Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0542849
Nº Convencional: JTRP00038656
Relator: COELHO VIEIRA
Descritores: ARMA BRANCA
ARMA PROIBIDA
Nº do Documento: RP200601110542849
Data do Acordão: 01/11/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: Um punhal com 28,5 centímetros de comprimento, sendo 12,5 centimetros de lâmina, com o cabo em forma de pata de cabrito e a lâmina protegida por uma baínha em couro, é uma arma branca com disfarce.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

A Digna Magistrada do MP junto do T. J. de Vila do Conde veio deduzir acusação pública contra o arguido B..........., com os sinais dos autos, alegando que:

Em 2/02/04, cerca das 17,40 horas, no interior do Café C......, Vila do Conde, o arguido tinha na sua posse um punhal com o comprimento total de 28 cm., sendo 12,5 cm. de lâmina, com o cabo em pêlo de cor castanha, de forma de pata de cabrito, encontrando-se a lâmina escondida por uma bainha de couro. Este objecto foi-lhe apreendido, fotografado ( fls. 11 ) e examinado nos autos, resultam as características do exame directo de fls. 14, aqui reproduzidas para todos os efeitos legais.
A arma apreendida era adequada a provocar lesões corporais ou mesmo a morte, sendo certo que o arguido não tinha qualquer razão e motivo para deter aquele punhal naquelas circunstâncias de modo, tempo e lugar.
O arguido conhecia a natureza e característica da arma em causa, bem sabendo que a posse da mesma lhe era proibida por lei.
Agiu, pois, deliberada , livre e conscientemente, bem sabendo não lhe ser permitida tal conduta.
Constituiu-se, assim, autor material de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 275º ns. 1 e 3, do C. Penal, com referência ao art. 3º n.º 1, al. f), do DL n.º 207/A/75, de 17/04.
O MP indicou, como provas, uma testemunha, bem como o auto de exame de fls. 14.
XXX

