Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8325/17.0T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARITIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: CONTRATOS
DUPLA FINALIDADE
CONSUMIDOR
RELAÇÃO MARGINAL
ACTIVIDADE
CONTRATO DE AQUISIÇÃO
BEM
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP201905228325/17.0T8VNG.P1
Data do Acordão: 05/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÇÃO COMUM
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 175, FLS. 6-26)
Área Temática: .
Sumário: I - O direito nacional não contém norma legal que aborde a questão dos chamados contratos com dupla finalidade, contratos mediante em que a pessoa adquire um bem destinando-o em simultâneo a uso pessoal e uso profissional ou celebra um contrato actuando em simultâneo para fins pessoais e para fins profissionais.
II - Fazendo uma interpretação do conceito de consumidor conforme com o direito europeu, a pessoa que celebra um contrato para um fim parcialmente relacionado com a sua actividade profissional só poderá beneficiar das disposições de tutela do consumidor caso o nexo do contrato com a actividade profissional do interessado seja tão ténue que se torna marginal e, por isso, só tem um papel despiciendo no contexto da operação a propósito da qual o contrato foi celebrado, considerada globalmente (cf. Acórdão do TJUE de 25-01-2018, processo C498/16).
III - Cabe ao interessado em beneficiar dessa tutela fazer a prova que a utilização do bem adquirido para fins profissionais era tão ténue que acabava por ser marginal e despicienda, considerando o conjunto das utilizações.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2019: 8325/17.0T8VNG.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
B…, titular do cartão de cidadão n.º ………, contribuinte fiscal n.º ………., residente em …, Matosinhos, instaurou acção judicial contra c…, S.A., pessoa colectiva n.º ………., com sede em Vila Nova de Gaia, formulando contra esta os seguintes pedidos: a) resolvido o contrato de compra e venda do veículo .. – MZ - .., com a devolução do veículo à ré e restituição à autora do valor pago pela compra; b) a ré condenada a pagar à autora 172.333,22€ a título de danos patrimoniais, acrescida do valor que vier a ser apurado, pela privação de uso do veículo nos períodos em que a mesma esteve nas oficinas da ré, e dos valores que se vencerão ainda a título de privação de uso; e c) a ré condenada a pagar à autora 2.500,00€ a título de danos não patrimoniais.
Alegou para o efeito que no dia 4 de Setembro de 2015, adquiriu à ré o veículo automóvel ... com a matrícula .. – MZ - .., pelo valor de 73.950,00€ que a autora pagou nos termos acordados. Pouco tempo depois o veículo começou a apresentar anomalias de funcionamento tendo a autora entregue o mesmo nos serviços técnicos da ré que após alguns dias informaram a autora que nenhuma anomalia havia sido detectada. Esse procedimento foi repetido por mais três vezes tendo o veículo ficado nas oficinas da ré, de cada vez, por períodos que variaram entre uma e duas semanas, com a consequente privação da mesma. À 4ª vez, após vários testes e experiências, os serviços técnicos da … concluíram que na viatura tinha sido instalado de forma irregular um kit de potência que determinava que a viatura debitasse valores de pressão de turbo equivalentes ao triplo do que devia acontecer e pressões de gasóleo manifestamente excessivas, bem como que atingisse temperaturas 200º a 300º acima do estabelecido de fábrica provocando inúmeros conflitos electrónicos. As despesas com combustível, portagens e scuts para realização dos testes e experiências em estrada, foram suportadas pela autora que despendeu quantia nunca inferior a 500,00€. O veículo foi então entregue nas oficinas da ré para remoção do kit de potência, tendo sido garantido pela ré à autora que, após a remoção, deixaria de apresentar desempenho anómalo, problema mecânico ou electrónico. Depois da remoção do kit de potência e reparação efectuadas, o veículo continuou a apresentar soluços e ruídos na caixa de transferências e diferencial, que se foram agravando com a continuação do uso do veículo, ao ponto de este falhar em várias ocasiões, designadamente durante manobras de ultrapassagens em auto-estrada. Em 22/09/2016 o veículo foi entregue à ré para reparação dos soluços e falhas em andamento e ruídos na caixa de transferências e diferencial mas acabou por ser devolvido à autora sem a resolução desses problemas, referindo a ré que o tempo e quilómetros que circulou com o Kit provocara danos irreversíveis na caixa de velocidades e no diferencial, que impunham a sua substituição mas não assumia a substituição.
Por indicação dum responsável da ré o veículo deixou de circular e a partir do dia 06-10-2016 ficou imobilizado numa garagem. Os danos na mecânica e sistema electrónico e de injecção do veículo impedem-no de circular em segurança. A sua reparação é impossível tornando o bem inaproveitável para utilização pela autora. Esta sofreu os seguintes danos patrimoniais no valor global de 172.333,22€: a) valor suportado na aquisição da viatura = 73.950,00€; b) prémios de seguro pagos = 2.902,44€; c) imposto único de circulação pago = 1.230,78€; d) combustível, portagens e scuts (gastos em testes e diagnósticos) = 500,00€; e) privação de uso da viatura desde 6/10/2016 até à presente data = 93.750,00€.
A ré contestou a acção, arguindo a excepção da caducidade do direito da autora por terem decorrido sobre a denúncia dos defeitos e até à instauração da acção mais de seis meses e arguindo que ao contrário do que a autora alega falsamente o veículo foi adquirido exclusivamente para uso profissional da autora pelo que esta não pode ser considerada consumidora para efeitos de aplicação do respectivo regime jurídico.
Por impugnação, alega que adquiriu o veículo a D…, no dia 18/8/2015, por retoma, com 16.000 km, desconhecendo por completo que o veículo tinha instalado um kit de potência, porque isso não lhe foi dito pelo anterior proprietário e a detecção não era possível com os meios técnicos que a ré possui; só com a intervenção do importador e dos respectivos meios técnicos a ré apurou a existência do referido kit de potência. Quando isso foi detectado, foi removido o kit de potência e o veículo deixou de manifestar as falhas em carga, únicas comunicadas até aí, e passou a ter um comportamento normal. Em 3-10-2016 o pai da autora, pessoa que em seu nome da autora acompanhou e tratou da situação, informou a ré que tinha estado nas oficinas do Porto a fazer a manutenção do veículo, queixando-se de ele fazer solavancos aquando da troca de velocidades a baixa velocidade, mas não permitiu que fosse feito o diagnóstico. A ré não deu indicações para não se usar o veículo, o qual percorreu mais de 21.000 km desde a data de aquisição sem manifestar qualquer problema relacionado com o kit de potência e após a remoção deste passou a ter um desempenho perfeitamente normal. A haver problema a sua reparação era perfeitamente possível.
Mais impugnou os danos alegados pela autora e/ou a responsabilidade pelos mesmos. Termina pedindo a condenação da autora como litigante de má fé.
Após julgamento, foi proferida sentença, julgando procedente a excepção de caducidade da acção e absolvendo-se a ré dos pedidos formulados.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com extensas e excessivas conclusões (que praticamente reproduzem o corpo das alegações e por isso mesmo aqui não se reproduzem, nem, por inutilidade, se convidam a sintetizar).
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
Constitui jurisprudência continuamente reafirmada que por aplicação do disposto nos artigos 608.º, nº 2, 609.º, n.º 1, 635.º, nº 4, e 639.º, do Código de Processo Civil o thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não sendo permitido ao tribunal ad quem conhecer de questões que extravasem as conclusões de recurso, excepto se as mesmas forem de conhecimento oficioso.
As alegações de recurso terminam com as respectivas conclusões destinadas a sintetizar as questões que se pretende que o tribunal ad quem aprecie e os fundamentos da decisão que se reclama que seja proferida sobre elas. Inexiste disposição legal que obrigue o recorrente a terminar as suas conclusões com a dedução de um pedido ou pretensão e, tão-pouco, que atribua a tal conteúdo a função delimitadora do objecto do recurso, o qual é balizado sim pelas conclusões.
Nessa medida, as conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
Se a sentença é nula por omissão de pronúncia;
1. Se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto que consta dos pontos n.º 25, 26, 32, 37, 38, 40 e 43 do elenco dos factos provados e que consta dos pontos n.º 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 26, 27, 30 e 31 do elenco dos factos não provados.
2. Se a autora é consumidora para efeitos de aplicação do regime jurídico da venda de bens de consumo.
3. Se o direito que a autora pretende exercer está caducado.
4. Se a autora tem o direito de resolver o contrato.
5. Que danos sofreu a autora passíveis de serem indemnizados, havendo resolução do contrato.
III. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
A recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto relativamente a vários pontos desta, cumprindo os requisitos dessa impugnação, motivo pelo qual nada obsta à apreciação dessa impugnação.
- Ponto 40 dos factos provados e ponto 30 dos não provados:
O tribunal a quo julgou provado que «… a viatura foi adquirida com o objectivo de servir de cortesia para transporte de clientes e artistas [da sociedade da qual a autora é gerente] além de servir para uso pessoal. [40]. E julgou não provado que «…a autora adquiriu esta viatura para sua utilização pessoal, designadamente para as suas deslocações diárias» [30]. A recorrente sustenta que deve ser julgado provado que o veículo foi adquirido pela autora para seu uso pessoal.
Ouvida a gravação da audiência e escutados os depoimentos aí produzidos ressalta de imediato uma forte convicção de um sofisma que se trouxe aos articulados em sede de alegação. É absolutamente inverosímil que uma simples estudante sem qualquer actividade profissional que, ainda por cima, alegadamente, nem se sentia muito segura (é o que afirma a testemunha E…) a conduzir veículos com caixa manual (com os quais seguramente aprendeu a conduzir para obter a licença de condução) tivesse não apenas a quantia necessária para comprar um veículo automóvel por 73.950,00€, como a vontade de dispor dessa quantia nessa operação, como ainda o gosto particular e intenso de adquirir um veículo com estas características invulgares e de gama muito alta ao nível da motorização e das performances.
Pese embora não tenha havido o devido cuidado de explorar estes aspectos dos depoimentos, basta ouvir a sua gravação para de imediato se ficar perfeitamente convencido que o veículo foi adquirido em nome da autora (por razões que não se apuraram mas que certamente existiram) mas quem o desejou de facto, o escolheu, se dispôs a pagar o respectivo preço, tinha conhecimentos técnicos sobre automóveis (diz que trabalhou muitos anos no ramo) para conhecer e avaliar as respectivas características e a elas sentir um apego pessoal forte, usava o veículo a maior parte das vezes e fez absolutamente todos os contactos com a ré para tratar de tudo o que tinha a ver com o veículo, foi não a autora mas sim … o seu pai e testemunha F….
