Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1665/21.5T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCA MOTA VIEIRA
Descritores: DISPENSA DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
CONHECIMENTO DO MÉRITO DA CAUSA
Nº do Documento: RP202403211665/21.5T8GDM.P1
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A hipótese em que o juiz tenciona conhecer do mérito da causa no despacho saneador não está incluída nos casos em que, nos termos previstos no nº 1 do art. 593º do CPC, a audiência prévia pode ser dispensada.
II - Nessa situação, a audiência prévia apenas poderá ser dispensada ao abrigo dos poderes de gestão processual que estão atribuídos ao juiz no sentido de adoptar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável, nos termos dos arts. 6º e 547º do CPC, devendo essa dispensa ser precedida de audiência das partes.
III - Verificada uma situação em que o Tribunal deu a conhecer às partes:
“que entendia estarem reunidas as condições para se conhecer imediatamente do mérito, com explicitação consistente e longa dos concretos fundamentos pelos quais via como possível essa decisão no saneador, aí se tendo convidado “as partes a alegarem neste momento, o que poderão fazer por escrito e no prazo de 10 (dez) dias, a menos que alguma se manifeste no sentido de ser necessário convocar audiência prévia para o fazerem – artigo 591.º, n.º 1, al. b) do CPC.”
esse despacho contém a declaração de que se pretendia conhecer o mérito da causa no despacho saneador sem audiência prévia e incorpora também uma consulta das partes relativamente à dispensa de convocação de audiência prévia, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC.
IV - Se não foi requerida a audiência previa é porque as partes se conformaram com a dispensa desta, não podendo depois até sob pena de má fé processual vir arguir a nulidade por omissão desta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 1665/21.5T8GDMP1

Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível de Gondomar - Juiz 2

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.

1.AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente na ... – ... ..., titular do cartão de cidadão n.º ..., válido até 09.08.2021, filha de BB e de CC, vem intentar contra.

1.A..., S. A., pessoal coletiva n.º ..., com sede na Rua ... – ... Lisboa, e

2.DD Dr, advogado, com a cédula profissional n.º ..., contribuinte fiscal n.º ..., com domicílio profissional situado no Largo ..., n.º ..., 1.º Direito Frente – ... ..., Gondomar,

ação Declarativa de condenação com processo comum, pedindo a condenação dos réus nos termos seguintes:

A) Deve a Ré A..., S. A. ser condenada a pagar à Autora a quantia de € 20.000,00 a título de Responsabilidade Civil Profissional do advogado Dr. DD, inscrito na Ordem dos Advogados, por cumprimento defeituoso das obrigações que lhe advieram do exercício do mandato (mediante nomeação), acrescida da quantia de € 6.150,00 a título de danos patrimoniais, bem com da quantia de € 12.000,00 a título de danos morais ou não patrimoniais, o que totaliza o valor de € 38.150,00 (trinta e oito mil cento e cinquenta euros), a que deverá acrescer o valor do juros, à taxa legal em vigor, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

B) Se assim se não entender, ou seja, se se entender que a Ró Seguradora não deve de ser condenada, o que por cautela se invoca mas sem conceder, deve o Réu Dr. DD, advogado, ser condenado a pagar à Autora a quantia de € 20.000,00 a título de Responsabilidade Civil Profissional da atividade de advogado inscrito na Ordem dos Advogados, por cumprimento defeituoso das obrigações que lhe advieram do exercício do mandato (mediante nomeação), acrescida da quantia de € 6.150,00 a título de danos patrimoniais, bem como da quantia de € 12.000,00 a título de danos morais ou não patrimoniais, o que totaliza o valor de € 38.150,00 (trinta e oito mil cento e cinquenta euros), a que deverá acrescer o valor do juros, à taxa legal em vigor, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, e no essencial, alegou factos que na perspetiva da autora são reveladores quanto ao 2ª Réu de uma   atuação ilícita e violadora dos seus deveres enquanto patrono nomeado no âmbito do apoio judiciário que a este imputa, causadora de prejuízos que a A. elenca na p.i.

