Processo nº 2476/22.6T8MAI.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Local Cível da Maia - Juiz 3
Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. Fernanda Almeida
2º Adjunto: Des. Manuel Fernandes
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO
Recorrente: CONDOMINIO ...
Recorrido: AA
O CONDOMINIO ..., ..., ..., Maia, representado pelo se administrador BB, veio propor ação de prestação de contas, nos termos do processo especial previsto nos artigos 941º e seguintes do Código de Processo Civil, contra AA, pedindo que as contas, que apresenta, sejam julgadas justificadas e provadas e o Réu condenado a pagar o respetivo saldo, bem como juros de mora.
Alegou, para tanto[1], e em síntese, que o Réu exerceu as funções de administrador do condomínio Autor, de janeiro de 2011 a fevereiro, inclusive, de 2020, que era sua obrigação apresentar contas de cada exercício anual, na primeira quinzena de janeiro, nos termos dos artigos 1436º, alínea j) e 1431º, nº 1, do Código Civil, e que nem apresentou nem convocou qualquer assembleia de condóminos durante esses sucessivos anos para o citado fim e, perante a pressão exercida pelos condóminos, no termo de fevereiro de 2020, limitou-se a entregar os documentos relativos às receitas e às despesas relativas à sua administração, sem elaborar a conta-corrente relativa a cada um dos respetivos anos, ao administrador que o substituiu e, na posse de tais documentos originais, entregues pelo Réu ao Autor, é possível a este, sendo-lhe, por isso, exigível, que seja ele próprio a escriturar a conta corrente através dos comprovativos quer dos pagamentos das quotas efetuadas por cada um dos condóminos, quer das despesas que estejam confirmadas por documentos suscetíveis de as justificarem, o que efetuou.
Citado, o Réu contestou, impugnando factos alegados, e solicitou “Seja reconhecido que as contas já haviam sido prestadas pelo Réu ao Autor, sendo o Réu consequentemente absolvido do pedido;” e “Caso V. Exa. assim não o entenda, devem as contas apresentadas ser julgadas aprovadas e justificadas nos termos expostos pelo Réu, retificando-se o saldo apurado e considerando aceites e provadas as despesas desconsideradas e não aceites pelo Autor, assim como a despesas apresentadas pelo Réu, com a consequente absolvição total do pedido”.
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Após, foi proferido o seguinte
DESPACHO
“Considerando que estamos perante uma acção de processo especial, a forma como está configurada a acção (O Autor Condomínio é que presta contas espontaneamente ao abrigo do artigo 946.º, n.º1, do CPC) entendemos que estarão reunidos os elementos que permitem o eventual conhecimento imediato do mérito da acção, pelo que ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, notifique as partes para se pronunciarem, querendo, em 10 dias”.
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Notificados, manifestaram Autor e Réu nada terem a opor ao conhecimento do mérito da causa.
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Foi, de seguida, proferido despacho saneador com a seguinte parte dispositiva:
“Pelo exposto, e ao abrigo das disposições legais referidas decido julgar totalmente improcedente a acção e em consequência absolvo o Réu do peticionado pelo Autor.
Custas a cargo do Autor (artº 527º, nºs 1 e 2, do CPC).
Valor da acção: €21.639,54 (artigos 298.º, n.º 4, do CPC)”.
Apresentou o Condomínio Autor recurso de apelação, pugnando por que seja revogada a decisão e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos para apuramento do saldo, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
“1. Foi deduzida acção judicial de prestação espontânea de contas, pelo Autor Condomínio, ao abrigo do disposto nos artigos 946º, n.os 1 e 2, com referência aos artigos 944º e 945º do CPC, contra o Administrador cessante, ora Réu, nos exercícios da sua gestão que decorreu desde Janeiro de 2012 até Fevereiro de 2020.
Porquanto
2. Durante todos esses anos, como administrador do condomínio (agora Autor) era sua obrigação legal convocar assembleia de condóminos para apresentação e aprovação das contas de cada exercício anual, nos termos do nº 1 do artigo 1431º, artigo 1436º, alínea a), d), j), m) e n). O que nunca fez.