Não foi certamente por acaso que o seguro automóvel foi contratado por ele! E também não foi certamente por acaso que o veículo começou a apresentar problemas (perder potência e entrar em safe mode) em condições muito especiais de circulação (a velocidades elevadíssimas praticadas numa auto-estrada, apesar dos limites legais) e conduzido pelo pai da autora (sendo certo que não se imagina como possível que quem nem se sente seguro a conduzir um veículo com caixa manual tivesse especial interesse em adquirir um veículo para atingir aquelas velocidades … superiores a 200km/hora).
Por isso, o que se afirma nos autos sobre a utilização exclusivamente para fins pessoais da autora está adulterado e não corresponde inteiramente à verdade, conforme a autora não pode deixar de saber.
A alegação de que a afirmação feita perante a ré de que o veículo se destinava também a servir de «viatura de cortesia para transporte de clientes e artistas da sociedade» foi feita com a intenção de pressionar a ré, designadamente através do incremento de eventuais prejuízos, é pouco compreensível porque a ré situa e documenta essa afirmação na carta datada de 03-01-2017 e esta encontra-se elaborada e subscrita não pela autora, nem pelo seu pai, mas sim pela …mandatária judicial da autora, sendo de esperar que nessa condição e qualidade o autor da missiva possuía em relação à situação o distanciamento suficiente para assumir a necessária objectividade para conhecer o alcance das suas afirmações.
Acresce que a referência que se faz nas alegações de recurso de que a sociedade até adquiriu duas outras viaturas para o serviço da sociedade (uma … e um ...) é incompatível com a alegação de que afinal a sociedade era titular de um simples bar: se não necessitava de veículos para fazer transportes e/ou deslocações também não necessitava destes, já se necessitava destes veículos para esse efeito então era provável que o veículo adquirido à ré também fosse usado para esse fim.
Por fim diga-se que a circunstância de a sociedade comercial sob a forma de sociedade unipessoal só ter sido constituída cerca de três meses depois da aquisição do veículo também não é decisivo. Com efeito, essa sociedade tem sede onde já existia um estabelecimento comercial explorado pelo pai (desconhece-se de que forma ou sob que domínio jurídico), pelo que a constituição da sociedade pela autora parece ser de novo, tal como a aquisição do veículo, apenas um acto formal celebrado em nome da autora (segundo o amigo E…, o gerente ou responsável do estabelecimento da sociedade da filha é o pai, sendo essa a sua ocupação profissional), que não impedia que já houvesse na família e no interesse dos seus membros, o desenvolvimento de uma actividade profissional.
Nessa medida, sopesando os meios de prova produzidos à luz das regras de experiência acabadas de citar é para nós absolutamente seguro que não foi produzida prova de que o veículo foi adquirido para ser afecto ao uso privado e pessoal da autora e ao invés, foi produzida prova de que o veículo estava relacionado com o desenvolvimento de uma actividade profissional por aquele a quem se destinou de facto o veículo: o pai da autora.
O depoimento deste, independentemente da discussão sobre a respectiva credibilidade, é insuficiente porque o depoente é verdadeiramente o interessado no conflito, é do ponto de vista material o titular do litígio que se desenvolve por interposta pessoa (a filha) e, como tal, não pode sem mais ser aceite como suficiente para demonstração de factos que lhe são favoráveis, sobretudo quando o seu conteúdo se defronta com as inverosimilhanças apontadas.
Pelo exposto, decide-se manter a decisão proferida sobre os pontos em análise.
- Ponto 17 dos factos não provados:
O tribunal a quo julgou não provado que a «viatura foi escolhida pela autora pelas específicas características que são anunciadas, e porque a autora queria efectivamente fazer-se transportar numa viatura desta gama, qualidade e conforto; e nunca pôde ser assim utilizada pela autora» (17)
Pelas razões aduzidas no item anterior esta decisão é absolutamente correcta. As afirmações em sentido contrárias feitas pelo pai da autora e pelo amigo E… não convencem porque não permitem superar as inverosimilhanças apontadas, conforme, repetimo-lo, a autora tem obrigação de saber. A decisão vai por isso confirmada.
- Ponto 32 dos factos provados e ponto 31 dos não provados:
O tribunal a quo julgou provado que «… pelo final do ano de 2016, o Dr. H… contactou novamente a autora dizendo-lhe que não tinha conseguido que a ré aumentasse o valor da proposta apresentada» (32). E julgou não provado que «a ré atrasou a possível solução consensual desta questão, com vista a protelar a propositura da acção» (31).
O primeiro desses pontos reproduz aquilo que a própria autora alegou no artigo 52 da petição inicial, onde afirmou, referindo-se ao que se passou depois da reunião de 06-10-2016, que «algumas semanas decorridas, e já pelo final do ano de 2016, o Dr. H… contactou novamente a autora dizendo-lhe que não tinha conseguido que a ré aumentasse o valor da proposta apresentada». Não se percebe, pois, nem a recorrente a indica, aliás, que alteração podia ser introduzida na decisão proferida sobre o ponto 32 dos factos provados.
No que concerne ao facto julgado não provado, refira-se que o mesmo tem uma redacção conclusiva e inexpressiva porquanto não concretiza em que consistiu o «atrasar» ou «a possível solução consensual».
O que a autora alegou nos artigos 61º e 62º da contestação foi que «…desde a data em que ocorreu a referida reunião … a autora continuou a encetar todos os esforços possíveis no sentido de alcançar uma solução consensual com a ré», o «que não foi possível, merecendo uma resposta definitivamente negativa por parte da mandatária da ré no dia 7/Junho/2017». Esta alegação refere-se ao comportamento da autora (continuou a tentar convencer a ré a pagar-lhe o valor que pretendia), não ao comportamento da (atrasou uma possível solução de consenso) que é o que está vertido para o ponto 31 do elenco dos factos não provados.
A propósito desta matéria a ré alegou nos artigos 69º e seguintes da contestação que na sequência da reunião de 06-10-2016 houve uma negociação para se conseguir chegar a um valor consensual para que a ré retomasse a viatura e que isso não foi possível porque o pai da autora pretendia que lhe fosse devolvido o valor que tinha pago pelo veículo apesar de ter percorrido com ele mais de 21.000 km desde a sua aquisição.
Depois, na resposta à excepção, a autora alegou nos artigos 13 e seguintes que se empenhou em obter uma solução extrajudicial para evitar a instauração da acção mas «a ré (ardilosamente) foi alimentando, e atrasando com sucessivos pedidos de tempo para transmissão da situação e análise pela Administração, e depois pelos seus mandatários» até que em Junho de 2017 deu uma resposta final no sentido de que não era viável retomar a viatura pelo respectivo valor de compra.
Nesse contexto é fácil de perceber o que se passou. Na reunião de 06-10-2016 o pai da autora pretendeu que a ré retomasse o veículo devolvendo o preço que lhe tinha sido pago pela sua aquisição, a ré recusou fazê-lo porque entendia que face ao tempo decorrido e à utilização que tinha sido feita do veículo este se desvalorizara entretanto e apenas aceitava devolver o valor do veículo. Perante a insistência do pai da autora, a ré ficou de analisar melhor a situação e semanas depois, antes do final do ano, informou que não aumentava o valor da sua proposta. O pai da autora contactou a sua mandatária e esta no início de Janeiro do ano seguinte enviou à ré a carta que se encontra junta com a contestação e na qual afirma isso mesmo: que a ré tinha transmitido que apenas retomaria o veículo pelo seu valor actualizado e não pelo valor que ele tinha quando foi adquirido pela autora. E nessa carta volta a insistir para a ré aceitar retomar o veículo por este valor, acrescido de despesas e uma indemnização.
Que isso se passou assim resulta designadamente dos documentos juntos e do teor do depoimento da testemunha H… que foi o interlocutor do pai da autora na reunião de 06-10-2016. Embora isso não esteja documentado nos autos por razões que se prendem com o Estatuto da ordem dos Advogados, a autora apenas terá recebido uma resposta dos mandatários da ré em Junho seguinte.
Nesse contexto é evidente que se encontra correctamente julgado provado o ponto 32 da matéria de facto. E quanto ao ponto 31 a decisão também é a correcta porque não existe absolutamente nenhum meio de prova que permita afirmar que a ré andou ardilosamente a tentar ganhar tempo para evitar a instauração da acção antes de o direito caducar.
Repare-se que a autora já tinha recebido da ré uma resposta negativa quanto a aceitar retomar o veículo pelo valor da compra e por isso já tinha conhecimento da posição da ré. A carta de Janeiro de 2017 não passa da reapresentação de uma proposta que já tinha sido recusada e, por isso mesmo, não passa de uma tentativa reforçada (por ser de mandatário, por este vir então alegar prejuízos para fazer subir o valor a suportar pela ré e por ameaçar com a instauração de uma acção) de reabrir a negociação, sem, contudo, que a ré tivesse manifestado qualquer comportamento (não vem alegado sequer) que evidenciasse que a sua anterior posição ainda era provisória, que estava disponível para reabrir a negociação, que podia vir a aceitar o que antes já tinha recusado.
Por outras palavras, a autora delineou essa estratégia de actuação mas não invoca um único facto que traduza um comportamento da ré de abertura a essa renegociação. A afirmação da existência de negociações pressupõem a adesão voluntária e consciente de ambos os negociadores a um processo negocial, não se basta com a vontade de um deles de continuar a insistir com o outro (ainda que com novos argumentos) para que aceite aquilo que este já manifestou recusar.
Por conseguinte, o facto do mencionado ponto 31 só podia ter sido julgado não provado, como foi, decisão que aqui se confirma.
- Pontos 25 e 26 dos factos provados:O tribunal a quo julgou provado que «após a remoção do kit de potência e reparação efectuadas …, a viatura deixou de apresentar as anomalias que se verificavam antes daquela remoção» (25), e que foi entregue «na C…, no dia 22/09/2016, tendo sido dada nota que a mesma passou a apresentar soluços e falhas em andamento, bem como dos ruídos na caixa de transferências e diferencial» (26).
A recorrente manifesta discordância em relação à decisão proferida sobre estes pontos, reclamando que no ponto 25 seja afirmado que o veículo só deixou de apresentar uma das (várias) anomalias que apresentava e no ponto 26 que antes de entregar o veículo em 22-09-2016 já a autora fora várias vezes à ré no Porto queixando-se de anomalias na caixa de velocidades.
