronal da A., C…, foi contactada pela colega de trabalho daquela, de seu nome E…, para dirigir-se de imediato à loja a que se aludiu em b), referindo que a A. a tinha agredido;
g) Cerca das 15h, a proprietária de estabelecimento comercial vizinho da loja onde trabalhava a A., designado “K…”, de seu nome D…, acompanhada de uma sua funcionária, dirigiu-se ao estabelecimento comercial onde se encontrava a E… a exercer a sua atividade profissional e confrontou-a com uma conversa via Messenger do Facebook, documentada em suporte de papel, onde constavam várias acusações;
h) Após a entrada da dita D..., entrou no mesmo local a irmã de E…, H…;
i) Seguidamente, entrou na dita loja a A.;
j) Entretanto, entrou também na loja um vigilante do centro comercial;
k) Após a entrada de uma cliente na referenciada loja, D… saiu desse estabelecimento comercial, levando consigo a sua empregada, tendo-se também ausentado o referido vigilante;
l) Quando o R. chegou ao estabelecimento comercial em causa, a A. encontrava-se noutra loja;
m) Ao tempo do despedimento a A. auferia o salário base mensal de €530 ilíquidos, acrescido de €100 líquidos por mês;
n) O R. pagou à A., aquando da cessação do contrato de trabalho, os valores vertidos nos documentos de fls. 45 dos autos e, nos meses de dezembro de 2015, janeiro de 2016 e fevereiro de 2016, os feitos constar dos documentos de fls. 106 v.º e 107, que aqui todos se dão por integralmente reproduzidos.
Os factos não provados:
Nada mais foi dado como provado, com relevo para a decisão da causa, designadamente que:
1) Tenha, nas circunstâncias de tempo e de lugar descritas em f), ocorrido uma discussão, em tom exaltado, entre D… e E…;
2) Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar a A. nada tenha feito para acalmar as pessoas identificadas em 1);
3) A comparência do vigilante referida em j) tenha tido em vista apaziguar os ânimos que estavam exaltados;
4) Após o descrito em g), E... tenha começado a imputar à A. a responsabilidade pelo sucedido, pois teria sido esta quem encontrou a página do Facebook daquela aberta no computador da entidade patronal e teria espalhado pelas restantes lojas o teor da tal conversa que a A. haja tido com uma ex-funcionária do estabelecimento comercial “K…”, via Messenger Facebook;
5) A A., inesperadamente e na presença de uma cliente, tenha começado a agredir a sua colega de trabalho, E…, com murros, bofetadas e puxões de cabelo;
6) Uma cliente, perante o aludido em 5), tenha abandonado a loja, deixando de comprar os produtos que pretendia;
7) Haja ocorrido utilização não autorizada da internet da loja, para fins pessoais, por parte das funcionárias, designadamente da A.;
8) No dia 6 de janeiro de 2016 a A. tenha-se ausentado do seu local trabalho, para fins que não os autorizados, fechando para o efeito a porta da loja onde laborava, nos seguintes períodos de tempo: entre as 16,14 horas e as 16,31 horas, entre as 16,35 horas e as 17,10 horas, entre as 17,12 horas e as 17,55 horas, entre as 18,18 horas e as 18,30 horas e entre as 20,30 horas e as 21,30 horas;
9) As ausências do local de trabalho aludidas em 9) nunca tenham sido comunicadas ao R. e por este autorizadas;
10) No dia 6 de janeiro de 2016, entre as 18,48 horas e as 19,15 horas, dentro do horário e local de trabalho da A., esta e uma funcionária da loja “K…” tenham consultado a internet, usando o computador da loja do R., tendo a A. permitido que aquela funcionária permanecesse no local apenas a si destinado, ou seja, na parte detrás do balcão, e usasse o computador da entidade patronal;
11) No dia 7 de janeiro de 2016, cerca das 15,38 horas, após a sua entrada ao serviço, a A., posteriormente à saída da sua colega E…, haja mostrado vários papéis, que aparentemente nada têm a ver com o exercício da sua atividade profissional, a duas pessoas que aí se encontravam e que são frequentadoras do “Café L…”, vizinho da loja do R., conversando os três a olhar para tais documentos;
12) Os comportamentos da A. tenham prejudicado e prejudiquem a imagem do estabelecimento comercial, bem como a sua produtividade, repercutindo-se negativamente no regular funcionamento do mesmo;
13) A A. tenha agido livre e conscientemente, com perfeito conhecimento que estava a cometer infrações disciplinares suscetíveis de pôr em causa a relação de confiança da entidade patronal, lesando interesses patrimoniais da empresa.
II.2 MOTIVAÇÃO DE DIREITO
II.2.1 A primeira questão colocada para apreciação no recurso consiste em saber se o Tribunal a quo errou ao pronunciar-se sobre a legalidade da prova obtida através da recolha de imagens captadas por uma câmara de vigilância instalada no interior da loja explorada pelo R. e na qual a A. trabalhava, cujos registos foram juntos aos autos com o processo disciplinar, para decidir pela sua inadmissibilidade, “por constituírem provas nulas, para efeitos disciplinares”.
Na fundamentação dessa decisão, lê-se o seguinte:
- «(..)
Conforme é por demais consabido, o direito à imagem e à reserva da intimidade da vida privada encontram-se constitucionalmente consagrados nos art.ºs 26.º e 32.º n.º 8, para além de também encontrarem tutela no art.º 79.º do C. Civil.
