Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOÃO PEDRO NUNES MALDONADO | ||
Descritores: | DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA EXERCÍCIO DO CONTRADITÓRIO NOVAS DECLARAÇÕES EM JULGAMENTO | ||
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Nº do Documento: | RP202009242564/18.3JAPRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 09/24/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO A TODOS OS RECURSOS | ||
Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – As declarações para memória futura configuram uma excepcional restrição ao princípio da imediação na produção dos meios de prova. II – Ao admitir tais declarações, o legislador teve presente diversas variáveis psíquico-emocionais relacionadas com a vitimização secundária, em múltiplas frentes. III – O direito ao contraditório deve ser exercido, na sua plenitude, no momento da prestação das referidas declarações IV – A prestação de eventuais novas declarações pela alegada vítima, em julgamento, apenas deve ter lugar quando se mostrarem absolutamente necessárias para o apuramento de circunstâncias ou factos novos ou para a obtenção de esclarecimentos essenciais. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | processo nº2564/18.3JAPRT.P1 Acórdão deliberado em conferência na 2º secção criminal do Tribunal da Relação do Porto * I. B… veio interpor recurso da decisão que indeferiu o seu pedido de inquirição em audiência de julgamento da menor/vítima e do acórdão proferido no processo comum colectivo nº2564/18.3JAPRT do juízo central criminal do Porto – Juiz 8, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que o condenou pela prática em autoria material de um crime de sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, nºs 1, com a agravação do art.º 177º, n.º1, al. b), do C.P., na pena de cinco anos de prisão.* I.1. Decisão recorrida. Após reunião do tribunal colectivo, os juízes que compõem tal tribunal acordaram em proferir o seguinte despacho: O arguido requereu a prestação de declarações presenciais pela menor C…, alegando hesitações e incertezas, nas declarações que prestou nos autos, pelo que em seu entendimento deve a mesma ser inquirida a fim de esclarecer as reticências que transparecem em tal depoimento. Na sequência do requerido o Tribunal Colectivo decidiu reproduzir aquelas declarações em sede de audiência de discussão e julgamento, o que ocorreu. Isto posto importa apreciar e decidir: O art.º 24º, nº 6, da Lei nº 130/2015, de 04-09 (Estatuto da Vítima) estabelece, como regra geral, não ser repetível a prestação de depoimento de pessoa que já prestou declarações para memória futura. No que se refere a menores vítimas de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, a Reforma Penal de 2007 (Lei nº 48/2007, de 29-08), na sequência de contributos de legislação internacional, já havia tornado obrigatória a inquirição para memória futura, no decurso do inquérito (valendo como prova em julgamento, independentemente do menor vir a ser novamente ouvido durante a audiência), estabelecendo ainda a lei condições específicas da realização desta diligência (cfr. art. 271º, nº 4, do CPP: ambiente informal e reservado e assistência por técnico especialmente habilitado). Em 2015, as alterações à Lei de Protecção de Crianças e Jovens (Lei nº 142/2015, de 08-09), ao Regime Geral do Processo Tutelar Cível (Lei nº 141/2015, de 08-09) e a aprovação do já referido Estatuto da Vítima (Lei nº 130/2015, de 04-09) visaram evitar a audição sucessiva (em diversos procedimentos judiciais ou no mesmo procedimento judicial) de menor vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, conferindo centralidade às declarações para memória futura recolhidas no processo criminal e assumindo uma opção clara no sentido de tais declarações para memória futura constituírem a única situação de audição da criança. A regra geral de não renovação do depoimento, no caso dos menores vítimas de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, assenta, no essencial, no efeito vitimizador (vitimização secundária) inerente a tal repetição (pretende-se evitar que a criança seja levada a reviver os sentimentos negativos – medo, ansiedade, dor – experimentados aquando do crime), pretendendo-se evitar também os efeitos de contaminação e erosão da veracidade do depoimento que são apontados à prática da audição sucessiva). Como não há regra sem excepção, a norma do art.