Sucede que o tribunal a quo julgou igualmente não provados os factos dos pontos 4 e 5 do respectivo elenco: cuja redacção é a seguinte: «4) Os soluços e ruídos de que a autora se queixou já se verificavam desde a aquisição da viatura e foram-se agravando depois de retirado o Kit de Potência e continuaram a intensificar-se com a continuação de uso da viatura»; «5) Levando inclusive a que a viatura falhasse em várias ocasiões, designadamente durante manobras de ultrapassagens em auto-estrada».
Ora a autora não impugnou a decisão proferida sobre estes factos, não os incluindo entre os vários que elenca com esse objectivo! Existe, portanto, uma contradição entre aquilo que a ré pretende que seja julgado provado e aquilo que aceitou não ter sido provado, sendo certo que cabe ao recorrer definir o objecto do seu recurso e que a intervenção do tribunal de recurso apenas pode recair sobre os pontos de facto impugnados (e sobre aqueles que vierem a ficar em contradição com a nova decisão que proferir sobre os factos impugnados).
Não existem documentos que comprovem que a autora já se tinha queixado dos barulhos na caixa de velocidades, quando era expectável que existissem porque se a autora se queixava do problema e o veículo se encontrava ainda no âmbito da garantia seria normal que ela tivesse colocado o veículo nas oficinas da ré no Porto acusando esse problema e demandando a sua reparação.
Se se queixou e requereu a reparação do problema da perda de potência e entrada em safe mode porque não se queixou logo do outro problema exigindo a sua reparação? Porque haveria a ré de mencionar na ficha de entrada do veículo nas oficinas uma queixa e não mencionar a outra se o veículo estava dentro da garantia? Porque haveria a ré de se deslocar com o veículo à oficina sem reportar expressamente esse problema a fim de ser aberta a respectiva ficha de entrada do veículo? Porque haveria de surgir uma ficha com esse conteúdo apenas em Setembro se o problema tivesse sido reportado em data anterior?
Ao colocar todas estas interrogações temos em conta que se trata de um veículo de gama alta, altamente reputado pela marca e que tinha sido vendido pela C1… como usado com garantia proporcionada pela marca, apresentando então apenas 16.000 km, desconhecendo a C1… que o mesmo tinha sido alvo da instalação do kit de potência. Nesse contexto, nenhuma razão havia para a C1... procurar escamotear a realidade, omitir parte das queixas ou evitar resolvê-las, quando com o conhecimento e as expectativas que tinha sobre o veículo, nenhuma razão tinha para crer que estivesse perante um problema insolúvel ou particularmente gravoso. Tudo isto para dizer que devia haver documentos a comprovar o que a autora refere e que a ausência dos mesmos não pode deixar de ter um relevo probatório acrescido.
Note-se que a testemunha G… ao afirmar que o facto de não existirem mais documentos não significa que o veículo não tenha ido mais vezes à oficina ou não tenham sido apresentadas queixas não pode significar o contrário, isto é, não significa que de facto o veículo foi lá outras vezes e foram apresentadas outras queixas já antes de Setembro. Note-se igualmente que a testemunha E… afirmou que inicialmente, quando não se sabia o que o veículo tinha o kit de potência, o que sucedia era o veículo perder potência, falhar, na auto-estrada de Fafe após uma subida em alta velocidade, e que depois de ter sido descoberto e retirado o kit é que o pai da autora ao viajar consigo no carro lhe chamava a atenção para o barulho, do qual a testemunha se apercebeu então. Portanto, também não resulta deste depoimento que o problema do barulho anormal que o veículo apresentava na caixa de velocidades e/ou no diferencial tivesse sido detectado e acusado pela autora logo que se começou a aperceber do problema da perda de potência.
Neste contexto probatório e levando em conta a já assinalada insuficiência per se do depoimento do pai da autora, afigura-se-nos correcta a decisão proferida sobre os factos dos pontos 25 e 26 do elenco dos provados e 4 e 5 do elenco dos não provados, sendo certo que a questão não assume importância uma vez que o problema na caixa de velocidades (acusado em Setembro ou meses antes) não deixava de constituir um problema carecido de reparação e de qualquer modo o veículo estava no período de garantia.
- Pontos 7 da matéria de facto julgada não provada:
Neste ponto o tribunal a quo julgou não provado que «a autora em Setembro de 2016 solicitou a reparação e resolução definitivas das queixas que apresentou».
Neste aspecto afigura-se-nos como perfeitamente justificada a discordância da autora. Não se vê aliás que outro objectivo poderia ter a autora para mencionar essas anomalias no funcionamento do veículo quando o entregou na oficina. Qualquer pessoa no seu lugar queixar-se-ia dessa situação incómoda, anómala, reveladora de um funcionamento indevido, com o objectivo de a mesma ser eliminada, deixar de se verificar.
É certo e não escapa à nossa observação que o teor da ordem de reparação de 22-09-2016 tem um teor impresso do qual não faz parte a anotação dessa queixa e depois um teor manuscrito que refere essa queixa, o que evidencia que o veículo foi entregue com um objectivo principal ou enunciado primeiramente onde essa queixa não estava compreendida, e depois, não se sabe bem como ou porquê, lhe foi acrescentada essa queixa.
Todavia, se o documento foi junto pela ré e se encontrava em seu poder é porque essa queixa lhe foi reportada e chegou ao seu conhecimento, sendo mesmo que a mesma constitui o enunciado de um problema no funcionamento do veículo. Logo, se foi anotado numa ordem de reparação não pode deixar de ser interpretado como significando uma denúncia e um pedido de reparação dessa anomalia de funcionamento.
Nesse sentido, deve ser alterada a decisão proferida sobre este ponto, julgando-se provado que «Em 22 de Setembro de 2016 quando acusou à ré a existência de soluços e falhas em andamento e ruídos na caixa de transferências e diferencial do veículo a autora pretendeu que essas situações fossem eliminadas».
- Ponto 38 dos factos provados:
A autora insurge-se contra a decisão de julgar provado que «era possível a substituição na viatura da caixa de velocidades e diferencial se se apurasse essa necessidade, ficando a viatura de novo funcional», defendendo que tal deverá ser julgado não provado.
Não se compreende o sentido desta impugnação. Nenhuma testemunha ouvida com conhecimentos técnicos de automóveis questionou o facto que se julgou provado e, sinceramente, não se vê como pode o mesmo deixar de ser julgado provado. A questão, note-se, não é se é possível substituir a caixa de velocidades e diferencial do veículo, porque isso nem à autora deixa dúvidas. A questão é apenas se com essa substituição o veículo ficaria funcional.
Ora a resposta não pode deixar de ser afirmativa. Com efeito, não se podem confundir os problemas e as respectivas soluções. Apresentando o veículo problemas na caixa de velocidades e no diferencial a substituição destas peças por novas colocaria o veículo a funcionar normalmente. Se o veículo apresentasse outros problemas seria necessário resolvê-los igualmente para o veículo ficar funcional. Este resultado apenas não seria obtido se o veículo apresentasse um desgaste de tal modo acentuado e uma deterioração de tal modo alargada das suas peças, componentes e equipamentos que a substituição e reparação de todas elas não fosse económica ou mecanicamente justificada.
Sucede que o facto provado não diz que ou se o veículo tinha ou deixava de ter outros problemas. Consequentemente também não diz que os mesmos eram resolúveis e a solução dos mesmos era necessária e/ou colocava de novo o veículo em condições normais de funcionamento. Logo o facto em si é absolutamente inequívoco. Não se pode é retirar do mesmo que o veículo só tinha estes problemas (foram estes que foram denunciados, contudo) e que nenhum outro seria necessário resolver para assegurar o normal funcionamento do veículo. Confirma-se pois o decidido em relação a este facto.
O tribunal a quo julgou provado que «a utilização de uma viatura com o kit em causa instalado, dependendo do tipo ou modo de utilização da viatura, pode causar um maior desgaste nos componentes da viatura, seja do sistema de combustível, mecânica do motor, turbocompressor, sistema de escape, caixa de velocidades, diferencial, ou outros, os quais se for possível substituir, mantem-se a viatura funcional» (sublinhado nosso).
A recorrente pretende que se julgue provado que «a utilização de uma viatura com o kit em causa instalado causa um maior desgaste e danos nos componentes da viatura, seja do sistema de combustível, mecânica do motor, turbocompressor, sistema de escape, caixa de velocidades, diferencial, ou outros». (sublinhado nosso).
Portanto, onde se julgou provada uma possibilidade dependente de uma circunstância (a utilização), pretende-se que se julgue provada uma certeza independente dessa circunstância. E onde se deu como provada a possibilidade de assegurar a funcionalidade do veículo no caso de ser possível substituir peças, pretende que se exclua essa possibilidade.
O meio de prova que a autora pretende que seja atendido para demonstrar o que pretende é o documento a que chama «manual de formação técnica» e que juntou aos autos com o requerimento de 02-06-2018. Trata-se não de um «manual» mas de um texto elaborado para uma reunião técnica da … Portugal que apresenta o caso de um veículo que apresentou problemas de funcionamento, descreve as possíveis causas, o que foi feito para as apurar e a causa real que foi apurada.
A indicação de que o mesmo é apenas «para uso interno» não constitui a invocação de qualquer sigilo que impeça o documento de aqui ser atendido. Todavia, desconhece-se quem foi o autor deste documento, em que contexto o mesmo foi elaborado e para que fins, pelo que não foi possível contraditar o documento e o seu teor. De qualquer modo, sendo o mesmo proveniente da …, atenta a proximidade entre esta e a ré, seguramente lhe seria possível apurar a autoria do documento e contraditá-lo, pelo que não tendo isso sucedido o documento em causa deve ser aceite como meio de prova válida e consistente, sendo certo que no seu depoimento a testemunha G… diz que o veículo referido no documento é precisamente o da autora.
Diz-se neste documento o seguinte: «a alteração do gestão electrónica do motor, pelo esforço adicional que causa nos componentes do grupo moto-propulsor, irá causar um acelerar no desgaste e causar danos nesses mesmos componentes, sejam do sistema de combustível, mecânica do motor, turbocompressor, sistema de escape e restante cadeia cinemática (veio de transmissão, caixa de velocidades, diferencial, etc.)».
Resulta deste documento, portanto, a afirmação de um nexo entre a alteração da gestão electrónica do motor e o acelerar do desgaste e o surgimento de danos em vários componentes do grupo moto-propulsor do veículo. O documento não afirma que isso pode causar, afirma que causa.
O documento não o diz mas está obviamente implícito nessa afirmação que isso acontece estando o veículo adulterado na gestão electrónica …em uso. Se o veículo estiver parado certamente não sofre desgaste nem danos.