Em matéria laboral, os art.ºs 14.º a 21.º do C. do Trabalho de 2003 introduziram pela primeira vez um conjunto de regras relativas a direitos de personalidade dos trabalhadores.
Tais normas de direito laboral passaram a estar consagradas nos art.ºs 14.º a 22.º do vigente Código do Trabalho.
Para a dilucidação da questão prévia que ora nos ocupa, há que, desde logo, trazer à colação o que dispõe o art.º 20.º do Código do Trabalho:
(..)
Por seu turno, o art.º 21.º n.º 1 do citado diploma legal refere que a utilização de meios de vigilância à distância no local de trabalho está sujeita a autorização da Comissão Nacional de Proteção de Dados.
Da conjugação dos preceitos legais ora transcritos ressalta que constituem pressupostos da válida utilização de meios de vigilância à distância, neles se incluindo a captação de imagens, os seguintes: autorização da Comissão Nacional de Proteção de Dados; que tal vigilância vise a proteção e segurança de pessoas e bens, ou a natureza da atividade desenvolvida a justifique; que a apontada vigilância não tenha por finalidade o controlo do desempenho profissional do trabalhador; que o trabalhador seja informado sobre a existência dos referidos meios de vigilância à distância.
No entanto, conforme bem se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de junho de 2015 (consultável em www.dgsi.pt), da conjugação daquelas normas “resulta claro que só uma avaliação casuística, caso a caso, de acordo com as circunstâncias concretas, permite avaliar se a utilização dos meios tecnológicos de vigilância à distância é lícita e pode ser utilizada como meio de prova de determinados factos”.
Na situação sub judice verifica-se, conforme resulta do teor do documento de fls. 105 e 106 dos autos, que o R. tinha, desde 9 de setembro de 2014, autorização da Comissão Nacional de Proteção de Dados para efetuar, no estabelecimento comercial em apreço, captação de imagens com a finalidade de proteção de pessoas e bens. Por outro lado, também não está em causa que a aqui trabalhadora soubesse que estava a ser alvo de recolha de imagens na parte de acesso público do seu local de trabalho, atentos os documentos de fls. 121 a 124, sendo certo que não foi produzida judicialmente qualquer prova que tenha desmentido a existência, à data, daqueles avisos escritos e que a A. os desconhecesse.
Por outro lado, consideramos que a natureza da atividade em apreço não justifica, por si só, a utilização de meios de vigilância à distância. De facto, consideramos que, com o pertinente segmento do n.º 2 do art.º 20.º do C. do Trabalho, o legislador pretendeu proteger atividades que, em si próprias, são perigosas, abrangem números consideráveis de pessoas ou movimentam valores monetários nada despiciendos, e, como tal, bem mais propensas a intromissões externas ilícitas. Pense-se, por exemplo, nos bancos, nos aeroportos, nas centrais nucleares, nas caixas de supermercados, nas estações de serviço.
Resta-nos, assim, a finalidade para a qual foi concedida a autorização pela Comissão Nacional de Proteção de Dados: a proteção de pessoas e bens. Não obstante, ainda que seja verdade que a necessidade deste tipo de proteção está normalmente presente nos estabelecimentos comerciais abertos ao público, ela não pode contender, para além do limite da adequação e da proporcionalidade, com o direito do trabalhador a que o seu desempenho profissional não seja, ainda que por via indireta, controlado à distância. Dito de outra forma, exige-se a obtenção de uma concordância prática entre o interesse do empregador perseguir – juridicamente, entenda-se - o trabalhador mal intencionado, e o interesse do trabalhador em não ver o seu desempenho profissional em permanente escrutínio.
Sendo as coisas assim, não vislumbramos em que medida é que o registo de imagens ocorrido possa fundamentar a imputação à A. de alegadas ausências não autorizadas do seu local de trabalho, tão-pouco a consulta da internet para fins pessoais (com a utilização, para o efeito, do computador da R.), nem a exibição a terceiros, no interior do estabelecimento em causa, de papéis que aparentemente nada tivessem a ver com o exercício da atividade profissional. Realmente, em nenhuma destas situações está em causa a proteção de pessoas e bens. Ou seja, a recolha de imagens de tais alegados episódios extravasa largamente o fim para o qual tal recolha foi autorizada pela entidade competente, bem como o campo das exceções previstas no art.º 20.º n.º 2 do C. do Trabalho. Não vemos que a compressão do direito fundamental da trabalhadora em não ver indiretamente controlado o seu desempenho profissional deva ceder face ao interesse da entidade empregadora em apurar da veracidade, ou não, dos ditos episódios. Sob pena de se permitir recorrer, sem limites, à captação e utilização de imagens, para efeitos disciplinares, no decurso da relação laboral, face a toda e qualquer conduta menos lícita perpetrada pelo trabalhador, por menor gravidade que assuma, pondo-se em causa a necessidade, a adequação e a proporcionalidade entre os interesses conflituantes.
E que dizer quanto à recolha de imagens que foram utilizadas em sede de processo disciplinar e que supostamente permitiram ao R. imputar à A. a prática de agressões físicas levadas a cabo por esta na pessoa de uma sua colega de trabalho? Aqui, à dissemelhança dos anteriores descritos episódios, está em causa uma atuação subsumível num tipo legal de crime contra as pessoas.