Quanto à 1ª Ré, alega que o 2º  réu havia transferido para a Ré a responsabilidade civil profissional dos advogados emergente de qualquer reclamação de Responsabilidade Civil de acordo com a legislação vigente, que seja deduzida contra o segurado durante o período do seguro, pelos prejuízos causados a terceiros, pelo dolo, erro, omissão ou negligência, cometido pelo segurado, mediante o contrato de seguro titulado pela Apólice N.º ..., em vigor à data dos factos.

Concluiu que a 2ª ré é a responsável pela indemnização a atribuir à Autora pelos danos sofridos em consequência da atividade profissional do Réu como advogado.

2.Regularmente citadas, a Ré -seguradora contestou por exceção e por impugnação.

O 2ª Réu contestou, excecionou a sua ilegitimidade passiva com fundamento no facto de nunca ter sido nomeado pela OA para representar a A. na acção executiva em apreço, mas sim o marido desta e também ele executado. Em segundo lugar, afirma que qualquer responsabilidade, a existir, recairia sobre a companhia de seguros R., não havendo fundamento para a sua demanda conjunta com esta.

E impugnou os factos alegados na petição inicial.

A 1ª Ré excecionou a  sua ilegitimidade passiva com fundamento na exceção dilatória de caso julgado emergente da ação declarativa comum com o n.º de processo 455/14.6TBGDM que correu termos no Juízo Central Cível do Porto – J4, acção, intentada por EE, marido da A., na qual este pedia a condenação do aqui 2º R. no pagamento de indemnização, fundada na mesma actuação descrita em 1 e na qual  foi admitida a intervenção acessória provocada da R. A..., que foi citada e contestou a 4/1/2016, excecionou a prescrição do crédito da A., com arrimo no prazo prescricional curto de 3 anos, previsto para a responsabilidade civil extracontratual, no artigo 498.º do CC, a  excepção de exclusão decorrente do pré-conhecimento do sinistro.

3.À autora foi concedida a possibilidade de se pronunciar relativamente às exceções arguidas, o que esta, fez.

4.Findos os articulados, na sequência de despachos proferidos nos autos pelo tribunal a quo foram juntos diversos documentos com o objectivo de averiguação de factos que relevam para a decisão a proferir [1].

5.E no dia 27.03.2023 foi proferido despacho, pelo qual, o tribunal recorrido, após descriminar os fundamentos alegados pela autora para fundamentar as respectivas pretensões teceu considerações pelas quais pretendeu evidenciar a falta de consistência daqueles, e, de seguida, afirmando que se lhe afigurava como possível a decisão relativa ao mérito da causa (sem prejuízo do conhecimento das excepções suscitadas), “convidou  as partes a alegarem nessa fase,  o que poderão fazer por escrito e no prazo de 10 (dez) dias, a menos que alguma se manifeste no sentido de ser necessário convocar audiência prévia para o fazerem – artigo 591.º, n.º 1, al. b) do CPC.”

Reproduz-se, aqui, pela sua relevância, o teor desse despacho:

“Analisados os factos alegados e a prova produzida até ao momento, crê o Tribunal que estão reunidas as condições para o conhecimento do mérito da causa, essencialmente pelos mesmos motivos que já determinaram o naufrágio de pretensão idêntica, movida pelo marido da A. contra o mesmo advogado (Proc. n.º 455/14.6TBGDM, cuja sentença e subsequente acórdão do Tribunal da Relação do Porto se mostram juntos).

Está em causa, fundamentalmente, o denominado dano de perda de chance, i.e., a A. pretende demonstrar que, por força da conduta negligente (ou dolosa, como chega a sustentar) do 2º R., este prejudicou as suas possibilidades de verem reconhecidos os seus direitos no processo executivo identificado na p.i., causando-lhe dessa forma um dano.

Para o efeito, sustenta, sumariamente, os argumentos que se enumeram de seguida.

Em primeiro lugar, que o 2º R. recorreu intempestivamente do despacho que determinou o prosseguimento das diligências executivas com vista à venda do imóvel penhorado.