Todavia, quem adultera um veículo com esta qualidade, preço e potência motriz para lhe instalar um equipamento ilegal para aumentar as suas prestações para valores impensáveis para um uso em estrada, seguramente não o faz só para ter o veículo com esse equipamento … parado na garagem!
Acresce que o veículo foi adquirido pela autora com 16.000 km pelo que pelo menos essa distância já tinha percorrido, ignora-se se sempre com o kit instalado, mas não é crível que o anterior proprietário o fosse instalar para depois o vender (embora incrivelmente também o tenha vendido com o kit instalado, porventura confiando que ele não seria detectado ou por absoluto desprezo pelos interesses de terceiros).
Por sua vez a autora, ignorando a situação e não tendo na mesma qualquer responsabilidade, andou com o veículo mais quase 20.000 km, sendo que pelo menos nos testes realizados o fez em condições especialmente onerosas para a mecânica e electrónica do veículo (repetidamente em subidas a mais de 200 km/hora).
Nessas condições não vemos como deixar de julgar provado, em vez do que consta do ponto 43 da matéria de facto, aquilo que o documento revela, isto é que «a modificação introduzida no veículo, com o uso deste, causa maior desgaste e danos nos componentes do grupo moto-propulsor do veículo, nomeadamente do sistema de combustível, mecânica do motor, turbocompressor, sistema de escape e restante cadeia cinemática (veio de transmissão, caixa de velocidades, diferencial, etc.)».
- Pontos 14 a 16 e 19 dos factos julgados não provados:
O tribunal a quo julgou não provado o seguinte: «as alterações que esta viatura sofreu no sistema electrónico e de injecção determinaram um desgaste muito acentuado, prematuro e irreversível nos componentes mecânicos e electrónicos da viatura» (14); «danos que não foram eliminados após a intervenção efectuada pela ré; e cuja reparação se revela impossível» (15); «tendo tornado o bem inaproveitável para utilização pela autora» (16); «os danos que se verificam na mecânica e sistema electrónico e de injecção da viatura impedem-na de circular em segurança» (19).
Em resultado da análise de toda a prova produzida não temos dúvidas de que não foi produzida prova desta matéria.
O documento técnico da … não o afirma, já que uma coisa é afirmar-se que o kit acelera o desgaste e causa danos e outra coisa é afirmar-se que esse desgaste mais intenso e os danos causados foram de tal ordem que o veículo ficou em condições tais que já não permitem sequer a sua reparação e por isso imprestável para ser usado. E desde que devidamente escutado o depoimento da testemunha G… também não importa esse resultado porque o que o mesmo afirmou está em consonância com o documento técnico da … (o kit não pode ser usado porque acelera o desgaste do veículo e causa-lhe danos mas nas palavras da testemunha tanto pode acontecer tudo como pode não acontecer nada – cf. minuto 49’ do respectivo depoimento). Daí também que o depoimento de Ricardo Santos, engenheiro com formação e conhecimentos relevantes na área, mas que não teve contactos com esta situação, não possa sem mais ser desprezado porque ele disse afinal algo que parece óbvio mesmo a um leigo: uma coisa é um veículo estar sujeito a um maior desgaste que lhe irá causar danos, outra coisa é a utilização que foi feita do veículo já ter causado em concreto um desgaste e danos de tal ordem que o veículo se tornou já irreparável e imprestável.
Nenhum outro meio de prova produzido permite suprir esta insuficiência, o que, de todo o modo, apenas seria possível por uma de duas vias: ou o veículo já manifestava problemas no seu funcionamento que indiciavam o colapso de outras peças e componentes ou então era necessário realizar uma peritagem ao veículo para através de uma série de testes ou avaliações apurar o estado dos seus componentes. Ora, o único problema de que após a remoção do kit o pai da autora se queixava era os soluços em andamento e um barulho na caixa de velocidades ou no diferencial, problemas que do ponto de vista mecânico e económico eram passíveis de reparação, se necessário com substituição desses componentes do veículo. Por outro lado, não foi requerida nem realizada nos autos qualquer peritagem ao veículo que permitisse aferir o estado actual das suas peças, componentes e mecanismos.
Nessa medida, a decisão sobre estes pontos deve ser confirmada.
- Ponto 37 dos factos provados e pontos 9, 10 e 11 dos não provados:
O tribunal a quo julgou provado que «aquando da queixa referida em 27, a ré não chegou a fazer o diagnóstico da situação relatada (nem qualquer reparação), uma vez que a autora decidiu antes agir conforme referido em 28» (37).
E julgou não provado que «nesta altura a C… Porto transmitiu à autora que o tempo e quilómetros que a viatura circulou com o Kit instalado provocou danos irreversíveis na caixa de velocidades e no diferencial, que impunham a sua substituição» (9), que «a C… Porto não assumiu a substituição de tais componentes» (10), e que «face a tal informação, tendo em conta todos os problemas que a viatura já tinha apresentado e continuava a apresentar, todas as despesas que a autora já tinha suportado e todos os transtornos e perigos que já havia enfrentado desde que adquiriu esta viatura à ré; constatou a autora que a viatura estava irremediavelmente afectada pelo desgaste prematuro e acentuado sofrido em consequência do kit de potência com que circulou, e inevitavelmente continuariam a surgir inúmeros problemas a curto e/ou médio prazo; mesmo que se procedesse à substituição dos componentes referidos – caixa de velocidades e diferencial» (11).
Analisada a totalidade da prova produzida, afigura-se-nos que a decisão do tribunal a quo é correcta.
Resulta do depoimento de G… que, analisado o problema na C… Porto (concessionário que vinha fazendo a assistência ao veículo ao abrigo da respectiva garantia mas que não tinha sido quem vendera o veículo), foi detectado um problema na caixa de velocidades e no diferencial. Na sequência disso, sem profundar o estudo dessa situação, entendendo que o histórico do veículo fazia temer que viessem a surgir outros problemas, para obtenção de um entendimento que resolvesse o problema ao cliente sugeriu ao pai da autora, que fosse falar com o responsável do concessionário de Cascais que tinha retomado o veículo e feito a venda do mesmo à autora como usado para tentar um entendimento, arranjar uma solução melhor – trocar o carro, trocar a cadeia sinemática toda, trocar o motor, o que fosse - que evitasse problemas de futuro. O pai da autora acolheu essa indicação e entrou efectivamente em contacto com a testemunha H…. Depois disso, a C1… do Porto não fez mais nenhuma intervenção no veículo porque isso não lhe foi pedido. Nos contactos realizados entre o pai da autora e o responsável da C… de Cascais, D… primeiramente foi proposto um alargamento da garantia por mais dois anos e depois por mais quatro anos, solução que num primeiro momento o pai da autora se dispôs a aceitar, mas que depois recusou reclamando sim a retoma do veículo pela C… Cascais, o que esta também acedeu a fazer, mas sem que se chegasse a acordo sobre as condições da retoma porque o autor queria a retoma pelo valor que tinha despendido na compra do veículo e a C… de Cascais apenas se dispunha a fazer a retoma pelo valor que o veículo tinha no mercado nessa mesma data (com a particularidade de reverter para a autora toda a receita que a C… lograsse obter na revenda do veículo).
Não há prova de que a C… Porto tivesse informado que a caixa de velocidades e o diferencial necessitavam de ser trocados e se tenha recusado a fazê-lo. G… fez uma avaliação sumária que apontava que houvesse problemas nesses componentes mas não fez uma avaliação definitiva que indicasse de facto a necessidade de substituição dos mesmos. Também não se recusou a fazer a sua substituição, até porque o veículo se encontrava ainda no período de garantia e por isso nenhuma necessidade tinha de recusar intervencionar o carro pois esse serviço, conforme explicou, seria sempre debitado, ou à … ou à empresa que geria a garantia que é atribuída aos veículos usados para a comercialização destes. Também não há prova de que o autor vendo a posição da C… lhe tenha exigido a reparação da caixa de velocidades e do diferencial do veículo, até porque era no concessionário do Porto, cidade da sua residência, que o pai da autora fazia a assistência aos seus veículos ….
Por conseguinte, se o veículo não foi intervencionado na caixa de velocidades e no diferencial nessa altura ou nos meses subsequentes foi efectivamente por decisão do pai da autora que optou por negociar a entrega do veículo e a recuperação do valor pago por ele, pois absolutamente nada o impedia e a C…nenhum fundamento tinha para recusar a resolução de um problema que estava abrangido pela garantia. Por tudo isso, mantém-se o decidido nestes pontos de facto que corresponde inteiramente à prova produzida.
- Pontos 12 e 13 dos factos não provados:
O tribunal a quo julgou não provado que «a ré advertiu a autora para não circular com a viatura, tendo referido, textualmente, o seguinte: “Vocês não andem com o carro porque vão derretê-lo todo!”» (12) e ainda que «seguindo a advertência do Director da Unidade de Cascais da ré, o representante da autora limitou-se a trazer a viatura de volta ao Porto no dia 6/10/2016, e nunca mais a viatura foi utilizada, encontrando-se imobilizada numa garagem desde tal data» (13).
O alegado autor da afirmação constante do ponto 12, H…, negou ter feito tal afirmação. Essa afirmação não parece, aliás, ser verosímil por várias razões.
A primeira é a de que tinha sido no Porto que o veículo tinha sido assistido, tinha sido descoberta a causa do problema (o kit) e este tinha sido removido, pelo que seriam os serviços técnicos do Porto a poder aconselhar tal coisa se entendessem que tal se justificava. Não se vislumbra assim como iria um responsável comercial (não técnico) que não tivera até esse momento qualquer contacto com o veículo e os respectivos problemas dizer que era imperativo paralisar o veículo quando os serviços técnicos do Porto não tinham dado essa indicação quando encontraram o kit e o removeram (nem, note-se, tal indicação se retira, por exemplo, do documento técnico da … junto aos autos).
Por outro lado, se o Kit já estava removido, os eventuais danos estariam consolidados, pelo que ou se justificava a imediata paralisação do veículo assim que o kit foi descoberto (o que o Porto não aconselhou) ou não seria mais tarde que isso se justificava, sendo certo que o veículo continuou a ser usado e percorreu milhares de quilómetros.
Acresce que se a C1… Cascais entendia que podia revender o veículo a terceiro e entregar à autora a receita dessa revenda era porque considerava que o veículo tinha condições para circular na estrada ainda que pudesse necessitar de alguma reparação prévia.