Resta então apurar se o meio utilizado (recolha de imagens) é necessário, adequado e proporcionado. A nossa resposta é negativa. De facto, entendemos que o recurso às imagens em questão não é necessário, no sentido de constituir a única forma de se apurar se a aqui A. terá agredido fisicamente uma sua colega de trabalho. É que sempre poderemos recorrer a uma outra prova, qual seja, a testemunhal, para tirarmos uma conclusão a esse nível. O que significa que o direito do empregador em ver esclarecido o que realmente sucedeu no apontado dia 8 de janeiro de 2016 pode ser satisfeito de uma outra forma sem ter necessariamente de colidir com o direito da trabalhadora em não ver controlado, através da captação de imagens e ainda que por via indirecta, o seu desempenho profissional.
Também se diga, em prol da inadmissibilidade do recurso a tais registos de imagens, que os mesmos, tendo sido visionados em sede de audiência final, constituem uma reprodução, efetuada por um outro aparelho que não a câmara de filmar cuja autorização foi consentida pela Comissão Nacional de Proteção de Dados. Daí que esteja em causa a genuinidade e a fidedignidade da dita reprodução.
De todo o exposto se conclui que o tribunal considera legalmente inadmissíveis, por constituírem provas nulas, para efeitos disciplinares, os registos de imagens juntos aos autos, o que se declara».
Insurge-se o recorrente, contrapondo, no essencial o seguinte:
i) Possui autorização da CNPD para ter instalado equipamento de videovigilância no estabelecimento, destinado a protecção e segurança de pessoas e bens;
ii) As imagens da actuação da A. foram captadas em local aberto e acessível ao público, e no âmbito da autorização obtida.
iii) Não está em causa, na questão dos autos a protecção de um direito de personalidade da A. que tivesse que ser de alguma forma comprimido.
iv) Estando em causa uma das finalidades legalmente previstas no nº 2 desse artigo, concretamente a protecção e segurança de pessoas e bens, as actuações ilícitas do trabalhador lesivas de pessoas e bens podem ser licitamente verificadas, tanto quanto o podem ser idênticas condutas de terceiros, como uma consequência fortuita ou incidental da utilização dos meios de vigilância à distância, podendo os dados obtidos servir de meio de prova em procedimento disciplinar e no controlo jurisdicional da licitude da decisão disciplinar.
Pretende a revogação da decisão para ser substituída por outra que autorize visionamento das imagens e a utilização como meio probatório, em confronto com a prova testemunhal produzida.
Não sendo as conclusões claras, mostra-se pertinente delimitar com rigor o alvo do desacordo do recorrente, quanto a esta decisão, para tanto recorrendo às alegações. Assim, conjugando umas e outras, constata-se, com segurança, que o Réu apenas se insurge contra a segunda parte da decisão, isto é, quando o Tribunal a quo passa a questionar se a “recolha de imagens que foram utilizadas em sede de processo disciplinar e que supostamente permitiram ao R. imputar à A. a prática de agressões físicas levadas a cabo por esta na pessoa de uma sua colega de trabalho” são admissíveis.
Com efeito, se atentarmos no objecto da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o Réu insurge-se contra a decisão recorrida por ter considerado não provado que “[1]Tenha, nas circunstâncias de tempo e de lugar descritas em f), ocorrido uma discussão, em tom exaltado, entre D… e E…”;[2)] “Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar a A. nada tenha feito para acalmar as pessoas identificadas em 1); [5] “A A., inesperadamente e na presença de uma cliente, tenha começado a agredir a sua colega de trabalho, E..., com murros, bofetadas e puxões de cabelo.”
Visto noutro ângulo, o recorrente não questiona a decisão recorrida na parte em que conclui “não vislumbramos em que medida é que o registo de imagens ocorrido possa fundamentar a imputação à A. de alegadas ausências não autorizadas do seu local de trabalho, tão-pouco a consulta da internet para fins pessoais (com a utilização, para o efeito, do computador da R.), nem a exibição a terceiros, no interior do estabelecimento em causa, de papéis que aparentemente nada tivessem a ver com o exercício da atividade profissional. Realmente, em nenhuma destas situações está em causa a proteção de pessoas e bens. Ou seja, a recolha de imagens de tais alegados episódios extravasa largamente o fim para o qual tal recolha foi autorizada pela entidade competente, bem como o campo das exceções previstas no art.º 20.º n.º 2 do C. do Trabalho. (..)”.
Significa isso, pois, que nessa parte a decisão transitou em julgado, estando fora do objecto do recurso.
II.2.1.1 Vejamos se assiste razão ao recorrente.
O direito à reserva da intimidade da vida privada, entre outros direitos pessoais, está previsto no artigo 26º da Constituição.
A caracterização deste direito, à falta de uma definição legal do conceito de "vida privada", foi feita no Acórdão n.º 355/97 [Acórdãos do Tribunal Constitucional, 37º vol., págs. 7 e segs.], seguindo o que esse tribunal afirmara já nos Acórdãos n.ºs 128/92 e 319/95 [Diários da República, II Série, de 24 de Junho de 1992 e de 2 de Novembro de 1995, respectivamente], nos seguintes termos: "o direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular".
O artigo 12.º da Declaração Universal do Direitos do Homem proclama que “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência […]. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.”.
A Constituição da República Portuguesa dita que a “todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação” (art. 26.º n.º 1) e que “[s]ão nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações” (art. 32.º n.º 8).
Também o artigo 126.º do Código de Processo Penal prevê que são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas (n.º 1), tendo por ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos [n.º 2, alínea a)].