Como se encontra demonstrado à saciedade, à A. e seu marido foi dada oportunidade, no processo executivo, de comprovarem que o pagamento de € 64.995,07 tinha efectivamente ocorrido, prova essa que nunca fizeram.

Nunca o fizeram porque, claro está, não houve qualquer pagamento, como agora assumem os AA.

Sendo que, mesmo que tal pagamento existisse, o mesmo ficava aquém do valor em dívida, pelo que as diligências de venda sempre prosseguiriam.

Donde, podemos concluir que, mesmo que o 2º R. tivesse recorrido no tempo próprio do despacho em causa, as hipóteses de sucesso da A. eram nulas.

Em segundo lugar, e diremos contradizendo o argumento invocado em primeiro lugar (por um lado, diz-se que o R. agiu mal por não ter recorrido, defendendo a extinção da execução; por outro, diz-se que o R. agiu mal, por o ter sustentado em requerimento posterior), defende a A. que o 2º R. a “enganou” ao dizer-lhe que o apartamento estava pago e que “requereu indevidamente a extinção da instância”.

Neste segundo ponto, a A. e seu marido estavam em melhor posição do que o 2º R. para determinarem se o pagamento, que sempre assumiu contornos de inusitado secretismo (a origem seria o pai da sua filha, que nasceu quando a A. ainda era solteira, e cujo nome não podia ser revelado), sendo que nunca é alegado pela A. que o 2º R., ao comunicar a suposta fonte desse pagamento aos autos, tenha agido à sua revelia ou contra as suas indicações.

Pelo que a A. bem sabia – ou não podia deixar de saber - que o pagamento não ocorrera e que, mesmo que tivesse ocorrido, era insuficiente para sustar a execução e venda do imóvel, pelo que lhe cabia tomar as diligências que tivesse por convenientes, designadamente a renegociação com o Banco a que alude nos artigos 21.º e 33.º da p.i.

Finalmente, invoca que o 2º R. não defendeu os seus interesses na venda do imóvel, que valia mais do que o valor pelo qual foi adjudicado (pelo menos € 120.000, no entender da A.) e que o 2º R. deixou extraviar diversos bens móveis que se encontravam no seu interior, num valor global de € 6.000.

Todavia, certo é que o bem foi colocado à venda pelo valor base de € 118.000, primeiro através de propostas em carta fechada e, depois, por negociação particular e não foram apresentadas quaisquer propostas, o que determinou a sua adjudicação ao exequente, por valor inferior, como se mostra documentado nos autos.

Quanto aos bens que alegadamente se encontravam no seu interior (não é junta qualquer prova, pelo menos documental, da sua existência), a penhora não abrangia o recheio do imóvel, pelo que não se vê porque deve o seu advogado ser responsabilizado pelo “extravio” se os aí executados não retiraram os bens do interior anteriormente à venda, sendo que foi nomeado fiel depositário do imóvel, a quem incumbia, justamente, a “guarda e administração” do bem penhorado.

Também não é alegado que a A. e o seu marido tenham dado conta ao advogado da existência desses bens ou que lhe tenham requerido que formulasse qualquer pretensão processual relativamente aos mesmos.

Pelo exposto, vislumbrando-se como possível a decisão relativa ao mérito da causa (sem prejuízo do conhecimento das excepções suscitadas), convida-se as partes a alegarem neste momento, o que poderão fazer por escrito e no prazo de 10 (dez) dias, a menos que alguma se manifeste no sentido de ser necessário convocar audiência prévia para o fazerem – artigo 591.º, n.º 1, al. b) do CPC.Notifique.”

6.As partes foram notificadas desse despacho.

7.A 2ª réu manifestou nos autos a sua aceitação.

8.A autora por requerimento de 14.04.2023 respondeu, aqui se reproduzindo o essencial, da sua alegação:

“1. Ao contrário do invocado no início do despacho em questão, entende a Autora, com o devido respeito, que não estão reunidas as condições para o conhecimento do mérito da causa, uma vez que os motivos invocados confirmam a responsabilidade civil profissional do Réu.

