Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10316/20.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: ACÇÃO
LIBERTAÇÃO DE GARANTIA PRESTADA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
Nº do Documento: RP2021070110316/20.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 07/01/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A acção destinada a obter a liberação total ou parcial da garantia prestada a pedido do devedor por um banco em benefício da entidade pública com a qual o devedor celebrou um contrato de empreitada ao abrigo do qual a garantia bancária foi prestada, tem de ser instaurada contra o banco garante e a entidade beneficiária da garantia, em regime de litisconsórcio necessário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2021:10316.20.4T8PRT.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
A B…, Lda., pessoa colectiva com a identificação n.º ………., com sede em …, Vila do Conde, instaurou a presente acção judicial contra o Banco C…, S.A., pessoa colectiva com a identificação n.º ………, com sede em Lisboa, pedindo a final a condenação do réu no seguinte:
«… a) reconhecer o direito da A. à imediata redução da garantia nº 273/2017 em 30% do seu valor;
b) reconhecer o direito da A. à redução de todas as garantias em vigor junto do R. com a calendarização estabelecida nas diversas alíneas do nº 5 do artigo 295º do C.C.P., sempre que o beneficiário comprovadamente não contestar ou não se pronunciar sobre o pedido de redução, no prazo de 15 dias;
c) pagar à A. todos os encargos que esta tem vindo a suportar, quer juros vencidos quer vincendos, pagos em excesso, incluindo comissões bancárias e encargos inerentes, acrescidos de juros de mora à taxa legal comercial, desde 10/02/2020 até à data do seu pagamento
Para o efeito alegou que celebrou com a C…, S.A. um contrato de empreitada ao abrigo do qual constituiu junto do réu e a favor daquela, enquanto dona da obra, uma caução, sob a forma de garantia bancária, correspondente a 10% do valor da empreitada, destinada a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações decorrentes do contrato. A obra em causa foi depois recebida provisoriamente e o réu libertou 30% do valor total da garantia bancária no primeiro ano, mas, decorrido mais um ano, apesar de interpelada a beneficiária para tomar posição e de esta não o ter feito, o réu recusou a redução da garantia, facto que lhe tem vindo a causar prejuízos.
O réu contestou, excepcionando a sua ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio passivo necessário.
Findos os articulados e após realização de audiência prévia foi proferida decisão na qual se julgou o réu parte ilegítima e se absolveu o mesmo da instância.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I. Contrariando a imposição legal constante do artigo 607º nº 4 do C.P.C., a sentença não declara quais os factos que considera não provados, o que constitui causa de nulidade: artigo 615º nº 1 alínea d) do C.P.C.
II. Não obstante, foram alegados pela recorrente diversos outros factos, da maior pertinência, que deveriam ter sido considerados na decisão a tomar e, por isso, incluídos no elenco dos factos provados, porque documentalmente demonstrados e não impugnados, a saber:
- Decorrido o segundo ano sobre a recepção provisória, a autora notificou a “C…, S.A.”, beneficiária da garantia, nos termos e para os efeitos do nº 5 do artigo 295º do Código dos Contratos Públicos, e esta não se pronunciou (factos alegados sob os nºs 12 e 13 da P.I. e documento junto com a P.I.)
- Na ausência de resposta do beneficiário, a autora notificou o réu por carta de 29 de Janeiro de 2020, nos termos e para os efeitos do nº 9 do artigo 295º do Código dos Contratos Públicos (facto alegado sob o nº 14 da P.I. e documento junto com a P.I.)
- Por carta de 1 de Junho de 2020, o réu notificou a beneficiária da garantia, convidando-a a pronunciar-se sobre o pedido de redução da garantia (factos alegados sob os nºs 15 e 16 da P.I. e documento junto com a P.I.)
- Além da garantia nº 273/2017, outras existem junto do réu, havendo o risco de este pretender adoptar a atitude que tomou relativamente à garantia nº 273/2017, quando o problema da sua redução se vier a colocar (facto alegado sob o nº 25 da P.I. e admitido por acordo)
III. Pretende a recorrente que seja alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto (artigo 662º do C.P.C.), devendo os sobreditos factos ser dados como provados, por serem relevantes para a decisão a proferir.
IV. Para fundamentar a absolvição do réu da instância, a sentença esclarece que a relação contratual invocada não pode ser apartada do contrato-base de empreitada de obras públicas, considerando ser necessária a intervenção da beneficiária da garantia na acção, para que a decisão resolva definitivamente o litígio e se imponha a ambos, à beneficiária e ao garante.