3. No termo de Fevereiro de 2020, após a cessação do mandato do Réu como administrador do Autor e após pressão exercida pelos condóminos, para que as apresentasse, o Réu limitou-se a entregar os documentos comprovativos da cobrança dessas receitas e do pagamento de despesas comuns, mas desacompanhadas da respetiva conta corrente, que lhe era exigível nos termos formais do artigo 944º do CPC.
4. Ao novo administrador (o aqui representante do condomínio), que o substituiu, cabe-lhe a função de manter e guardar todos os documentos que dizem respeito ao condomínio e que lhe foram entregues pelo Réu, anterior administrador.
5. Administrador este que é, também, condómino da fração A e que foi mandatado pela assembleia de condóminos para requerer a prestação de contas ao Réu, conforme resulta da acta nº 25 (dct. 2 e 3 da petição inicial).
6. “As contas apresentadas pelo Autor, em virtude de o Réu se recusar a prestá-las” terão de ser executadas em forma de conta corrente, quer seja por estimativa, por falta de elementos, quer com base na documentação entregue ao novo administrador (B.M.J. 104º, pág. 83).
7. Daí que, ao abrigo das funções legais que lhe foram legalmente confiadas, e uma vez que se encontrava na posse dos referidos documentos entregues ao autor pelo réu, o que implica não lhe poderem ser devolvidos por não lhe competir já a sua guarda e manutenção, incumbia ao Autor a respetiva prestação espontânea.
8. Consoante Antunes Varela, R.L.J. nº 121, 165, nota 1, -Não obstante o teor literal do nº 1 deste artigo “aquele que pretenda exigir a prestação de contas requererá a citação do Réu” devendo entender-se que a prestação judicial de contas tanto pode ser requerido por quem tem direito de a exigir como por quem tem o dever de a efetuar.
9. E o dever de as efetuar resulta da necessidade do apuramento do saldo das contas relativas ao período da gestão do Réu, a fim de, uma vez apurado, transitarem para o exercício da nova administração.
10. O Réu estava obrigado a prestá-la, não à Assembleia, mas a quem o substituiu no exercício das suas funções, ou seja à nova administração (Ac. STJ de 13.05.2003, proc. 03A992 (http:/jurisprudência.pt) acórdão 141314).
11. Nos termos do artigo 944º do CPC, a obrigação de prestar contas deve ser entendida, não como um simples dever de informação sobre o objeto do direito de outrém, mas como uma obrigação de informação pormenorizada de receitas e despesas efetuadas, acompanhadas de justificação e documentação de todos os actos de que é uso exigir e guardar documentos.
12. “É pressuposto do direito do novo administrador de exigir a definição do saldo a transferir para a nova administração, o que lhe impõe ser ele próprio em face dos documentos entregues ao novo administrador a prestá-los judicialmente”.
13. De harmonia com o artigo 946º, 944º e 945º, prevê-se que as contas podem ser prestadas quer pelo autor, quer pelo réu, pelo que a legitimidade do autor nesta acção está coberta pelos referidos preceitos legais.
14. Não tinha a atual administração qualquer obrigação para convocar uma assembleia para o réu apresentar as suas contas, este é que tinha a obrigação (que não cumpriu) de as apresentar à nova administração”. (citado Ac. proc. 852/02). Consoante o atrás concluído
15. Só ao novo administrador é que era possível apresentar contas de receitas e despesas documentadas, e escriturá-las em conta corrente, conforme o estatuído no artigo 944º do CPC.
16. Porque possuidor destes documentos, e porque a prestação judicial de contas é essencial ao bom desempenho da nova administração, sendo obrigação legal que recai sobre o aqui autor e oferecê-las ao contraditório do Réu que as não prestou para que este as corrija ou anexe outros documentos que sustentem as receitas e despesas não escrituradas na conta-corrente.