O art.º 79.º do Código Civil protege o direito à imagem.
E, doutro passo, a Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, refere, no artigo 6.º, que o tratamento de dados pessoais só pode ser efectuado se o seu titular tiver dado de forma inequívoca o seu consentimento ou se o tratamento for necessário para os fins previstos nas suas alíneas a) a e), mediante notificação e prévia autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados (artigos 27.º a 31.º da lei citada).
O Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto (CT/03), dedicou, pela primeira vez na legislação laboral portuguesa, um conjunto de normas aos direitos de personalidade do trabalhador, nomeadamente: “Liberdade de expressão e de opinião” [art. 14.º]; “Reserva da intimidade da vida provada” [art. 16.º]; “Protecção de dados pessoais” [art. 17.º]; “Integridade Física e Moral” [art. 18.º]; “Testes e exames médicos” [art. 19.º]; “Meios de Vigilância a distância” [art. 20.º] e “Confidencialidade de mensagens e de acesso a informação” [21.º].
Com as alterações operadas no Código do Trabalho pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro (CT/09), tais direitos passaram a constar essencialmente dos artigos 14.º a 22.º, que estatuem, respectivamente, sobre “Liberdade de expressão e de opinião”, “Integridade física e moral”, “Reserva da intimidade da vida privada”, “Protecção de dados pessoais”, “Dados biométricos”, “Testes e exames médicos”, “Meios de vigilância a distância”, “Utilização de meios de vigilância a distância” e “Confidencialidade de mensagens e de acesso a informação”.
Para o caso em apreço releva o art.º 20.º CT/09 [Meios de vigilância à distância], dispondo o seguinte:
[1] O empregador não pode utilizar meios de vigilância a distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.
[2] A utilização de equipamento referido no número anterior é lícita sempre que tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem.
[3] Nos casos previstos no número anterior, o empregador informa o trabalhador sobre a existência e finalidade dos meios de vigilância utilizados, devendo nomeadamente afixar nos locais sujeitos os seguintes dizeres, consoante os casos: «Este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão» ou «Este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagem e som», seguido de símbolo identificativo.
[4] (..).
Releva, ainda, o disposto no n.º1, do artº 21.º, onde consta: “A utilização de meios de videovigilância a distância no local de trabalho está sujeita a autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados”.
Deste quadro normativo ressalta que, verificados os pressupostos, mormente a autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados, a lei não obsta à instalação dos meios de vigilância à distância, incluindo a captação de imagem, nos locais de trabalho. Contudo, dele decorre igualmente que essa vigilância apenas poderá ser utilizada quando vise a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem, não podendo nunca ter a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.
No que concerne à videovigilância, a jurisprudência tem-se debruçado essencialmente sobre três questões em particular: i) a possibilidade da sua instalação; ii) se a instalação ilícita configura justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador; iii) se pode ser utilizada como meio de prova de ilícitos disciplinares pelos trabalhadores.
No que aqui interessa, relevam os arestos que incidem sobre este último ponto, de resto aquele que tem suscitado maior intervenção dos tribunais superiores, designadamente, os seguintes (todos eles disponíveis em www.dgsi.pt):
i) Da Relação de Lisboa, de 03/05/2006 [processo n.º 872/2006-4, Isabel Tapadinhas]
«I- A licitude da videovigilância afere-se pela sua conformidade ao fim que a autorizou.
II- Sendo o fim visado pela videovigilância exclusivamente o de prevenir ou reagir a casos de furto, vandalismo ou outros referentes à segurança de um estabelecimento, relacionados com o público – e, ainda assim, com aviso aos que se encontram no estabelecimento ou a ele se deslocam de que estão a ser filmados - só, nesta medida, a videovigilância é legítima.
III- A videovigilância não só não pode ser utilizada como forma de controlar o exercício da actividade profissional do trabalhador, como não pode, por maioria de razão, ser utilizado como meio de prova em sede de procedimento disciplinar pois, nestas circunstâncias, a divulgação da cassete constitui, uma abusiva intromissão na vida privada e a violação do direito à imagem do trabalhador, - arts. 79º do Cód. Civil e 26º da Constituição da República Portuguesa – criminalmente punível – art. 199º, nº 1, alínea b) do Cód. Penal.
IV- Embora o reconhecimento dos direitos de personalidade do trabalhador no âmbito da relação de trabalho só tenha tido consagração expressa no Código do Trabalho, já anteriormente se entendia que os direitos fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa - Capítulo I, Título II - e previstos no Código Civil - art. 70 e seguintes - tinham aplicação plena e directa aos trabalhadores no âmbito da execução do contrato de trabalho, uma vez que a celebração deste não implica a privação dos direitos que a Constituição reconhece a qualquer cidadão e o trabalhador não deixa de ser um cidadão como qualquer outro».
ii) Acórdão do STJ, de 14/05/2008 [processo n.º 08S643, Pinto Hespanhol]
“(…)
3. Sendo ilícitas as filmagens utilizadas pelo empregador no processo disciplinar, daí não resulta a nulidade de todo o processo, antes determinando essa ilicitude que a sobredita recolha de imagens não possa ser considerada na indagação da justa causa de despedimento.
iii) Acórdão da Relação de Lisboa, de 19/11/2008 [processo n.º 7125/2008-4, Ramalho Pinto]
« Não é admissível, no processo laboral e como meio de prova, a captação de imagens por sistema de videovigilância, envolvendo o desempenho profissional do trabalhador, incluindo os actos disciplinarmente ilícitos por ele praticados».
iv) Acórdão da Relação de Évora, de 09/11/2010 [processo n.º 292/09.0TTSTB.E1, Gonçalves Rocha]
«1. A limitação constante do nº 1 do artigo 20º do CT/2003, não deve ser acolhida quando a violação cometida pelo trabalhador seja igualmente atentatória da finalidade de protecção e segurança de pessoas e bens para que foi concedida, pois seria estranho que a videovigilância, instalada e utilizada para a protecção e segurança de pessoas e bens, não pudesse fundamentar uma actuação contra aqueles que, pelas funções que desempenham, mais poderão atentar contra as finalidades que a instalação visa defender.