2. Conforme alegado nos artigo 57.º e seguintes da petição inicial, a Autora apercebendo-se da falta de competência profissional do advogado, remeteu o assunto ao Conselho de Deontologia do Porto da Ordem dos Advogados, participação disciplinar n.º 693/2011-P/D, 1.ª Secção, e em tal processo o Senhor advogado foi condenado pelos motivos ali mencionados.

3. Não restam dúvidas, por conseguinte, de que o Réu deve ser condenado a indemnizar a Autora a título de Responsabilidade Civil Profissional da atividade de advogado, por cumprimento defeituoso das obrigações que lhe advieram do exercício da mandato (mediante nomeação), conforme foi requerido no pedido da petição inicial, pelo que devem os autos prosseguir os seus ulteriores termos.

9.A 1ª Ré-seguradora alegou por escrito no dia 20.04.2023 e no essencial pugnou pela manifesta improcedência dos pedidos.

10.No dia 10.07.2023 o tribunal notificou o 2º réu para esclarecer se mantinha interesse na requerida condenação da autora como litigante de má-fé, caso em que poderia ter interesse a realização de julgamento.

11.O 2º Réu respondeu que não matinha interesse no pedido de condenação da autora como litigante de má-fé, afirmando que não prescindia do direito a futura e eventual condenação da autora como litigante de má-fé a exercer em acção autónoma.

12.No dia 25.09.2023 o tribunal a quo proferiu sentença, na qual, apreciou as exceções de ilegitimidade passiva arguidas por ambos os réus, julgando-as improcedentes, apreciou e decidiu a exceção dilatória do caso julgado arguida pelo 2º réu,  apreciou  a exceção perentória da prescrição arguida pela 1ª Ré, julgando-a improcedente e apreciou e decidiu a exceção da exclusão decorrente do pré-conhecimento do sinistro por parte do 2º réu, exceção que também foi julgada improcedente e relativamente ao mérito da causa, julgou provados determinados factos e apreciando-os, fazendo a pertinente subsunção jurídica, julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo os réus da totalidade do pedido formulado contra eles formulado pela autora, considerando prejudicada  a apreciação e decisão da peticionada condenação da autora como litigante de má-fé.

Reproduz-se aqui o dispositivo:

“Nestes termos e pelo exposto, decide-se conhecer do mérito da acção e, julgando totalmente improcedente, por não provada, a presente acção, decide-se absolver os Réus A..., S.A. e DD da totalidade do pedido contra si formulado pela Autora AA.

Considera-se prejudicado, em face do conhecimento imediato do mérito e pelos motivos referidos, o conhecimento da peticionada condenação como litigante de má fé da Autora.”

13.Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação, no qual, no essencial, manifesta a sua discordância por ter sido proferida decisão total de mérito em sede de despacho saneador, a qual, não foi precedida de convocação de audiência prévia.

Reproduzem-se aqui as conclusões recursórias.

1.ª O Dign.º Tribunal a quo fez uma errada interpretação da situação factual apresentada na petição inicial, discutida nos autos.

2.ª Igualmente o Tribunal recorrido fez uma errada interpretação do direito aplicável aos assuntos em questão e requeridos pela Autora.

3.ª A Autora aceita a decisão parcial de mérito do seguinte:

Da improcedência da invocada exceção da ilegitimidade passiva do 2.º Réu;

Da improcedência da invocada exceção dilatória de ilegitimidade passiva da 1.ª Ré; Da improcedência da invocada exceção de caso julgado;

Da improcedência da invocada exceção peremtória de prescrição;

Da improcedência da invocada exceção de exclusão decorrente do pré-conhecimento do sinistro.

