Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0823266
Nº Convencional: JTRP00041789
Relator: MARIA GRAÇA MIRA
Descritores: TESTAMENTO
CAPACIDADE TESTAMENTÁRIA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP200810140823266
Data do Acordão: 10/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 285 - FLS 65.
Área Temática: .
Sumário: I - Nos termos do disposto no art.º 2189, do C.C só são incapazes de testar, os menores não emancipados e os interditos por anomalia psíquica.
II - O artº 2180º do C.C. dirigi—se às pessoas que não tenham fisicamente qualquer limitação que as impeça de se expressarem devidamente dessa forma, falada ou escrita, e não para aqueles, designadamente os surdos—mudos ou, dizemos nós, outras pessoas com dificuldade na expressão oral ou outra, que se encontram em condições mentais para entenderem e quererem o sentido daquela concreta declaração de vontade.
III - Quanto a estas, o que se exige é que, embora com tais limitações que os podem levar a expressarem a sua vontade por sinais ou monossílabos, estejam plenamente conscientes do que declaram e que o façam de forma inequívocas, não obstante essas mesmas limitações.
IV - Competia à A. que requereu a anulação do testamento alegar e, por fim, provar factos dos quais se concluísse por tal incapacidade acidental do testador.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (1ª Secção), do Tribunal da Relação do Porto:
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I – B………., id. nos autos, intentou acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra C………., D………. e E………., todos ids. nos autos, onde pede que o testamento deixado por F………., seu avô, seja anulado e, em consequência, sejam os RR. condenados a verem declarada tal anulabilidade.
Para o efeito, alegou, em síntese, que:
- É neta de F………. falecido a 15 de Abril de 2004, e filha de G………., filho daquele e pré-falecido em 16 de Outubro de 2003;
- Por testamento, seu avô instituiu herdeiros da quota disponível da sua herança os seus sobrinhos, ora R.R.;
- Ficou a constar do sobredito testamento que o seu “autor” impunha aos R.R. em conjunto, a obrigação de tratar de seu filho H………., solteiro, quer através de internamento em serviço competente ou em sua própria casa, satisfazendo todas a suas necessidades de acordo com o seu estado de saúde, e dele testador;
- Porém, na data em que o testamento foi outorgado (2/4/2004) o F………. encontrava-se manifestamente impossibilitado de se expressar e de entender o sentido e alcance que se acha expresso no referido documento, quer a nível físico, quer a nível psicológico, de modo permanente e irreversível, que o impossibilitavam, definitivamente, de entender o sentido de tudo o que o rodeava;
- À data da celebração do testamento já não articulava qualquer palavra ou frase, mas em Dezembro de 2003 já lhe havia sido diagnosticada “demência com sintomatologia psicótica”, sofrendo de “alterações cognitivas e comportamentais desde há vários anos e que se agravaram desde Outubro” e até “suspeita de demência”;
- E o seu médico de família, em 19/12/2003, descreve o estado de saúde como de “psicótico, com ideias delirantes e grande grau de agressividade” e classifica-o como “doente desorientado no espaço e no tempo com alterações cognitivas e comportamentais”;
- O falecido F………. nunca teve intenção de beneficiar os R.R., a quem apelidava de “ladrões” e que o manietaram na sua vontade por ele estar entregue aos seus cuidados.