2. Por isso e não se tendo admitido o visionamento do DVD com as imagens contendo actuação duma trabalhadora eventualmente atentatória da protecção e segurança de bens vendidos no estabelecimento da agravante, tem que se anular o processado desde o despacho impugnado, com repetição de toda a prova».
v) Acórdão da Relação do Porto, de 09/05/2011 [Processo n.º 379/10.6TTBCL-A.P1, Paula Leal de Carvalho]
- «O empregador não pode, em processo laboral e como meio de prova, recorrer à utilização de imagens captadas por sistema de videovigilância para fundamentar o exercício da acção disciplinar, ainda que a infracção disciplinar possa, simultaneamente, constituir ilícito penal».
vi) Acórdão da Relação de Lisboa, de 16/11/2011 [processo n.º 17/10.7TTBRR.L1-4, Paula Sá Fernandes].
«Tendo-se apurado que o visionamento das imagens captadas pelas câmaras de videovigilância, autorizadas pela CNPD, serviu apenas para a entidade empregadora confirmar a actuação ilícita do trabalhador que foi atentatória da finalidade de protecção de pessoas e bens, e não para o controle do seu desempenho profissional, é lícito o seu tratamento como meio de prova no âmbito do processo disciplinar e judicial».
vii) Acórdão da Relação de Lisboa, de 06/06/2012 [processo n.º 18/09.8TTALM.L1, Maria João Romba]
«(…)
III- Não é prova ilegal o visionamento dos suportes de videovigilância, se esta estava autorizada para protecção de pessoas e bens.
(…)»
viii) Acórdão da Relação do Porto, de 04/02/2013 [processo n.º 229/11.6TTLMG.P1, João Diogo Rodrigues]
«I - O empregador não pode, em caso algum, utilizar meios de vigilância a distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.
II - Mas já é lícita a utilização desse equipamento quando o mesmo tiver por finalidade o controlo da organização produtiva, numa perspetiva de proteção e segurança de pessoas e bens.
III - Só neste último caso, e não no primeiro, pode haver necessidade de harmonizar o direito do trabalhador com os demais interesses em confronto, uma vez que o controlo da organização produtiva é suscetível, ainda que incidentalmente, de permitir a verificação da conduta e desempenho do próprio trabalhador.
IV - A licitude da utilização de meios de vigilância à distância não depende apenas dessa concreta ponderação material de interesses divergentes, mas igualmente da verificação das condições e procedimentos objetivos previstos no artº 20º nº3 e 21º do Código do Trabalho.
V - Sendo imputado pelo empregador ao trabalhador a prática de um ilícito disciplinar por violação do dever de lealdade, passível de integrar igualmente um crime de furto, é de admitir a exibição em audiência de julgamento das gravações de imagens num caso em que está alegado, sem impugnação, que o estabelecimento onde ocorreu aquele ilícito está a videovigilância autorizada pela CNPD, a existência e funcionamento desse sistema foi participado ao trabalhador, está devidamente publicitado por dois dísticos afixados nesse estabelecimento e o dito sistema foi implementado com vista a salvaguardar os bens e produtos à venda».
ix) Acórdão da Relação de Lisboa de 08/10/2014 [processo n.º 149/14.2TTCSC.L1-4, Jerónimo Freitas]
- «(..)
III. Do quadro normativo que regula a reserva da vida privada e, em particular, os meios de vigilância à distância, ressalta que, verificados os pressupostos legais, mormente a autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados, a lei não obsta à instalação dos meios de vigilância à distância, incluindo a captação de imagem, nos locais de trabalho.
IV. Contudo, dele decorre igualmente que essa vigilância apenas poderá ser utilizada quando vise a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem, não podendo nunca ter a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.
V. É de aceitar as imagens captadas por sistema de videovigilância como meio de prova em processo disciplinar e na subsequente acção judicial em que se discuta a aplicação de sanção disciplinar, mormente o despedimento, desde que sejam observados os pressupostos que decorrem da legislação sobre a protecção de dados e concomitantemente se conclua que a finalidade da sua colocação não foi exclusivamente a de controlar o desempenho profissional do trabalhador. Num quadro circunstancial assim apurado, o trabalhador não merece – nem a lei lhe confere - maior protecção do que aquela que é conferida aos demais cidadãos e, logo, o meio de prova é lícito e admissível».
x) Acórdão da Relação de Coimbra de 06/02/2015 [Proc.º n.º 359/13.0TTFIG-A.C1, Azevedo Mendes]
«I – O artº 20º, nº 1 do Código do Trabalho proíbe a utilização de meios de vigilância à distância para controlar de forma dedicada e permanente o desempenho profissional do trabalhador.