4.ª A Autora não se manifestou no sentido de ser necessário convocar audiência prévia após notificação do despacho de 27/03/2023, mas não configurou a hipótese de o Tribunal vir a conhecer do mérito da totalidade, porquanto, mesmo que o Tribunal recorrido viesse a entender que, conforme menciona no final da penúltima página da sentença e no início da última página da mesma, que “a presente lide não é mais do que uma tentativa de ver reapreciada a questão por outro Tribunal, através do aditamento de alguns factos novos, sem a virtualidade de alterarem o sentido da decisão”, esta ação é uma ação intentada pela Autora contra os identificados Réus, na qual a Autora tem legitimidade de alegar, peticionar e a oportunidade de provar.

5.ª O juiz unicamente conhecerá, total ou parcialmente, do mérito da causa no despacho saneador quando não houver necessidade de provas adicionais, para além das já processualmente adquiridas nos autos, encontrando-se para tal, já habilitado a decidir em consciência.

6.ª O que não foi o caso nos presentes autos porque é o próprio juiz a afirmar que o processo contem matéria já apreciada em ação intentada pelo marido da Autora noutro Tribunal, em apreciação genérica, mas afirma que este processo tem Factos Novos (negrito nosso) e, por isso, in casu o Tribunal recorrido deveria ter realizado a audiência prévia ou remetia o processo para audiência de discussão e julgamento, dado que a realização da audiência prévia constitui regra no processo ordinário e para ela são convocados os mandatários das partes, e ainda estas próprias quando o objeto da causa se contenha no âmbito do direito disponível.

7.ª O Tribunal a quo proferiu decisão total de mérito em sede de despacho saneador que foi precedida de dispensa de audiência prévia mas não foi convocada como fundamento dessa dispensa o disposto nos artigos 6.º e 547.º, n,º 1, al. b) e d), do Código de Processo Civil, pelo que se impunha a realização dessa diligência, nos termos do artigo 591.º, n. 1, al. b) e d), do Código de Processo Civil, dando também cumprimento ao princípio do contraditório, tal como consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

8.ª A não realização da audiência prévia, a qual não podia ser dispensada por se ter conhecido do mérito da causa no despacho saneador, traduz-se na omissão de um ato prescrito por lei, consubstanciado uma nulidade processual, com influência relevante no processo.

9.ª O Tribunal a quo julgou de mérito no despacho saneador sem primeiro ter facultado a discussão, em audiência, entre as partes, com dispõe ao artigo 591.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil e como a omissão desse ato consubstancia uma nulidade processual com influência relevante no processo, deve ser declarada nula a sentença, devendo os autos prosseguir os seus termos normais, neste caso, convocando-se audiência prévia se o Tribunal tencionar conhecer do mérito da totalidade da causa no despacho saneador.

10.ª O Tribunal recorrido interpretou erradamente o disposto nomeadamente nos artigos artigos 31 da CRP, artigos 3.º, 547.º e 591.º do Código de Processo Civil.

Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se nula a sentença recorrida, convocando-se audiência prévia se o Tribunal tencionar conhecer do mérito da totalidade da causa no despacho saneado,

14.Não foram apresentadas contra-alegações.

15.Cumpre decidir.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:

Sustenta a Apelante que, pretendendo o juiz decidir o mérito da causa no despacho saneador, a realização da audiência prévia era obrigatória e que a omissão desse acto gera nulidade processual (nos termos do art. 196º do CPC), a tal não obstando o facto de, previamente, o juiz ter anunciado às partes que se julgava em condições de decidir de mérito.

III.FUNDAMENTAÇÃO.

3.1. Os factos que relevam para a questão que constitui o objecto do presente recurso são os factos e incidências jurídico -processuais descritos no relatório introdutório.

3.2.Do Mérito da Decisão.

É indiscutível que, no âmbito do processo comum de declaração, está instituído, como regra,  a obrigatoriedade de realização da audiência prévia (cfr. art. 591º do CPC), consignando o legislador, como excepção a essa regra, as situações enunciadas no art. 592º do mesmo diploma onde não haverá lugar a tal diligência.

Esta asserção tem como suporte o  preâmbulo na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII que deu origem ao CPC, onde se refere que “A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados”.

É certo que  o nº1 do art.593 CPC, permite que o juiz possa dispensar a realização de tal audiência, quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º, ou seja, quando se destine a um dos seguintes fins:

. proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º (d);

 determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º (e)

 e proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes (f).