Os RR contestaram no mesmo e único articulado, no qual impugnam a essencialidade dos factos alegados pela A., em resumo, assim:
- O testador não estava impossibilitado de entender ou de se expressar, E muito menos ainda de forma permanente e irreversível.
- O que consta do texto do testamento como sendo declarações feitas pelos médicos, é que “…o testador está no pleno uso das suas faculdades mentais, bem orientado no tempo e no espaço, embora tenha alguma dificuldade em articular as palavras, mas perfeitamente perceptível…”.
- A informação constante do doc. 12 (informação médica) datada de 19.12.2003, onde se refere que o F………. é um “psicótico com ideias delirantes e grande grau de agressividade” e “doente desorientado no espaço e no tempo com alterações cognitivas e comportamentais” é falsa, pois o médico que assina nem sequer o observou. Por outro lado, tal médico entendeu, contraditoriamente, noutro documento que “o senhor H………. é um deficiente profundo pelo que não pode assumir qualquer responsabilidade ou assinar qualquer documento pelo que os mesmos têm de ser assinados por seu pai F……….” (o testador).
- Nunca a A. ou a sua irmã se prontificaram para lavar, cuidar, dar de comer ao avô, ou ao seu filho.
- Com o agravar da doença que o impedia de andar, os R.R. trouxeram o tio F………. e o filho, para casa de seu pai, ali o tratando, diariamente, preparando as refeições, lavando-os, chamando o médico para o ver, vestindo-os, levando-o ao Hospital e para cuidar dos mais variados aspectos e necessidades.
- O testador, não obstante as suas limitações físicas, estava perfeitamente capaz de declarar a sua vontade, transmitindo ao Notário o teor da sua deixa testamentária.
- Episódios de confusão ou perturbação não significam, de todo, incapacidade, e muito menos incapacidade permanente.

Na réplica, veio a A. reforçar os argumentos alinhados na petição inicial.
Pediu a condenação dos R.R. como litigantes de má fé por a contestação ser um rotunda falsidade, em virtude dos R.R. terem, conscientemente, alterado a verdade dos factos.
E termina assim:
«I) Devem ser julgadas improcedentes e não provadas as excepções deduzidas pêlos R.R. e procedente e provada a presente acção nos termos do pedido formulado na petição inicial.
II) Requer-se, que os R.R. sejam condenados como litigantes de má-fé, em pesada multa e indemnização a favor da A., de montante nunca inferior a € 2.500.»

Foi proferido despacho saneador no qual se considerou não escrito o articulado da Réplica, com excepção da matéria da litigância de má fé.
Fez-se seguir a condensação, com elaboração de factos assentes e de base instrutória, de que reclamaram os R.R. e a A., o que foi parcialmente deferido.
Designada, teve lugar audiência de julgamento com observância do formalismo legal, designadamente com registo de prova.
Concluída a discussão da causa, o Tribunal respondeu à matéria da base instrutória, sem reclamações.
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Oportunamente, foi proferida decisão que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu os RR. do pedido.

Inconformada, a A. interpôs recurso de apelação, apresentando, oportunamente, as suas alegações e respectivas conclusões, conforme o estipulado pelo art.º 690º, do CPC, onde defende que:

1 – A prova produzida nos autos e indicada no corpo das alegações, impõe que os seguintes quesitos, da B.I., passem a reflectir a realidade de que:
- F………. padecia também, desde há alguns anos, de doença do foro psiquiátrico (2º, a que corresponde o ponto 17, da factualidade assente); - não provado o teor da declaração a que se reporta o quesito 7ºA (ponto 22); - neste dia 19/12/2003, o referido médico de família que subscreveu o relatório dito em 6. e 7., não observou F………., tendo-o observado em 10/12/2003, data a que se reporta o aludido relatório (8º, ponto 23); - F………. faltou a consultas médicas psiquiátricas enquanto esteve ao cuidado dos RR. (10º, ponto 24); - com o agravamento da doença referida em G., cerca de um mês antes da sua morte, F………. ficou impedido de falar, não conseguindo articular qualquer palavra ou frase (1º); - aquando da entrada de F………. no Hospital de I………., referida em O, aquele encontrava-se completamente desidratado e incapaz de se exprimir (9º); - foi a A. quem solicitou a intervenção da GNR de Santa Maria da Feira, referida em M (12º); - ... sendo que F………. informou os agentes que os sobrinhos, aqui RR., já não lhe levavam comida há 2 dias (14º); - F………. não tinha vontade de beneficiar os ora RR. (16º); ... a quem apelidava inúmeras vezes de “ladrões” (17º); - ... e a quem escorraçou várias vezes de casa (18º); - O testamento referido em D., foi lavrado por F………. mediante pressão efectuada por todos os RR. (19º); - ... com o propósito de extorquir bens do seu património (20º); ... sendo que o finado F………. não teve consciência do que declarou na “outorga” do testamento (21º); - ... nem do significado do acto (22º); - ... não compreendendo o sentido e alcance das palavras utilizadas no referido acto (23º).
2 – A informação clínica do médico de família, de 19/12/2003, foi desvalorizada incorrectamente, uma vez que sustentada por depoimento testemunhal e foi erradamente confrontada com documento denominado “declaração”, cujo contexto em que o mesmo terá sido elaborado, não foi apurado. Desvalorizção esta que não pode deixar de se estranhar, ademais pelo facto do Juiz a quo procurar suportar a sua decisão em documentos vários.
3 – Houve total desvalorização da manifesta contradição existente entre o teor da carta subscrita por médico interveniente no testamento – a qual expressamente refere que o testador precisa de tratamento psiquiátrico – e o depoimento prestado em juízo pelo mesmo médico.
O Juiz a quo usou dois pesos e duas medidas: desvalorizou o relatório do Hospital J………., por entender existir contradição com o relatório do Hospital K………. (onde F………. chegou sob o efeito da medicação, não revelando os mesmos sintomas verificados pela Médica Psiquiatra do Hospital J………., S.A., em Aveiro). Desvalorizou, igualmente, a informação clínica prestada pelo médico de família do testador, por entender existir contradição com a declaração, alegadamente emitida pelo mesmo clinico. Mas não se pronunciou acerca da contradição, essa sim evidente, entre o teor da carta elaborada pelo médico Dr. L………., a pedido da apelante e o seu depoimento (a pedido dos apelados).
4 – Foi desvalorizado o auto de notícia elaborado pela testemunha Sargento M………., datado de 8 de Novembro de 2003, e que se reporta a deslocações da GNR de Santa Maria da Feira a casa de F………., em 16/10/2003 e 6/11/2003, junto aos autos.
5 – O relatório médico do Hospital J………., S.A., em Aveiro, e o relatório do auto de ocorrência da GNR, juntos aos autos, porque sustentados por depoimento prestado pelos seus subscritores, dispõem de força probatória formal (art.º 374º, do CC) e de força probatória material (art.º 376º, do CC).
6 – O testamento em causa, não teve qualquer intervenção do testador. Efectivamente, foi o mesmo marcado pelos beneficiários, que solicitaram a presença das testemunhas e dos médicos, a quem pagaram; que comunicaram o teor do testamento à Notária; que levaram F………. ao Cartório na data acordada e que presenciaram a sua feitura e leitura. F………. que não falava, porque não podia, que não escrevia, porque era analfabeto, que se encontrava demente e padecia de doença oncológica, em estado avançado, que lhe afectava a língua, que não assinou o testamento, limitando-se a acenar a cabeça, não pode ter tido consciência do acto!
7 – O testamento em causa é não só anulável – por virtude de o testador se encontrar, aquando da sua leitura, incapacitado de entender o sentido da sua declaração (vício da vontade), como também será nulo, uma vez que o testador não ditou os termos constantes do testamento, não tendo “exprimido cumprida e claramente a sua vontade”.
8- Também é patente que se mostra estabelecida a nulidade formal por inobservância do requisito previsto no art.º 50º, do Código do Notariado (explicado o teor do testamento ao testador), não obstante o que ficou consignado no documento, conforme resulta do depoimento da funcionária notarial e demais intervenientes no testamento.
9 – À data da feitura do testamento, o testador não detinha o discernimento suficiente para entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade, sabido como é que o regime das incapacidades para a disposição “mortis causa” não é tão exigente como para os negócios em geral, já que, quanto ao testamento, basta uma incapacidade natural e para aqueles negócios em geral exige que seja notória.
10 – As causas gerais de invalidade do negócio jurídico (artºs 251º a 257º, do CC), só podem aplicar-se parcialmente e a título subsidiário ao testamento, se forem compatíveis com o espirito das causas especiais testamentárias (artºs 2199º, 2201º e 2203º, do C.C.).
11- A nulidade do testamento ou de uma disposição testamentária tem um regime aproximado ao da anulabilidade: as diferenças estão no círculo de pessoas legitimadas para agir e no prazo em que o podem fazer.
12 – Foram violados os seguintes normativos legais: artºs 2180º e 2199º, do CC, 20º, do C. do Not. e 365º, nº3, 645º, 653º, nºs 1 e 2, 655º, 659º e 668º, estes do C.P.C.., pelo que, deve ser revogada a decisão da matéria de facto e substituída por outra, nos termos referidos acima e, uma vez operada tal alteração, deverá ser revogada a decisão da matéria de direito, substituindo-se por outra que declare a nulidade do testamento e, consequentemente, do negócio jurídico que ele pretende documentar ou anule tal testamento, nos termos do art.º 2199º, do CC.