17. Tal direito de as prestar e de o Réu as contradizer ou contestar, inscreve-se no disposto no artigo 3º e 4º do C.P.C. e nos artigos 12º e 13º (princípio da igualdade) e 20º (acesso ao direito e à tutela efetiva) da C.R.P., princípio que a douta sentença não curou de apreciar e adequar à matéria de fato alegada.
Pelo que
18. As contas para apuramento do saldo a transitar para a nova administração só o poderá ser judicialmente através desta acção especial de apresentação espontânea de contas, prestado por quem tem a necessidade e o direito legal de o fazer relativamente a quem tinha o dever legal de o ter feito.
19. E esta condenação torna-se mais evidente com a contestação do Réu e a resposta do autor, quando junta mais documentos para justificar lançamentos na conta-corrente que não tinham sido despesas fundamentadas ou receitas e que determinou que o autor reconhecesse que o saldo peticionado de 5.567,77 euros, deveria ser reduzido para 4.023,07 euros.
20. Se a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo (artigo 2º do C.P.C.), a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar os efeitos retirados da acção, só a acção de prestação espontânea de contas proposta contra a anterior administração do condomínio, que as não prestou nos prazos e na forma legal após a cessação da sua administração, pode realizar o efeito útil exigível para apuramento do saldo a transitar para a nova administração e a condenar o réu a pagar o valor resultante do deve e haver, das receitas e despesas, que os documentos exibem e comprovam.
21. Foram violados os citados preceitos legais, que aqui se dão por integrados.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Cumpre apontar as questões objeto do recurso, tendo presente que o recurso é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.
Assim, a questão a decidir é a seguinte:
- Se deve ser determinado o prosseguimento dos autos para apuramento do saldo.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos provados com relevância para a decisão constam já do relatório que antecede, resultando a sua prova dos autos, e não se reproduzindo por tal se revelar desnecessário.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Da propriedade do meio “processo especial de prestação forçada de contas”.
Apresentou-se o Condomínio Autor a propor ação especial de prestação de contas contra o seu anterior administrador, para seguir os termos do processo especial previsto nos artigos 941º e seguintes do Código de Processo Civil, com vista à condenação do mesmo no pagamento do saldo devedor, apresentando, contudo, as contas, referindo fazê-lo por o Réu lhe ter entregue os documentos relativos ao período em que foi administrador do condomínio Autor, relativamente ao qual não prestou contas, como é devido.
Por não caber ao Autor prestar as contas, foi julgada improcedente a ação e absolvido o Réu do pedido.
Contra tal decisão, insurgiu-se o Condomínio Autor, pretendendo, na revogação da mesma, o prosseguimento dos autos.
Conhecendo.
Os artigos 941º e segs, do Código de Processo Civil, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência, contêm os regimes dos processos especiais de prestação de contas, ocupando-se os artigos 941 a 947º das contas em geral.
“O processo especial “geral” de prestação de contas é o meio processual adequado para a prestação de contas, forçada ou espontânea, por todo aquele que tenha de as prestar e que não esteja abrangido pelos processos “especialíssimos” dessa prestação”[2] (negrito e sublinhado nosso).
O artigo 941º, que define o “Objeto da ação” de prestação de contas, consagra:
“A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.
Assim, este processo tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administre bens alheios e, também, a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
O direito de exigir a prestação de contas está diretamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem, decorrendo a obrigação de as prestar da própria lei ou de negócio jurídico, bem podendo resultar tal obrigação, até, do princípio geral da boa fé[3] [4].
Sendo o objeto das ações especiais de prestação de contas, uma vez decidido que o réu tem obrigação de as prestar, a apresentação da conta corrente descritiva, em modo contabilístico, das receitas e despesas nela compreendidas, apenas com a especificação da proveniência daquelas a da aplicação destas[5], nelas apenas se discute se existe ou não a obrigação de prestar contas e o valor e, ainda, efetivas inscrições.