E da análise conjugada do  nº 1 do citado art. 593º em conjugação com a alínea d) do nº 1 do citado art. 591º e o nº 1 do art. 595º, todos do CPC, resulta para nós que a lei não dispensa a realização da audiência prévia  nos casos em que o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa está prevista na alínea b) do nº 1 do art. 591º CPC.

Para tanto, basta atentar que na hipótese de ser esse o objectivo do legislador teria referido essa hipótese nas alíneas referidas enunciadas no nº 1 do art. 593º e a verdade é que não o fez, aludindo apenas às alíneas d), e) e f) do nº1 do art 591º CPC.

A propósito, Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, págs. 231, 232, refere, relativamente à necessidade de ser convocada a audiência prévia: “Antes de mais, impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (art.º 3º 3). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final. Desse modo, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para o tal conhecimento imediato do mérito (…). Por outro lado, sabendo as partes que, no caso de o juiz pretender decidir o mérito da causa logo no despacho saneador, serão convocadas para uma discussão adequada, não terão de preocupar-se em utilizar os articulados para logo produzirem alegações completas sobre a vertente jurídica da questão. A solução consagrada permite, portanto, que os articulados mantenham a sua vocação essencial (exposição dos fundamentos da acção e da defesa), ao mesmo tempo que garante a discussão subsequente, se necessária, em diligência própria.”

A significar que no caso em apreço, estando em causa uma situação em que o juiz pretendia conhecer do mérito da causa no despacho saneador – como foi o caso – não estava verificada nenhuma das situações em que, nos termos previstos no nº 1 do citado art. 593º, a audiência prévia podia ser dispensada.[2]

Todavia, em casos como o dos autos, alguma  jurisprudência, que sufragamos pela consistência da argumentação,[3] tem entendido  que, apesar de a lei não prever expressamente – na citada disposição legal – a possibilidade de dispensa da audiência prévia nos casos em que o despacho saneador conhece do mérito da causa, tal audiência poderá, ainda assim, ser dispensada pelo juiz no âmbito dos seus poderes/deveres de gestão processual e adequação formal caso  quando entenda que a questão foi suficientemente debatida nos articulados e desde que as partes sejam ouvidas sobre o propósito de dispensar a audiência e lhes seja concedida a possibilidade de se pronunciarem sobre a matéria da causa que irá ser decidida (alegando por escrito aquilo que iriam alegar oralmente na audiência prévia caso esta fosse realizada).

Neste sentido, sumariou-se no Ac do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.02.2018, in proc nº3054/17.7T8LSB-A.L1-6:

“A dispensa da audiência prévia fora destes casos, só é possível por via do mecanismo da adequação formal prevista no artº 547 e 6 do C.P.C. sem prejuízo de a dispensa ser precedida de consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC.”

 Consagrando o dever de gestão processual atribuído ao juiz, dispõe o nº 1 do art. 6º do CPC que “Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável”.

E por outro lado, o art. 547º CPC estabelece que “O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo”.

Assim, convocando aqui as considerações feitas no ac TRCoimbra de 3.03.2020, já citado , resulta dessas normas adjectivas que a lei processual atribuiu ao juiz o poder de adoptar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável, designadamente, procedendo a alterações e pequenos desvios ao ritual adjectivo consagrado, eliminando ou simplificando alguns formalismos que, no caso, se revelam desnecessários para garantir os direitos das partes e assegurar a justa composição do litígio e que, criando entraves ao normal prosseguimento do processo ou à respectiva celeridade, não contribuem para a obtenção de decisão em prazo razoável.  

E, acolhendo essas considerações, também este colectivo de juízes, não tem dificuldade em admitir que, no âmbito desses poderes, o juiz possa dispensar a realização de audiência nos casos em que, nos termos da lei, ela seria obrigatória.