Nas contra-alegações apresentadas pelos Recorridos, estes defenderam que fosse negado provimento ao recurso e confirmada a decisão impugnada.
II – Corridos os vistos, cumpre decidir.
É, em principio, pelo teor das conclusões do/a recorrente que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (artºs 684º, nº3, 690º, nº3, 660º, nº2 e 713º, nº2, todos do CPC).
Assim, a indicada argumentação, resume-se às seguintes questões:
A – A impugnação da decisão de facto, quanto aos quesitos: - 2º; 7ºA; 8º; 10; 1º; 9º; 12º; 14º; 16º; 17º; 18º; 19º; 20º; 21º; 22º e 23º.
B – Da anulabilidade e da nulidade do testamento referido nos autos, conforme o disposto nos artºs 2199º, do C.C. e 50º, do Cód. do Not..
É o que iremos analisar.

Vêm provados os seguintes factos:

1- A A., B………., é filha de G………., este, por sua vez, filho de F……….;

2- G………. faleceu em 16 de Outubro de 2003;

3- F………. faleceu no estado de viúvo em 15 de Abril de 2004;

4- Em documento designado de “testamento”, datado do dia 2 de Abril de 2004, lavrado num automóvel sito à Rua ………., na cidade de ………., pela Ajudante em exercício do Cartório Notarial de ………., ficou a constar, além do mais que: “(...) F………., viúvo, natural da freguesia de ………., concelho de Santa Maria da Feira, filho de N…...….., nascido em trinta de Setembro de mil novecentos e dezanove (...) declarou o testador residente em ………., ………., que institui herdeiros da sua quota disponível os seus sobrinhos, C………., casada (...), D………., casado (...) e E………., casada (...), aos quais, em conjunto, impõe a obrigação de tratar de seu filho H………., solteiro, quer através de internamento em serviço competente ou em sua própria casa, satisfazendo todas a suas necessidades de acordo com o seu estado de saúde, e dele testador. Assim termina esta sua disposição de última vontade, sendo o primeiro testamento que faz, declarando não poder assinar (...)”, tudo conforme consta do documento junto de fls. 25 a 28, cujo teor aqui se dá por reproduzido;

5- Mais se consignou no documento referido em D. que intervieram no acto como peritos médicos a pedido do testador, o Dr. O………. e o Dr. L………., “os quais declararam que o testador está em pleno uso das suas faculdades mentais, bem orientado no tempo e no espaço, embora tenha alguma dificuldade em articular a palavras por ter uma lesão da cavidade oral, mas perfeitamente perceptível”;

6- F………. era analfabeto, não sabendo ler nem escrever, tendo aprendido a assinar o próprio nome, mas apenas por cópia ou decalque, sendo que, com o avançar da idade, deixou mesmo de poder fazer a assinatura;

7- F………. padecia de neoplasia da língua, o que inicialmente lhe dificultava a fala, tendo vindo a falecer no Instituto de Oncologia do Porto por causa dessa doença, um mês depois do início da mesma;

8- O relatório da consulta médica efectuada a F……… em 10/12/2003 pelo Hospital K………., em Santa Maria da Feira, diagnosticou-lhe “suspeita de demência”, conforme documento de fls. 34 que aqui se dá por reproduzido;

9- Um dos peritos médicos que interveio no acto descrito em D., o Dr. L………., em 10 de Dezembro de 2003, enviou uma carta ao seu colega no Hospital J……….., S.A., em Aveiro, com o seguinte teor: “Caro Colega, o doente F………. apresenta perturbações do foro psiquiátrico com perturbações de humor e alterações cognitivas. Por outro lado, apresenta episódios de agressividade verbal e confusão mental. Penso, se o Colega concordar, que seria conveniente observação por Psiquiatria”, conforme documento de fls. 37, que aqui se dá por reproduzido;