II – A utilização desses meios de vigilância no local de trabalho é, no entanto, lícita se cumprir os requisitos de fim e publicidade previstos nos nºs 2 e 3 do mesmo artº 20º e for obtida a autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados.
III – Estando em causa uma das finalidades legalmente previstas no nº 2 desse artigo, concretamente a protecção e segurança de pessoas e bens, as actuações ilícitas do trabalhador lesivas de pessoas e bens podem ser licitamente verificadas, tanto quanto o podem ser idênticas condutas de terceiros, como uma consequência fortuita ou incidental da utilização dos meios de vigilância à distância, podendo os dados obtidos servir de meio de prova em procedimento disciplinar e no controlo jurisdicional da licitude da decisão disciplinar».
xi) Acórdão da Relação de Guimarães, de 25-06-2015 [processo n.º 522/14.6TTGMR-A.G1, Moisés Silva]
- «A regra geral prevista no art.º 20.º n.º 1 do CT concede a exceção prevista no n.º 2 do mesmo artigo, quando a utilização dos meios de vigilância à distância, de acordo com as circunstâncias de cada caso, tem por finalidade a proteção e segurança de pessoas e bens, a qual no caso tem uma especial acuidade, face à natureza da atividade exercida (bancária), onde são movimentados valores muito elevados e está em causa o património e a segurança dos clientes, trabalhadores e do banco».
Acompanhamos a linha jurisprudencial que, em jeito de síntese, entende que é de aceitar as imagens captadas por sistema de videovigilância como meio de prova em processo disciplinar e na subsequente acção judicial em que se discuta a aplicação de sanção disciplinar, mormente o despedimento, desde que sejam observados os pressupostos que decorrem da legislação sobre a protecção de dados e concomitantemente se conclua que a finalidade da sua colocação não foi exclusivamente a de controlar o desempenho profissional do trabalhador. Num quadro circunstancial assim apurado, o trabalhador não merece – nem a lei lhe confere - maior protecção do que aquela que é conferida aos demais cidadãos e, logo, o meio de prova é lícito e admissível.
Em suma, a defendida pelo ora Relator no Acórdão da Relação de Lisboa de 8/10/2014, por si relatado, e seguida nos acórdãos da Relação de Évora de 09/11/2010; da Relação de Lisboa de 16/11/2011 e 06/06/2012; desta Relação, de 04-02-2013; da Relação de Coimbra, de 06/02/2015; e, da Relação de Guimarães, de 25-06-2015.
Revertendo ao caso, em conformidade com o entendimento que sufragamos o que importa é saber se os princípios enunciados no art.º 20.º do CT/09 e nº n.º1, do art.º 21,º, foram respeitados. Esse é o ponto fulcral para se decidir pela admissibilidade, ou não, das imagens como meio de prova de que se serviu para imputar à A. a prática de agressões físicas sobre uma sua colega de trabalho, mais precisamente, para este demonstrar em juízo, que a “ A., inesperadamente e na presença de uma cliente, tenha começado a agredir a sua colega de trabalho, E..., com murros, bofetadas e puxões de cabelo.” (facto não provado 5).
Conforme é invocado pelo recorrente e mencionado na decisão recorrida, a utilização de videovigilância por aquele está devidamente autorizada e licenciada pela Comissão Nacional de Protecção de Dados, nomeadamente, através da autorização n.º 8190/2014, de 9-09-2014, junta como documento 1, com a resposta à contestação e reconvenção da autora, sem que por esta tenha sido objecto de impugnação. Resulta desse documento, que foi autorizada a videovigilância, através de um sistema composto por 3 câmaras, com visualização das imagens em tempo real, com a finalidade de protecção de pessoas e bens e sendo responsável o aqui Réu C….
Por outro lado, como é mencionado na decisão recorrida, também não está em causa que a trabalhadora soubesse que estava a ser alvo de recolha de imagens na parte de acesso público do seu local de trabalho, atentos os documentos de fls. 121 a 124, sendo certo que não foi produzida judicialmente qualquer prova que tenha desmentido a existência, à data, daqueles avisos escritos e que a A. os desconhecesse.
Ainda por outro lado, como também se menciona na decisão recorrida, estando em causa imagens relativas a alegadas agressões físicas, essa conduta é subsumível num tipo legal de crime contra as pessoas, nomeadamente, pelo menos, no crime de ofensa à integridade física simples, pp. no art.º 143.º do Código Penal. Significa isto, pois, que essas imagens enquadram-se no âmbito da autorização concedida pela CNPD, na medida em que a videovigilância foi autorizada tendo em vista prevenir, também, a proteção de pessoas.
Assim sendo, conclui-se o seguinte: foram observados os pressupostos que decorrem da legislação sobre a protecção de dados no que respeita à autorização do sistema de videovigilância; nem a sua colocação nem as imagens captadas visam exclusivamente controlar o desempenho profissional dos trabalhadores; a autora tinha conhecimento da existência do sistema de videovigilância e, logo, que estariam a ser captadas imagens quando, na versão do R., “ inesperadamente e na presença de uma cliente, tenha começado a agredir a sua colega de trabalho, E..., com murros, bofetadas e puxões de cabelo”, ou, na sua versão, foi ela a agredida, inicialmente pela aludida E...“com bofetadas na cara e pontapés nas pernas”, que depois foi secundada pela irmã que “decid(iu) participar nas agressões à aqui A. e lança-se nas suas costas, puxando-lhe o cabelo com extrema violência” [artigos 82.º e 83.º da Contestação].