Ora, no caso dos autos, no despacho proferido a 27.03.2023, pelo qual, o Mmo Juiz do tribunal recorrido,  vislumbrando como possível a decisão relativa ao mérito da causa (sem prejuízo do conhecimento das excepções suscitadas), convidou as  as partes a alegarem nesse momento, o que poderão fazer por escrito e no prazo de 10 (dez) dias, “a menos que alguma se manifeste no sentido de ser necessário convocar audiência prévia para o fazerem – artigo 591.º, n.º 1, al. b) do CPC” o tribunal recorrido, fez preceder a dispensa de audiência de convocação de audiência prévia, da consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC.

A revelar que o despacho proferido a 27.03.2023 pelo tribunal recorrido   contém  a declaração de que se pretendia conhecer o mérito da causa no despacho saneador sem audiência prévia e  incorpora também uma consulta das partes relativamente à  dispensa de convocação de audiência prévia,  por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC.

Tal despacho não admite qualquer outra interpretação.

Todavia, em momento algum a autora recorrente manifestou a necessidade de se realizar audiência prévia.

E não tendo sido requerida a audiência previa é porque as partes se conformaram com a dispensa desta, não podendo depois até sob pena de má fé processual vir arguir a nulidade por omissão desta.

De resto, sempre diremos “ que nas circunstâncias acima descritas, mesmo a ter ocorrido, falta de cumprimento do contraditório quanto à dispensa da audiência prévia, a arguição nesta fase recursória da nulidade não seria aceitável, uma vez que  a autora não reagiu no prazo de 10 dias a essa suposta nulidade, aceitando-a. Pensamos, aliás, que tal arguição sempre lhe estaria vedada pelo disposto no nº 2 do art. 197º do CPC.”[4]

Nestes termos, sem necessidade de outras considerações, este colectivo de juízes entende que não está verificada nos autos a invocada nulidade processual traduzida na dispensa de convocação de audiência prévia sem estar precedida da observação do princípio do contraditório.

Concluímos, assim, pela improcedência do recurso de apelação, o qual, tinha por objecto apenas a questão supra apreciada e decidida.

Sumário.

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IV.DELIBERAÇÃO:

Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar improcedente o presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da Apelante por ter decaído no recurso.


Porto, 21.03.2024
Francisca Mota Vieira
Ernesto Nascimento
Isoleta de Almeida Costa
________________
[1] Designadamente o despacho proferido a 07.09.2022, cujo teor aqui se reproduz:
“Insista junto da Delegação de Valongo da OA nos termos do despacho anterior.
Mais solicite aos identificados autos de processo executivo n.º 1001/02 que informem: a) quem representou a aqui A. nos mesmos, com cópia da decisão de nomeação do patrono oficioso, de todos os requerimentos/articulados subscritos pelo aqui 2º R. e despachos/decisões que sobre os mesmos recaíram; b) qual das partes, se alguma, era representada pelo Exmº Sr. Dr. FF.
Paralelamente, e igualmente com relevo para conhecimento da matéria de excepção suscitada, solicite ao Proc. n.º 455/14.6TBGDM, que terá corrido termos entre o marido da A. e o 2º R., a remessa de cópia dos articulados e da sentença e eventuais acórdãos de tribunais superiores que aí foram proferidas.
Notifique.”
[2] A este propósito, Prof. Miguel Teixeira de Sousa em comentário ao Acórdão da Relação do Porto de 12/11/2015 – Jurisprudência (250) – em 21/12/2015 que pode ser consultado no Blog do IPPC
[3] Ac. do TRCoimbra de 03-03-2020, in proc nº 1628/18.8T8CBR-A.C1, no qual, a propósito, são convocados os seguintes arestos:
Acórdãos da Relação de Lisboa de 09/10/2014, 05/05/2015 e 08/02/2018 (supra referidos na nota 2); Acórdãos da Relação do Porto de 24/09/2015, 12/11/2015 e 27/09/2017 (também já referidos na nota 2) e o Acórdão da Relação de Évora de 30/06/2016, proferido no processo nº 309/15.9T8PTG-A.E1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido Ac do TRel Coimbra de 3.03.2020, supra mencionado.