10- Em 23 de Janeiro de 2004, P………. deu entrada no Tribunal de Santa Maria da Feira de uma acção de interdição contra F………., conforme documento de fls. 39 a 42 que aqui se dá por integralmente reproduzido;

11- A 08/04/2004, atento o seu grave estado de saúde, o decesso F………. foi internado no Instituto de Oncologia do Porto;

12- No dia 11/04/2004, a A. e o marido foram visitar F………. ao I.P.O., encontrando o mesmo entubado, alimentado por sonda, e a respirar artificialmente, num estado completamente vegetativo;

13- Na sequência de uma intervenção da G.N.R. de Santa Maria da Feira junto de F………. na residência por este habitada, os agentes policiais diligenciaram no sentido de aquele e o filho que com ele vivia, serem ambos hospitalizados no Hospital K………., onde o primeiro veio a ser operado à anca, tendo permanecido cinco dias internado;

14- Devido ao facto de a casa de F………. não ter condições de habitabilidade, designadamente, água canalizada e saneamento básico, e porque não se encontrou um lar em que o mesmo pudesse ser acolhido, aquele e seu filho deficiente foram viver para casa do pai dos aqui RR., Q……….;

15- No dia 6/04/2004 F………. deu entrada no Hospital K………. onde esteve a soro;

16- Em 6/4/2004, a conta bancária n.º ……….., que F………. titulava no “S……….”, agência de Santa Maria da Feira, no montante de €15.459,46, foi integralmente liquidada por ele, tendo sido emitido um cheque bancário a favor dos três RR. pela referida quantia, a qual já havia sido transferida de outra conta bancária de F………. existente na mesma instituição bancária com o n.º ……….., correspondente a depósito a prazo, e que foi liquidada totalmente em 15/01/2004, conforme cópias dos respectivos extractos bancários constantes de fls. 44 e 45 cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
17- No dia 10 de Dezembro de 2003, F……… apresentou alguma desorientação no tempo e agressividade;

18- No dia 10 de Dezembro de 2003 F………. deu entrada no serviço de urgência do “Hospital K………., S.A.”, em Aveiro, onde foi observado, tendo-lhe sido diagnosticada “demência com sintomatologia psicótica”;

19- (...) e ainda “alterações cognitivas e comportamentais desde há vários anos e que se agravaram desde Outubro”, conforme documento de fls. 32 que aqui se dá por reproduzido;

20- O médico de família de F………., em relatório datado de 19/12/2003, descreveu o estado de saúde de F………., como “psicótico, com ideias delirantes e grande grau de agressividade”;

21- (...) e classificou-o como “doente desorientado no espaço e no tempo com alterações cognitivas e comportamentais”, tudo conforme consta do documento de fls. 35 que aqui se dá por reproduzido;

22- O mesmo médico de família declarou em 21 de Outubro de 2003 que “o Sr. H………. é um deficiente profundo pelo que não pode assumir qualquer responsabilidade ou assinar qualquer documento pelo que os mesmos têm que ser assumidos pelo seu pai F……….”;

23- Neste dia 19/12/2003 o referido médico de família que subscreveu o relatório dito em 20 e 21 não observou F……….;

24- F………. faltou a uma ou duas consultas médicas não psiquiátricas enquanto esteve ao cuidado dos R.R., mas porque se recusou a comparecer;

25- (...) tendo os agentes encontrado o falecido F………. trancado em casa, com a anca partida, acompanhado pelo seu filho deficiente;

26- F………. foi viver para casa do seu cunhado Q………. .

Debrucemo-nos então sobre o suscitado, pela ordem acima dada.