º 24º, nº 6, da Lei nº 130/2015, de 04-09 (Estatuto da Vítima) estabelece, a par da regra geral de não renovação do depoimento, uma excepção a tal regra. A excepção, aí prevista, assenta na circunstância da prestação de depoimento em audiência de julgamento se mostrar indispensável para a descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar. A prestação de declarações para memória futura de menor alegadamente vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual deve ter lugar no mais curto espaço de tempo possível após a ocorrência dos factos ou do seu conhecimento. A prestação de eventuais novas declarações pela alegada vítima apenas deve ter lugar se se mostrarem absolutamente necessárias para o apuramento de circunstâncias ou factos novos ou para a obtenção de esclarecimentos que se tenham mostrado essenciais no decurso do processo (investigação ou julgamento), afirmando-se ainda que, por regra (e sendo possível), as novas declarações devem ser efectuadas pelas mesmas pessoas. Ora, no caso dos autos, perante a produção de prova ocorrida em julgamento, designadamente da reprodução das declarações prestadas perante juiz, não vemos que se tenha mostrado absolutamente necessária a reinquirição da menor. De facto, ponderadas as declarações para memória futura da menor (as quais, de resto, constam de gravação audio e foram transcritas nos autos) e os depoimentos e declarações prestadas em julgamento por outros intervenientes processuais, não vemos que factos ou circunstâncias possam tornar absolutamente necessária a reinquirição da menor C…. Assim, sem necessidade de maiores considerações, infere-se o requerimento do arguido no sentido de serem prestadas declarações presenciais pela menor C… em julgamento. * I.1.1. Recurso do arguido. ……………………………… ……………………………… ……………………………… * I.1.2. Resposta do MºPº.……………………………… ……………………………… ……………………………… * I.1.3. Parecer do MºPº ……………………………… ……………………………… ……………………………… * I.2. Acórdão recorrido ……………………………… ……………………………… ……………………………… * Motivação ……………………………… ……………………………… ……………………………… * Direito ……………………………… ……………………………… ……………………………… * III. 2. Da medida da pena ……………………………… ……………………………… ……………………………… * I.2.1. Recurso do arguido……………………………… ……………………………… ……………………………… * I..2.2. Resposta do MºPº……………………………… ……………………………… ……………………………… * II. Objecto dos recursos e sua apreciação.O objecto dos recursos está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95). São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões e se vão além também não devem ser consideradas porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336). No primeiro recurso, apesar de desestruturado, pretende ver apreciado a ilegalidade da deliberação que indeferiu o seu pedido de inquirição presencial da menor/vítima porque proferida antes da produção da totalidade dos meios de prova por violação do principio do contraditório (com referência às garantias de defesa estabelecidas no artigo 32º, nº2, da Constituição da República Portuguesa) e do princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal). No segundo, invoca uma nulidade decorrente de método proibido de prova (a ausência de advertência, à menor, da faculdade de não depor), a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, a excessividade da pena de prisão fixada e a não aplicação de pena substitutiva não detentiva. * II.1. Do primeiro recurso, interlocutório.Os pressupostos de reapreciação da deliberação impugnada estão fixados pela pretensão formulada pelo arguido: na primeira sessão da audiência de julgamento (pretensão que não mais foi objecto de repetição, ao contrário do que o recorrente alega – cfr. actas de fls.316 a 320 e 324 a 326) realizada no dia 22 de Janeiro de 2020, o ora recorrente pediu que a menor prestasse depoimento em audiência de julgamento quando não havia sido produzido meio de prova algum, invocando incongruências e um discurso inconclusivo nas suas declarações prestadas para memória futura. Dito de outra forma, a sua pretensão partia de um alegado discurso endogenamente incoerente da menor quando prestou declarações para memória futura, sem confronto com qualquer outro meio de prova. O tribunal, após ter efectuado a reprodução, em audiência de julgamento, das declarações da menor prestadas para memória futura (na mesma sessão em que o requerimento foi deduzido e após a prestação de declarações do arguido e da testemunha D…, mãe da menor) deliberou no dia 24 de Janeiro de 2020 o indeferimento da pretensão do arguido. Não iremos aqui discutir a natureza desta excepcional restrição ao princípio da imediação na produção dos meios de provas (cfr. artigo 355º do Código de Processo Penal) uma vez que a mesma foi categoricamente pensada pelo legislador, por força da equação de variáveis psíquico-emocionais relacionadas com a vitimização secundária, em múltiplas frentes (cfr. artigo 271º, nºs 2, 4 e 8, do Código de Processo Penal, artigos 4º, 17º e 24º da Lei nº130/2015, de 04 de Setembro, que estabeleceu o Estatuto da Vítima, artigo 5º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível aprovado pela Lei nº141/2015, de 08 de Setembro, e artigo 84º da Lei nº147/99, de 01 de Setembro, de protecção de crianças e jovens em risco) e nas