De acordo com o nº1, do art. 944º, as contas “devem assumir a forma de conta-corrente, decomposta em receitas, despesas e saldo. Há que indicar separadamente como se obteve a totalidade da receita, quais as quantias que foram recebidas e donde provieram; assim como é forçoso declarar quais as diferentes despesas e a que fim se destinaram. Ou seja, uma prestação de contas em conta-corrente é uma forma simples de escrituração de transações, em rubricas de deve e haver, que revela a situação patrimonial de uma conta em cada momento, ou num determinado período de tempo, através do saldo resultante das entradas/receitas/créditos e das saídas/despesas/débitos” [6] [7] [8].
Destina-se tal processo especial “a apurar o montante das receitas e despesas que efetivamente foram cobradas ou efetuadas”[9], enfatizando a jurisprudência que a ação especial de prestação de contas é uma das formas de exercício do direito de informação, cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas a das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito, decorrendo, em termos de direito substantivo, a obrigação de prestação de contas da obrigação, mais geral, de informação, consagrada no art. 573º, do Código Civil[10].
O dever de prestar contas pela forma legal - em forma de conta corrente, com deve e haver e concluindo-se por um saldo -, emerge quando alguém administra bens alheios – artº 941º do CPC – e conexiona-se com o dever de informação do artº 573º do CC[11]. Tal processo especial relaciona-se com a obrigação a que alguém está sujeito de prestar a outrem contas dos seus atos, ou seja o dever de prestação de contas funda-se num facto constitutivo gerador da obrigação de alguém prestar contas dos seus atos próprios atos[12] praticados no exercício da administração de bens alheios. E visando a prestação de contas a definição de um quantitativo como saldo, só o processo de prestação de contas será adequado a tal finalidade quando quem as requer não esteja inteirado, por ausência de informação por parte de quem as deve prestar, do montante das receitas percebidas ou do das despesas efetuadas ou mesmo de ambas[13].
Neste conspecto, com o regime adjetivo consagrado, garante-se o cumprimento judicial da obrigação de prestação de contas que é uma obrigação de informação e que existe sempre que o titular de um direito tenha fundadas dúvidas acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as necessárias informações, sendo o objetivo, em termos práticos, estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar uma situação de crédito ou de débito[14] (negrito nosso). O fim da ação de prestação de contas é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito[15].
Ora, esta situação é a que resulta do encontro de contas entre o que foi recebido e o que foi gasto por quem administra bens alheios. Em causa está, por um lado, o que foi recebido – frutos, rendas, juros,… - e por outro, o que foi gasto, despesas, por quem administra bens de outrem, para se chegar a um saldo.
Como vimos, a ação especial de prestação de contas vem regulada no Código de Processo Civil, nos artigos 941º e segs., sendo o processo especial “geral” de prestação de contas o meio processual adequado para a prestação de contas, forçada ou espontânea, por todo aquele que tenha de as prestar e que não esteja abrangido pelos processos “especialíssimos” dessa prestação”[16] (negrito e sublinhado nosso).
Ora, não estando abrangido por processo especialíssimo, é o geral o meio processual adequado e, na verdade, é o Réu o obrigado a prestar contas, como o Autor alega.
E consagra o art. 942º, de tal diploma legal, que o Autor convoca (cfr. art. 10º da petição inicial) com a epígrafe “Citação para a prestação provocada de contas”:
1 - Aquele que pretenda exigir a prestação de contas requer a citação do réu para, no prazo de 30 dias, as apresentar ou contestar a ação, sob cominação de não poder deduzir oposição às contas que o autor apresente; as provas são oferecidas com os articulados.
2 - Se o réu não quiser contestar a obrigação de prestação de contas, pode pedir a concessão de um prazo mais longo para as apresentar, justificando a necessidade da prorrogação.
3 - Se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º; se, porém, findos os articulados, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, manda seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa.
4 - Da decisão proferida sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas cabe apelação, que sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
5 - Decidindo-se que o réu está obrigado a prestar contas, é notificado para as apresentar dentro de 20 dias, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que o autor apresente.