É por isso que o depoimento do pai da autora não pode ser aceite como suficiente para a prova deste facto, sendo certo que tratando-se do teor de uma conversa entre ambos, apenas dos depoimentos de H… e de F… se poderia deduzir a prova deste facto, que evidentemente as testemunhas E… e G… não confirmaram porque não assistiram a tal conversa. A forte convicção que nos fica da repetida audição dos depoimentos gravados é a de que a autora (isto é, o seu pai) decidiu deixar de usar o veículo porque entendeu que dessa forma lograria pressionar mais a ré para aceitar a sua proposta de entendimento e porque tinha outros veículos para usar.
Tal decisão irá pois manter-se.
- Ponto 25 dos factos não provados:
No ponto 25 o tribunal recorrido julgou não provado que «a autora não consegue conduzir automóveis com caixa manual».
Este facto é absolutamente inverosímil e tem a virtualidade de denunciar mesmo um esforço de adulteração da realidade para forçar um resultado. A autora seguramente não aprendeu a conduzir e obteve a licença de condução (sendo ainda estudante, não o pode ter efeito há muito tempo) num carro com caixa automática! Por outro lado, se era assim uma pessoa tão insegura a conduzir porque haveria de fazer tanta questão e empenho em adquirir um veículo que debita mais de 300 cavalos de potência e atinge velocidades superiores a 250 km/hora!
Por isso, como noutros aspectos aliás, independentemente da pessoa, o depoimento de E… revelou-se frágil, incompreensível e forçado, não podendo ser aceite por este tribunal como suficiente para a prova do facto em questão, cuja decisão será mantida.
- Pontos 24 e 26 dos factos não provados:
Foi julgado não provado o custo «diário de 328,54€ … para o aluguer de uma viatura de gama e características equivalentes à viatura em causa (ainda que inferior)» (24) e que não é possível alugar uma viatura com caixa automática «ainda que da gama mais baixa existente no mercado, por valor inferior a 168,22€ … por dia» (26).
A autora juntou com a petição inicial um orçamento de uma empresa do ramo (I…) que apresenta os valores que a autora alegou para os veículos com as características que refere. A ré tinha a oportunidade e enorme facilidade, até por ser uma empresa do sector automóvel, de contraditar estes valores apresentando orçamentos ou tabelas de preços de outras empresas do ramo de aluguer de veículos com valores diferentes. Não tendo isso sucedido, não há razão para não aceitar os valores constantes do documento que a autora apresentou (e que com facilidade se podem apurar através da consultas das páginas electrónicas das empresa de aluguer de automóveis).
Por conseguinte, julga-se agora provado que:
O aluguer de um veículo equiparado a um … série …, com caixa automática e seguro de danos próprios, custava em 2017 um valor diário de cerca de 328€.
O aluguer de um veículo de gama imediatamente inferior a essa, com caixa automática e seguro de danos próprios, custava na mesma altura o valor diário de cerca de 168€.
- Pontos 6, 18, 20, 21, 22 e 27 dos factos não provados:
A autora reclama que se julgue provado que «deixou de se sentir segura a conduzir esta viatura, colocando em risco não só a segurança do seu condutor, como também a dos outros condutores» (ponto 6).
A prova produzida permite, com segurança, afirmar que apenas enquanto teve o kit de potência instalado e foi submetida a condições particularmente exigentes de condução (altíssima velocidade em auto-estrada aberta e em subida) a viatura representou risco para os respectivos ocupantes na medida em que o kit adulterava os valores que eram transmitidos electronicamente permitindo ao veículo superar as respectivas performances mas com risco para o próprio veículo pelas temperaturas que e pressões que o motor atingia. Mesmo com o kit colocado, a circular em condições normais e a velocidades dentro dos limites legais, esse risco não existia e, como quer que seja, deixou de existir quando o kit foi retirado. Aliás, depois de lhe ser retirado o kit, o veículo percorreu nas mãos da autora e/ou do seu pai cerca de 20.000 km sem haver nos autos notícia de acidente, sendo absolutamente inverosímil que tal sucedesse se a autora se sentisse insegura a conduzi-lo!
Por isso, nada nos autos permite afirmar que o estado em que se encontrava o veículo colocava em risco a segurança do respectivo condutor ou passageiros ou dos demais condutores na via pública, tendo este facto sido correctamente julgado não provado.
Pretende a autora que se julgue provado que «entre o início de Novembro de 2015 e o dia 6/Outubro/2016, além desta viatura ter passado várias semanas nas oficinas da ré e em diagnósticos e testes no exterior, nunca circulou nas condições exigíveis e expectáveis» (18), «o que impediu a autora de usar, fruir e dispor do veículo que adquiriu à ré para o efeito a que se destinava» (20).
A prova permite julgar provado que efectivamente o veículo passou algumas semanas nas oficinas da C1… e que quando estava em circulação apresentava os problemas descritos noutros factos, pelo que tem de se aceitar que a autora esteve impedida de usar o veículo nas condições que desejava com a compra do mesmo e que eram expectáveis.
Acrescentar-se-á pois à matéria de facto provada o seguinte:
- A partir de Novembro de 2015, o veículo passou, de modo intercalado, várias semanas nas oficinas da ré no Porto por causa dos problemas que apresentava.
- A autora esteve impedida de usar o veículo sempre que ele ficou nas oficinas da ré e, durante todo o tempo, impedida de o utilizar nas condições que desejava ao adquiri-lo e que eram expectáveis num veículo com as características deste.
A autora reclama que se julgue provado que «a paralisação desta viatura causou-lhe prejuízos pois deixou de dispor da viatura que adquiriu para se fazer transportar diariamente em todas as suas deslocações» (21), «situação que constrangeu a autora a recorrer a transportes alternativos e a empréstimos de veículos de terceiros, que não reuniam de forma alguma as características da viatura que escolheu e comprou para utilizar diariamente» (22).
A prova produzida aponta claramente que a autora e o seu agregado familiar (v.g. o pai) dispunham de outros veículos, designadamente da mesma gama alta deste veículo, capazes de lhes proporcionar meios de deslocação para as suas necessidades, ao ponto de o pai da autora, quando deixava o veículo nas oficinas da ré, não solicitar sequer que lhe fosse facultado um veículo de substituição (cortesia), solicitação que a ser feita a ré atenderia. Logo estes factos estão correctamente decididos.
Pretende ainda a autora que se julgue provado que «toda a situação relatada causou à autora prejuízo para a sua tranquilidade e bem-estar, perdas de tempo e de descanso ou lazer» (27).
É óbvio que ninguém que se dispõe a pagar por um veículo o preço que este custou está à espera ou fica agradado que o veículo apresente os problemas que este apresentou, que sejam necessárias sucessivas deslocações a oficinas e perdas de tempo para diagnosticar e encontrar a causa desses problemas, nem que, resolvidos uns, outros se mantenham por reparar.
Todavia, conforme já foi referido, ainda que o veículo tenha sido adquirido em nome da autora, o verdadeiro interessado no veículo e quem tratou e decidiu tudo quanto teve a ver com o processo de aquisição e assistência ao veículo e da negociação da sua retoma pela ré foi o pai da autora. Acresce que este revelou grande conhecimento e à-vontade no ramo automóvel e por isso o aparecimento de problemas nos veículos não lhe será tão estranho ou incomodativo.
Nesse contexto, atendendo sobretudo ao efectivo distanciamento da autora em relação aos problemas no veículo e às diligências para a sua reparação e à aludida qualidade pessoal do pai da autora, afigura-se-nos que não foi produzida prova bastante do facto em questão.
- Último ponto:
A autora reclama que se julgue provado que «não foi disponibilizada à autora uma viatura de cortesia durante todo o tempo que a sua viatura esteve nas oficinas da ré».
Este facto (positivo) não foi alegado pela autora na petição inicial, conforme, em princípio, seria necessário para poder ser atendido pelo tribunal. Aliás a autora apenas pede a indemnização pela privação do uso do veículo a partir de 06-10-2016, data em que alegou ter deixado de circular com o veículo e, portanto, não deduz indemnização em relação aos períodos em que antes disso o veículo esteve na oficina.
Foi ré na contestação alegou que «durante o tempo em que a viatura esteve nas oficinas da R., foi oferecida à A. uma viatura de cortesia, assegurando a mobilidade» (artigo 85), «o que foi sempre recusado informando que não teria necessidade» (86º). Este facto (negativo) foi julgado não provado, sendo certo que a não prova de um facto nunca implica a prova do contrário, apenas significa que em relação a ele tudo se deve passar como se não tivesse sido sequer alegado.
A Mama. Juíza a quo motivou a sua decisão sobre este facto dizendo que «relativamente à oferta de viatura de cortesia de tudo resultou que essa questão não se terá sequer colocado dado que nunca foi abordada a necessidade pelo pai da A. (até pelo contrário, terá resultado que não precisaria …)». É precisamente isso que resulta dos depoimentos de F… e G…: a questão da entrega de um veículo de substituição não se colocou sequer (o pai da autora chegou a afirmar que por facilidade, por vezes, ia levar o veículo fora do horário de expediente, deixando-o ao segurança), se tivesse sido colocada o concessionário tinha como satisfazer esse pedido além do mais porque o pai da autora era cliente do concessionário e tinha outros veículos da marca. Nada há pois que alterar, neste particular, no elenco da matéria de facto.
IV. Os factos provados:
Estão agora definitivamente julgados provados os seguintes factos:[1]
1) No dia 4 de Setembro de 2015, a autora adquiriu à ré a viatura de marca e modelo …, com a matrícula .. – MZ - .., pelo valor de 72.850,00€ (setenta e dois mil, oitocentos e cinquenta euros).
2) Que foi pago à ré mediante a entrega: da quantia de 1.000,00€ em 1/09/2015 a título de sinal e princípio de pagamento para reserva da viatura; da quantia de 43.350,00€ em 4/09/2015; do veículo automóvel de marca e modelo …. Coupé com a matrícula .. – GQ - .., que era propriedade da autora e foi entregue à ré para retoma pelo valor de 28.500,00€.
3) Mais assumiu a autora a despesa de 1.100,00€ (mil e cem euros) para colocar a viatura em condições de circulação (substituição de pneus, reparação e pintura de jantes, etc.).
4) Cerca de dois meses após a entrega de tal viatura à autora, a autora detectou que, em situação de carga constante continuada, a viatura apresentava falhas.
5) O que foi denunciado à ré, na pessoa do Sr. J… - Chefe de Vendas da ré - que aconselhou a autora a circular alguns quilómetros com a viatura porque tais anomalias poderiam resultar do facto da mesma ter estado longos períodos parada (o que a autora sabia ser verdade por ter verificado que a viatura tinha uma ligação nos bornos da bateria para estabilização da corrente através de ficha eléctrica).