referidas declarações da menor prestadas para memória futura foram proporcionados ao arguido todas as garantias de defesa (foi representado por defensor, tal como o seria em audiência de julgamento realizada na sua ausência, com os direitos estabelecidos no artigo 271º, nº3 e 5, do Código de Processo Penal, equivalentes àqueles previstos no artigo 349º do mesmo diploma). Aqui chegados, as dúvidas que o recorrente poderia ter em relação ao discurso da menor poderiam e deveriam ter sido resolvidas na diligência de prestação de declarações para memória futura (onde são asseguradas as garantias de defesa, na interpretação adequada do artigo 32º, nº2, da Constituição da República Portuguesa). Era nessa fase que poderia, com a amplitude legal conferida, formular as questões que apenas neste recurso coloca (já que no requerimento que apresentou se limitou a vagas conclusões que, seguramente, concretizadas como no recurso interposto, demandariam do tribunal colectivo uma deliberação mais pormenorizada). A deliberação recorrida (e bem) vai além da pretensão formulada. Determina que o discurso narrativo da menor é perceptível (já as eventuais imprecisões e incoerências são apreciadas na deliberação final) e que os meios de prova até então produzidos (declarações do arguido e depoimento da mãe da menor) não justificavam a inversão da contra-regra legalmente estabelecida, afastando fundada e previamente qualquer dúvida (o que não equivale à sua valoração plena, matéria que pode e deve ser questionada em sede de impugnação da deliberação sobre matéria de facto) relativamente à genuinidade das declarações (o que se não estende à sua valoração em confronto com outros meios de prova) e, assim, explicar que a descoberta da verdade e boa decisão da causa (finalidade do processo penal), naquele momento, seguramente não passaria pela reinquirição da menor. As finalidades do processo penal que, em permanente tensão dialéctica, pela sua natureza conflituante, atravessam todas as fases do processo, colocam-se com particular acuidade no julgamento e sentença (com força de caso julgado). Por um lado, a realização da justiça através da descoberta da verdade material (a realização do interesse de o Estado punir só os verdadeiros culpados – Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º Volume, Coimbra Editora, 1974, pág.145 – a condenação do culpado e a protecção do inocente – Claus Roxin, Derecho Procesal Penal, 25º edição, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág.4 ) e, por outro, a protecção perante o Estado dos direitos fundamentais dos cidadãos, particularmente do arguido – Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Almedina, 2016, pág.14 – e, modernamente, da vítima (neste sentido Claus Roxin, Pasado, presente y futuro del derecho procesal penal, Rubinzal – Culzoni Editores, Buenos Aires, 2007, pág.71 a 86.). A primeira das finalidades referidas estabelece uma obrigação, dirigida ao julgador, de esclarecer por completo o acontecimento histórico representado, tanto no seu aspecto fáctico como jurídico (Claus Roxin, Derecho Procesal Penal, 25º edição, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág.159), no âmbito da sua liberdade (poder) de actuação no que concerne à factualidade instrumental ou probatória e dever de objectividade na procura da verdade (poder/dever traduzido nos artigos 339º, nº4, e 340º do Código de Processo Penal) . Tal solução “procurou temperar o empenho na maximização da acusatoriedade com um princípio de investigação oficial” (ct. Ponto III.7. do preâmbulo do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº78/87, de 17 de Fevereiro). A segunda finalidade postula os princípios do julgamento justo e equitativo e a efectividade das garantias de defesa do arguido (artigos 60º, 61º, nº1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal), com conforto constitucional (artigo 32º da Constituição da República Portuguesa) decorrente do respeito intransigente pelo princípio acusatório. A deliberação em causa não compromete os direitos invocados pelo recorrente, de forma alguma, motivo pelo qual se não reconhece qualquer violação dos princípios constitucionais invocados (artigo 32º, nº2, da Constituição da República Portuguesa, e princípios processuais penais, do mesmo decorrentes, estabelecidos nos artigos 127º, 271º, 340º, 355º, 362º, nº1, 87º, e os restantes que inundam as conclusões). * II.2. Do recurso, principal. ……………………………… ……………………………… ……………………………… * III. Pelo exposto, nega-se provimento aos recursos interlocutório e principal e, em consequência, confirmam-se a deliberação e o acórdão recorridos.Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 e 5 UCs, respectivamente (artigos 513º, nº1, do CPP e Tabela III do RCP). * Porto, 24 de Setembro de 2020João Pedro Nunes Maldonado Francisco Mota Ribeiro |