Neste quadro, não se verifica qualquer violação dos princípios enunciados no art.º 20.º n.ºs 1, 2 e 3, bem como do n.º1, do art.º 21.º., do CT e, logo, crê-se que a prova obtida pelo sistema de videovigilância é não só lícita e válida para sustentar o processo disciplinar quanto àquela imputação, como também deveria ter sido admitida para ser visionada na audiência de julgamento, confrontando-se as testemunhas e a própria autora com as mesmas, relevando, no conjunto da prova produzida, para ser apreciada livremente segundo a prudente convicção do Senhor Juiz (art.º 607.º n.º5, do CPC).
Significa isto, pois, que não se acolhe a decisão recorrida. O visionamento das imagens captadas, tendo como exclusivo propósito apurar a realidade daquele facto fulcral, não significa, como está afirmado na decisão recorrida, que haja colisão “com o direito da trabalhadora em não ver controlado, através da captação de imagens e ainda que por via indirecta, o seu desempenho profissional”. Salvo o devido respeito, se a trabalhadora autora porventura praticou o facto imputado pelo empregador, agredindo a sua colega de trabalho, uma tal conduta está para além do desempenho profissional e ela bem sabia que existia o sistema de videovigilância e que a mesma ficaria documentada nas imagens gravadas, exactamente nos mesmos termos em que ficou se, pelo contrário, foi ela a agredida, como veio alegar.
Contudo, que fique claro, esta asserção reporta-se exclusivamente ao facto não provado 5. Quanto aos factos não provados 1 e 2, já não se pode assim entender, posto que o que pode estar ai em causa já não se prende com a protecção de pessoas e bens, extravasando a finalidade para que foi autorizado o sistema de videovigilância.
Por outro lado, como com pertinência assinala o Digno Magistrado do Ministério Público no seu parecer, os termos da sentença recorrida resultam contraditórios, já que afirmando a possibilidade, em abstracto, de utilização das imagens captadas pelo sistema de videovigilância como meio de prova de determinados factos, a aferir segundo um critério casuístico, caso a caso e segundo as circunstâncias concretas - aderindo à fundamentação do acórdão da Relação de Guimarães que cita (acima também mencionado) - reportado à necessidade, adequação e proporcionalidade da utilização desses registos, vem a afastar essa possibilidade, no caso em concreto, no pressuposto de “que o recurso às imagens em questão não é necessário, no sentido de constituir a única forma de se apurar se a aqui A. terá agredido fisicamente uma sua colega de trabalho. É que sempre poderemos recorrer a uma outra prova, qual seja, a testemunhal, para tirarmos uma conclusão a esse nível”. Contudo, num momento subsequente, após fixar os factos, vem a concluir que, afinal, a prova testemunhal não é suficiente para apurar a realidade do que se passou, dado estar-se perante duas versões contraditórias.
Para que melhor se perceba, nessa parte lê-se da fundamentação o seguinte:
- «(..)
Do agora relatado se conclui que, relativamente às testemunhas que afirmaram haverem presenciado a alegada discussão entre, por um lado, a A. e, por outro lado, E… e irmã H…, surgem duas versões contraditórias quanto ao que realmente terá sucedido: uma, trazida aos autos pelas testemunhas H… e irmã, E…, e outra carreada pela testemunha G…. Ora, atenta a incidência do ónus probatório, consideramos que não foi produzida prova que nos permita concluir, com o mínimo de segurança, que a A., no dia 8 de janeiro de 2016, tenha agredido fisicamente a sua colega de trabalho E…. E tal, pelas seguintes ordens de razões: (..)».
Daí que, como também assinala o Digno magistrado do Ministério Público, “(..) em concreto a prova resultante das imagens colhidas na videovigilância até pode ser relevante uma vez que a restante não permitiu a convicção de quem disse que era desnecessária por haver outros meios de prova”.
Deve ainda assinalar-se que também não se acolhe o argumento final da decisão recorrida, no sentido de que o registo de imagens disponível constitui uma “uma reprodução, efetuada por um outro aparelho que não a câmara de filmar cuja autorização foi consentida pela Comissão Nacional de Proteção de Dados. Daí que esteja em causa a genuinidade e a fidedignidade da dita reprodução”.
Não se vislumbra, nem a decisão recorrida o esclarece, de que disposição legal resultará que só o original captado pela câmara de filmar possa valer como meio de prova. O facto de se tratar dum registo efectuado por cópia através de outro aparelho não é, só por si, suficiente para pôr em causa a exactidão do registo disponível. Certo é, também, que nem a autora suscitou essa questão na contestação.
Não se vê, pois, o que possa obstar a que seja apreciada e valorada, no conjunto da prova produzida, segundo a livre convicção do julgador (art.º 607.º n.º5, do CPC).
Por último, não obstante os amplos poderes conferidos à Relação para alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, mostra-se necessário anular a decisão e determinar a repetição do julgamento restrita ao facto não provado 5, para tanto considerando-se o registo de imagens captado pela câmara de videovigilância, confrontando-se as partes e as testemunhas que depuseram sobre esses factos com as mesmas (art.º 662.º n.º 2 al. c), do CPC).
Deixa-se esclarecido que não se determina a repetição do julgamento quanto ao constante como não provado sob os n.ºs 12 e 13 da sentença, dado tratarem-se de alegações conclusivas e não de factos.
Ora, conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada. Dito de outro modo, só os factos materiais são susceptíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objecto de prova [cfr. Acórdão de 23.9.2009, Proc. n.º 238/06.7TTBGR.S1, Bravo Serra; e, mais recentemente, reiterando igual entendimento jurisprudencial: de 19.4.2012, Proc.º 30/08.4TTLSB.L1.S1, Pinto Hespanhol; de 23/05/2012, proc.º 240/10.4TTLMG.P1.S1, Sampaio Gomes; de 29/04/2015, Proc .º 306/12.6TTCVL.C1.S1, Fernandes da Silva; de 14/01/2015, Proc.º 488/11.4TTVFR.P1.S1, Fernandes da Silva; 14/01/2015, Proc.º 497/12.6TTVRL.P1.S1, Pinto Hespanhol; todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj].
Portanto, aquelas eventuais conclusões serão, ou não, consoante o que mais se provar, extraídas do elenco factual.
Em consequência da repetição do julgamento quanto ao apontado facto não provado 5, deverá ser proferida nova sentença, abrangendo a resposta a esse facto e respectiva fundamentação, bem como a subsequente aplicação do direito ao elenco factual que resultar apurado.
Finalmente, sendo a eventual alteração da resposta ao facto não provado 5 susceptível de contender com a fundamentação que determinou a procedência da acção e do pedido reconvencional, considera-se prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso.
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso parcialmente procedente na parte apreciada e, em consequência:
i) Anulam a sentença no segmento em que se pronunciou sobre a legalidade da prova obtida através da recolha de imagens captadas por uma câmara de vigilância instalada no interior da loja explorada pelo R. e na qual a A. trabalhava, cujos registos foram juntos aos autos com o processo disciplinar, para decidir pela sua inadmissibilidade, “por constituírem provas nulas, para efeitos disciplinares”.
ii) Decidem que a prova obtida pelo sistema de videovigilância é lícita e válida para sustentar o processo disciplinar quanto à imputação constante do facto não provado n.º5, bem assim que deve ser admitida para ser visionada na audiência de julgamento, determinando a repetição deste acto restrita ao facto não provado 5, para tanto considerando-se o registo de imagens captado pela câmara de videovigilância, confrontando-se as partes e as testemunhas que depuseram sobre esses factos com as mesmas (art.º 662.º n.º 2 al. c), do CPC).
iii) Em consequência da repetição do julgamento quanto ao apontado facto não provado 5, deverá ser proferida nova sentença, abrangendo a resposta a esse facto e respectiva fundamentação, bem como a subsequente aplicação do direito aos elenco factual que resultar apurado.

Custas pelo recorrente e pela Recorrida, na proporção do decaimento, que se fixa, respectivamente, em ¼ e ¾ (art.º 527.º 2, CPC).

Porto, 26 de Junho de 2017
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Fernanda Soares
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SUMÁRIO
I. Do quadro normativo que regula a reserva da vida privada e, em particular, os meios de vigilância à distância, ressalta que, verificados os pressupostos legais, mormente a autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados, a lei não obsta à instalação dos meios de vigilância à distância, incluindo a captação de imagem, nos locais de trabalho.
II. Contudo, dele decorre igualmente que essa vigilância apenas poderá ser utilizada quando vise a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem, não podendo nunca ter a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.
III. É de aceitar as imagens captadas por sistema de videovigilância como meio de prova em processo disciplinar e na subsequente acção judicial em que se discuta a aplicação de sanção disciplinar, mormente o despedimento, desde que sejam observados os pressupostos que decorrem da legislação sobre a protecção de dados e concomitantemente se conclua que a finalidade da sua colocação não foi exclusivamente a de controlar o desempenho profissional do trabalhador. Num quadro circunstancial assim apurado, o trabalhador não merece – nem a lei lhe confere - maior protecção do que aquela que é conferida aos demais cidadãos e, logo, o meio de prova é lícito e admissível.
IV. Concluindo-se que foram observados os pressupostos que decorrem da legislação sobre a protecção de dados no que respeita à autorização do sistema de videovigilância, que nem a sua colocação nem as imagens captadas visam exclusivamente controlar o desempenho profissional dos trabalhadores e que a autora tinha conhecimento da existência do sistema de videovigilância e, logo, que estariam a ser captadas imagens quando, na versão do R., “ inesperadamente e na presença de uma cliente, tenha começado a agredir a sua colega de trabalho, E…, com murros, bofetadas e puxões de cabelo”, ou, na sua versão, foi ela a agredida, inicialmente pela aludida E… “com bofetadas na cara e pontapés nas pernas”, que depois foi secundada pela irmã que “decid(iu) participar nas agressões à aqui A. e lança-se nas suas costas, puxando-lhe o cabelo com extrema violência”, não se verifica qualquer violação dos princípios enunciados no art.º 20.º n.ºs 1, 2 e 3, bem como do n.º1, do art.º 21.º., do CT e, logo, crê-se que a prova obtida pelo sistema de videovigilância é não só lícita e válida para sustentar o processo disciplinar quanto àquela imputação, como também deveria ter sido admitida para ser visionada na audiência de julgamento, confrontando-se as testemunhas e a própria autora com as mesmas, relevando, no conjunto da prova produzida, para ser apreciada livremente segundo a prudente convicção do Senhor Juiz (art.º 607.º n.º5, do CPC).

Jerónimo Freitas