V. Porém, no nº 9 do artigo 295º do C.C.P., o legislador instituiu expressamente a possibilidade de o beneficiário promover a liberação da caução, a título parcial ou integral, se, 15 dias após a notificação, o contraente público não tiver dado cumprimento à obrigação prevista nos números anteriores.
VI. Ou seja, o incumprimento da obrigação a cargo do beneficiário da garantia, de se pronunciar no prazo de 15 dias, permite que o empreiteiro promova a liberação da caução junto do Banco.
VII. Dir-se-á contra este entendimento: a garantia bancária é à primeira solicitação, pelo que, logo que a quantia seja reclamada pelo beneficiário, não pode o Banco recusar ou protelar, seja a que título for, o pagamento solicitado.
VIII. Sucede, porém, que a doutrina e a jurisprudência nacionais vêm desde há décadas reconhecendo que a automaticidade da garantia à primeira solicitação não é absoluta, e a sua actuação ou execução automática não pode ter-se como ilimitada.
IX. O princípio de que o garante deve pagar de imediato o montante assegurado pela garantia, logo que solicitado pelo beneficiário, sofre uma excepção: o garante pode, e deve mesmo, recusar-se a pagar a garantia, em caso de fraude manifesta, de abuso evidente por parte do beneficiário.
X. Compreende-se a razão: há princípios cogentes do ordenamento jurídico que devem ser respeitados, não podendo as garantias automáticas violar grosseiramente os aludidos princípios.
XI. A beneficiária da garantia teve oportunidade de paralisar o pedido de redução da garantia em duas ocasiões: primeiro, quando a recorrente a notificou por carta de 30 de Dezembro de 2019, decorrido o segundo ano sobre a recepção provisória; depois, quando o recorrido lhe solicitou autorização para essa redução, por carta de 1 de Junho de 2020.
XII. Em ambos os casos a beneficiária nada disse, remetendo-se ao silêncio. Se viesse mais tarde exigir do Banco recorrido o pagamento da caução parcialmente liberada, é ostensivo que estaria a actuar em fraude manifesta, em clamoroso abuso de direito e em violação dos ditames da boa-fé.
XIII. Justamente para não deixar o regime da liberação/redução da caução ao puro arbítrio da autoridade pública, e como meio de salvaguarda do interesse do empreiteiro, o legislador consagrou a solução legislativa plasmada no nº 9 do artigo 295º do C.C.P.
XIV. O Tribunal a quo entendeu ser necessária e essencial a intervenção da beneficiária da garantia na acção, para que a decisão resolva definitivamente o litígio e se imponha a ambos, à beneficiária e ao garante.
XV. Porem, exigência não resulta da letra nem do espírito da lei. Bem pelo contrário: o legislador explicitou que o empreiteiro fica autorizado a promover a liberação da caução, se, 15 dias após a notificação, o contraente público não tiver dado cumprimento à referida obrigação.
XVI. A intenção da lei foi no sentido de responsabilizar o beneficiário da garantia pelo seu silêncio: se for notificado pelo empreiteiro do pedido de redução/liberação, dispõe de 15 dias para se opor, alegando a existência de defeitos. Se nada disser, está tacitamente a aceitar que a obra não apresenta defeitos.
XVII. Ou seja, o legislador atribui expressamente um valor jurídico ao silêncio do Dono de Obra, quando este, em determinado prazo, não se opõe à liberação da caução, com fundamento na existência de defeitos e, consequentemente, na necessidade de serem efectuadas reparações/correcções.
XVIII. Trata-se de uma solução legal de agilização procedimental e financeira, que visa obstar aos efeitos negativos resultantes dos atrasos da Administração na comunicação da conformidade do estado da obra, permitindo, assim, que os empreiteiros vejam as cauções libertadas dentro dos prazos legalmente previstos, assim como, também, protegem a Administração de incorrer no dever de ressarcir os privados pelos atrasos decorrentes da sua inércia na emissão de actos tendentes à libertação das cauções.
XIX. Tendo o beneficiário incumprido a obrigação de reduzir a caução, a lei confere ao empreiteiro autorização para promover a liberação junto do garante.