A - Começando pela impugnação feita quanto à matéria de facto, verifica-se que, nos termos do art.º 690º-A, do CPC, deverá quem recorre obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (nº1, al.a), bem como os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (nº1, al.b) e, neste último caso, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, (como aqui acontece) incumbe ainda ao recorrente sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda hoje - por referencia ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº2, do art.º 522º- C, do mesmo diploma legal (aqui aplicável).
Assim, ao recorrente, neste tipo de situação, incumbe, especialmente, satisfazer dois ónus: -o da discriminação fáctica e, ainda, o da discriminação da respectiva prova que lhe serve de fundamento, sendo que este, no actual regime processual civil, introduzido pelo DL 183/00, de 10/8, mais fácil e cómodo para o interessado do que o anterior (que obrigava à transcrição), basta-se com a simples indicação dos depoimentos em que se baseia para a pretendida alteração factica, com referência ao que se encontra assinalado em acta, conforme o estabelecido pelo art.º 522º, nº2, do CPC, como já se referiu.

Por outro lado, a reapreciação da matéria de facto por parte desta Relação, tem um campo muito restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada. Com efeito, não se trata de um segundo julgamento até porque as circunstâncias não são as mesmas, na 1ª e na 2ª instância. Não basta, pois, que não se concorde com a decisão dada é necessária a demonstração da existência de erro na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efectivamente, no caso, foram produzidos.

Há que ter sempre presente que “Os depoimentos não são palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidas. Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento e que, por vezes, é um meio de ocultar. A mímica e todo o aspecto exterior do depoente influem, quase tanto como as sua palavras, no crédito aprestar-lhe. O magistrado experiente sabe tirar partido desses elementos intraduzíveis e subtis. Nisto consiste a sua arte. As próprias reacções quase imperceptíveis do auditório vão-se acumulando no espírito do julgador, ávido de verdade e vão formar uma convicção cujos motivos lhe será muitas vezes impossível explicar” (Eurico Lopes Cardoso, in Bol. 80, pág. 203, António Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, ed. Almedina, pág. 257, nota 346). “É já hoje lugar-comum a nota de que tanto ou mais do que o que o depoente diz vale o modo por que o diz, é que se as declarações contam, contam também as reticências, as hesitações, as reservas, enfim a atitude e a conduta do declarante no actos do depoimento” (cfr. A. Reis, Anotado, Vol. IV, pág.137).

Por isso começamos por afirmar que não são coincidentes as circunstâncias na 1ª e na 2ª instância, dado que as gravações não comportam, pela sua própria natureza todos os aspectos importantes a considerar na avaliação dos depoimentos, segundo os quais e de acordo com o “principio da livre convicção e apreciação da prova” (aqui não sindicável), foram essenciais para as respostas dadas aos quesitos por parte daquela instância.

“A Relação visa mais corrigir um julgamento errado do que proferir um novo julgamento sobre a matéria de facto controvertida e a ela cabe a última palavra não como tribunal de segunda ou de nova instância, mas como tribunal corretor ou fiscalizador dos juízos proferidos...” (Ac. do STJ, de 23/4/02, Ver.nº997/02 – 1ª, Sumários, 4/2002).