Ora, uma vez citado e perante a formulação do pedido enunciado no nº1, o réu pode assumir três posições:
i) nada faz, seguindo-se a tramitação do art. 943º;
ii) contesta a obrigação de prestar contas, sendo esta a situação regulada nos nºs 3 a 5 deste art. 942º;
iii) apresenta as contas no prazo legal ou naquele que lhe for concedido (nº2), ao que se segue a tramitação do art. 944º”[17].
No caso, em que o Autor, apesar da obrigação que alega impender sobre o Réu de lhe prestar contas, se apresentou, ele mesmo, a apresentar as contas do Réu (por ter consigo os documentos que lhe foram entregues por este), pretendendo lhe seja pago o saldo, temos que julgou a 1ª instância a ação improcedente considerando:
“o Autor CONDOMINIO ..., ..., NIPC nº ...23 não está obrigado a prestar quaisquer contas, alegando que quem está obrigado a fazê-lo é o Réu por ter sido administrador do Autor.
O que artigo 946.º, n.º 1, do CPC prevê é que sendo as contas voluntariamente oferecidas por aquele que tem obrigação de as prestar, é citada a parte contrária para as contestar no prazo de 30 dias. Esta norma não é aplicável na situação sub judice porque o Autor nem sequer alega que está obrigado a prestar contas nem que tão pouco que esteja obrigado a prestá-las ao Réu.
Por outro lado, o que o regime legal da prestação de contas permite é que não prestando o Réu contas depois de ter sido provocado a prestá-las (nos termos do artigo 942.º do CPC) pode o autor apresentá-las, sob a forma de conta corrente, nos 30 dias subsequentes à notificação da falta de apresentação, não sendo o Réu admitido a contestar as contas apresentadas, que são julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador (cfr. artigo 943.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC).
A pretensão de o Autor prestar contas espontaneamente quando não está obrigado a fazê-lo (o que não é consentido pelo artigo 946.º do CPC) não tem qualquer fundamento legal, porque face à forma como é configurada a acção a obrigação de prestar recairá sobre o Réu.
Assim, não pode senão julgar-se improcedente a acção, por falta de fundamento legal, porque o Autor não está obrigado a prestar contas, não pode fazê-lo espontaneamente nos termos artigo 946.º do CPC e essa possibilidade só ocorreria na situação prevista no artigo 943.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC, que também não tem aplicação face à forma como foi configurada a acção”.
Consagra o art. 946º, relativamente à “Prestação espontânea de contas”:
1 - Sendo as contas voluntariamente oferecidas por aquele que tem obrigação de as prestar, é citada a parte contrária para as contestar no prazo de 30 dias.
2 - É aplicável neste caso o disposto nos dois artigos anteriores, devendo considerar-se referido ao autor o que aí se estabelece quanto ao réu, e inversamente.
“Rege este artigo sobre a prestação espontânea de contas por quem esteja constituído nessa obrigação. Tal sucederá, nomeadamente, quando quem administrou bens alheios apresentou extrajudicialmente as contas mas não logrou vê-las aprovadas, razão suficiente para vir apresenta-las espontaneamente, o que fará com particular interesse caso divise que se encontra na posição de credor, pedindo a condenação da contraparte no pagamento do saldo respetivo”[18].
Ora, não se trata desta situação, sendo bem percetível que o Autor não pretende prestar contas ao Réu, mas que está a apresentar as contas que entende serem as que o Réu tem a prestar-lhe (assim o fazendo por ter, já, os documentos em seu poder, entregues por este).
Com efeito, apesar de o Autor não estar obrigado a prestar contas, vem propor a ação de prestação de contas e apresenta, voluntariamente, contas, sendo bem percetível a pretensão que o mesmo pretende fazer valer na ação - serem prestadas contas e o Réu condenado a pagar-lhe o saldo - e os factos que densificam a pretensão que formula.
Assim, sendo evidente a pretensão do autor e idónea a “prestação provocada de contas” (cfr. art. 942º, do CPC) e sendo que o erro na forma de processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários a que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei, sendo que o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte deve ser corrigido, oficiosamente, pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados, nos termos do nº1 e 3, do art. 193º, do CPC, cabe ordenar o prosseguimento dos autos.