XX. Não se compreende por que razão teria o empreiteiro de demandar o beneficiário, se este tacitamente já anuiu à liberação/redução da caução, estando, até, precludido o direito de se opor à libertação da caução – ou seja, falta legitimidade processual ao Dono de Obra, ao qual, materialmente, já não assiste o direito de se opor à libertação da caução.
XXI. A previsão legal da formação de um acto tácito de deferimento configura o estabelecimento de uma presunção legal, mediante a qual a lei atribui à passividade do órgão competente perante os requerimentos dos interessados o significado legal tipificado de deferimento da pretensão.
XXII. Estava, pois, nas mãos do recorrido reduzir a garantia bancária e se a beneficiária viesse mais tarde exigir-lhe o pagamento do valor correspondente à redução operada, estaria a actuar em fraude manifesta e evidente abuso de direito.
XXIII. Ciente de que assim é, uma vez decorrido o primeiro ano sobre a recepção provisória e na sequência de interpelação da recorrente, o recorrido libertou 30% do valor da garantia autónoma. O que não se compreende é a sua atitude subsequente, ao arrepio da sua anterior actuação, consubstanciando esta súbita alteração de comportamento um manifesto abuso de direito.
XXIV. Acresce que, além da garantia ajuizada, outras existem junto do recorrido, devendo ser reconhecido o direito da recorrente à redução de todas as garantias em vigor junto do recorrido, com a calendarização estabelecida nas diversas alíneas do nº 5 do artigo 295º do C.C.P., sempre que o beneficiário comprovadamente não contestar ou não se pronunciar sobre o pedido de redução, no prazo legal.
A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos artigo 607º nº 4 e 615º nº 1 alínea d) do C.P.C. e no artigo 295º do Código dos Contratos Públicos. Revogando-a, pois, e substituindo-a por outra que julgue a acção totalmente procedente, condenando o recorrido nos pedidos formulados, far-se-á Justiça.
O recorrido não respondeu a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se a legitimidade passiva para a presente acção cabe exclusivamente ao banco demandado ou este deve ser demandado em litisconsórcio necessário com a entidade pública beneficiária da garantia cuja liberação o autor reclama.
III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados, por falta de impugnação do réu, os seguintes factos:
1) No exercício da sua actividade de construção civil, em 24 de Julho de 2017, a autora celebrou com a “C…, S.A.” um contrato, tendo por objecto a execução pela autora da empreitada de reabilitação da envolvente exterior do empreendimento de …, em …, Maia.
2) No contrato ficou estabelecido, em favor do dono de obra, uma caução, sob a forma de garantia bancária, correspondente a 10% do valor total da empreitada.
3) Em cumprimento do acordado, a autora solicitou ao réu que prestasse, como prestou, garantia bancária à primeira solicitação, à qual foi atribuído o n.º …/2017, no valor de 21.950,87€, destinada a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações que a autora assumiu no contrato de empreitada.
4) A obra foi provisoriamente recebida em 27 de Dezembro de 2017.
5) Decorrido o primeiro ano sobre a recepção provisória e na sequência de interpelação da autora, o réu libertou 30% do valor da garantia autónoma.
6) Decorrido o segundo ano sobre a recepção provisória, a autora voltou a interpelar o réu para o mesmo fim.
IV. O mérito do recurso:
A recorrente começa por suscitar, nos termos do artigo 615º nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, a nulidade da decisão recorrida, sustentando que a mesma viola a imposição legal do nº 4 do artigo 607º do mesmo diploma, que obriga a especificar os factos que se consideram não provados.
É manifesta a improcedência desta arguição.
O artigo 607.º do Código de Processo Civil reporta-se ao momento da elaboração da sentença, isto é, à fase que sucede à instrução do processo, à produção dos meios de prova, e à avaliação e ponderação desses meios de prova em ordem à fixação da fundamentação de facto sobre a qual recairá depois a tarefa da subsunção jurídica.
Ora, no caso não foi realizada instrução do processo, nem foi proferida sentença; o que se passou foi que findos os articulados o tribunal proferiu despacho saneador e, tendo concluído pelo preenchimento de uma excepção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito, proferiu a correspondente decisão. Nessa oportunidade não estava naturalmente obrigado a observar o disposto no artigo 607.º do Código de Processo Civil, bastando para o efeito elencar os factos já provados necessários à apreciação e decisão sobre a ilegitimidade.
Improcede assim a arguida nulidade.
Defende depois a recorrente a ampliação da matéria de facto considerada já provada, com a inclusão de novos factos que considera importantes para a decisão a proferir.
Salvo melhor opinião, muito embora haja efectivamente mais factos que foram alegados na petição inicial e que o réu não impugnou na contestação, podendo assim serem considerados assentes por falta de impugnação, designadamente os mencionados pela recorrente, os mesmos não tem relevo para a decisão a proferir.
Com efeito, é necessário ter presente que a questão que tem de ser decidida em primeiro lugar é a da legitimidade passiva para a acção, isto é, definir quem tem interesse em contradizer e por isso deve estar na acção para que o tribunal possa conhecer do respectivo mérito. Só na presença da parte que deva ocupar obrigatoriamente a posição de demandado se poderá estabelecer a controvérsia sobre os fundamentos da acção, permitir o exercício do direito à prova e, a final, proferir decisão de mérito, vinculando quem de direito aos efeitos jurídicos da sentença através da figura do caso julgado.
A legitimidade é o pressuposto processual que contende com a determinação de quem deve estar na acção, servindo como critério de afirmação da legitimidade o interesse directo em demandar ou contradizer, proveniente da qualidade de titular da relação material controvertida.
A relação material controvertida que releva para o efeito não é a que devesse ser mas aquela que o é efectivamente. Por outras palavras, a relação em função da qual pode ser afirmado o interesse em contradizer é a relação configurada pelo autor, a relação tal como o autor a caracteriza, define e invoca como causa de pedir.
Tal resulta do artigo 30.º do Código de Processo Civil, cujo n.º 1 estabelece que «o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer», cujo n.º 2 concretiza que «o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção, e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha», e cujo n.º 3 precisa que «na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor».
Já Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pág. 84, assinalava que «a legitimidade não é (...) uma qualidade pessoal das partes (como a capacidade), mas uma certa posição delas em face da relação material litigada. Ela corresponde, grosso modo, ao conceito civilista de poder de disposição, ampliado, porém, de forma a abarcar, vg., a faculdade de constituir uma dada relação jurídica, e não apenas a de modificar ou extinguir. É o poder de dispor do processo - de o conduzir ou gestionar no papel de parte...».
A legitimidade processual é por isso aferida pela relação das partes com o objecto da acção, consubstanciada na afirmação do interesse directo daquelas nesta. Não podem no entanto ser confundidas a legitimidade processual com a legitimidade material ou substantiva. Como referem Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, pág. 51, «a legitimidade é, no campo do direito material, um conceito de relação – relação entre o sujeito e o objecto do acto jurídico. Encarada essa relação na perspectiva do sujeito, exprime a posição pessoal deste nessa relação, justificativa de que se ocupe juridicamente do objecto (Castro Mendes, Teoria geral do direito civil, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito, 1979, ps. 72-73) e postulando, em regra, a coincidência entre o sujeito do acto jurídico e o interesse por ele posto em jogo (Isabel Magalhães Colaço, Da legitimidade do acto jurídico, BMJ 10, ps. 38 e 78)”.
Também Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª ed. Revista e Actualizada, Coimbra Editora, pág. 132, escreveram que «não basta assim saber quem são as partes (em sentido formal) no processo (...). Para que o juiz se possa pronunciar sobre o mérito da causa, importa ainda saber quais devem ser as partes em sentido substancial, porque só a intervenção destas em juízo garante a legitimidade para a acção».
Temos portanto que a parte é legítima quando a procedência ou a improcedência da acção lhe diz respeito, segundo o critério do seu interesse directo. Se a procedência ou improcedência da acção não releva no âmbito do seu interesse directo, ainda que o autor indique um prejuízo colateral de um dos réus em caso de procedência da acção, ele não tem interesse directo em contradizer e, por isso, não é parte legítima.
A legitimidade pode ser singular, quando cabe a uma pessoa única, ou plural, quando exige a intervenção de mais que uma pessoa (litisconsórcio). A isso refere-se o artigo 33º do Código de Processo Civil, que dispõe o seguinte: «1- Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade. 2 - É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. 3 - A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado
O litisconsórcio pode ser voluntário ou necessário. O necessário tem carácter excepcional e verifica-se se a lei ou o contrato o exigirem, ou quando for imposto pela própria natureza da relação jurídica controvertida, ou seja, desde que, de outro modo, a decisão não produzisse qualquer efeito útil ou, pelo menos, o seu efeito útil normal. Este efeito é produzido quando a decisão define uma situação jurídica que não só não poderá mais ser contestada por qualquer das partes, como ainda é de modo a poder subsistir inalterada não obstante ser ineficaz em confronto dos outros co-interessados e como quer que uma nova sentença venha a definir a posição ou situação destes últimos.
Só existe litisconsórcio necessário quando a lei ou a lógica exijam a presença na lide de todos os interessados para que a decisão produza os efeitos erga omnes por ela exigidas; quando o ordenamento jurídico aceita que a decisão possa produzir efeitos só contra algumas pessoas, de modo a que a relação jurídica subsista, ainda que ineficaz face às não partes, não há lugar a litisconsórcio.
Dito isto, centremos a atenção nos dados do caso.
A autora alegou que celebrou com uma empresa municipal um contrato de empreitada com vista à execução de uma obra pública e ao abrigo desse contrato constituiu junto do réu e a favor daquela, enquanto dona da obra, uma caução, sob a forma de garantia bancária, correspondente a 10% do valor da empreitada, para garantia do bom e integral cumprimento das suas obrigações enquanto empreiteira.
A autora alegou ainda que estão verificadas as circunstâncias previstas no artigo 295.º do Código dos Contratos Públicos para se obter a liberação da caução mas o contraente público não promoveu essa liberação nos termos definidos naquele normativo legal, razão pela qual, nos termos do n.º 9 do citado artigo 295.º, está autorizado a promove-la por si mesma, o que pretende fazer com a presente acção.
Com esse objectivo demandou exclusivamente o banco com o qual contratou a prestação da garantia em benefício do contraente público dono da obra, pedindo que este reconheça (aceite) essa liberação e inclusivamente o indemnize das despesas que a não liberação venha a determinar.
A pergunta que se coloca é pois esta: a autora podia instaurar a acção apenas contra o banco garante ou tinha de demandar obrigatoriamente também a dona da obra e beneficiária da garantia?
Se não houver norma legal que estabeleça o contrário, afigura-se-nos inevitável estar perante uma situação de litisconsórcio necessário para assegurar que a decisão possa produzir o seu efeito útil normal (artigo 33.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
A relação negocial ao abrigo da qual o empreiteiro presta ao dono da obra pública uma garantia de bom cumprimento das suas obrigações enquanto empreiteiro possui uma estrutura complexa, triangular, que se decompõe, pelo menos, em três relações jurídicas distintas embora interligadas.
Por um lado, temos o contrato base (no caso, o contrato de empreitada), que constitui a relação principal, causal ou subjacente e de que emerge o dever de prestação da garantia por um dos contraentes em benefício do outro.
Depois temos o contrato de mandato celebrado entre o ordenante ou obrigado à prestação de garantia e o ordenado ou garante, mediante o qual aquele incumbe o garante (no caso, como em geral, um banco), de prestar a garantia (neste caso, de pagamento de uma determinada quantia) exigida no contrato base.
Por fim, temos o contrato de garantia através do qual o garante, emitindo o competente título, se obriga perante o beneficiário a pagar o montante estipulado. Em resultado deste contrato, o banco obriga-se a pagar ao beneficiário a soma convencionada logo que o beneficiário o informe de que a obrigação garantida se venceu e não foi paga e solicite o pagamento, não tendo sequer a possibilidade de invocar a prévia excussão dos bens do beneficiário ou a invalidade ou impossibilidade da obrigação por este contraída.
Honrada a garantia pelo garante, este pode exigir do ordenador - em nome de quem, ou por ordem de quem, a garantia foi emitida - que lhe restitua o montante da garantia que prestou. Sendo a garantia uma garantia de pagamento à primeira solicitação, o garante está mesmo obrigado a satisfazê-la de imediato, assim que o beneficiário o solicite nos termos previamente acordados.
O devedor, depois de reembolsar o garante da importância que este pagou ao beneficiário, é que fica com o ónus de intentar procedimento judicial para reaver a referida importância, caso o credor/beneficiário haja procedido sem fundamento. No fundo, o garante paga ao credor sem discutir e depois o devedor reembolsa o garante também sem discutir e só depois disso será discutido entre o devedor e o credor se a obrigação satisfeita por intermédio da garantia era devida e exigível ou afinal não existia, operando-se então o reembolso a que houver lugar, se for caso disso.
Na garantia bancária, o banco garante obriga-se a pagar ao beneficiário uma certa quantia no caso de incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato base, sem poder invocar em seu benefício qualquer meio de defesa relacionado com esse mesmo contrato. Nisso reside a característica da autonomia da garantia, por via dela a obrigação do garante não está dependente da obrigação que visa garantir e, como tal, o garante não pode opor ao beneficiário as excepções decorrentes do contrato base, assumindo antes uma obrigação própria.
A garantia bancária autónoma pode ser simples, se para ser accionada é necessário que o beneficiário prove o facto gerador do vencimento da obrigação do garante, ou (dita à primeira solicitação) o que sucede nos casos em que o garante deve pagar sem mais uma vez interpelado pelo beneficiário sem que este tenha a necessidade de justificar ou fundamentar o seu pedido (cf. Fátima Gomes, Garantia Bancária Autónoma à Primeira Solicitação, in Revista Direito e Justiça, vol. VIII, tomo 2, 1994, pág. 134, e Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2ª Edição, pág. 134).
Sendo assim, da especial natureza tripartida da relação entre devedor, credor e garante que se assinalou, parece forçoso deduzir que para que possa produzir o seu efeito útil normal a acção judicial tem de ter a participação necessária das três partes. De nada servirá o devedor demandar o garante se aquilo que vier a ser decidido entre eles não puder ser oposto ao credor e, consequentemente, apesar dessa decisão, este continuar a poder exigir do garante a satisfação da garantia e o garante continuar onerado perante ele com essa obrigação.
Porventura seria diferente se a acção tivesse por fundamento um vício do próprio contrato de constituição da garantia, do contrato de mandato, ao qual o credor/beneficiário é estranho embora por via dele se haja tornado beneficiário da garantia. Mas não é o caso, pois a causa de pedir da acção não é constituída por qualquer vício nessa relação, mas sim pelas vicissitudes do direito do credor à garantia, mais especificamente as causas legais de redução do direito do credor. Nessa perspectiva, a fundamentação da acção interessa directa e especialmente ao credor, o qual tem necessariamente interesse em contradizer.
O que se pode questionar é se o regime do artigo 295.º do Código dos Contratos Públicos aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, impõe solução diversa desta que nos parece emergir do regime geral, isto é, se contém disposição que permita ao devedor obter a liberação da garantia directamente do garante sem intervenção do credor.
É a seguinte a redacção da norma, sob a epígrafe «liberação da caução»:
«1 - O regime de liberação das cauções prestadas pelo co-contratante deve ser estabelecido no contrato, não podendo as partes acordar em regime diverso durante a fase de execução contratual, salvo havendo fundamento de modificação do contrato que justifique uma alteração do regime de liberação das cauções e desde que sejam respeitados os limites previstos no presente Código.
2 - A caução para garantia de adiantamentos de preço é progressivamente liberada à medida que forem prestados ou entregues os bens ou serviços correspondentes ao pagamento adiantado que tenha sido efectuado pelo contraente público.
3 - Nos contratos em que não haja obrigações de correcção de defeitos pelo co-contratante, designadamente obrigações de garantia, o contraente público deve promover a liberação integral da caução destinada a garantir o exacto e pontual cumprimento das obrigações contratuais no prazo de 30 dias após o cumprimento de todas as obrigações do co-contratante.
4 - Nos contratos em que haja obrigações de correcção de defeitos pelo co-contratante, designadamente obrigações de garantia, sujeitas a um prazo igual ou inferior a dois anos, o contraente público deve promover a liberação integral da caução destinada a garantir o exacto e pontual cumprimento das obrigações contratuais no prazo de 30 dias após o termo do respectivo prazo.
5 - Nos contratos referidos no número anterior em que o prazo aí referido das obrigações de correcção de defeitos seja superior a dois anos, o contraente público promove a liberação da caução destinada a garantir o exacto e pontual cumprimento das obrigações contratuais, nos seguintes termos:
a) No final do primeiro ano, 30% do valor da caução;
b) No final do segundo ano, 30% do valor da caução;
c) No final do terceiro ano, 15% do valor da caução;
d) No final do quarto ano, 15% do valor da caução;
e) No final do quinto ano, os 10% restantes.
7 - Nos contratos sujeitos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 397.º, a diferentes prazos de garantia e, consequentemente, a recepções provisórias e definitivas parciais, a liberação parcial da caução, nos termos do disposto nos números anteriores, é promovida na proporção do valor respeitante a cada um dos conjuntos de elementos que compõem a obra, designadamente estruturais, construtivos não estruturais ou instalações técnicas e equipamentos.
8 - A liberação da caução prevista nos n.os 4 a 7 depende da inexistência de defeitos da prestação do co-contratante ou da correcção daqueles que hajam sido detectados até ao momento da liberação, sem prejuízo de o contraente público poder decidir diferentemente, designadamente por considerar que os defeitos identificados e não corrigidos são de pequena importância e não justificam a não liberação.
9 - Decorrido o prazo previsto nos números anteriores para a liberação da caução sem que esta tenha ocorrido, o co-contratante pode notificar o contraente público para que este cumpra a obrigação de liberação da caução, ficando autorizado a promovê-la, a título parcial ou integral, se, 15 dias após a notificação, o contraente público não tiver dado cumprimento à referida obrigação.
10 - A mora na liberação, total ou parcial, da caução confere ao co-contratante o direito de indemnização, designadamente pelos custos adicionais por este incorridos com a manutenção da caução prestada por período superior ao que seria devido.»
Como se vê a norma distingue os contratos em que não haja obrigações de correcção de defeitos pelo co-contratante e os contratos em que haja obrigações de correcção de defeitos pelo co-contratante.
No primeiro caso a liberação da caução faz-se de modo integral decorrido um determinado prazo sobre o cumprimento de todas as obrigações do co-contratante.
No segundo caso, se o prazo de garantia for igual ou inferior a dois anos a liberação segue o mesmo regime, mas se o prazo de garantia for superior a dois anos, faz-se apenas de modo progressivo, em parcelas percentuais do valor máximo da garantia. Todavia, nestes casos, em qualquer circunstância a liberação depende da inexistência de defeitos da prestação do co-contratante ou da correcção daqueles que hajam sido detectados até ao momento da liberação, com excepção dos defeitos de pequena importância.
Por conseguinte, para que a liberação parcial possa ser feita é necessário um procedimento de verificação do preenchimento dessa condição negativa. Esse procedimento destinar-se-á a verificar a inexistência de defeitos da prestação do co-contratante, a correcção daqueles que hajam sido detectados até à data da liberação da caução ou, caso tal não tenha sucedido, se se justifica uma decisão do contraente público de liberar a caução, por entender que os defeitos identificados e não corrigidos são de pequena importância e não justificam a não liberação. Não ocorrendo nenhuma destas situações o contraente público não só não está obrigado a liberar a caução como, pelo contrário, se encontra habilitado a retê-la e accioná-la para cobrir os custos suportados por força do incumprimento contratual por parte do co-contratante.
Os n.os 9 e 10 da norma ocupam-se dos trâmites desse procedimento e do estabelecimento de algumas consequências de falhas a esse nível. Assim, o n.º 9 estabelece que uma vez alcançado o período temporal que dá direito à liberação parcial da caução (o final de cada um dos anos da garantia), se esta não tiver ocorrido, o devedor pode notificar o contraente público para que este cumpra a obrigação de liberação da garantia.
A liberação da garantia é assim não apenas um direito do devedor, mas igualmente uma obrigação legal do credor, cuja violação o poderá fazer incorrer em responsabilidade pelos danos causados, conforme o n.º 10 deixa explícito ao estabelecer o direito do devedor de ser indemnizado dos danos decorrentes da mora na liberação, total ou parcial, da caução, designadamente (portanto, sem excluir sequer danos de outra natureza ou mais extensos) os relativos aos custos adicionais que este tiver de suportar com a manutenção daquela por período superior ao que seria devido.
O n.º 9 estabelece ainda que em caso de mora na liberação, total ou parcial, da caução, o devedor «fica autorizado a promovê-la, a título parcial ou integral, se, 15 dias após a notificação, o contraente público não tiver dado cumprimento à referida obrigação». Não pode haver qualquer dúvida de que esta norma confere ao devedor um direito de acção, um direito de promover os mecanismos judiciais necessários para obter o cumprimento da obrigação do credor, o que não seria possível sem a norma em causa uma vez que estando a garantia constituída em benefício de um terceiro somente este poderia prescindir total ou parcialmente desse direito ou benefício.
Todavia, claramente a norma não se ocupa nem da natureza dos procedimentos judiciais a adoptar nem do estabelecimento de pressupostos processuais específicos para esses procedimentos. Por isso, a nosso ver, não se pode retirar da norma que o devedor possa instaurar esses procedimentos apenas contra o garante, sem neles fazer intervir o beneficiário da garantia, aquele que será directamente afectado pela liberação da garantia e o único que tem interesse em demonstrar que não estão reunidas os requisitos legais e/ou contratuais para a liberação. O que aliás se compreende porque na lógica do preceito o legislador preferiu onerar o credor com o estabelecimento de uma obrigação e a criação de um dever de indemnização do devedor em caso de incumprimento daquela, porventura convencido que esse mecanismo seria mais útil para que o regime criado fosse acatado pelos contratantes públicos.
Esta conclusão a que chegamos encontra apoio noutro elemento.
Referimo-nos ao regime do Decreto-Lei n.º 190/2012, de 22 de Agosto, no qual, sem transpor as soluções para o Código dos Contratos Públicos, foi aprovado um conjunto de «medidas excepcionais e temporárias» de liberação de cauções aplicável aos contratos de empreitada de obras públicas já celebrados ou a celebrar até 1 de Julho de 2016. Tal solução foi justificada pelo legislador afirmando que «a conjuntura de crise económica e financeira que actualmente atinge o País torna frequentemente incomportável para os empreiteiros o prolongamento dos encargos com as cauções prestadas, no âmbito dos contratos de empreitadas de obras públicas, …. Estes contratos vigoram frequentemente por períodos longos, o que implica a manutenção da caução com custos significativos e sacrifícios acrescidos para as estruturas financeiras das empresas. É, pois, aconselhável a adopção de medidas de carácter excepcional e temporário que permitam minorar os efeitos, na vida das empresas, do regime previsto para as garantias, … Deste modo, o presente decreto-lei estabelece um regime excepcional de liberação de cauções em empreitadas de obras públicas, permitindo às empresas um maior desafogo financeiro para o desempenho das suas actividades em outras obras».
Dando concretização a esse desiderato, o artigo 4.º deste diploma, mantendo embora como condições de liberação da caução a inexistência de defeitos da obra da responsabilidade do empreiteiro, criou um procedimento para obtenção da liberação através de notificações sucessivas entre as partes, estabelecendo que se a entidade pública contratante não respondesse ao pedido de liberação do empreiteiro, bastar-lhe-ia exibir os competentes documentos junto da entidade emissora da caução para obter, sem necessidade de intervenção adicional daquela entidade pública contratante, a liberação da caução. Em face do procedimento aí instituído, comprovados documentalmente os trâmites previstos, os garantes não poderiam negar libertar as cauções, independentemente da vontade das entidades públicas que delas beneficiem e, portanto, sem necessidade de elas serem ouvidas para se alcançar esse efeito jurídico.
Como vimos este diploma não se aplica à situação dos autos porque o contrato de empreitada foi celebrado depois do termo do respectivo âmbito temporal de aplicação. E a solução nele consagrada é, como vimos, diferente da que se encontra consagrada no Código dos Contratos Públicos que rege a situação dos autos. Tal diploma fornece-nos, pois, um argumento histórico à contrário para continuarmos a entender que o regime do Código dos Contratos Públicos permite ao devedor em determinados casos promover a liberação da garantia mas terá de o fazer naturalmente demandando quer o garante quer o beneficiário da garantia em litisconsórcio necessário.
A decisão recorrida mostra-se pois correctamente fundamentada e decidida.
Colocava-se, como colocou a decisão recorrida, a questão de saber se este pressuposto processual é sanável através da intervenção da parte em falta (artigo 316.º do Código de Processo Civil). Todavia, essa questão foi decidida pela negativa não por não ser possível fazer intervir na acção a parte em falta, mas porque nessa situação a competência material para julgar a acção cabe aos Tribunais Administrativos. Uma vez que no seu recurso, o recorrente não suscita a questão nem impugna esse segmento da decisão do tribunal, está vedado a esta Relação conhecer de tal questão.
O recurso é assim improcedente.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.
Custas do recurso pela recorrente, as quais correspondem apenas à taxa de justiça já paga porque o recorrido não respondeu ao recurso e não suportou custas de parte.
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Porto, 1 de Julho de 2021.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 627)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]