6) A autora procedeu conforme aconselhado mas a viatura continuou a apresentar as referidas anomalias sem qualquer melhoria.
7) Pelo que, em meados de Novembro de 2015, e seguindo a indicação do Chefe de Vendas da ré J…, a autora entregou a viatura nas oficinas da C… Porto onde reiterou a denúncia das anomalias e desconformidades que detectou, solicitando a respectiva reparação.
8) A viatura ficou então entregue nos serviços técnicos da C… que informaram a autora que nenhuma anomalia havia sido detectada.
9) Continuando a viatura a apresentar performances anómalas quando em carga constante, a autora regressou com a viatura por mais pelo menos duas vezes à C… Porto insistindo pela reparação das desconformidades denunciadas.
9-A) A partir de Novembro de 2015, o veículo passou, de modo intercalado, várias semanas nas oficinas da ré no Porto por causa dos problemas que apresentava.
9-B) A autora esteve impedida de usar o veículo sempre que ele ficou nas oficinas da ré e, durante todo o tempo, impedida de o utilizar nas condições que desejava ao adquiri-lo e que eram expectáveis num veículo com as características deste.
10) Até que, da pelo menos terceira vez que a viatura deu entrada nas referidas Oficinas, foi o Sr. Eng.º G… – que se apresentou como o Responsável pela C… Porto - quem assumiu a realização de uma série de testes e experiências com a viatura, em oficina e em estrada, e quer ao volante ou a acompanhar a condução da mesma.
11) De todos os testes e experiências realizadas com a viatura resultou a conclusão de que a viatura apresentava anomalias de desempenho nas situações indicadas.
12) Tais testes não permitiram contudo concluir o que motivava essas anomalias que se verificavam em estrada, razão pela qual a C… Porto decidiu pedir a presença de Engenheiros Técnicos da … Portugal para assumirem o processo de diagnóstico.
13) Após terem efectuado em auto-estrada testes e despistes, nomeadamente por comparação com outra viatura com as mesmas características, que foi trazida propositadamente para esse efeito, os referidos Eng. Técnicos da … Portugal concluíram que na viatura adquirida pela autora tinha sido instalado de forma irregular um kit de potência de marca Hartge.
14) Que determinava que a viatura estivesse a debitar valores de pressão de turbo equivalentes ao triplo da pressão com que devia trabalhar em condições normais, bem como pressões de gasóleo excessivas.
15) E que a viatura atingisse temperaturas de EGT na ordem dos 200º a 300º acima do estabelecido de fábrica.
16) Provocando inúmeros conflitos electrónicos.
17) O kit de potência supra referido foi instalado pelo anterior proprietário da viatura (a quem a aqui ré a retomou) e mantido pela ré, com desconhecimento da mesma uma vez que não tem meios técnicos para o detectar.
18) A existência do kit não era do conhecimento da autora.
19) Os testes e experiências realizados na viatura adquirida pela autora foram feitos a cerca de 100 Km do Porto, na recta da auto-estrada de Fafe – onde se levou a viatura em dias diferentes -, e os restantes foram feitos ao longo da auto-estrada A28.
20) Todas as despesas com portagens e scuts foram suportadas pela autora, que também suportou despesas com combustível.
21) Diagnosticados que estavam os problemas e, finalmente, diagnosticada que estava também a causa dos mesmos, a viatura voltou a ficar na oficina da C… Porto para remoção do referido Kit de potência.
22) Tendo sido garantido pela ré à autora que, após tal remoção, a viatura deixaria de apresentar qualquer desempenho anómalo, problema mecânico ou electrónico.
23) Confiando que assim aconteceria, a autora deixou a viatura para reparação, tendo-lhe sido entregue a 16/11/2015.
24) Entre autora e ré foram trocadas as comunicações conforme resulta de fls. 40 a 48 cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
25) Após a remoção do kit de potência e reparação efectuadas conforme ponto 23, a viatura deixou de apresentar as anomalias que se verificavam antes daquela remoção.
26) A viatura foi entregue na C…, no dia 22/09/2016, tendo sido dada nota que a mesma passou a apresentar soluços e falhas em andamento, bem como dos ruídos na caixa de transferências e diferencial.
26-A) Em 22/09/2016 quando acusou à ré a existência de soluços e falhas em andamento e ruídos na caixa de transferências e diferencial do veículo a autora pretendeu que essas situações fossem eliminadas.
27) Seguindo o conselho do Responsável pela C… Porto – Dr. G… -, a autora agendou uma reunião com o Director da Unidade de Cascais da ré – Dr. H… -, que tinha em vista a resolução definitiva de toda esta situação.
28) No decurso desta reunião, que ocorreu no dia 06/10/2016 entre o representante da autora (Sr. F…) e o Dr. H…, este solicitou-lhe que aguardasse algum tempo para ele tentar resolver a situação.
29) Algum tempo decorrido, o Dr. H… contactou a autora e transmitiu-lhe que a ré se propunha a retomar a viatura “a preços correntes”, tendo adiantado a quantia de 60.000,00€ (sessenta mil euros).
30) A autora transmitiu então ao Dr. H… os motivos pelos quais não aceitava o valor que lhe era proposto para uma retoma.
31) E, novamente, lhe foi solicitado por aquele mais algum tempo para contactar a Administração da ré e encetar esforços no sentido de aumentar o valor da proposta apresentada.
32) Algumas semanas decorridas, e já pelo final do ano de 2016, o Dr. H… contactou novamente a autora dizendo-lhe que não tinha conseguido que a ré aumentasse o valor da proposta apresentada.
33) A viatura adquirida pela autora à ré tem caixa automática é a diesel.
34) O kit que a viatura tinha colocado só foi detectado após pedido de intervenção por parte da R. de técnicos do importador.
35) Após a remoção do kit foi acertado entre as partes conceder mais dois anos de garantia relativamente à viatura além dos dois iniciais, oferecendo-se ainda a ré para a retoma da viatura “a preços correntes”.
36) A autora pretendia manter a viatura e mais tarde, foi proposta alargar para mais dois anos a garantia.
37) Aquando da queixa referida em 27, a ré não chegou a fazer o diagnóstico da situação relatada (nem qualquer reparação), uma vez que a autora decidiu antes agir conforme referido em 28.
38) Era possível a substituição na viatura da caixa de velocidades e diferencial se se apurasse essa necessidade, ficando a viatura de novo funcional.
39) Em 1 de Setembro de 2015 a viatura apresentava 16.363 km e em 22 de Setembro de 2016 a viatura apresentava 36.030 km.
40) Foi constituída sociedade da qual a autora é gerente conforme doc. de fls. 124 e 125 cujo teor aqui se dá por reproduzido, e a viatura foi adquirida com o objectivo de servir de cortesia para transporte de clientes e artistas dessa sociedade, além de servir para uso pessoal.
41) A viatura deu entrada nas oficinas da ré pelo menos em 21/09/2015, em 22/09/2015, 06/10/2015, 12/11/2015 (aí permanecendo até 16/11/2015) e 22/09/2016 (aí permanecendo até 6/10/2016).
42) A autora pagou imposto único de circulação de 615,39€.
43) A modificação introduzida no veículo causa, com o uso deste, maior desgaste e danos nos componentes do grupo moto-propulsor do veículo, nomeadamente do sistema de combustível, mecânica do motor, turbocompressor, sistema de escape e restante cadeia cinemática (veio de transmissão, caixa de velocidades, diferencial, etc.)
43-A) O aluguer de um veículo equiparado a um …, com caixa automática e seguro de danos próprios, custava em 2017 um valor diário de cerca de 328€.
43-B) O aluguer de um veículo de gama imediatamente inferior a essa, com caixa automática e seguro de danos próprios, custava na mesma altura o valor diário de cerca de 168€.
V. O mérito do recurso:
A] da nulidade da sentença por omissão de pronúncia:
A autora sustenta que a sentença recorrida é nula por não se ter pronunciado sobre os factos alegados em 61.º e 62.º da petição inicial nem sobre a factualidade que resulta do «manual de formação técnica junto aos autos».
O artigo 615.º do Código de Processo Civil qualifica como causa de nulidade da sentença, além de outras, a falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão e a omissão de pronúncia sobre questões que o tribunal deveria apreciar.
O artigo 607.º do mesmo diploma, relativo ao conteúdo da sentença, estabelece que: (i) a sentença contém os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final; (ii) na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, e toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito.
Esta norma está em consonância com o disposto no artigo 154.º segundo o qual as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas, não podendo a fundamentação consistir na simples adesão aos fundamentos alegados por uma das partes.
Acresce que aquilo que o tribunal tem de decidir são os fundamentos do recurso (as questões-fundamento) e estes não se confundem com os argumentos (de facto ou de direito) brandidos pelo recorrente nas alegações (cf. artigos 635.º e 639.º do Código de Processo Civil; Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, volume 5º, pág. 308, 309 e 363; Castro Mendes, in Direito Processual Civil, volume 3, pág. 65; Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, volume 3, pág. 286 e 289; Calvão da Silva, in Colectânea de Jurisprudência, ano XX, tomo I, pág. 7).
Perante estas disposições, a nosso ver, deve distinguir-se entre falta de fundamentação de facto da sentença e falta de decisão sobre pontos de facto ou insuficiência da matéria de facto constante da sentença. A primeira situação gera a nulidade da sentença, com as consequências inerentes a esse vício e ao modo de o sanar. A segunda situação não inquina a sentença e gera apenas a necessidade de proceder à ampliação da matéria de facto por determinação da Relação quando a parte logre convencê-la dessa necessidade.
Na verdade, as normas citadas não indicam que a decisão sobre o que o tribunal julga provado e não provado deva abranger a totalidade dos factos alegados, ou seja, que o tribunal se deva pronunciar, necessariamente, isto é, sempre, sobre todos os factos alegados, independentemente do seu interesse ou relevância para a decisão de mérito ou mesmo da sua natureza meramente instrumental, não lhe sendo facultada a possibilidade de se pronunciar apenas sobre os factos que o próprio tribunal considera relevantes.
Repare-se que nos termos do n.º 1, alínea d), do artigo 552.º do Código de Processo Civil, na petição inicial o autor deve expor apenas “os factos essenciais que constituem a causa de pedir” e que nos termos da alínea c) do artigo 572.º o réu deve por sua vez, na contestação, expor apenas “os factos essenciais em que se baseiam as excepções deduzidas”.