Apesar de o Autor não estar obrigado a prestar contas (apresentando-as face ao que lhe foi facultado pelo Réu), certo é que alega a obrigação deste de prestar contas e o incumprimento dessa obrigação, certo sendo que a atividade desenvolvida pelo Autor, sem que a tanto estivesse obrigado, em nada prejudica o Réu (meramente deixando antever a posição que assume).
Outrossim, sempre deverá o tribunal, no exercício do dever de gestão inicial do processo, ao abrigo da al. b), do nº2, nº3 e nº4, do art. 590º e cfr., ainda, art. 6º, convidar as partes a suprir irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados.
Propondo o Autor ação de prestação de contas contra o Administrador nos exercícios da gestão de janeiro de 2012 a fevereiro de 2020, alegando a obrigação de apresentação de contas, nos termos do nº 1 do artigo 1431º, artigo 1436º, alínea a), d), j), m) e n), incumprida, pois que lhe era exigível, nos termos formais do artigo 944º, do CPC, a prestação da conta corrente, e que, uma vez que se encontrava na posse dos referidos documentos, entregues ao autor pelo réu, foram prestadas as contas, sempre tendo o Réu direito de se pronunciar, querendo, têm os autos de prosseguir.
Com efeito, não está o Autor a prestar espontaneamente contas ao Réu. O Autor, por ter os documentos, veio apresentar as contas que, em face dos documentos que lhe foram entregues pelo Réu, deveriam, no seu entender, ser prestadas, isto é, o Autor foi apresentando as contas pelo Réu. Não se trata, efetivamente, de apresentação espontânea de contas, mas de prestação das contas do Réu.
Assim, entendemos não se verificar fundamento para julgar improcedente a ação, certo sendo que o que o Autor pretende é que sejam prestadas as contas e condenado o Réu no pagamento do saldo.
Considerando a, real, pretensão, deve ser revogada a decisão, tendo os autos de prosseguir, com convolação para o meio idóneo.
Em lugar da decisão recorrida, impõe-se ao juiz o dever de proceder à correção oficiosa, determinando sejam seguidos os termos processuais adequados, sendo claro o sentido da previsão do nº3, do art. 193º: o de evitar que, por meras razões de índole formal deixe de ser apreciada uma pretensão deduzida em juízo. E bem percetível é, na economia da petição inicial, a interpretar no seu todo, a pretensão que o Autor pretende fazer valer contra o Réu, que não pode deixar de ser conhecida na sua substância.
Tem, pois, o Tribunal a quo de notificar o Réu para os fins do nº1, do art 942º, do CPC, passando os autos a seguir os, adequados, termos da prestação forçada de contas.
*
Da responsabilidade tributária.
As custas do recurso são da responsabilidade do recorrido dada a procedência da pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).
III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos nos termos supra referidos.
*
Custas pelo apelado.
Porto, 20 de maio de 2024
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
Manuel Domingos Fernandes
________________
[1] Alega na petição inicial:
“1º O Réu exerceu as funções de administrador do condomínio, ora Autor, desde Janeiro de 2011 até Fevereiro, inclusivé de 2020.
2º Durante estes sucessivos anos, como administrador do condomínio, era sua obrigação legal convocar assembleias dos condóminos para apresentação e aprovação das contas de cada exercício anual na primeira quinzena de Janeiro, nos termos dos artigos 1436º, alínea j) e 1431º, nº 1 do Código Civil.
3º Porém O Réu, nem apresentou, nem convocou qualquer assembleia de condóminos durante esses sucessivos anos para o citado fim.
4º E perante a pressão exercida pelos condóminos, no termo de Fevereiro do ano de 2020 - limitou-se a entregar os documentos relativos às receitas e às despesas relativas à sua administração, sem elaborar a conta-corrente relativa a cada um dos respetivos anos, ao administrador que o substituiu e que é o aqui legal representante do condomínio.