A Recorrente indicou a prova documental e testemunhal em que se baseia para defender a apontada alteração factual, em obediência ao ónus imposto. Todavia, por nós, houve o cuidado de ouvir, para além daquela, a totalidade da prova gravada, quer nas cassetes, quer no CD, juntos, de forma a melhor alcançar as circunstâncias particulares do caso e face ao melindre do mesmo, uma vez que cabe verificar da efectiva e real vontade de alguém que já morreu, reportada ao momento em que o documento/testamento foi elaborado, bem como analisamos toda a documentação junta, designadamente aquela que foi produzida pelos médicos que tiveram contacto com o caso (no mesmo dia foram vários clínicos a fazê-lo e as conclusões a que chegaram não são coincidentes, muito pelo contrário, para além de se reportarem a situações episódicas, sendo que, então, o falecido, pessoa muito idosa, encontrava-se muito perturbado pelo facto de ter sido, nesse mesmo dia, surpreendido em sua casa, onde se encontrava deitado com o filho deficiente, que tanto queria proteger, e obrigado, pelos bombeiros – tal como referiu a testemunha T………., a ir ao hospital, como estava- “descomposto”. Levaram-no totalmente contra a sua vontade e debaixo de um estado de compreensível irritação e nervosismo evidentes. Para além de, o falecido, vir revelando, ao longo dos anos, grande desconfiança pelos serviços hospitalares, em geral, opondo-se junto dos próprios sobrinhos, aqui RR., a que estes o conduzissem ao hospital. Preferia chamar o médico particular a sua casa, onde sentia a segurança que, ali, lhe faltava.) e, dessa conjugação, encontramos total coincidência com o que foi decidido pela 1ª instância. Com efeito, de toda essa prova, não se extrai o pretendido pela A., tendo nela pleno apoio a convicção formada pelo Tribunal a quo, para cada um dos concretos pontos em crise. A conclusão a que se chega, é que o falecido expressou, com dificuldade sem dúvida, dadas as particulares facetas do caso e o seu débil estado de saúde, mas consciente do que estava a fazer, a sua vontade real no que constitui o conteúdo do testamento, sendo a sua maior preocupação acautelar o bem estar do seu filho deficiente que tinha a viver consigo. Por isso se compreende, tão bem, o cuidado que manifestou ao repetir, a seu pedido, a colocação da sua impressão digital no testamento, para que não restassem dúvidas, tal como resulta da prova testemunhal, designadamente, do depoimento da Sr.ª ajudante de notariado, a testemunha U………., que corroborou, nesta parte, o que já havia sido dito pelo R. D………., sobrinho do falecido e também foi confirmado pelos médicos e testemunhas que estiveram presentes, aquando da leitura e da explicação pormenorizada do teor do mesmo testamento, ao testador – F………. que, só depois disso, tendo concordado com o que desse documento constava, lhe apôs a sua impressão digital, conforme supra referido, fazendo com que voltassem a ir buscar a esponja para melhor a colocar, no papel, de forma bem visível e sem deixar qualquer dúvida que era a sua. Ambos os médicos que ali se encontravam, prestaram um depoimento isento e bastante esclarecedor, indo ao encontra dos depoimentos anteriormente prestados, bem como do que foi dito pelas testemunhas que presenciaram esse, e que revelaram existir entre o falecido e os sobrinhos contemplados no testamento, aqui RR., uma relação afectiva e de proximidade, sendo neles que F………. depositava a confiança e a esperança de virem a cuidar do seu filho deficiente, o que já estavam a fazer nessa altura (encontrando-se F………. a viver na casa do pai deles, seu cunhado, desde que foi operado à perna, tendo para ali ido o filho deficiente, também por essa altura), bem como dele próprio.
Assim se compreende, não só a conclusão a que o Tribunal a quo chegou relativamente à factualidade assente (cujo conteúdo está reproduzido acima), como, ainda, das razões que apontou para dar como não provados os restantes factos quesitados, nomeadamente: – o quesito 1º (Com o agravamento da doença referida em G., cerca de um mês antes da sua morte, F………. ficou impedido de falar, não conseguindo articular qualquer palavra ou frase?), 9º (Quando da entrada de F………. no Hospital I………. referida em O, aquele encontrava-se completamente desidratado e incapaz de se exprimir?), 12º (Foi a A. quem solicitou a intervenção da G.N.R. de Santa Maria da Feira, referida em M.?), 14º ((...) sendo que F………. informou os agentes que os sobrinhos, aqui RR., já não lhe levavam comida há 8 dias?), 16º (F………. não tinha vontade de beneficiar os RR.?), 17º ((...9 a quem apelidava inúmeras vezes de “ladrões”?), 18º ((...) e a quem escorraçou várias vezes de casa?), 19º (O testamento referido em D. foi lavrado por F………. mediante pressão efectuada por todos os RR?), 20º ((...)com o propósito de extorquir bens do seu património?), 21º ((...) sendo que o finado F………. não teve consciência do que declarou na “outorga” do testamento em causa?), 22º ((...)nem do significado do acto?) e 23º ((...) não compreendendo o sentido e alcance das palavras utilizadas no referido acto?), cuja factualidade foi seriamente posta em causa, não só pelos depoimentos que sobre ela se debruçaram, como pela documentação junta e analisada e, nesta matéria, são de realçar os depoimentos dos dois médicos que intervieram na feitura do testamento e que, convincentemente, indo ao encontro do que declararam as testemunhas que mais conviviam com F………., o encontraram naquelas circunstâncias capaz de entender perfeitamente o sentido da sua declaração e de se determinar de acordo com a sua vontade..., bem como, os depoimentos ... da funcionária notarial e as duas testemunhas que assistiram ao testamento, testamento este que ... não representa desmedida vantagem para os seus beneficiários, dado o encargo que nele assumiram.
Daqui resulta que a decisão de facto foi encontrada com pleno fundamento na prova produzida que, criteriosamente, foi atendida e apreciada pelo Tribunal a quo, sem que se encontre patente qualquer erro de julgamento.
Assim, nesta parte, carece de fundamento o presente recurso, mantendo-se a matéria de facto tal como está fixada.