Seria uma inutilidade obrigar o tribunal a pronunciar-se sobre a totalidade dos factos alegados por ambas as partes, mesmo que se tratem de factos sem qualquer relevo para as questões de mérito ou de factos meramente instrumentais ou acessórios e alegados apenas para contextualizar a alegação fundamental, ainda que à revelia daquele que deve ser agora o conteúdo dos articulados.
Para evitar essa inutilidade, vedada pelo artigo 130.º do novo Código de Processo Civil, deve reconhecer-se ao julgador a faculdade de seleccionar, de entre os factos alegados, aqueles que interessam e são necessários para a decisão de mérito a proferir. A ser assim, como nos parece, a decisão da 1.ª instância que se pronuncia apenas sobre parte dos factos alegados, julgando uns provados e outros não provados, por entender que a boa decisão da causa não depende de outros, não padece de nulidade por não se ter pronunciado também sobre os demais factos alegados.
A nulidade por falta de fundamentação de facto apenas ocorrerá quando se constatar que para decidir alguma das questões de direito que ao tribunal cumpre decidir faltam na sentença os factos necessários, indispensáveis e, portanto, a decisão que venha a ser proferida carece de suporte factual, radicará em formulações jurídicas sem estar enunciado o respectivo pressuposto de facto.
Fora dessa situação, digamos extrema, o que pode suceder é a parte entender que foram alegados outros factos relevantes e recorrer da decisão da matéria de facto, com base na insuficiência da mesma, procurando convencer o tribunal ad quem do interesse e importância desses outros factos sobre os quais o tribunal a quo não se pronunciou.
Se a matéria que não foi objecto de julgamento pelo tribunal recorrido for irrelevante para o conhecimento do mérito da acção, aquela situação não constitui sequer uma falha relevante, sendo possível à Relação avançar sem mais para o julgamento do recurso.
Ao contrário, se o Tribunal ad quem reconhecer o interesse dessa matéria colocam-se-lhe duas hipóteses alternativas: 1] se o processo fornecer todos os elementos probatórios para julgar os novos factos, o tribunal ad quem, ao abrigo do disposto nos artigos 662.º, nº 1 do Código de Processo Civil, pronuncia-se sobre os mesmos em conformidade com esses meios de prova, alterando eventualmente a matéria de facto; 2] se o processo não fornecer todos os elementos probatórios necessários para julgar os novos factos, o tribunal ad quem, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, tem de anular a decisão proferida em 1.ª instância e determinar a repetição do julgamento para resposta aos novos factos.
Aplicando esta interpretação ao caso em apreço, devemos concluir que a decisão recorrida não padece da nulidade que lhe é imputada, improcedendo nessa parte o recurso. O que se pode questionar é se a decisão recorrida contém todos os factos indispensáveis para permitir o conhecimento de mérito de todas as questões suscitadas pelas partes ou é necessário ampliar essa matéria de facto. Essa é, porém, outra questão.
Improcede assim a arguida nulidade da sentença.
B] da caducidade do direito da autora:
Na decisão recorrida foi decidido que o direito que a autora pretende exercer na acção já estava caducado na data em que a acção foi instaurada, solução com a qual a recorrente discorda.
O prazo para o exercício dos direitos do comprador, emergentes de defeitos ou desconformidades da coisa vendida, depende em primeira linha de saber se o comprador possui a qualidade de consumidor ou não, de modo a definir se aqueles direitos estão subordinados ao regime geral do Código Civil ou ao regime específico para tutela dos consumidores previsto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril.
Sendo este último regime um regime especial em relação ao regime comum do Código Civil, cabe ao interessado na sua aplicação demonstrar que estão reunidos os pressupostos do regime especial dos consumidores para que o mesmo lhe possa ser aplicado. Ainda que o tribunal seja livre na qualificação jurídica dos factos e por isso possa aplicar o regime especial ainda que a parte não se lhe tenha referido de forma específica, terão de constar dos factos provados factos que permitam fazer o preenchimento daqueles pressupostos, sob pena de o tribunal ter de decidir pela aplicação do regime geral ou comum.
A aplicação do regime especial para tutela dos consumidores exige desde logo que estejamos perante um comprador-consumidor.
Como sabemos, a ordem jurídica do espaço da união europeia que integramos e a ordem jurídica nacional tutelam um espectro alargado das dimensões da vida económica dos consumidores. Dispomos assim de um regime global dos direitos dos consumidores através da Directiva 2011/83/EU e da Lei n.º 24/96, de 31-07, de um regime das cláusulas abusivas nos contratos com consumidores através da Directiva 93/13/CE e do Decreto-Lei n.º 446/85 de 25-10, de um regime do crédito aos consumidores através da Directiva 2008/48/CE e do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02-06, de um regime da venda de bens de consumo através da Directiva 1999/44/CE e do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08-04, de um regime das praticas comerciais desleais nas relações com os consumidores através da Directiva 2005/29/CE e do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26-03, de um regime de crédito aos consumidores relativo a imóveis através da Directiva 2014/17/EU, do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23-06, e do Decreto-Lei n.º 81-C/2017, de 07-07. E existem ainda diversos outros momentos em que as normas jurídicas se ocupam de definir regimes específicos para os consumidores como por exemplo nas vendas à distância, nas vendas de produtos financeiros ou no regime de competência judiciária para as acções relativas a direitos dos consumidores.
Estes diversos regimes ou estatuições legais não têm sempre na sua previsão o mesmo conceito de consumidor, havendo por vezes diferenças entre o âmbito subjectivo de cada um dos regimes. São, por exemplo, diferentes as noções de consumidor do regime jurídico do crédito aos consumidores e da Lei de Defesa do Consumidor uma vez que esta acrescenta à definição de consumidor um elemento que aquele não exige. No primeiro caso, é consumidor toda a pessoa singular que actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional, no segundo é necessário que estejamos perante alguém a quem são fornecidos bens ou serviços destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.
Ao caso, por se tratar de um contrato de compra e venda de um bem móvel (veículo automóvel) usado, com garantia do vendedor, interessa-nos o regime da venda de bens de consumo consagrado na Directiva 1999/44/CE, de 25 de Maio de 1999, e no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08-04.
Nos termos do artigo 1.º-A do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08-04, na redacção do Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21-05, o respectivo regime jurídico aplica-se «aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores» O artigo 1.º-B do mesmo diploma estabelece que para esse efeito se entende por consumidor «aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho».
Cabe averiguar se na compra e venda que celebrou com a ré a autora actuou como consumidora. Não se discute que do lado da ré estamos perante uma pessoa (colectiva) que exerce com carácter profissional uma actividade económica que visa a obtenção de benefícios económicos. O que se discute é se a autora adquiriu o veículo automóvel com destino a uso não profissional.
Segundo resultou provado (ponto 40) o veículo foi adquirido pela autora para uso pessoal mas também para ser usado no exercício da actividade comercial da sociedade entretanto constituída pela autora, isto é, para servir de cortesia para transporte de clientes e artistas dessa sociedade.
Este facto remete-nos para aquilo que na legislação europeia é por vezes designado por «contratos com dupla finalidade». Trata-se da situação em que a pessoa adquire um bem destinando-o em simultâneo a uso pessoal e uso profissional ou celebra um contrato actuando em simultâneo para fins pessoais e para fins profissionais. Nessas situações a pessoa actua em simultâneo como consumidor e como profissional pelo que deve questionar-se se, face aos respectivos objectivos, pode beneficiar do regime específico daqueles ou já não.
Encontramos uma alusão aos contratos denominados por «contratos com dupla finalidade» por exemplo no Considerando 12 da Directiva 2014/17/EU, de 4 de Fevereiro de 2014. Segundo aquele considerando deve ser considerado consumidor a pessoa singular que celebra um contrato de crédito em parte para fins abrangidos pela sua actividade comercial, empresarial ou profissional e em parte para fins excluídos dessa esfera de actividade desde que a finalidade comercial, empresarial ou profissional seja de tal modo limitada que não predomine no contexto global do contrato.
Também na Directiva 2011/83/EU, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, vamos encontrar o Considerando 17 com uma redacção igual ao Considerado 12 da Directiva 2014/17/EU.
Já na Directiva 2008/48/CE (crédito aos consumidores) e na Directiva 93/13/UE (cláusulas abusivas em contratos com consumidores) não existem Considerandos com esse conteúdo e também não existem nos respectivos articulados disposições correspondentes.
No direito nacional não existe norma legal que aborde essa questão em nenhum dos domínios da tutela dos consumidores (v.g. Lei 24/96, Decreto-Lei n.º 446/85, Decreto-Lei n.º 133/2009, Decreto-Lei n.º 74-A/2017).
O Tribunal de Justiça da União Europeia abordou esta questão, então para efeitos de aplicação das normas de competência internacional consagradas na Convenção de Bruxelas, no Acórdão de 20-01-2005 (processo C-464/01), considerando então e para esse efeito que «a pessoa que celebra um contrato para uma finalidade que se reporta parcialmente à sua actividade profissional» não é considerado consumidor, excepto «se o nexo do referido contrato com a actividade profissional do interessado fosse tão ténue que se tornaria marginal e, por isso, teria um papel despiciendo no contexto da operação a propósito da qual o contrato foi celebrado, considerada globalmente». A exclusão do conceito de consumidor é independente «da proporção entre a utilização privada e profissional que pode ser dada ao bem ou serviço em causa, e isto mesmo que a utilização privada seja dominante, contanto que a proporção da utilização imputável à actividade profissional não seja despicienda».
Recentemente, no Acórdão de 25-01-2018 (processo C498/16), ainda para efeitos das normas de competência judiciária mas agora constantes do Regulamento n.º 44/2001, o Tribunal de Justiça reafirmou este critério, afirmando que «no que se refere em especial a uma pessoa que celebra um contrato para um fim parcialmente relacionado com a sua actividade profissional e que por conseguinte só em parte é estranho a essa actividade, o Tribunal de Justiça considerou que esta só poderia beneficiar das referidas disposições no caso do nexo do referido contrato com a actividade profissional do interessado ser tão ténue que se tornaria marginal e, por isso, só teria um papel despiciendo no contexto da operação a propósito da qual o contrato foi celebrado, considerada globalmente (v., neste sentido, Acórdão de 20 de Janeiro de 2005, Gruber, C 464/01, EU:C:2005:32, n.º 39)
Independentemente do modo como se avalie a relação de forças entre os usos pessoal e profissional – o que é ser tão ténue que se torna marginal ou despiciendo –, nos termos da solução preconizada pelo Tribunal de Justiça a aplicação do regime especial dos consumidores depende assim da demonstração de que no caso, ao menos, o uso para fins profissionais é ténue, marginal e despiciendo no conjunto dos usos do bem. Note-se que conforme reiterado no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 03-09-2015 (processo C110/14), para determinar esse uso o juiz nacional deve ter em conta todas as circunstâncias do caso concreto, designadamente a natureza do bem ou do serviço que constitui objecto do contrato considerado, susceptíveis de demonstrar para que fim o bem ou serviço é adquirido.