5º Não constitui função do novo administrador elaborar ele próprio a conta corrente das receitas cobradas e das despesas efetuadas a favor do condomínio, sendo que parte das despesas efetuadas não possuem qualquer documento demonstrativo de que foram efetivamente pagas, e outras, sem qualquer documento que as corroborem, exibem valores invariáveis de ano para ano, não sendo possível ao atual administrador dá-los como realizadas e em benefício do Autor.
6º Mas Na posse de tais documentos originais, entregues pelo Réu ao Autor, é possível a este e é-lhe exigível, que seja ele próprio a escriturar a conta corrente através dos comprovativos quer dos pagamentos das quotas efetuadas por cada um dos condóminos, quer das despesas que estejam confirmadas por documentos suscetíveis de as justificarem,
7º E Repudiando aquelas despesas que só por adivinhação se poderá admitir, uma vez que, ou na sua totalidade, ou parcialmente, não possuem qualquer documento justificativo de que foram pagas a alguém e por esse alguém recebidos.
8º Porquanto, Em alinhamento com o Acordão do STJ de 29.10.2002 (Revista nº 2668/02 -1 - Sumários 10/2002), conhecendo o Autor a documentação comprovativa das receitas e das despesas herdadas de administrador anterior, poderá e deverá apresenta-las de harmonia com os documentos que lhe foram entregues e que agora fazem parte do acervo documental do condomínio.
9º E requerer a citação do Réu no prazo de 30 dias para responder pelas contas resultante do seu exercício de Administrador, contestando-as ou justificando aquelas que não estão comprovadas por qualquer fatura, transferência de dinheiro ou pagamento por cheque ou por Multibanco.
10º Sob pena de, não o fazendo, não poder deduzir oposição às contas que o aqui Autor apresenta desde já, como o comina o artigo 942º do C.P.C.
…”.(negrito nosso)
[2] Miguel da Câmara Machado, inRui Pinto e Ana Alves Leal (Coordenação), Processos Especiais, vol. I, AAFDL Editora, pág. 225.
[3] Acs da RE de 26/3/2015, proc. 353/13.0TBENT.E1, in dgsi.pt.
[4] Ac. RL de 5/2/2019, proc. 16126/17.9T8SNT.L1-7, in dgsi.pt,, onde se refere “Inexistindo norma legal que genericamente determine quando é que alguém tem que prestar contas, a obrigação de as prestar decorre de uma obrigação de carácter mais geral que é a obrigação de informação prevista no art. 573º do C.C. (…) A obrigação de prestação de contas pode resultar de disposição especial da lei (v.g., mandatário, administrador de pessoas coletivas, tutor, curador, gestor de negócios, cabeça-de-casal, marido, depositário judicial, credor anticrético ou pignoratício com o direito de cobrar os rendimentos), do princípio da boa-fé ou de negócio jurídico”.
[5] Miguel da Câmara Machado, idem, pág. 228.
[6] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 393.
[7] Miguel da Câmara Machado, idem, pág. 226.
[8] Ac. do STJ de 628/14.1TBBGC-C.G1.S1.
[9] Ac. do STJ de 16/2/16, proc. 17099/98, citado em António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, em anotação ao artigo 942º, pág. 390.
[10] Ibidem, pág. 388.
[11] Ac. da RC de 23/6/2020, proc. 930/18.3T8CLD.C1, in dgsi.pt.
[12] Ac. da RL de 20/2/2020, proc. 28886/16.0T8LSB.L1-2, in dgsi.pt.
[13] Ac. da RE de 3/11/2016, proc. 969/14.8T8PTM.E1, in dgsi.pt.
[14] Miguel da Câmara Machado, idem, pág. 225.
[15] Ac. da RL de 5/2/2019, proc. 16126/17.9T8SNT.L1-7, in dgsi.pt.
[16] Miguel da Câmara Machado, idem, pág. 225.
[17] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 390 e seg.
[18] Ibidem, pág. 390 e seg.