Remetidos os autos à distribuição, o Mertº Juiz do 1º Juízo Criminal do T. J. de Vila do Conde exarou o seguinte DESPACHO:-
(...)
O tribunal é o competente.
O Mº Público deduziu acusação em processo comum singular contra B....., imputando-lhe a prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. no artº 275º nºs 1 e 3 do Cód. Penal, com referência ao artº 3º nº 1 al. f) do Dec-lei nº 207-A/75 de 17 de Abril.
Alega que o arguido tinha na sua posse um punhal com o comprimento total de 28 cm, sendo 12,5 cm de lâmina, com o cabo em pêlo de cor, castanha em forma de pata de cabrito e encontrando-se a lâmina escondida por uma bainha em couro, remetendo-se para o objecto fotografado a fls. 11.
Contudo, em nossa opinião, os factos descritos na acusação não integram a prática do crime imputado ao arguido.
O artº 275º do Cód. Penal (na redacção primitiva e na actual redacção introduzida pela Lei nº 98/01 de 25.8, pela qual se alargou o âmbito do tipo legal e se agravaram algumas penas), remete implicitamente para legislação avulsa.
Nesta, dispõe a al. f) do nº 1 do artº 3º do Dec-lei nº 207-A/75 de 17.4, como sendo
proibida a detenção, uso e porte das seguintes armas ou engenhos: “armas brancas ou de fogo com disfarce ou ainda outros instrumentos sem aplicação definida, que possam ser usados como arma letal de agressão, não justificando o portador a sua posse”.
A jurisprudência dominante vai no sentido de entender que a arma branca só pode, ser considerada proibida se tiver disfarce [Neste sentido, v. Ac. Do STJ de 07.11.2001 publicado na C.J.,Acs. STJ, 2001, Tomo III, pág. 205 e ss].
O instrumento em causa descrito na douta acusação pública é um punhal com o
comprimento total de 28 cm, sendo 12,5 cm de lâmina, fotografado a fls. 11.
É uma arma na medida em que se considera "arma qualquer instrumento, ainda que
de aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou que possa ser utilizado
para tal fim" (artº 4º do Dec-lei nº 48/95 de 15.3, diploma que reviu o Cód. Penal).
É, sem dúvida, uma arma branca, expressão que abrange todo um conjunto de instrumentos cortantes ou perfurantes, normalmente de aço, a maioria deles utilizados habitualmente nos usos ordinários da vida, mas também podendo sê-lo para ferir ou matar.
Porém, não apresenta disfarce, no sentido de estar apetrechada com qualquer artifício ou mecanismo que a dissimule sob a forma de objecto distinto ou com diferente
utilização ou que oculte as suas características ou dimensões. Ora, a alínea f) do nº 1 do artº 3º do Dec-lei nº 207-AJ75 exige que, quer as armas brancas quer as armas de fogo sejam acompanhadas de disfarce.
Entendemos, por isso que a arma descrita na acusação não reúne as características de arma proibida, desde, logo por não se apresentar com disfarce.
E a arma branca para ser proibida, só com disfarce. E compreende-se que assim seja. O que é o disfarce senão uma dissimulação da arma a tal ponto que até poderá confundir-se com qualquer outro objecto ou instrumento de todo inócuo em termos de perigosidade? E é a dissimulação que, em regra, se leva a cabo de forma deliberada e com
a exclusiva finalidade de aumentar a perigosidade e agressividade da arma (branca).
Do mesmo passo que oculta a perigosidade acaba por ser mais agressiva, quando
usada, quer pela surpresa causada, quer pela diminuição ou eliminação de defesa por parte
da vitima. Por isso se justifica a sua inclusão no rol das armas proibidas.
Ora, o bem jurídico protegido pelo artº 275º do Cód. Penal é o da segurança comunitária face aos riscos da circulação livre de armas e outros engenhos, pela sua especial capacidade ou potencialidade ofensiva, avaliadas em ternos objectivos. Não cabe, portanto, na previsão legal qualquer arma ou instrumento, sob pena de entrarem no conceito de "arma proibida" os instrumentos mais diversos desde que susceptíveis de utilização para cometer crimes. O que não significa que o direito penal se demita de considerar o seu emprego ou a sua utilização como circunstância qualificativa de certos crimes.
Conclui-se assim que só a arma branca com disfarce pode ser considerada arma
proibida nos termos do disposto no artº 3' nº 1 al. f) do Dec-lei nº 207-A/75 e a sua detenção ser punida de harmonia com o artº 275º nº 3 do Cód. Penal revisto, se não justificada a sua posse.
Foi esta, aliás, a conclusão a que chegou o Ac. do STJ de fixação de jurisprudência nº 4/2004 de 21.4.2004, publicado no DR. nº 112, Série I-A de 13.5.2004.
Pelo exposto, considerando que os factos descritos na acusação não constituem
crime, ao abrigo do disposto no artº 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. d) do C.P.Penal, rejeita-se a acusação, por manifestamente infundada, ordenando-se o oportuno arquivamento dos autos.
Notifique.(...)
XXX

Inconformada com o decidido a Digna Magistrada do MP veio interpor recurso, o qual motivou, aduzindo as seguintes CONCLUSÕES:-

1 – Face ao disposto no art. 3º n.º 1, al. f), do DL n.º 207/A/75, são consideradas proibidas as armas brancas com disfarce se o respectivo portador não justificar a sua posse.

2 – Por disfarce deve entender-se uma dissimulação da arma susceptível de a fazer confundir com qualquer outro objecto ou instrumento de todo inócuo em termos de perigosidade.

3 – Ora, um punhal que tem a respectiva lâmina com 12,5 cm. em aço inoxidável, protegida por uma bainha em couro e que apresenta como característica mais marcante a configuração de pata de cabrito do respectivo cabo com pêlo de cor castanha clara, característica essa que fundamentalmente prende a atenção de qualquer observador, é susceptível de se confundir com qualquer outro objecto o instrumento de todo inócuo em termos de perigosidade, podendo perfeitamente ser visto como um simples objecto de adorno, um adereço, um amuleto.

4 – Logo, deve ser considerado uma arma branca com disfarce e, portanto, proibida.

5 – Por isso, não podia a Mertª Juiz rejeitar, por manifestamente infundada, a acusação deduzida nos autos, uma vez que a arma aí referenciada tem precisamente aquelas características e o respectivo portador não justificou a sua posse.

6 – Ao assim decidir, a Mertª Juiz violou o disposto no art. 3º nº 1, al. f), do DL nº 207/A/75, de 17/04, no art. 275º ns. 1 e 3, do C. Penal e nos arts. 311º nº 2, al. a) e 3 al. d) e, e bem assim, nos arts. 312º e 313º, todos do CPP.
XXX

Recebido o recurso, a ele veio responder a Ilustre Defensora do arguido, pugnando, em suma, pelo acerto do despacho recorrido.
XXX

Nesta Relação, o Ilustre Procurador-Geral Adjunto apenas apôs o seu visto.
XXX

COLHIDOS OS VISTOS LEGAIS, CUMPRE DECIDIR:-

Da leitura das CONCLUSÕES da motivação do recurso facilmente se alcança que está em causa aquilatar da bondade, ou não da decisão recorrida que rejeitou a acusação acima transcrita do MP, por a entender manifestamente infundada, alicerçando-se no facto nuclear de entender que a arma branca em causa não se podia considerar proibida por não se apresentar com disfarce.

Vejamos:-

Da conjugação do auto d exame de fls. 14 com a fotografia de fls. 11 emerge que estamos perante um punhal com o comprimento total de 28,5 cm., sendo 12,5 cm. de lâmina em aço inoxidável, com o cabo em forma de “pata de cabrito”, com pêlo de cor castanha clara, sendo que a lâmina se encontra protegida por uma bainha em couro.

A posição defendida no despacho recorrido estriba-se jurisprudencialmente (quanto ao entendimento de que apenas as armas brancas, com disfarce, são proibidas,), o que não seria o caso dos autos, designadamente no Ac. do STJ de fixação de jurisprudência nº 4/2004, de 21/04/04, publicado no DR nº 112, série I-A, de 13/05/04.

Ora, como se observa neste douto aresto, “... o que é o disfarce senão uma dissimulação da arma a tal ponto que até poderá confundir-se com qualquer outro objecto ou instrumento de todo inócuo em termos de perigosidade...”.

Por outro lado, continua tal aresto dizendo acerca de arma dissimulada que...” do mesmo passo que oculta a perigosidade acaba por ser mais agressiva, quando usada, quer pela surpresa causada quer pela diminuição ou eliminação de defesa por parte da vítima. Por isso se justifica a sua inclusão no rol de armas proibidas...”.

Ponderando sobre o caso dos autos e fazendo apelo aos elementos probatórios constantes dos mesmos, “maxime” o auto de exame de fls. 14 e a fotografia de fls. 11, constata-se que uma vez que a bainha cobre a lâmina até praticamente ao início do cabo, podemos admitir a possibilidade e até a plausibilidade de se tratar, pura e simplesmente, de um objecto de adorno ou decoração, ou mesmo (como bem anota a Digna Recorrente), “até mesmo de um daqueles objectos ligados à crendice ou superstição ainda hoje tão vulgares, tendo em consideração a “pata de cabrito” que constitui o respectivo cabo”.

Para além de o arguido não ter justificado a posse de tal arma, esta se usada, não só é susceptível de causar surpresa, como de diminuir a defesa por banda da vítima; basta, para tanto (como também bem refere o MP Recorrente) pensar n possibilidade de o agente se aproximar da vítima segurando o objecto pela bainha, exibindo a penas o cabo, este absolutamente inócuo em termos de perigosidade, podendo então sacar tal arma e desferir golpe de surpresa, atento que a arma embainhada não é de molde a provocar receio na vítima.

Neste sentido cfr. Ac. do TRLx, de 6/10/04 – CCJ, Ano XXIX, T. IV, 2004, pag. 142 ).
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Do expendido se conclui suficientemente indiciado que a arma em causa é proibida , pois se trata de arma branca com disfarce e o arguido não justificou a sua posse.
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Face ao exposto, acordam os Juizes desta Relação em conceder provimento ao recurso, pelo que revogam o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que encaminhe adjectivamente os autos para julgamento.

Sem tributação.

Porto, 11 de Janeiro de 2006
José João Teixeira Coelho Vieira
António Gama Ferreira Gomes
Alice Fernanda Nascimento dos Santos