No caso, cabia assim à autora o ónus de demonstrar que a utilização do veículo para fins profissionais era tão ténue que acabava por ser marginal e despicienda, considerando o conjunto das utilizações. Essa prova não foi feita (sabemos que o veículo foi adquirido para ambas as utilizações, desconhecemos qual dela predominava e se alguma delas era meramente residual ou marginal), pelo que está arredada a aplicação ao caso sub iudice do regime da venda de bens de consumo consagrado na Directiva 1999/44/CE, de 25 de Maio de 1999, e no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08-04.
Vejamos então agora qual é o regime para o exercício dos direitos do comprador no Código Civil.
Segundo o artigo 913.º do Código Civil, a coisa vendida é defeituosa para efeitos jurídicos se estiver afectada de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou as necessárias para a realização daquele fim.
Esta norma remete para o disposto na secção precedente da qual resulta que perante os defeitos da coisa vendida o comprador tem os seguintes direitos: i) anulação do contrato por erro ou por dolo verificados os respectivos requisitos; ii) redução do preço se as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem erro ou dolo, ele teria adquirido a coisa por preço inferior; iii) indemnização relativa ao prejuízo decorrente da celebração do contrato, cumulável com a referida anulação e com a redução do preço; iv) reparação da coisa ou, se for necessário e ela tiver natureza fungível, a sua substituição se o vendedor não desconhecia, sem culpa, o vício ou a sua falta de qualidade; v) reparação da coisa ou da sua substituição se necessária e a coisa for de natureza fungível se o vendedor estiver obrigado, designadamente por convenção das partes, a garantir o seu bom funcionamento, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador (cf. artigos 247º, 251º, 254º, 905º, 908º, 909º, 911º, 913º, nº. 1, 914º, nº. 1 e 921º, nº. 1, do Código Civil).
Estabelece o n.º 2 do artigo 916º do Código Civil, sob a epígrafe denúncia do defeito, que «a denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa».
Nos termos do artigo 917º do Código Civil «a acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no nº 2 do artigo 287º
Por sua vez o artigo 921º do mesmo diploma, relativo precisamente aos casos em que o bem vendido possui garantia de bom funcionamento, a «acção caduca logo que finde o tempo para a denúncia sem o comprador a ter feito, ou passados seis meses sobre a data em que a denúncia foi efectuada».
Para Romano Martinez, in Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, págs. 413 e 430 e seguintes, os prazos curtos do citado artigo 917º é justificam-se porque «de facto, não se compreenderia que o legislador só tivesse estabelecido um prazo para a anulação do contrato, deixando outros pedidos sujeitos à prescrição geral (artº 309º); por outro lado, tendo a lei estatuído que, em caso de garantia de bom funcionamento, todas as acções derivadas do cumprimento defeituoso caducam em seis meses (artº 921º nº 4), não se entenderia muito bem porque é que, na falta de tal garantia, parte dessas acções prescreveriam no prazo de vinte anos; além disso, contando-se o prazo de seis meses a partir da denúncia, e sendo esta necessária em relação a todos os defeitos (artº 916º), não parece sustentável que se distingam os prazos para o pedido judicial; por último, se o artº 917º não fosse aplicável, por interpretação extensiva, a todos os pedidos derivados do defeito da prestação, estava criado um caminho para iludir os prazos curtos».
Também Calvão da Silva, in Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Almedina, 2006, páginas 73 e seguintes, defende que se justifica «a extensão do artigo 917º, que apenas se refere à acção de anulação, às acções dos demais direitos referidos, porque e na medida em que através delas se fazem valer pretensões no quadro da garantia e à garantia ligadas; porque e na medida em que através delas se realize ou materialize a mesma garantia pelos vícios, numa palavra, porque e na medida em que são recurso contratuais por vício da coisa. (…). Na verdade, seria incongruente não sujeitar todas as acções referidas à especificidade do prazo breve para agir que caracteriza a chamada garantia edilícia desde a sua origem, pois, de contrário, permitir-se-ia ao comprador obter resultados (referidos aos vícios da coisa) equivalentes, iludindo os rígidos e abreviados termos de denúncia e caducidade. Ora, em todas as acções de exercício de faculdades decorrentes de garantia, qualquer que seja a escolhida vale a razão de ser do prazo breve (…): evitar no interesse do vendedor, do comércio jurídico, com vendas sucessivas, e da correlativa paz social a pendência por período dilatado de um estado de incerteza sobre o destino do contrato ou cadeia negocial e as dificuldades de prova (e contraprova) dos vícios anteriores ou contemporâneos à entrega da coisa que acabariam por emergir se os prazos fossem longos, designadamente se fosse de aplicar o prazo geral da prescrição (artº 309º)».
Este entendimento vem sendo acolhido pelo Supremo Tribunal de Justiça designadamente no Acórdão do de 17-05-2016 (processo n.º 354/05.2TVLSB.L1.S1), in www.dgsi.pt, onde numa situação similar à dos autos se afirma que «de acordo com o artigo 916.º, números 1 e 2, do Código Civil e ressalvada a situação de dolo do vendedor – o qual não foi provado – o comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa no prazo de trinta dias após o conhecimento do defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa, tratando-se, como se trata, de coisa móvel. Entende-se que estes prazos são aplicáveis ao exercício de quaisquer uns dos direitos que cabem ao comprador, estendendo o artigo 917.º do Código Civil estes prazos à acção de anulação, sob pena de caducidade, sendo certo que esta deve ser intentada no prazo de seis meses sobre a denúncia, com ressalva do artigo 287.º n.º 2 do mesmo Código.»
Também no Acórdão de 08-11-2018 (processo n.º 267/12.1TVLSB.L1.S1) in www.dgsi.pt, o Supremo Tribunal de Justiça afirma o seguinte, com aplicação ao caso em apreço:
«O regime estatuído nos artigos 916º e 917º do Código Civil é aplicável, por via de interpretação extensiva, a todas as acções com fundamento na responsabilidade contratual baseada no incumprimento defeituoso da prestação, ou seja, quer às acções em que se peça a anulação do contrato, quer àquelas em que se peça a reparação ou a substituição da coisa, ou em que complementar ou exclusivamente se peça uma indemnização por prejuízos sofridos por causa do vício ou defeito da coisa, mesmo tratando-se de prejuízos indirectos contanto que estejam ligados a tais defeitos ou vícios da coisa».
No caso, a autora apresenta-se a exercer o direito de resolver o contrato e o direito de indemnização pelos danos sofridos. Como vimos, esta acção estava assim sujeita ao prazo de caducidade de seis meses após a denúncia dos defeitos do veículo.
Resulta da matéria de facto que a autora começou por reclamar de determinado comportamento anómalo do veículo. A ré procedeu à averiguação das causas dessas anomalias e veio a detectar que o veículo tinha sido adulterado pelo anterior proprietário a quem o havia comprado (retomado) e depois vendido à autora através da colocação de um kit de potência adicional. A ré procedeu à eliminação dessa situação e o veículo deixou de apresentar as anomalias anteriormente acusadas.
Depois disso, o veículo apresentou outra anomalia no seu funcionamento, a qual foi denunciada pela autora à ré. Quando a ré recebeu o veículo para reparar essa outra anomalia (29/06/2016), havendo o receio do surgimento no futuro de novas anomalias, foi sugerido à autora e aceite por esta a abertura de negociações entre a autora e a ré para alcançarem uma solução consensual para o problema, razão pela qual essa anomalia não chegou a ser diagnosticada ou reparada pela ré. Nessas negociações a autora pretendeu primeiramente ficar com o veículo assumindo a ré a responsabilidade por qualquer problemas que ele viesse a apresentar no futuro e mais tarde que a ré retomasse o veículo pelo valor que a autora pagara por ele e a ré propôs primeiramente estender a garantia do veículo por mais 4 anos e depois retomar o veículo a preço de mercado. No final no final de 2016 a ré informou a autora que rejeitava a proposta desta no sentido de retomar o veículo pelo valor pretendido pela autora.
Depois deste acontecimento, a autora não tornou a solicitar à ré a reparação do veículo no tocante à anomalia na caixa de velocidades e no diferencial. Ao invés optou por escrever uma nova carta à ré, agora através da sua mandatária, na qual insiste para que a ré aceite retomar o veículo pelo valor correspondente ao preço pago pela autora, acrescido de uma indemnização. Por outras palavras, a autora insistiu com a ré para esta aceitar o que ela já havia recusado.
Neste contexto factual, afigura-se-nos correcta a decisão de julgar caducado o direito da autora uma vez que em 16-10-2017 quando a acção foi instaurada já estavam decorrido bem mais que seis meses sobre a data em que a ré comunicara a sua posição final em relação à pretensão da autora. Com essa comunicação, as negociações entre as partes ficaram encerradas uma vez que a posição da autora manifestou na carta era de mera insistência na proposta cuja rejeição já lhe tinha sido comunicada e não consta dos autos qualquer facto que permita presumir que a ré manteve as negociações em aberto e/ou manifestou qualquer disposição para rever de novo a sua posição. Tendo sido esse o desfecho das negociações a autora dispunha de 6 meses para insistir com a ré para que procedesse então à reparação do veículo e, caso esta não o fizesse, instaurar a acção com vista ao exercício dos direitos emergentes dos defeitos do veículo.
Refira-se que nos termos do artigo 328.º do Código Civil o prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe senão nos casos em que a lei o determine. E que nos termos do artigo 331.º do mesmo diploma só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo, excepto, tratando-se de matéria relativa a direito disponível, se houver o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido.
No caso, não existe qualquer facto que evidencie que a ré reconheceu o direito que a autora pretende exercer (nem isso foi alegado), pelo que não ocorreu qualquer causa de impedimento da caducidade.
Deve, assim, ser confirmada a decisão que julgou caducado o direito que a autora pretende exercer e a subsequente absolvição da ré do pedido.
O conhecimento das restantes questões fica naturalmente prejudicado e por isso não será feito.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negam provimento à apelação e confirmam a douta sentença recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.
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Porto, 22 de Maio de 2019.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 496)
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]
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[1] Para ajudar a compreender a decisão sobre a matéria de facto, mantem-se a numeração feita na 1.ª instância e intercalam-se os novos factos com letras.