Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
532/23.2T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS
CPPT
CRCSPSS
CIRE
PLANO DE RECUPERAÇÃO
Nº do Documento: RP20231219532/23.2T8AMT.P1
Data do Acordão: 12/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – À luz da versão originária do artigo 30.º da Lei Geral Tributária, a jurisprudência claramente maioritária defendeu que a contradição entre os regimes consagrados no CPPT e no CRCSPSS, por um lado, e os regimes consagrados no CIRE, por outro lado, a respeito das condições de extinção, redução ou alteração dos créditos tributários, se resolvia pela prevalência desta lei especial, com fundamento no princípio lex specialis derogat legi generalis ínsito no artigo 7.º, n.º 3, do CC.
II – Com a alteração introduzida naquela norma pelo artigo 123.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 2011), e com a norma transitória do artigo 125.º, do mesmo diploma legal, o legislador deixou claro o propósito de reforçar a intangibilidade dos créditos tributários, impedindo que os mesmos possam ser afectados apenas com fundamento em normas especiais, nomeadamente as relativas aos processos insolvenciais ou pré-insolvenciais, à margem das regras consagradas nas normas gerais do direito tributário. E fê-lo, manifestamente, com o propósito de blindar os créditos tributários no processo de insolvência, ainda que, deste modo, possa criar entraves à recuperação da empresa.
III – Desta forma, mesmo em contraciclo com a evolução que o direito insolvencial vinha registando e contrariando as obrigações assumidas no memorando de entendimento assinado no contexto do plano de assistência financeira ao Estado Português, o legislador afastou, de forma expressa, a regra interpretativa da prevalência da norma especial sobre a norma geral, como permite o artigo 7.º, n.º 3, do CC, assim retirando a base de sustentação da interpretação que vinha sendo maioritariamente seguida pelos tribunais.
IV – Nestes termos – ressalvando situações limite que poderão justificar o recurso a válvulas de segurança interpretativa que a jurisprudência vem ensaiando –, o plano de recuperação aprovado no processo de insolvência ou no PER apenas pode afectar os créditos tributários se respeitar todas as condições de alteração, redução ou extinção desses créditos impostas na lei geral (maxime na LGT, no CPPT e no CRCSPSS), entre as quais se inclui o consentimento do organismo público competente, nomeadamente a AT ou o ISS.
V – De acordo com a tese claramente maioritária na jurisprudência dos tribunais superiores, a aprovação de um plano de recuperação que afecte créditos tributários sem o consentimento do Estado não obsta à homologação desse plano, desde que fique ressalva da sua ineficácia relativamente a tais créditos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 532/23.2T8AMT.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
A. A..., Lda., com sede na Praça ..., n.º ..., fração D, r/c, ... ... PRD, intentou o presente processo especial de revitalização (PER), ao abrigo do disposto nos artigos 17.º-A e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), tendo em vista dar início a negociações com os seus credores de modo a concluir com estes um acordo de pagamento conducente à sua revitalização.
Recebido o requerimento e nomeado administrador judicial provisório (AJP), foi apresentada lista provisória de créditos, a qual foi objecto de duas impugnações, já definitivamente decididas (tendo o tribunal julgado procedente uma delas e homologado a desistência quanto à outra).
Concluídas as negociações, a requerente depositou no tribunal a versão final do plano de recuperação conducente à revitalização da empresa, tendo sido de imediato publicada no portal Citius a indicação desse depósito.
Na sequência das considerações produzidas por vários credores, a requerente depositou nova versão do plano cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, a qual foi publicada no portal Citius.
Este plano foi votado por credores cujos créditos representam 53,14% do total dos créditos relacionados com direito de voto; 72,25% do total dos votos expressos são favoráveis e 27,75% são desfavoráveis.
O Instituto da Segurança Social, I.P., único credor que votou desfavoravelmente, veio requerer ao tribunal que, caso o Plano seja aprovado e homologado, declare a sua ineficácia ou a inoponibilidade em relação aos créditos da Segurança Social, uma vez que não deu o seu consentimento expresso à modificação dos seus créditos, sob pena de violação da legislação específica da segurança social, bem como da legislação tributária, designadamente o artigo 30.º da Lei Geral Tributária (LGT), de acordo com o qual os créditos da Segurança Social são indisponíveis.
Notificado para o efeito, a requerente pugnou pela homologação do Plano na sua plenitude.
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B. Foi proferida sentença homologatório do Plano, que termina da seguinte forma:
«Assim sendo, nada obstando e tendo em conta o disposto nos citados normativos e a Jurisprudência a que se fez referência, decide-se homologar por sentença o plano de revitalização de “A..., Lda.”, porquanto não resulta que o mesmo viole o princípio da igualdade entre credores, não se afigura evidente a violação de qualquer norma imperativa, nem ocorre violação não negligenciável de normas procedimentais, designadamente nos termos invocados pela Segurança Social.
A presente decisão vincula todos os credores, incluindo a Segurança Social, e mesmo os credores que não hajam participado nas negociações, nos termos previstos no artigo 17.º-F, n.º 11, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas».
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C. Inconformado, o credor Instituto da Segurança Social, I.P. apelou desta sentença, apresentando as seguintes conclusões:
«1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida em 02/10/2023 que homologou o plano de revitalização apresentado no Processo Especial de Revitalização identificado em epígrafe, na medida em que a decisão de homologação do plano, nos termos em que foi proferida vincula todos os credores, incluindo o Instituto da Segurança Social, I.P., apesar de este credor ter votado contra o plano e de ter requerido a declaração de ineficácia ou inoponibilidade da parte dispositiva do plano em relação aos créditos da Segurança Social, caso o mesmo viesse a ser aprovado e subsequentemente homologado.
2. Tal crédito foi reclamado em tempo e foi reconhecido pelo Sr. Administrador Judicial Provisório nos exactos termos em que foi reclamado.
3. No dia 15/09/2023, através de requerimento enviado via Citius ao Sr. Administrador Judicial Provisório, o Instituto da Segurança Social, I.P. manifestou o seu voto contra o Plano de Revitalização apresentado, pelas razões enunciadas na Deliberação do Conselho Diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P, datada de 12/09/2023, que juntou em anexo e cujo conteúdo deu por integrado e reproduzido para todos os efeitos legais e que se passam a enunciar:
“(…) b. Nos termos da legislação em vigor são devidos juros vencidos e vincendos calculados de acordo com a taxa de juros de mora aplicáveis às dívidas ao Estado e outras entidades públicas, não existindo enquadramento legal para uma taxa de juro anual de 2% durante o pagamento, conforme proposto. “(…) b. A empresa não entrega declarações de remunerações desde março de 2018, inclusive, circunstância que indicia a sua inatividade.
c. De harmonia com o disposto no artigo 190.º, n.º 2, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, as condições de regularização de dívida propostas no plano apenas podem ser autorizadas se forem indispensáveis para a viabilidade económica da empresa, o que, face ao exposto supra, não se encontra demonstrado.
d. Nos termos do artigo 30.º, n.º 2, da LGT, o crédito tributário - no qual se integra o crédito da segurança social - é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua alteração, redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.
e. A homologação de um plano que inclua o pagamento em prestações de créditos sem o acordo da segurança social constitui uma violação não negligenciável das normas legais aplicáveis, nos termos do artigo 215.º do CIRE e, por tal motivo, o mesmo deve ser considerado ineficaz para com a segurança social, sendo-lhe inoponível.”
4. Nesse mesmo dia (15/09/2023), através de requerimento junto aos autos, o Instituto da Segurança Social, I.P. manifestou o seu voto contra o Plano de Revitalização apresentado, conforme Despacho do Conselho Diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P, datado de 12/09/2023, que juntou em anexo e cujo conteúdo deu por integrado e reproduzido para todos os efeitos legais, e requereu a declaração de ineficácia ou inoponibilidade da parte dispositiva do Plano em relação aos créditos da Segurança Social, caso o mesmo viesse a ser aprovado e subsequentemente homologado, uma vez que este credor não deu o seu consentimento expresso à modificação dos seus créditos, situação que viola a legislação específica da segurança social, bem como a legislação tributária, designadamente o artigo 30.º, da Lei Geral Tributária, que refere que os créditos da Segurança Social são indisponíveis.
5. Por sentença proferida em 02/10/2023 o plano de revitalização apresentado no Processo Especial de Revitalização da Devedora A..., Lda. foi homologado, e a decisão de homologação do plano, nos termos em que foi proferida, vincula todos os credores, incluindo o Instituto da Segurança Social, I.P..
6. O plano apresentado implica necessariamente a modificação dos créditos da Segurança Social sem o consentimento deste credor, na medida em que os mesmos passam a gozar de uma dilação temporal, de uma moratória, quando é certo que a Segurança Social não autorizou o diferimento temporal do pagamento de créditos públicos, o que, contraria o estipulado no Código dos Regimes Contributivos e Sistema Previdencial da Segurança Social.
7. É hoje pacífico que a obrigação contributiva da segurança social, sem prejuízo da sua especialidade, pertence ao domínio mais amplo das relações jurídico-tributárias, atento o disposto no art. 1.º e 3.º n.º 2 da L.G.T..
8. De acordo com o art. 30.º, n.º 2, da referida Lei “O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito ao princípio da igualdade e da legalidade tributária.”
9. Acresce que a Lei n.º 55-A/2010, de 31/12, através do seu artigo 125.º, veio reforçar o vertido no n.º 2 do artigo 30.º da LGT, introduzindo o n.º 3 a esse artigo 30.º da L.G.T., do qual consta que “O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial.”
10. Dispõe o art. 125.º da Lei n.º 55/2010, de 31/12, que “O disposto no n.º 3 do art. 30.º da LGT é aplicável, designadamente aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação (…).”.
11. As regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX do CIRE, aplicam-se, com as necessárias adaptações, à matéria de aprovação e homologação de Planos de Revitalização, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º, por força do art. 17.º-F, n.º 5, do CIRE.
12. E, assim sendo, tendo a sentença de homologação sido proferido em 17/07/2023, o n.º 3 do art. 30.º da LGT é-lhe aplicável por força do disposto no art. 125.º da Lei n.º 55/2010, de 31/12.
13. Desta forma, depende, pois, do acordo do Estado, em conformidade com as normas próprias da LGT e do Código Contributivo, a alteração, redução ou extinção dos seus créditos fiscais e/ou concessão de moratória. (sublinhado nosso)
14. No regime da regularização de dívidas à segurança social plasmado no D. L. n.º 411/91, de 17/10 (cuja vigência cessou com a entrada em vigor do Código Contributivo), a regra geral consistia na proibição de “autorizar ou acordar extrajudicialmente o pagamento prestacional de contribuições em dívida à segurança social”, bem como “isentar ou reduzir, extrajudicialmente, os respectivos juros vencidos ou a vencer” (cfr. art. 1.º), salvo nos casos expressamente previstos.
15. Tais casos reconduziam-se, no essencial, à indispensabilidade de tais medidas “para assegurar a viabilidade da empresa devedora” e se esta fosse submetida, nomeadamente, a “processo especial de recuperação de empresas…” (cfr. art.º 2.º, n.º 1, alínea b)), dependendo, em todo o caso, de prévia autorização, “por despacho do membro do Governo que tiver a seu cargo a área da segurança social.” - cfr. n.º 2 do citado artigo e diploma).
16. Este regime foi praticamente transposto para o art. 190.º do actual Código Contributivo, sob a epígrafe “Situações excepcionais para a regularização da dívida”, aplicável aos créditos reconhecidos ao Recorrente nestes autos.
17. No essencial, as “condições excepcionais” admissíveis para a mencionada regularização de dívidas, nomeadamente, em processo de insolvência ou recuperação, podem resumir-se da seguinte forma:
a) Autorização do pagamento prestacional da dívida à segurança social;
b) Isenção ou redução dos respectivos juros vencidos e vincendos.
18. Disposição alguma contempla a possibilidade de modificação ou redução dos créditos da Segurança Social sem o seu consentimento expresso (com excepção, quanto a estes, das mencionadas causas de extinção da obrigação contributiva).
19. Assim, ainda que se considerasse admissível, com o voto contra do Recorrente, o pagamento dos créditos em causa nas condições constantes do plano, o que não se concede –, sempre estará ausente do plano aprovado a necessária base legal para a imposição, nomeadamente, do pagamento até 150 prestações, na medida em que os mesmos passam a gozar de uma dilação temporal, ou seja, de uma moratória, ao contrário do entendimento perfilhado na sentença do tribunal ad quo.
20. Não seria razoável admitir que o legislador remeteu para os credores do Processo Especial de Revitalização o poder de definir a existência, o conteúdo e/ou os prazos de pagamento das obrigações tributárias do devedor, tratando-se de domínio onde estão em causa interesses ou direitos livremente disponíveis (neste sentido cfr. Rui Duarte Morais, A Execução Fiscal, 2005, pág. 219 e seg.).
21. Acresce que o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. (IGFSS, I.P.) é o órgão legalmente competente para avaliar a idoneidade ou adequação das condições propostas no Plano para pagamento da dívida à segurança social e conceder a autorização prevista no art. 190.º, n.º 1, do Código Contributivo – cfr. art. 190.º, n,º 6, do Código Contributivo -, tendo concluído, no caso em apreço, que não se encontrarem reunidos os requisitos exigidos para autorizar o pagamento prestacional da dívida à Segurança Social e votar favoravelmente o plano de revitalização.
22. Sendo que um dos motivos para o IGFSS, I.P. não autorização o pagamento nos termos propostos é, conforme mencionado na Deliberação do Conselho Diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., datada de 12/09/2023, no seu ponto b. o facto de “A empresa não entrega declarações de remunerações desde março de 2018, inclusive, circunstância que indicia a sua inatividade.”
23. E no seu ponto c. que “De harmonia com o disposto no artigo 190.º, n.º 2, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, as condições de regularização de dívida propostas no plano apenas podem ser autorizadas se forem indispensáveis para a viabilidade económica da empresa, o que, face ao exposto supra, não se encontra demonstrado.”
24. Tendo em consideração que a devedora não apresenta vida contributiva desde o mês de março de 2018, que não procede à entrega de Declarações de Remunerações desde o mês de março de 2018, não se vislumbra, como poderá a empresa se revitalizar, sendo certo que uma eventual declaração de ineficácia do plano relativamente aos créditos da Segurança Social não inviabilizaria o plano.
25. O Plano aprovado enferma de nulidade, que põe em causa a justa salvaguarda dos créditos da segurança social, reconhecidos nos presentes autos, nos termos do art. 201.º do CPC, motivo pelo qual não deveria ser homologado e, a ser homologado, não deveria produzir efeitos relativamente à Segurança Social.
26. Mesmo na corrente jurisprudencial que, até 1 de Janeiro de 2011, defendia inexistir fundamento para a recusa de homologação de plano de insolvência aprovado contra a vontade dos credores públicos, começou a reconhecer-se, a partir daquela data, que o aditamento do citado n.º 3 do art. 30.º da LGT, implicou a revogação da especialidade das normas do CIRE, relativamente aos regimes das dívidas fiscais e parafiscais, dada a natureza imperativa daquela norma, de interesse e ordem pública.
27. Esta interpretação implica que se considerem inaplicáveis as normas em vigor constantes de leis especiais, incluindo as previstas no CIRE, onde se previa a possibilidade de ocorrer uma situação de perdão ou redução de créditos tributários.
28. De resto, sempre será despiciendo observar que a Lei n.º 64-B/2011, de 30/12, que aprovou o Orçamento de Estado para 2012, e alterou, através do seu art. 149.º, diversos preceitos da LGT, deixou intocado o citado art. 30.º, nomeadamente, o aditamento aqui em análise.
29. “Portanto, após as alterações introduzidas ao artigo 30.º da LGT, em face das normas imperativas vigentes, deixou de ser legalmente possível homologar um plano de acordo de pagamento/insolvência ou revitalização de empresa que contemple a alteração, redução, extinção ou mesmo a moratória de créditos de natureza tributária, sem que o Estado – a Fazenda Nacional/Segurança Social – tenha votado favoravelmente tal homologação.” – neste sentido cfr., entre muitos outros, Acórdãos do TRP, de 24/01/2022 (Proc. n.º 697/21.8T8AMT.P1), e de 22/05/2017, Acórdão do TRC de 13/01/2015, Acórdão do TRL de 19/04/2015 e Acórdão do STJ de 10/05/2012 (Proc. 368/10.0TBPVL-D) e de 09/06/2021, todos em www.dgsi.pt.
30. O plano apresentado não se coaduna com o regime geral de regularização de dívidas à Segurança Social, violando normas imperativas, como o disposto no art. 30.º, n.os 2 e 3 e art. 36.º, n.os 2 e 3, da LGT e no art. 190.º, n.º 1, 2, alínea a), e 6 do Código Contributivo.
31. A regularização prestacional da dívida à Segurança Social envolve uma modificação dos créditos, na medida em que os mesmos passam a gozar de uma dilação temporal, de uma moratória, quando é certo que a Segurança Social não autorizou o diferimento temporal do pagamento dos seus créditos.
32. Atento o preceituado no art. 215.º do CIRE, verifica-se que no caso se violaram, relevantemente, normas respeitantes à substância do plano, razão pela qual havia lugar à recusa oficiosa de homologação do plano.
33. Sem prescindir, sempre se dirá que o art. 192.º, n.º 2, do CIRE dispõe que o plano só pode afectar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal seja expressamente autorizado no Título IX do Código, ou consentido
34. Nenhuma norma inserida no seu Título IX admite autorização expressa com vista à alteração dos requisitos legais de pagamento dos créditos da segurança social, através da derrogação, ainda que implícita, das normas aplicáveis, contra o voto daquele.
35. A exclusão dos créditos do Recorrente, designadamente, do âmbito de aplicação do art.º 196.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CIRE, não implica a violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores, visto que o mesmo ressalva expressamente as “diferenciações justificadas por razões objectivas” (art,. 194.º, n.º 1), o que, aliás, se harmoniza com o disposto no art. 30º, n.º 2 e 3, da LGT, na sua actual redacção.
36. Todavia, da imposição legal de proibição de modificação restritiva do conteúdo do crédito tributário não resulta necessariamente a solução drástica de recusa, pura e simples, de homologação do plano de recuperação da Devedora.
37. Na realidade e na esteira da melhor e mais equilibrada jurisprudência sobre tal questão, há muito que se vem entendendo que se tal acontecesse, tal obstaculizaria à maioria das recuperações de empresas como a requerente, pois os seus Planos de Revitalização seriam totalmente inaproveitáveis, com a consequente frustração dos interesses particulares envolvidos e com grave prejuízo para toda a nossa organização económica e empresarial, exactamente o que o legislador pretendeu proteger, cfr. Acs. do STJ de 17.04. 2018, de 18.02.2014, de 1.04.2014, de 13.11.2014, de 24.03.2015, de 9.06.2021, todos in www.dgsi.pt.
38. No mesmo sentido defende Catarina Serra in “O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência”, pág. 105 que: “Baseando-se na essência contratual do plano de recuperação, o Supremo Tribunal de Justiça e alguns Tribunais da Relação têm vindo a afirmar que o plano de recuperação de recuperação pode e dever ser homologado desde que se preservem os créditos tributários. Para tanto basta que se proceda, segundo uns, à restrição dos efeitos do plano aos créditos não tributários e, segundo outros, presumindo que a vontade hipotética ou conjectural das partes é no sentido de conservar o plano, à redução do plano às cláusulas incidentes sobre estes últimos créditos”.
39. E assim, desde há muito que se vem entendendo que a solução mais equilibrada, adequada e proporcional e que permitirá, simultaneamente, harmonizar os relevantes interesses sociais e económicos que o legislador se propôs salvaguardar através da instituição do processo de revitalização, pelo que, nesta senda se preconiza que a indisponibilidade do crédito tributário não é absoluta, cfr. Ac. da Rel. de Guimarães de 10.04.2012, in www.dgsi.pt.
40. Determinando-se a mera ineficácia relativa do Plano de Revitalização aprovado e homologado relativamente aos créditos de natureza tributária reclamados e de que seja titular o Instituto da Segurança Social, o plano de revitalização produzirá todos os seus efeitos, viabilizando-se assim o prosseguimento da actividade económica e comercial da Devedora e satisfazendo os interesses dos credores na exacta medida acordada e por eles aceite, com excepção daqueles que teriam reflexo na esfera jurídica do Instituto da Segurança Social, enquanto entidade titular de créditos de natureza tributária, ao qual não serão oponíveis, permanecendo, portanto, intangíveis e imodificáveis no seu conteúdo.
41. Tendo o Recorrente votado contra o Plano de Revitalização, inexistindo a competente e necessária autorização para o aludido pagamento nos termos constantes do Plano de Revitalização apresentado, não podia o plano ser homologado sem mais, portanto a moratória estabelecida é contrária ao disposto nos artigos 30.º, n.º 2 e 3, e 36.º, n.º 2 e 3 da L.G.T. e no art.º 190.º, n.º 1, 2 e 6 do Código Contributivo, normas de natureza imperativa.
42. Ao decidir homologar o plano de revitalização aprovado nos autos, sem declarar a sua inoponibilidade em relação ao aqui Recorrente, o Tribunal violou o disposto nos artigos 30.º, n.º 2 e 3, e 36.º, n.º 2 e 3 da L.G.T., no art. 190.º, 192.º a 197.º do Código Contributivo, e 215.º do CIRE, aplicável ao caso em apreço ex vi art.º 17º-F, nº 5 do mesmo diploma».
Nestes termos, entende que deve ser revogada a sentença recorrida e decretada a homologação do Plano de Revitalização com a expressa declaração de que o mesmo não produz efeitos em relação aos créditos da segurança social ou, se assim não se entender, a decisão recorrida deve ser substituída por outra que declare nulo o plano aprovado por violação das indicadas normas imperativas e recuse a sua homologação.
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A recorrida apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
A) O n.º 3 do art.º 30º da LGT não veio (e num Estado de Direito seria no mínimo de estranhar que o fizesse) conferir caráter indisponível ou imperativo ao sentido de voto do credor Segurança Social, no sentido de dele depender a aprovação e a validade do Plano, transformando-o num voto de qualidade ou num verdadeiro direito de veto.
B) A indisponibilidade ou imperatividade da lei vai reportada apenas aos créditos do Estado.
C) O âmbito da inderrogabilidade ou imperatividade do regime de regularização de dívidas ao Estado reporta às condições em que a lei ‘autoriza’ a Autoridade Tributária ou a Segurança Social a autorizar o pagamento em prestações, mas não inclui a autorização destas entidades”;
D) Como bem é referido no Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.2015 relativo ao processo nº 664/10.7TYVNG.P1.S1 e pesquisável em “www.direitoemdia.pt”, “temos entendido que a circunstância de que os créditos fiscais e da Segurança Social não serem iguais aos outros, não pode conduzir a uma tal protecção que mesmo sendo tais créditos de montante reduzido, pudesse ser permitido ao Estado acabar por inviabilizar qualquer tentativa de recuperação, votando contra todo e qualquer plano de recuperação, porque nestas situações particulares, efectuando uma interpretação actualista do artigo 215º do CIRE vem-se entendendo como caso negligenciável admitindo, por isso, a aprovação do plano a violação que se traduza numa mera modificação dos prazos de pagamento e/ou numa redução das taxas de juros, que reflictam e exprimam uma redução global do crédito pouco expressiva e se tal modificação dos prazos e redução de juros não estiver à partida proibida pelas disposições tributárias abstractamente convocáveis e invocáveis, cfr neste sentido o Ac STJ de 25 de Novembro de 2014 (Relator Fernandes do Vale, onde a aqui Relatora e o Exº Primeiro Adjunto foram Adjuntos), in www.dgsi.pt.
E) Trata-se de uma “válvula de segurança” interpretativa que evita pôr em causa acordos em que aqueles créditos, pelo seu reduzido montante e/ou, por via da concessão de moratórias por banda da administração, têm vindo a ser cumpridos pelo devedor, os quais a seguir-se com rigor a interpretação efectuada pelo segundo grau, também nunca poderiam ser homologados desde que a tal se opusessem os respectivos credores.
F) Qualquer das duas interpretações ensaiadas, contrabalança o voto da maioria dos credores com o voto (veto), da fazenda nacional e da segurança social, não privilegiando qualquer deles, por forma a que a maioria dos credores não possa impor a estas entidades a redução do seu crédito, juros e/ou moratórias não previstas pelas leis especiais aplicáveis, nem estas entidades possam impedir no imediato aqueles credores interessados e os insolventes, de enveredarem por um plano de viabilização da empresa, com vista à sua futura recuperação, cumprindo-se desta feita os objectivos prosseguidos pelo CIRE e as grandes opções do plano a nível económico-social.
G) Assim, a falta de expressa e discricionária autorização da Recorrente expressa através da votação desfavorável de um plano de recuperação não é suficiente para impedir a sua homologação, nas situações em que do mesmo resulta o escrupuloso cumprimento do disposto nos artigos 194.°, 195.º e 215.º do CIRE, 190.º e seguintes do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro (alterado pela Lei n.º 119/2009, de 30 de dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 140-B/2010, de 30 de dezembro, pela Lei n.º 55-A/2010), artigo 81º nºs 1 e 2 da Regulamentação do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 1-A/2011 de 03.01 bem como nos n.ºs 2 e 3 do artigo 30.º da Lei Geral Tributária, conforme sucede “in casu”
Terminou pugnando pela total improcedência da apelação.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, consistem em saber se os créditos da Segurança Social podem ser afectados, contra a sua vontade, pelo plano de recuperação aprovado no presente PER e, no caso negativo, se o plano deve ser homologado com ressalva daquele crédito.
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III. Fundamentação
1. A factualidade a considerar na apreciação do presente recurso corresponde às ocorrências descritas no ponto A. do relatório deste aresto.
2. Como vimos, a decisão recorrida homologou o plano de recuperação aprovado pelos credores da requerente deste PER e declarou expressamente que o mesmo vincula todos os credores, inclusivamente os que não participaram nas negociações e os que, tendo participado, votaram contra a aprovação do plano.
É contra esta decisão que se insurge o Instituto da Segurança Social, I.P, (ISS), único credor que votou contra a aprovação do referido plano, afirmando que o mesmo não pode afectar os seus créditos sem a sua autorização, nos termos da lei vigente, pelo que a homologação deve ressalvar a ineficácia do plano relativamente aos créditos da segurança social ou, se assim não se entender, deve ser recusada.
A questão assim colocada convoca o disposto no artigo 17.º-F, n.º 7, do CIRE e, por via da remissão aí operada, os preceitos dos artigos 215.º e 216.º do mesmo código, que regulam a não homologação do plano de insolvência, em termos inteiramente aplicáveis à não homologação do plano de recuperação aprovado no âmbito de um PER.
A primeira das referidas normas regula a não homologação oficiosa do plano, nos seguintes termos:
O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.
A segunda regula a não homologação a solicitação dos interessados, preceituando o seguinte no seu n.º 1:
O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:
a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;
b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.
Por força do disposto no artigo 17.º-F, n.º 3, no âmbito do PER, o prazo para a solicitação da não homologação do plano, “nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações”, é de 10 dias a contar da publicação no portal Citius do anúncio advertindo da junção ou não junção de nova versão do plano.
No presente caso, embora não tenha solicitado a não homologação do plano, no dia em que remeteu o seu voto por escrito à AI – ou seja, antes da aprovação do plano –, o agora recorrente solicitou ao tribunal a declaração da «ineficácia ou inoponibilidade da parte dispositiva do Plano em relação aos créditos da Segurança Social, caso o mesmo viesse a ser aprovado e subsequentemente homologado, alegando que não deu o seu consentimento expresso à modificação dos seus créditos, situação que viola a legislação específica da segurança social, bem como a legislação tributária, designadamente o artigo 30.º da Lei Geral Tributária, que refere que os créditos da Segurança Social são indisponíveis» (cfr. requerimentos juntos aos autos em 15.09.2023 e 25.09.2023).
O ISS não invocou, portanto, nenhuma das situações descritas na previsão do artigo 216.º, n.º 1, do CIRE, não chegando, sequer, a requerer a não homologação do plano de recuperação que viesse a ser aprovado pela maioria dos credores legalmente exigida, pelo que aquela norma não tem aplicação nestes autos.
Em todo o caso, a argumentação então esgrimida, ainda que de forma incipiente, pela recorrente e agora desenvolvida na alegação deste recurso, traduz-se na invocação de factos susceptíveis de justificar a não homologação ex officio do plano de recuperação, ao abrigo do artigo 215.º do CIRE, mais concretamente a violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo.
Embora a referida norma preveja, igualmente, a violação não negligenciável de regras procedimentais como fundamento da não homologação oficiosa do plano, nada foi alegado neste sentido, nem nós vislumbramos qualquer irregularidade procedimental que importe conhecer oficiosamente, pelo que não nos ocuparemos aqui deste fundamento (o mesmo sucedendo com os demais, consagrados na segunda parte da norma em análise: a não verificação, no prazo razoavelmente estabelecido, das condições suspensivas do plano ou a omissão dos actos ou medidas que devam proceder a homologação).
Em todo o caso, impõe-se distinguir as regras procedimentais das normas aplicáveis ao conteúdo do plano (cuja violação pode conduzir à sua não homologação).
Como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3.ª ed., 2015, p. 781), «normas procedimentais são, pois, todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes (…). Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deva contemplar».
A primeira das normas que o recorrente considera violadas pelo plano que veio a ser homologado é a do artigo 30.º da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro.
Não gera qualquer dissenso entre as partes que as dívidas por contribuições à Segurança Social assumem a natureza de dívidas tributárias, às quais se aplica a Lei Geral Tributária, o que merece a nossa inteira concordância, visto que tais dívidas se enquadram na categoria de tributos parafiscais prevista no artigo 3.º, n.º 1, al. a), da LGT). Deste modo, dispensamo-nos de outros desenvolvimentos a propósito desta classificação, limitando-nos a remeter para o que, a esse respeito, é dito no ac. do TRC, de 17.01.2012 (proc. n.º 1577/10.8TBPBL-F.C1, rel. Alberto Ruço), e a retirar a ilação de que a LGT, maxime a regulação do objecto da relação jurídica tributária nela vertida, se aplica aos referidos créditos da Segurança Social.
Na sua versão originária, o referido artigo 30.º da LGT era apenas composto por dois números, definindo-se no n.º 1 o âmbito da relação jurídica tributária, integrada logo à cabeça pelo crédito e pela dívida tributários, e consagrando-se no n.º 2 um princípio de indisponibilidade e intangibilidade de créditos tributários, nos seguintes termos:
O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.
O princípio da igualdade corresponde a um princípio geral de direito, com assento constitucional (cfr. artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa), concretizado e densificado em diversas normas constitucionais e infraconstitucionais.
O princípio da igualdade tributária é uma dessas concretizações, estando previsto no artigo 5.º da LGT como um dos princípios que a tributação deve respeitar, a par dos princípios da generalidade, da legalidade e da justiça material.
Como se escreve no já referido ac. do TRC de 17.01.2012, citando Pedro Soares Martinez (Manual de Direito Fiscal, pág. 103, Coimbra, Almedina, 1983) «[p]or igualdade tributária entende-se a não discriminação em matéria de impostos o que implica a generalidade do imposto, isto é, a obrigação de todos contribuírem para os encargos públicos segundo os seus haveres».
Por sua vez, o princípio da legalidade tributária está consagrado no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e no artigo 8.º da LGT (cuja epígrafe é, precisamente, Princípio da legalidade tributária) e corresponde, na sua essência, à reserva de lei (cfr. o ac. do TRC de 17.01.2012, antes citado), que deste modo abarca, para além das matérias elencadas nas normas antes citadas, a fixação de condições para a redução ou extinção dos créditos tributários, atento o disposto na norma agora em apreço. Como se escreve no referido acórdão do TRC, «quando no n.º 2 do artigo 30.º se refere que só podendo fixar-se condições para a redução ou extinção dos créditos tributários com respeito pelo princípio da legalidade tributária, está a determinar que esta «redução e extinção» só são possíveis se decretados por lei, com carácter, portanto, geral e abstracto, o que implica a impossibilidade da administração tributária decidir pontualmente a redução ou extinção destes créditos em casos concretos».
Cremos que o mesmo raciocínio se aplica à concessão de moratórias, atento o disposto no artigo 36.º da mesma lei, que dispõe assim: A administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei.
Em obediência a este princípio de legalidade, o legislador regulou as condições em que a própria administração tributária, aqui se incluindo a Segurança Social, pode autorizar o pagamento das dívidas tributárias em condições distintas das que a lei estabelece como regra geral, nomeadamente o pagamento em prestações (sendo certo que este pagamento fraccionado não corresponda a uma moratória, ao contrário do que parece entender a recorrente, ainda que ambas as figuras se traduzam numa dilação do momento do cumprimento) e a isenção ou redução dos juros. Tais condições estão reguladas nos artigos 196.º e seguintes do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, para a generalidade das dívidas tributárias, e nos artigos 190.º e seguintes do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS), aprovado pela Lei n.º 10/2009, de 16 Setembro, e regulamentado pelo Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, de 3 de Janeiro (cfr. artigo 81.º deste diploma), especificamente para as dívidas por contribuições à Segurança Social.
Sucede que, a par desta legislação geral regulatória das relações tributárias, a legislação insolvencial (mais concretamente o título IX do CIRE, dedicado ao plano de insolvência, aplicável ao plano de recuperação conducente à revitalização da empresa com as necessárias adaptações, por força da remissão operada pelo artigo 17.º-F, n.º 7, do mesmo código) também contempla a possibilidade de alteração, redução ou extinção de créditos, incluindo aqueles de que é titular o Estado.
O artigo 192.º, n.º 2, do CIRE, preceitua que 2 o plano só pode interferir com os direitos dos interessados ou de terceiros na medida em que tal seja expressamente autorizado no referido título IX ou consentido pelos visados.
O artigo 194.º, sob a epígrafe Princípio da igualdade, dispõe assim:
1 - O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.
2 - O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.
3 - É nulo qualquer acordo em que o administrador da insolvência, o devedor ou outrem confira vantagens a um credor não incluídas no plano de insolvência em contrapartida de determinado comportamento no âmbito do processo de insolvência, nomeadamente quanto ao exercício do direito de voto.
O artigo 196.º, n.º 1, acrescenta que o plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências com incidência no passivo do devedor:
a) O perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula «salvo regresso de melhor fortuna»;
b) O condicionamento do reembolso de todos os créditos ou de parte deles às disponibilidades do devedor;
c) A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos;
d) A constituição de garantias;
e) A cessão de bens aos credores.
Estas normas consagram, sem qualquer equívoco, a possibilidade de o plano prever a alteração, a redução ou a extinção de créditos sobre a massa insolvente, independentemente da sua natureza ou da qualidade dos seus titulares, não excepcionando os créditos do Estado, inclusivamente os créditos tributários, desde que tais medidas não violem o princípio da par conditio creditorum plasmado no artigo 194.º ou as demais regras consagradas no título IX.
Mas o CIRE, nomeadamente nas normas que regulam a aprovação e a homologação do plano de recuperação, tanto no processo de insolvência como no PER, não condiciona a validade ou a eficácia das medidas que atingem os créditos tributários, tal como não condiciona a aprovação e a homologação dos planos que as incluam, à anuência ou consentimento do Estado (da Autoridade Tributária e Aduaneira ou do Instituto da Segurança Social, I.P.), ao contrário do que sucede na legislação tributária acima referida (cfr. artigo 190.º do CRCSPSS e artigos 196.º e 197.º do CPPT).
Afigura-se de linear clareza que o regime acabado de descrever respeita o princípio da legalidade tributária, ou seja, a reserva de lei imposta pelo artigo 30.º, n.º 2, da LGT. Também não se vislumbra como possa esse mesmo regime por em causa a igualdade tributária.
Assim, à luz da versão originária daquele artigo 30.º, apenas se poderiam suscitar dúvidas quanto à compatibilidade entre os regimes consagrados no CPPT e no CRCSPSS, por um lado, e os regimes consagrados no CIRE, por outro lado, revelando-se os últimos claramente mais permissivos, tanto no que concerne à extensão das medidas que atingem os créditos tributários, como no que respeita aos requisitos de aprovação dessas medidas, desde logo a dispensa de consentimento ou autorização do Estado para a sua aprovação.
A resolução desta questão gerou um consenso alargado na jurisprudência nacional, no sentido da prevalência das normas especiais do CIRE, por derrogarem as normas gerais do CPPT e do CRCSPSS, em conformidade com o princípio lex specialis derogat legi generalis ínsito no artigo 7.º, n.º 3, do Código Civil (CC).
Como se resume no ac. do TRP, de 07.07.2011 (proc. n.º 393/10.1TYVNG.P1, rel. José Ferraz), «[a]ssentava essa posição jurisprudencial, essencialmente, na especialidade da lei falimentar relativamente à lei geral tributária (a aplicar nas relações entre a administração fiscal e os contribuintes), segundo princípio de que lex specialis derogat legi generali, no princípio da igualdade dos credores (par conditio creditorum), quando em igualdade de situações, e da primazia da vontade destes na escolha da melhor forma de satisfação dos seus interesses na insolvência (incluindo pela aprovação de um plano de insolvência a que todos ficassem vinculados) – cfr. Arts 1º, 192º, 194º e 196º do CIRE – e na participação do Estado no esforço de solvência das empresas viáveis, assim contribuindo para a realização do interesse público do regular e saudável funcionamento do mercado e da actividade económica. Tanto mais quando é sabido, atento, normalmente, o peso das dívidas dos insolventes ao Estado e outros credores públicos, cuja falta de colaboração no esforço do plano, fazendo recair os encargos da insolvência apenas sobre os demais credores, acabaria por determinar a sua inviabilidade. Só sendo justificada a recusa de homologação do plano nos casos previstos no artigo 215º (“violação não negligenciável de regras procedimentais ou da normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza”) ou verificadas as situações previstas no artigo 216º/1 (ambos do CIRE)».
Ainda assim, uma corrente jurisprudencial claramente minoritária pugnava pela absoluta intangibilidade dos créditos tributários e previdenciais e pela nulidade total do plano de recuperação que violasse essa intangibilidade de forma não consentida.
O artigo 123.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2011, veio alterar o artigo 30.º da LGT, introduzindo um n.º 3 com a seguinte redacção:
O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial.
Por sua vez, o artigo 125.º da mesma Lei n.º 55-A/2010, estabeleceu o seguinte regime transitório:
O disposto no n.º 3 do artigo 30.º da LGT é aplicável, designadamente aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos.
A redacção destas normas, em especial do novo n.º 3 do artigo 30.º da LGT, revela-se equívoca. Interpretada no seu sentido literal – de que a legislação especial apenas poderá fixar condições para a redução ou extinção dos créditos tributários, contrárias à sua natureza indisponível, com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária – esta norma nada acrescenta ao que já constava do n.º 2. Ora, não é defensável que o legislador tenha alterado um artigo da Lei Geral Tributária, aditando um novo número, sem pretender alterar ou acrescentar algo a esse artigo, isto é, sem pretender conferir qualquer alcance prático à alteração.
Não obstante, rapidamente se gerou um consenso alargado na jurisprudência (designadamente da 6.ª secção do STJ, que tem competência especializada em matéria do foro comercial) e na doutrina a respeito do alcance desta alteração, percepcionada como um claro reforço da intangibilidade dos créditos tributários, na medida em que veda a possibilidade de alguma lei especial poder afectar a indisponibilidade dos créditos tributários, cingindo esta possibilidade à lei geral.
Esta leitura é reforçada pela norma transitória introduzida pelo artigo 125.º da Lei do Orçamento de Estado para 2011, a qual denuncia que a lei especial que o legislador tinha em mente era o CIRE. Embora a redacção daquele artigo 125.º também não prima pela clareza e pelo rigor terminológico, designadamente quando alude à homologação de processos de insolvência, em vez de aludir à homologação de planos de insolvência e/ou de recuperação, a sua conjugação com a nova redacção do artigo 30.º da LGT deixa claro que foi propósito do legislador impedir que a intangibilidade dos créditos tributários pudesse ser afastada apenas por via do direito insolvencial, à margem das regras consagradas nas normas gerais do direito tributário.
Concordamos, assim, com o ac. do TRC de 17.01.2012, antes citado, cujo sumário reza assim:
«1 – Quando estão em causa processos de insolvência, a procura de um sentido normativo para os textos legais constantes do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 30.º da Lei Geral Tributária, na redacção introduzida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, (Orçamento de Estado para 2011), conjugados ainda com o disposto no artigo 125.º da mesma lei, equivalem a este conteúdo: «O crédito tributário é indisponível…»; esta norma «prevalece sobre qualquer legislação especial», designadamente sobre a relativa aos «… processos de insolvência …».
2 – Esta interpretação implica que se considerem inaplicáveis as normas em vigor constantes de leis especiais, incluindo as previstas no CIRE, onde se previa a possibilidade de ocorrer uma situação de perdão ou redução de créditos tributários».
Desta forma, o legislador afastou, de forma expressa, a regra interpretativa da prevalência da norma especial sobre a norma geral, como o artigo 7.º, n.º 3, do CC, expressamente permite, retirando a base de sustentação da interpretação que vinha sendo maioritariamente seguida pelos tribunais.
Não se ignora que esta mudança surge em contraciclo com a evolução que o direito falimentar vinha registando desde a entrada em vigor do CIRE.
Este, na sua versão originária, abandonou o primado da recuperação da empresa que caracterizava o anterior Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, e elegeu como principal finalidade do processo de insolvência a satisfação dos credores, por via da liquidação do património do devedor ou pela forma prevista num plano de insolvência, o qual se poderia basear na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, conforme preceituado na versão originária do artigo 1.º do CIRE, que referia em primeiro lugar a liquidação do património e só depois a recuperação da empresa. Concomitantemente, o novo código desjudicializou o processo de insolvência e colocou nas mãos dos credores o destino do devedor, erigindo-os em verdadeiros “proprietários económicos” da empresa.
Em 2012, com a pressão da crise económica e do acordo de ajuda financeira ao Estado Português firmado com a denominada troika (Banco Central Europeu, o Fundo Monetário Internacional e a União Europeia), a Lei n.º 17/2012, de 20 de Abril, introduziu profundas alterações no CIRE. Mantendo o primado da satisfação dos credores e a ampla desjudicialização do processo de insolvência, passou a privilegiar a recuperação da empresa como mecanismo para atingir aquela finalidade.
Logo no seu artigo 1.º, passou a preceituar que o processo de insolvência «tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores».
Paralelamente, criou um processo pré-insolvencial (o PER, previsto no artigo 1.º, n.º 2, e regulado nos artigos 17.º-A a 17.º-I) destinado a permitir aos titulares de empresas que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda sejam suscetíveis de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.
Esta alteração de paradigma deu corpo a obrigações assumidas no memorando de entendimento assinado com a troika, entre as quais se destacam os pontos 2.17 a 2.19, que passamos a transcrever:
2.17. A fim de melhor facilitar a recuperação efectiva de empresas viáveis, o Código de Insolvência será alterado até ao fim de Novembro de 2011, com assistência técnica do FMI, para, entre outras, introduzir uma maior rapidez nos procedimentos judiciais de aprovação de planos de reestruturação.
2.18. Princípios gerais de reestruturação voluntária extra judicial em conformidade com as boas práticas internacionais serão definidos até ao fim de Setembro de 2011.
2.19. As autoridades tomarão também medidas necessárias para autorizar a administração fiscal e a segurança social a utilizar uma maior variedade de instrumentos de reestruturação baseados em critérios claramente definidos, nos casos em que outros credores também aceitem a reestruturação dos seus créditos, e para rever a lei tributária com vista à remoção de impedimentos à reestruturação voluntária de dívidas.
Como afirma António Fonseca Ramos (Os Créditos Tributários e a Homologação do Plano de Recuperação, Revista de Direito da insolvência, n.º 0, 2016, p. 276), «[d]ir-se-ia que o legislador, com a introdução do PER no CIRE, iria acolher os demais pontos do Acordo celebrado com a Troika no que respeita aos créditos fiscais, parafiscais e previdenciais. Seria o momento azado. Paradoxalmente, tê-lo-ia feito por omissão, desde logo a nosso ver, se não tivesse alterado da Lei Geral Tributária, em Dezembro de 2010, Lei do Orçamento para 2011. Mas o legislador alterou a lei, aniquilando o entendimento que a Jurisprudência, maioritariamente, vinha sufragando quanto à aplicação das normas tributárias no contexto do processo de insolvência, admitindo que os créditos fiscais fossem atingidos mesmo sem o consentimento da autoridade tributária».
E fê-lo, claramente, com o propósito de blindar os créditos tributários no processo de insolvência, ainda que, deste modo, possa criar entraves à recuperação da empresa.
Se a lei (geral) tributária prevalece sobre a lei (especial) falimentar, não sendo derrogada por esta, o princípio geral de que os créditos tributários são indisponíveis, bem como as condições para a sua alteração, redução ou extinção previstas naquela lei geral, maxime na LGT, no CPPT e no CRCSPSS, têm de ser respeitados no âmbito dos processos insolvenciais e pré-insolvenciais, nomeadamente pelo conteúdo do plano de recuperação, nos termos previstos no artigo 216.º do CIRE.
Ora, aqueles diplomas prevêm, para além da medida em que os créditos tributários podem ser afectados – cujos limites foram, no caso em análise, escrupulosamente respeitados –, a necessidade de autorização do próprio Estado para essa afectação, por via do organismo competente. Significa isto que o plano de recuperação aprovado no processo de insolvência ou no PER apenas pode afectar os créditos tributários se o Estado o autorizar – o que, no caso, ocorreu relativamente aos créditos da Autoridade Tributária, mas já não quanto aos créditos da Segurança Social, a qual se opôs, desde o início, a que os mesmos fossem afectados.
Neste sentido, a título de exemplo, vide: os acórdãos do STJ, de 10.05.2012 (proc. n.º 368/10.0TBPVL-D.G1.S1, rel. Álvaro Rodrigues), de 13.11.2014 (proc. n.º 3970/12.2TJVNF-A.P1.S1, rel. Salreta Pereira), de 24.03.2015 (proc. n.º 664/10.7TYVNG.P1.S1, rel. Ana Paula Boularot), de 10.05.2018 (proc. n.º 4986/16.5T8VIS.C1.S1, rel. Fonseca Ramos) e de 09.06.2021 (proc. n.º 1412/20.9T8VNF.G1.S1, rel. Luís Espírito Santo); os acórdãos do TRP, de 25.10.2011 (proc. n.º 554/10.3TBPRD-H.P1, rel. Anabela Dias da Silva), de 07.07.2011 (proc. n.º 393/10.1TYVNG.P1, rel. José Ferraz, já antes citado), de 14.11.2011 (proc. n.º 1911/09.2TBLSD-H.P1, rel. Rui Moura) e de 24.01.2022 (proc. n.º 697/21.8T8AMT.P1, rel. Manuel Domingos Fernandes); os acórdãos do TRC, de 29.11.2011 (proc. n.º 588/08.8TBFND-D.C1, rel. Artur Dias), de 17.01.2012 (proc. n.º 1577/10.8TBPBL-F.C1, rel. Alberto Ruço, já antes citado) e de 13.01.2015 (proc. n.º 1395/13.1TBCVL.C1, rel. Moreira do Carmo); e o ac. do TRL, de 19.04.2015 (proc. n.º 77/15.4T8LSB.L1-2, rel. Sousa Pinto).
Esta solução legislativa foi alvo de duras críticas, por equiparar a insolvência a uma mera execução fiscal, na medida em que permite ao Estado actuar como um simples reclamante de créditos, mantendo-se à margem do esforço desenvolvido no processo pelos demais credores, que contribuem para a recuperação da empresa abdicando dos seus créditos, escudado em leis que contrariam o seu compromisso de contribuir para a recuperação das empresas, ao que acresce a circunstância de, muitas vezes, o Estado se situar entre os maiores credores, pelo que a intangibilidade total dos seus créditos compromete definitivamente as possibilidades de recuperação da empresa.
Para maiores desenvolvimentos, para além da jurisprudência que vimos citando, vide: António Fonseca Ramos, Os Créditos tributários e a homologação do plano de recuperação da insolvência, III Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2016, pp. 361 a 381; António Fonseca Ramos, Os Créditos Tributários e a Homologação do Plano de Recuperação, Revista de Direito da insolvência, n.º 0, 2016, pp. 267 a 288).
Certamente por ser sensível às razões apontadas nestas críticas, alguma jurisprudência vem preconizando soluções correctivas da leitura antes descrita, tendo em vista ultrapassar aquelas críticas ou, pelo menos, mitigar os seus efeitos, nuns casos defendendo a existência de válvulas de segurança interpretativas, noutros preconizando interpretações do artigo 30.º da LGT que se afastam totalmente da dominante.
Enquadrado no primeiro grupo de soluções correctivas, o ac. do STJ de 10.05.2018 já antes citado admite que «em caso de flagrante e injustificada afirmação intransigente, pela autoridade tributária, das prerrogativas dos créditos fiscais, podem os Tribunais desconsiderá-las, na salvaguarda de interesses públicos, que num patamar de justificados sacrifícios, imponham ao Estado, [no respeito pelo paradigma insolvencial vigente, sobretudo após a Reforma de 2012, com a introdução do PER, já que a finalidade da lei insolvencial é agora a recuperação da empresa devedora e não a liquidação], o seu contributo para evitar a destruição e a liquidação da empresa. Nesse hipotético quadro de estado de necessidade social e visando evitar a derrocada de empresas, sobretudo, grandes empregadores, num meio social economicamente débil e carenciado, a justiça, a equidade e os fins sociais pelos quais o Estado deve velar, podem conduzir à atenuação daqueles direitos (…), se e quando a posição dos credores públicos for decisiva para a recuperação da sociedade devedora».
Mas, não sendo esse o caso, uma vez que (tanto no nosso caso, como no caso apreciado no acórdão que vimos cirando) a votação da Segurança Social «não era sequer decisiva para a aprovação do plano, não se antevê fundamento para alterar a Jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal de Justiça».
Em sentido próximo, afirma-se o seguinte no ac. do STJ de 24.03.2015, também já citado: «temos entendido que a circunstância de que os créditos fiscais e da Segurança Social não serem iguais aos outros, não pode conduzir a uma tal protecção que mesmo sendo tais créditos de montante reduzido, pudesse ser permitido ao Estado acabar por inviabilizar qualquer tentativa de recuperação, votando contra todo e qualquer plano de recuperação, porque nestas situações particulares, efectuando uma interpretação actualista do artigo 215º do CIRE vem-se entendendo como caso negligenciável admitindo, por isso, a aprovação do plano a violação que se traduza numa mera modificação dos prazos de pagamento e/ou numa redução das taxas de juros, que reflictam e exprimam uma redução global do crédito pouco expressiva e se tal modificação dos prazos e redução de juros não estiver à partida proibida pelas disposições tributárias abstractamente convocáveis e invocáveis».
Acrescenta-se no mesmo acórdão que esta interpretação – a par da interpretação que defende a mera ineficácia do plano perante os créditos tributários, nos termos que melhor explicitaremos de seguida – «contrabalança o voto da maioria dos credores com o voto (veto), da fazenda nacional e da segurança social, não privilegiando qualquer deles, por forma a que a maioria dos credores não possa impor a estas entidades a redução do seu crédito, juros e/ou moratórias não previstas pelas leis especiais aplicáveis, nem estas entidades possam impedir no imediato aqueles credores interessados e os insolventes, de enveredarem por um plano de viabilização da empresa, com vista à sua futura recuperação, cumprindo-se desta feita os objectivos prosseguidos pelo CIRE e as grandes opções do plano a nível económico-social».
No caso concreto, já vimos que o voto da segurança social não obstou à aprovação do plano. Por outro lado, não cremos que o plano aprovado, no que respeita aos créditos da Segurança Social, se traduza numa alteração pouco expressiva, que justifique o recurso a esta válvula de segurança interpretativa. Isso mesmo foi decidido pelo STJ, no seu ac. de 09.06.2021, já antes citado, numa situação semelhante à que aqui nos ocupa, mesmo estando em causa créditos da Segurança Social de valor significativamente inferior ao que está em causa nos presentes autos. Na verdade, pode ler-se o seguinte naquele aresto:
«Acresce dizer ainda que o valor expressivo do créditos privilegiados reclamados pelo Instituto de Segurança Social de ... – no valor total de € 76.547,58 proveniente de dívida de contribuições à segurança social – e a amplitude e relativa generosidade quanto ao seu modo de pagamento – onde se prevê a sua regularização “através de Plano Prestacional a autorizar no âmbito do Processo de Execução Fiscal, no máximo de 150 (cento e cinquenta) prestações mensais e sucessivas, sendo o respetivo requerimento formalizado pela empresa no mês de aprovação do Plano, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte, com garantias a analisar no âmbito da execução fiscal” – não justificam, na situação sub judice, o recurso à “válvula de segurança interpretativa” ensaiada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Março de 2015 (relatora Ana Paula Boularot), proferido no processo nº 664/10.7TYNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, para as situações em que se trate de “uma mera modificação dos prazos de pagamento e/ou taxas de juros que reflictam e exprimam uma redução global do crédito pouco expressiva”.»
Soluções mais drásticas – enquadradas no segundo dos aludidos grupos – foram defendidas por alguma jurisprudência minoritária, de que são exemplo os acórdãos do TRG, de 10.04.2012 (proc. n.º 2261/11.0TBBRG-E.G1, rel. Ana Cristina Duarte), do TRL, de 27.10.2020 (proc. n.º 27086/19.1T8LSB.L1-1, rel. Manuela Espadaneira Lopes) e do ac. do TRC, de 26.04.2022 (proc. n.º 840/21.7T8ACB.C1, rel. Maria João Areias).
No primeiro destes acórdãos considera-se que o legislador não pretendeu solucionar, por via legislativa, a controvérsia que se havia gerado na jurisprudência sobre esta questão, até porque, na data em que foi alterado o artigo 30.º da LGT, já se havia formado na jurisprudência um entendimento praticamente uniforme no sentido oposto ao que agora se considera decorrer daquela alteração.
Mas, por um lado, não se esclarece ali qual poderá ter sido o propósito da referida alteração legislativa, parecendo até afirmar-se que a mesma não teve qualquer propósito, o que não se afigura defensável, como já dissemos.
Por outro lado, concordamos que o legislador não pretendeu resolver uma controvérsia praticamente ultrapassada. O que pretendeu foi alterar a lei no sentido defendido pela AT e pelo ISS, que sempre se haviam oposto com tenacidade à afectação dos seus créditos à margem das condições estabelecidas na lei tributária, ainda que o tenha feito de forma pouco feliz, como é assinalado no mesmo acórdão.
No mais recente dos acórdãos antes citados defende-se que a concessão de moratórias ou a autorização de pagamentos fracionados não viola o princípio da indisponibilidade dos créditos fiscais consagrado no artigo 30.º da LGT, o qual abrange apenas a extinção e a redução desses créditos.
Mas não se afigura defensável que a indisponibilidade dos créditos tributários não abranja as condições de cumprimento das obrigações fiscais e previdenciais. Se assim fosse, o legislador não teria sentido a necessidade de regular – como efectivamente regulou – os requisitos da autorização desse tipo de medidas por parte dos organismos públicos no âmbito das suas relações com os contribuintes. De resto, o artigo 36.º, n.º 2, da LGT preceitua de forma expressa que a administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei.
Mais consistente se mostra a argumentação, esgrimida no mesmo acórdão do TRC e no acórdão do TRL, no sentido de que a norma do artigo 30.º da LGT apenas impede que, por via da legislação insolvencial e dos processos nela regulados, os créditos tributários possam ser atingidos por medidas que desrespeitem os requisitos e os limites definidos na legislação geral tributária para a redução ou alteração desses créditos, independentemente do sentido de voto – favorável ou desfavorável – daqueles credores.
Sucede que o cumprimento daquela legislação tributária não se basta com o respeito pelas balizas ali definidas para as medidas de alívio do devedor, exigindo igualmente, como já dissemos, a autorização do organismo competente, nomeadamente a AT e/ou o ISS.
O acórdão do TRC ultrapassa esta objecção afirmando que, no âmbito do processo de insolvência ou do PER, a falta de autorização constitui uma violação não negligenciável, conquanto as restrições impostas pelo plano aos créditos tributários se contenham dentro dos parâmetros previstos pelas disposições tributárias aplicáveis.
Citando Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, afirma-se no mesmo acórdão que «são não negligenciáveis, todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido». Os mesmos autores (ob. cit., p. 782) acrescentam que importa, assim, «sindicar se a nulidade observada é susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta – tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável».
Julgamos ser pacífico que as regras que regulam as derrogações ao princípio da indisponibilidade e da intangibilidade dos créditos tributários são de interesse público, dadas as finalidades da cobrança desses créditos. Ora, entre essas regras inclui-se a que faz depender a redução ou a alteração desses créditos de autorização do órgão do Estado competente. Não se trata, portanto, de uma “regra de tutela particular” que possa ser “afastada com o consentimento do protegido”. E não cremos que caiba nos poderes dos tribunais comuns substituir-se aos órgãos da administração tributária ou da segurança social na apreciação do interesse público subjacente à cobrança dos respectivos créditos (isto sem prejuízo de, em situações limite, poder lançar mão das válvulas de segurança acima aludidas).
Argumenta-se, por sua vez, no ac. do TRL que o artigo 30.º, n.º 3, da LGT não transformou o voto da Autoridade Tributária e da Segurança Social num voto de qualidade ou num direito de veto, mais se acrescentando o seguinte:
«A indisponibilidade ou imperatividade da lei vai reportada apenas aos créditos, no que aqui interessa, às condições legais previstas para a respetiva extinção ou modificação, que são juridicamente sindicáveis, e já não ao sentido de voto que pelo credor Estado seja manifestado em sede de votação de Plano (seja no âmbito de PER, seja em processo de insolvência), que o emite como qualquer outro credor, nas condições previstas pelo art. 73º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Assim, a indisponibilidade prevista pelo art. 30º, nº 3 da LGT vai reportada apenas aos créditos do Estado; e o âmbito da inderrogabilidade ou imperatividade do regime de regularização de dívidas ao Estado reporta às condições em que a lei ‘autoriza’ a Autoridade Tributária ou a Segurança Social a autorizar o pagamento em prestações, mas não inclui a autorização destas entidades. Autorização (administrativa) que constitui condição de eficácia da proposta de pagamento em prestações no âmbito do procedimento (administrativo) legalmente previsto para o seu processamento e deferimento, no âmbito das competências (administrativas) da Autoridade Tributária e da Segurança Social (cfr. art. 190º, nº 6 do CRCSPSS e 197º do CPPT), mas que não tem nem pode ter assento e constituir requisito de eficácia do plano prestacional para pagamento de dívidas ao Estado inserido no âmbito mais alargado de um plano de reestruturação do passivo do devedor ‘universalmente’ aprovado em sede procedimento judicial legalmente erigido a motor de promoção da recuperação do agente económico endividado.»
São muito ponderosos os argumentos assim esgrimidos neste aresto. E, do ponto de visto de iure constituendo, são dificilmente objectáveis. Mas não se afiguram defensáveis do ponto de vista de iure constituto, pelas razões que fomos expondo, mormente a clara pretensão legislativa de blindar os créditos tributários no contexto dos processos insolvenciais e pré-insolvenciais.
Assim, não cremos que existam razões suficientemente fortes para nos afastarmos daquela que é a jurisprudência firme do STJ, designadamente da 6.ª secção, única com competência para decidir as questões do foro comercial e que, por essa razão, assume uma relevante função de convergência jurisprudencial nesta matéria.
Atento tudo quanto ficou exposto, concluímos que as medidas inseridas no plano aprovado no âmbito deste PER relativas aos créditos de que é titular o ISS importam numa violação não negligenciável de normas imperativas aplicáveis ao seu conteúdo, pelo que, por força do disposto no artigo 216.º do CIRE, aquele plano não pode ser homologado, nos seus exactos termos.
Coloca-se, então, a questão de saber se este vício determina a não homologação oficiosa do plano aprovado, como decorre da letra da norma antes citada, ou se o mesmo deve ser homologado com salvaguarda dos créditos intangíveis da Segurança Social.
Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra, 2022, pp. 511 e 512) assinala que «[a] jurisprudência tem-se dividido quanto a esta questão. As decisões de recusa de homologação fundamentam-se na existência de “uma violação que, por afetar a boa decisão da causa, configura uma nulidade que atinge todo o plano votado, a ser tratada nos termos da lei processual geral […] com a particularidade prescrita no próprio art. 215.º do CIRE».
Por sua vez, Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra, 2021, p. 445) esclarece que «[b]aseando-se na essência contratual do plano de recuperação, os tribunais superiores têm vindo a decidir a favor da homologação do plano de recuperação salvaguardando embora os créditos tributários. Mas, enquanto para uns, a solução passa pela inoponibilidade do plano aos créditos tributários, para outros, a solução passa por presumir que a vontade hipotética ou conjectural das partes é no sentido de conservar o plano, portanto, pela expurgação das cláusulas incidentes sobre os créditos tributários».
A tese claramente maioritária na jurisprudência dos tribunais superiores e, ao que julgamos saber, uniforme na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, é a da homologação do plano de recuperação, com ressalva da sua ineficácia relativamente aos créditos tributários cujos titulares não tenham autorizado a sua afectação pelo plano aprovado.
Neste sentido, vide o já citado ac. do STJ de 10.05.2018, relatado por Fonseca Ramos, onde a questão é enquadrada, analisada e fundamentada com profundidade.
Atenta esta convergência jurisprudencial e, sobretudo, a circunstância de a própria recorrente manifestar a sua concordância com a solução maioritariamente aceite, pugnando pela homologação do plano com ressalva da ineficácia do mesmo quanto aos seus créditos, apenas se opondo a tal homologação a título subsidiário, para o caso de o tribunal não considerar possível a homologação naqueles termos, julgamos totalmente dispensáveis outros desenvolvimentos a este respeito.
Resta apenas concluir que, pelas razões expostas, deverá manter-se a homologação do plano aprovado no presente PER, mas declarar-se a sua ineficácia quanto aos créditos de que é titular o recorrente ISS.
Não obstante a total procedência do recurso, as custas do mesmo serão suportadas pelo recorrente, por ser quem dele tirou proveito, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1, do CPC.
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V. Decisão
Pelo exposto, na procedência da apelação, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto revogam parcialmente a decisão recorrida e, mantendo a homologação do plano aprovado no presente PER, declaram a sua ineficácia quanto aos créditos de que é titular o recorrente Instituto da Segurança Social, I.P.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 19 de Dezembro de 2023
Artur Dionísio Oliveira
João Diogo Rodrigues
Rui Moreira