B– Quanto ao direito, cuja alteração da decisão a Recorrente fez depender da alteração da decisão de facto, não tendo esta ocorrido, poder-se-á afirmar que deixa de ter sentido o que, por fim, foi pedido no recurso.
Todavia, sempre se dirá, porque foi aflorado, que:
Nos termos do disposto no art.º 2189º, do C.C só são incapazes de testar, os menores não emancipados e os interditos por anomalia psíquica; por outro lado, refere o art.º 2180º, do mesmo diploma que é nulo o testamento em que o testador não tenha exprimido cumprida e claramente a sua vontade, mas apenas por sinais ou monossílabos, em resposta a perguntas que lhe fossem feitas. No entanto, articulando estes dois preceitos, conclui-se que o último normativo, na sua parte final, dirigi-se às pessoas que não tenham fisicamente qualquer limitação que as impeça de se expressarem devidamente dessa forma, falada ou escrita, e não para aqueles, designadamente os surdos-mudos ou, dizemos nós, outras pessoas com dificuldade na expressão oral ou outra, que se encontram em condições mentais para entenderem e quererem o sentido daquela concreta declaração de vontade. Quanto a estas, o que se exige é que, embora com tais limitações que os podem levar a expressarem a sua vontade por sinais ou monossílabos, estejam plenamente conscientes do que declaram e que o façam de forma inequívocas, não obstante essas mesmas limitações. Sabemos que é difícil, mas não é impossível.
Assim, pudendo ser ajudadas por terceiros, o que a lei não impede, este último grupo de pessoas, deste que não sejam menores não emancipados, nem interditos por anomalia psíquica, têm todo o direito de testar, direito esse que não lhes pode nem deve ser retirado pelo facto de fisicamente se encontrarem em tais condições, conseguindo apenas expressar a sua vontade através de sinais ou monossílabos, desde que o façam de forma inequívoca e que o notário e os restantes intervenientes o entendam, sem margem para dúvidas.

Claro que, em tais casos, e porque eles podem conduzir a situações de aproveitamento, deve haver um cuidado acrescido na análise das circunstâncias concretas do caso, por se encontrarem paredes meias com aquelas que levam à nulidade do testamento nos termos do último normativo citado, o qual, como se depreende do que foi digo atrás, entendemos que deve ser interpretado da forma restritiva apontada e não outra, embora com muita cautela e grande exigência no apuramento da vontade real do testador.

Assim, in casu, não é de incluir o apurado na previsão desse normativo e também não é de considerar que F………., aquando da feitura do testamento, se encontrava acidentalmente incapaz, tornando anulável esse documento, de acordo com o estabelecido pelo art. 2199º, do citado código (É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória), que compreende, para além dos casos de anomalia psíquica, outros, susceptíveis de impedirem, ainda que de forma transitória, que o testador exerça a sua vontade de forma livre ou que se encontre sem capacidade de entender o sentido e alcance da declaração que expressou no testamento, nomeadamente, em situações de embriaguez, coacção e outras similares.

Ora, nos termos do disposto no art.º 342º, do C.C, era à A. que competia alegar e, por fim, provar factos dos quais se concluísse por tal incapacidade acidental do testador F………., o que se não verificou, muito pelo contrário. Assim, bem andou o Tribunal a quo, ao concluir pela improcedência da acção, não havendo, da nossa parte, qualquer censura a fazer-lhe, por isso.
*
III- Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.

Porto, 14 de Outubro, de 2008
Maria da Graça Pereira Marques Mira
António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva