Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3301/24.9T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NUNO MARCELO DE NÓBREGA DOS SANTOS DE FREITAS ARAÚJO
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
EXAMES DE AVALIAÇÃO AOS PROGENITORES
Nº do Documento: RP202511103301/24.9T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 11/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Mesmo em sede de decisões proferidas no uso de um poder discricionário, é admissível recurso se a opção escolhida pelo tribunal exceder as alternativas previstas na lei, se a finalidade que lhe está subjacente não for respeitada ou se existir uma norma legal que afaste a liberdade do juiz.
II - No âmbito dos processos de promoção e proteção de menores em perigo, não podem ser realizados, nem ser decidida a sua realização, exames de avaliação psiquiátrica e psicológica aos progenitores que tenham merecido a prévia oposição deles, por respeito à sua vida privada e à sua integridade pessoal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 3301/24.9T8PRT-A.P1

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO (3.ª SECÇÃO CÍVEL):

Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: Ana Olívia Esteves Silva Loureiro
2.º Adjunto: Carlos Gil

RELATÓRIO.
No âmbito do processo de promoção e protecção respeitante ao menor AA, nascido a ../../2015, desenvolveram-se os autos para a fase de revisão da medida aplicada, de promoção e proteção de apoio junto dos pais, a executar junto da progenitora.
Nessas circunstâncias, no final da diligência de produção de prova realizada a 21/7/2025 e após a inquirição dos progenitores, dos técnicos da EMAT e de outras testemunhas, foi proferido despacho que determinou:
Solicite ao ISS a elaboração de informação social acerca das alternativas para acolhimento do AA em meio familiar, auscultando, nomeadamente, a irmã BB
E “determino ainda a realização de perícia psiquiátrica e psicológica à progenitora, tendo por objeto saber se a progenitora reúne as capacidades para responder em concreto às necessidades do filho e se padece de patologia que ponha em causa o exercício das suas competências parentais”.
Previamente, na mesma diligência, a esse respeito, a progenitora do menor, CC declarou que “recusa submeter-se a perícia de avaliação psicológica ou psiquiátrica no INML, é um direito que tem”.
Inconformada com a segunda parte do referido despacho, dela veio a progenitora interpor recurso, que integrou as conclusões seguintes:
(…)
O Ministério Público respondeu ao recurso, que rematou com a conclusão seguinte: Face ao histórico dos autos de PPP, à fase negociada em que se encontram, aos poderes / deveres de gestão processual e à natureza dos autos (que são de jurisdição voluntária), a decisão sob recurso mostra-se adequada, devendo ser mantida, mais devendo o despacho ser dado como fundado, sem prejuízo do seu melhor fundamento a esclarecer pelo tribunal até a “subida” dos autos.
Previamente, suscitou a questão da inadmissibilidade da apelação autónoma da forma seguinte:
“(…) Nos termos do n.º 2, do preceito, cabem ainda recurso de apelação, entre outras, das decisões do tribunal de 1.ª instância quando constituam despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova.
Não é caso dos autos, pois o meio de prova a realizar foi ordenado pelo Tribunal (e não requerido), pelo que não constitui despacho que admita ou rejeite algum meio de prova que tenha sido requerido”.
Acrescentou que:
“Os autos são de jurisdição voluntária – art.º 100, da Lei de protecção de crianças e jovens em perigo.
Aplicam-se as regras dos art.ºs 986 e seguintes do Código de processo civil.
Impõe o art.º 986, n.º 2, que “O tribunal pode, no entanto, investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias”.
O Dever de “gestão processual” inserto no art.º 6, do Código de processo civil; comanda ao Juiz que dirija ativamente o processo e providencie pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação.
Concluímos que o despacho não é recorrível, porquanto se insere como um despacho que ordena a produção de um meio de prova, não se constituindo como despacho de rejeição ou de indeferimento de um meio de prova (…)”.
Quanto ao mérito da apelação, defendeu, em suma:
“(…) parece-nos evidente que o bom fundamento da decisão se infere de todo quanto decorre da própria Acta, em especial quanto às dúvidas lançadas pelo pela Dra. DD, Psicóloga e pela Dra. EE, pedopsiquiatra.
Ambas revelaram, de forma clara, as preocupações, as dúvidas e as necessidades que se impõe clarificar quanto à competência da mãe em assegurar o são desenvolvimento do seu filho AA”.
“A recorrente socorre-se dos art.ºs 9, 10 e 87 da Lei de protecção de crianças e jovens em perigo.
Antes do mais, discordamos da interpretação que se colhe do aludido Acórdão da Relação de Coimbra quanto reportada ao caso concreto dos autos.
Cremos que se confunde o “ordenar” de que se faça o exame, daquilo que seria “obrigar” a que se determinada criança, jovem ou adulto de sujeitasse a exame…”.
“Cremos que os art.ºs 9 e 10 respeita às entidades aí referidas e não ao Tribunal.
A limitação não é aplicável à gestão processual em juízo, pois, para além do mais, esta não carece de consentimento dos pais.
Quanto ao art.º 87, da Lei de protecção de crianças e jovens em perigo, cremos que basta notar que:
a) o preceito não respeita a exames aos progenitores;
b) que ainda que o fosse, o exame em causa não ofende o pudor;
c) a referência ao art.º 9 e 10, apenas poderá dar-se como acertada em relação à intervenção das entidades aí referidas, melhor, quanto a exames a ordenar pelas referidas entidades, nesta parte se discordando que conclui o Acórdão citado, respeitando que ninguém pode ser obrigado a exame que não aceite fazer!!!
O que resulta evidente, ainda que a progenitora não o refira é que é manifestamente impossível sujeitar quem sequer que seja a de perícia psiquiátrica e psicológica sem colaboração do visado.
É evidente que se a progenitora não quer que a perícia se faça, a mesma não será feita, simplesmente porque para que fosse feita seria necessário obter a colaboração da progenitora.
O facto de o Tribunal não poder contar com a colaboração da progenitora, não o demite de avaliar quanto à necessidade da realização desse exame e de ponderar e avaliar caso seja efetuado ou de valorar a recusa da progenitora, ficando a valer e a prevalecer o que consta dos autos (…)”.
*
O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e efeito suspensivo da decisão (cfr. despacho de 16/10/2025).
Sobre a nulidade da decisão arguida no recurso, em cumprimento do disposto no art. 617.º do CPC, a primeira instância declarou sanar a omissão de pronúncia (pretendendo dizer, se bem pensamos, de fundamentação) do seguinte modo:
“Em sede de relatório elaborado com vista à revisão da medida de apoio junto da progenitora, aplicada em 20/03/2025, o ISS sugeriu a audição dos profissionais de saúde mental que acompanhavam o jovem, assim como a sujeição da progenitora a perícias forenses na vertente de psicologia e psiquiatria, com enfoque nas competências parentais.
Em diligência realizada em 18/06/2025, foram ouvidas as Sras Dras EE, pedopsiquiatra que acompanhava o AA desde 2022, e DD, psicóloga que acompanhava o AA desde 2024, resultando dos seus depoimentos que:
- o AA não tem qualquer doença de neurodesenvolvimento, sendo as questões mais emergentes do ponto de vista do comportamento;
- o espaço de consulta (de pedopsiquiatria) ao AA não é um espaço de confiança, porque a mãe insulta os técnicos e responsabiliza o AA;
- a mãe adota um comportamento imprevisível e por vezes é demasiado punitiva;
- os piores comportamentos do AA ocorrem na escola, quando o normal é que ocorram em casa, onde as crianças, por regra, se sentem mais seguras;
- a vinculação entre a criança e a mãe não é segura;
- a mãe faz muitas queixas do filho e mostra-se muito desgastada, aludindo a “manias” e “surtos” do filho;
- o AA denota ansiedade e humor deprimido;
- a mãe recusa alterar as suas práticas parentais, mesmo após sugestão da Sra Psicóloga;
- a criança nasceu fruto de uma relação abusiva e a mãe refere que o filho é “igual ao pai”;
- a mãe não consegue ser empática com o filho;
- a criança vê o mundo como perigoso e reage de forma agressiva porque tem medo;
- sente que a mãe não gosta dele e não sabe como fazer a mãe feliz, não se sentindo tranquilo no contexto familiar porque não sabe como agradar;
- o AA não compreende as reações da mãe;
- apaga coisas da sua mente porque não as sabe gerir e a mãe acusa-o de ser manipulador;
- o padrasto, que também integra o agregado familiar, tem mais facilidade em lidar com o AA, mas valida as crenças da mãe;
- a mãe não gosta do toque e nem sempre aceita abraços do filho, crendo que este, quando procura afeto, “está a preparar alguma”, fazendo assim uma leitura desadequada dos comportamentos do filho;
- a escola é o escape do AA, porque não se sente bem em casa, por isso assume nesse espaço comportamentos desadequados;
- foi transmito à mãe o diagnóstico feito – perturbação de oposição e desafio – e mãe declara não concordar com o mesmo.
Ambas as Sras Dras se pronunciaram no sentido de ser adequado retirar o AA do agregado familiar.
Face aos factos supra descritos, e tendo em conta que resultaram do depoimento de pessoas especialmente habilitadas, quer pela sua profissão, quer pela duração do acompanhamento que vêm fazendo ao AA, o Tribunal entende que se impõe a realização das perícias determinadas, por se suscitarem naturalmente dúvidas sobre se a progenitora se mostra capaz, neste momento, de responder às necessidades do filho.
*
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO.
Na resposta ao recurso, como vimos, o Ministério Público suscitou a questão da inadmissibilidade da apelação autónoma.
Para o efeito, em resumo, invocou dois argumentos, um sustentado no nº2 do art. 644.º, do CPC, e outro no regime dos processos de jurisdição voluntária, em função do qual a decisão, segundo defende, não é sequer recorrível.
Relativamente ao primeiro, dispõe o art. 644.º/2, al. d), do CPC, que cabe ainda recurso de apelação do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova.
É evidente, no caso dos autos, que o despacho recorrido determinou a produção de um meio de prova, consistente em exame pericial de avaliação psiquiátrica e psicológica à progenitora do menor a que respeita o processo.
Por isso, a única dúvida que poderia colocar-se na aplicação do referido preceito legal reside em saber se ele também abrange o despacho que ordena oficiosamente a realização da prova e, portanto, que não se limita a deferir ao requerimento probatório de uma das partes.
É essa, aliás, a posição do recorrido, ao pugnar pela inadmissibilidade da apelação autónoma porque “o meio de prova a realizar foi ordenado pelo Tribunal (e não requerido)”.
Parece-nos manifesta, porém, a aplicabilidade daquela norma às decisões que ordenem a realização de um meio de prova por exclusiva iniciativa do tribunal.
Desde logo, porque seria desprovida de qualquer sentido e razoabilidade a limitação da apelação autónoma à decisão sobre os meios probatórios requeridos pelas partes, certo que também na opção oficiosa do tribunal é a realização de uma determinada prova que está em causa.
Neste sentido, importa recordar que uma das razões para a consagração da apelação imediata a este nível emerge da celeridade que o legislador pretendeu imprimir à resolução definitiva das questões da prova e das vantagens que isso acarreta para a estabilidade do julgamento e da sentença.
Algo que, como é evidente, tem idêntica vigência tanto nos meios probatórios requeridos pelas partes como naqueles que são ordenados oficiosamente.
Da mesma forma que a lei prossegue o objectivo de evitar a produção de provas que possam considerar-se ilegais ou injustificadas, em lugar de uma situação de facto consumado que não impeça os dispêndios de tempo e de meios inerentes à sua realização, mas apenas a sua consideração.
Certo que a prossecução desse desiderato ficaria parcialmente impedida, sem motivo compreensível, relativamente a algumas decisões sobre a prova, caso elas fossem afastadas do referido regime, determinando que essas, ao arrepio das outras e do desígnio legal, fossem realizadas independentemente do recurso e só se anulassem, sendo o caso, após a sentença, com a provável inutilização desta.
Para além da circunstância de que, mesmo ao nível literal, a interpretação oposta não tem apoio legal, visto que a referência à admissão no art. 644.º/2, al. d), do CPC, sendo feita ao lado e em alternativa à expressão rejeição, de pendor negativo, tem o claro sentido contrário e, assim, positivo, inerente à produção ou realização dos meios de prova.
E por aqui se explica que, segundo a doutrina e a jurisprudência, “também devem ser inscritas na previsão legal as decisões em que o juiz admite oficiosamente determinados meios de prova” (cfr. A. Santos Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., p. 253, n. 422, citando igualmente um acórdão deste Tribunal da Relação do Porto em sentido idêntico).
Quanto ao segundo argumento, é indiscutível que o processo de promoção e protecção é de jurisdição voluntária (art. 100.º da Lei n.º 147/99, de 01/09).
Estando subordinado, por isso e entre outras, à regra segundo a qual o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (art. 986.º/2 do CPC).
Algo que logo convoca ou pelo menos sugere uma nota de discricionariedade na realização das diligências probatórias por parte do tribunal em processos dessa natureza, eventualmente capaz de acomodar as correspondentes decisões à regra de irrecorribilidade prevista no art. 630.º/1 do CPC e segundo a qual não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário.
Veja-se, porém, que a expressão livremente empregue pelo legislador tem por objecto apenas os factos a investigar, e com o intuito de afastar o princípio básico do processo comum quanto à factualidade essencial e cuja averiguação nele depende sempre da alegação das partes (art. 5.º/1 do CPC).
De modo que, em rigor, relativamente à produção ou rejeição dos meios de prova, permanece a submissão dos processos de jurisdição voluntária às regras previstas no processo comum, incluindo quanto à admissibilidade do recurso, nos termos gerais.
Acresce que, segundo o referido art. 630.º/1 do CPC, apenas não admitem recurso os despachos proferidos no uso de um poder discricionário que seja “legal”, ou seja, que respeite o plano da legalidade que está pressuposto para o emprego da discricionariedade.
Ou, como refere a doutrina, “estes despachos só são irrecorríveis se forem proferidos de acordo com a lei; se o não forem, por admitirem, em determinado processo, actos ou termos que a lei não prevê para ele, ou sendo previstos, se forem praticados com um condicionalismo diferente do legalmente previsto, já esses despachos admitirão recurso” (cfr. F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 3.ª ed., p. 111).
Na verdade, os despachos discricionários “são determinados pelo próprio juiz livremente, ao abrigo de uma norma que lhe confira uma ou mais alternativas de opção, entre as quais o juiz deve escolher em seu prudente arbítrio e em atenção a certo fim geral” e incluem até decisões de cariz probatório, como sucede com “a inquirição de testemunhas não arroladas por iniciativa do tribunal (cfr. A. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lex, p. 156).
Em consequência, se a opção escolhida exceder as alternativas previstas na lei, se a finalidade que lhe está subjacente não for respeitada ou se existir uma norma legal que afaste a liberdade do juiz, o recurso já é admissível.
Ora, é precisamente esta última hipótese que está presente no nosso caso, em atenção à existência de uma norma, invocada pela recorrente, cujo efeito é, pelo menos potencialmente, o de condicionar o exercício da livre opção do tribunal, através da imposição de um requisito legal, assente na concordância da pessoa visada com o exame, cuja apreciação já não é discricionária.
E como, neste caso, há ou pode haver um impedimento à aplicação da norma que confere ao juiz mais que uma alternativa legítima, a decisão pode ser sindicada justamente para a verificação dessa circunstância.
Assim se compreende que em situação semelhante, respeitante precisamente à realização de avaliações com oposição das pessoas que seriam avaliadas em processo tutelar de menores, embora ainda subordinados à legislação anterior, tenha a jurisprudência decidido que “confiando o nº 3 do art.º 178º da Organização Tutelar de Menores ao prudente arbítrio do juiz a realização de quaisquer exames médicos e psicológicos (salvo oposição dos visados), há que considerar proferido no uso legal de um poder discricionário o despacho que decida a realização de tais exames ao abrigo do disposto naquele normativo”.
Porém, “estando em causa a verificação dos pressupostos de aplicação de uma norma legal, ao abrigo da qual o juiz usou de um poder conferido por essa mesma norma, o despacho será recorrível nessa parte” (cfr. Decisão do Juiz Presidente do Tribunal da Relação de Évora, Manuel Nabais, de 27/2/2006, proc. 553/06-2, disponível em dgsi.pt).
Tal como da mesma forma se justifica que situação idêntica tenha sido objecto de conhecimento em recurso no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/12/2020 e lhe tenha permitido sentenciar que “no âmbito dos processos de promoção e proteção de menores em perigo, a realização de exames médicos à criança ou jovem depende do consentimento dos pais (ou do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto da criança ou do jovem), bem como da não oposição da própria criança ou jovem com idade igual ou superior a 12 anos, exceto nos casos em que exista perigo atual ou eminente para vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou do jovem” (cfr. proc. 755/16.0T8TMR-A.C1, acessível na mesma base de dados, sendo relatora Maria João Areias).
Reconhecemos a existência de uma corrente jurisprudencial que, na defesa da plena utilidade do art. 123.º da LPCJP e “dada a natureza do processo de Promoção e Protecção e os interesses que nele se debatem”, entende que “o legislador veio restringir a possibilidade de recurso, limitando-o às decisões que aplicam, alteram ou fazem cessar medidas de promoção e protecção, de modo a que não se frustre o objectivo de uma decisão célere” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13/7/2022, relator Maria dos Anjos Nogueira, proc. 3758/21.0T8VNF-A.G1, disponível na página electrónica do DR).
Note-se, porém, que nestes autos o Ministério Público não chegou ao ponto de lançar mão da referida norma para defender a irrecorribilidade da decisão, porventura na esteira da PGR do Porto que, na Recomendação 2/19, preconiza que nesta sede apenas as decisões de mero expediente ou as proferidas no uso legal de um poder discricionário não admitem recurso (Comentário à Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, Procuradoria-Geral Regional do Porto, Almedina, 2020, p. 533, citado no Acórdão de 13/7/2022 a que acima se fez referência).
E essa constitui, se bem pensamos, a orientação acertada face ao disposto no art. 123.º/1 da LPCJP que, embora prevendo expressamente que cabe recurso das decisões que, definitiva ou provisoriamente, se pronunciem sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas de promoção e proteção e sobre a decisão que haja autorizado contactos entre irmãos, nos casos previstos no n.º 7 do artigo 62.º-A, nunca refere que o recurso é inadmissível nos restantes casos.
Para significar que, embora se reconheça a acentuada diminuição da utilidade daquele preceito legal que daí resulta, ele deve ser interpretado, a nosso ver, no sentido de que, nos casos a que se refere, o recurso é sempre admissível, ficando submetida nos restantes casos a sua admissibilidade às regras gerais do CPC, para as quais, aliás, o art. 126.º da LPCJP remete de modo expresso.
Nada obsta, assim sendo, ao conhecimento da apelação, a qual foi admitida com o efeito e no regime de subida apropriados.
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OBJECTO DO RECURSO.
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635.º/4 e 639.º/1 do CPC).
Assim sendo, importa em especial apreciar:
a) se o exame pericial de avaliação psiquiátrica e psicológica à progenitora do menor não deve ser realizado, ante a oposição da pessoa visada;
b) subsidiariamente, se ocorre a inconstitucionalidade apontada no recurso.
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FUNDAMENTAÇÃO.
A factualidade relevante a considerar é a que resulta do relatório, para o qual se remete nessa parte.
Quanto ao direito, importa referir previamente que se excluiu do objecto do recurso a questão da nulidade da decisão recorrida, seja porque é desprovida de utilidade autónoma, não impedindo o conhecimento da questão principal do recurso (art. 665.º/1 do CPC), seja sobretudo porque a falta de fundamentação foi suprida em primeira instância no cumprimento do disposto no art. 617.º do CPC.
Todavia, nessa decisão, persistiu a ausência de qualquer menção ao ponto essencial que pode condicionar a realização da avaliação psicológica, assente na oposição manifestada pela pessoa que com ela se pretende examinar e que ali não se enfrentou como possível obstáculo à realização da diligência.
Algo que, no entanto, não é susceptível de configurar nulidade por omissão de pronúncia, pois esta não tem de abranger todos os argumentos expostos pela parte em sentido diverso, constituindo apenas, se for o caso, erro de julgamento.
A propósito dos meios probatórios, o princípio do inquisitório conhece a maior amplitude, dispondo o art. 411.º do CPC que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer e o art. 986.º/2 do mesmo diploma, para os processos de jurisdição voluntária, que o tribunal pode coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes.
Paralelamente, o art. 417.º/1 impõe que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.
No entanto, existem limites a essa actividade de investigação do tribunal e ao dever de colaboração, com especial destaque para o nº3 daquela norma e segundo o qual a recusa é já legítima se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
Daqui resulta, a nosso ver, que a despeito de existirem diligências de prova cuja realização, como acima se disse, estão no limiar ou mesmo em pleno campo da discricionariedade do tribunal, outras há que obrigam a uma rigorosa avaliação sobre as condições indispensáveis relativas ao seu cabimento.
É o que se passa, como refere a doutrina, perante “determinados sigilos ou confidencialidades, legalmente previstos, cumprido ao tribunal – após cuidada ponderação de interesses – fazer eventualmente prevalecer o interesse na plena apreensão da verdade material (…) sobre o interesse que ditou a imposição legal dos referidos deveres” (cfr. C. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, p. 208).
Ora, a mesma rigorosa ponderação deve ser feita pelo julgador, a nosso ver, quando esteja em causa a possível violação da integridade física ou moral das pessoas visadas com a prova ou intromissão na sua vida privada ou familiar, no seu domicílio, correspondência ou telecomunicações.
Por outro lado, segundo a jurisprudência, em conformidade, aliás, com óbvias máximas de razoabilidade, “a expressão ofender o pudor, que consta no n.º 3 do artigo 480.º do Código de Processo Civil, deve ser interpretada como abrangendo a reserva da intimidade da vida privada” e “o estado de saúde integra a vida privada” (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 16/9/2021, relator António Beça Pereira, proc. 6274/20.3T8BRG-A.G1, in dgsi.pt).
Assim sendo, há que reconhecer que a realização de um exame pericial de cariz psiquiátrico e psicológico é susceptível de contender com a integridade física e moral da pessoa visada e, ainda mais, com a sua vida privada, nos termos a que alude o art. 417.º/3, als. a) e b), do CPC como motivo para exceptuar a imposição forçosa do dever de colaboração.
Donde decorre que em processo comum representa, pelo menos, uma das circunstâncias mais importantes, a que o tribunal deve atender na decisão sobre a realização da diligência, a vontade da pessoa visada que porventura tenha sido manifestada a esse respeito, na avaliação global a fazer relativamente à pertinência de determinada perícia de avaliação psiquiátrica e psicológica.
Ora, sob este quadro geral, a resposta da Lei nº147/99, de 01 de Setembro, é ainda mais circunstanciada.
Com efeito, determina o art. 87.º/1 que os exames médicos que possam ofender o pudor da criança ou do jovem apenas são ordenados quando for julgado indispensável e o seu interesse o exigir e devem ser efetuados na presença de um dos progenitores ou de pessoa da confiança da criança ou do jovem, salvo se o examinado o não desejar ou o seu interesse o exigir.
Acrescentado no nº2 que os exames médicos referidos no número anterior são realizados por pessoal médico devidamente qualificado, sendo garantido à criança ou ao jovem o necessário apoio psicológico.
Mais determinando, no nº3 dessa disposição, que aos exames médicos é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 9.º e 10.º, salvo nas situações de emergência previstas no artigo 91.º.
No plano literal e sistemático da interpretação da lei, que significa esta remissão para os arts. 9.º e 10.º da LPCJP?
Para responder, importa ter presente, em primeiro lugar, que o referido art. 87.º constitui uma entre várias disposições processuais gerais ali previstas que são aplicáveis simultaneamente aos processos instaurados nas comissões de protecção ou nos tribunais (art. 77.º da LCPCJ).
Nesse enquadramento, verifica-se ainda, com especial relevo, que o citado art. 87.º/3 não contém qualquer distinção no que concerne à sua aplicação aos processos que correm nas comissões de proteção ou nos tribunais, pelo que, a ambos se aplica da mesma maneira.
Assim sendo, aquela remissão apenas pode ser entendida, segundo pensamos, com o significado que, indistintamente para os processos das comissões e dos tribunais, é sempre imposto, a condicionar a admissibilidade da realização dos exames, o consentimento ou a não oposição das pessoas identificadas nos arts. 9.º e 10.º da Lei de Protecção.
Não se objecte, por isso, como fez o recorrido, com o argumento de que os arts. 9.º e 10.º apenas se referem às comissões de protecção, certo que, quanto aos exames e, portanto, quanto a todos os exames, relevante é o citado art. 87.º, que nesse âmbito incorpora os arts. 9.º e 10.º e que não distingue para esse efeito consoante o processo está na comissão ou no tribunal.
Acrescendo que, tendo o nº1 do art. 87.º o cuidado de especificar uma certa modalidade de exames, aqueles que possam ofender o pudor da criança ou do jovem, nada impediria o legislador de fazer o mesmo nos restantes números, se os quisesse distinguir, por exemplo, consoante a entidade responsável pelo processo onde fosse decidida a sua realização.
Devendo presumir-se, pois, na ausência de qualquer distinção desse jaez, que não o fez simplesmente porque não quis.
Em consequência, impõe-se concluir que, manifestada oposição previamente à realização da avaliação, deixa de ser legalmente admissível a sua realização, quer ela respeite aos progenitores, quer tenha em vista o menor de que eles são legalmente representantes e quanto ao qual detêm o dever de formar.
O que, agora no plano material, parece-nos plenamente compreensível, visto que, constituindo a não oposição, no processo comum, como acima se disse, um dos factores mais relevantes para o tribunal considerar na decisão sobre a realização da diligência, é perfeitamente natural que, no processo de promoção, face aos delicados interesses que tutela, tenha sido erigido a elemento essencial para o mesmo efeito.
Sem o qual, por isso, não tem cabimento a realização do exame.
Desta forma, justamente, decidiu a jurisprudência que nos “processos de promoção e proteção de menores em perigo, a realização de exames médicos à criança ou jovem depende do consentimento dos pais (ou do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto da criança ou do jovem), bem como da não oposição da própria criança ou jovem com idade igual ou superior a 12 anos, exceto nos casos em que exista perigo atual ou eminente para vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou do jovem”.
A isso aditando ainda que “não podem ser impostos exames médicos aos progenitores sem consentimento destes, por constituírem uma violação dos seus direitos de personalidade” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/12/2020, acima citado).
Contra esta conclusão, o Ministério Público avança com a construção de que o consentimento, embora seja essencial para a efectiva concretização da perícia, não impede o tribunal de decidir a sua realização.
Não acompanhamos, contudo, a referida argumentação.
Desde logo, do ponto de vista pragmático, não se compreenderia a insistência na diligência, com todos os dispêndios e formalidades que a sua organização acarretaria e que com toda probabilidade estariam destinados, perante a oposição da pessoa visada, à ausência de qualquer resultado útil.
Por outro lado, na perspectiva legal, porque tratando-se de uma prova que, nas circunstâncias referidas, é inadmissível, deve ser processualmente excluída logo no momento da decisão, sem que se descortine qualquer motivo fundado na lei para que a exclusão ocorra apenas na fase da realização.
E neste sentido depõem, se bem pensamos, as palavras da doutrina quando explica que “a nulidade do ato de produção no processo civil, dum meio de prova ilícito, decorre do art. 195-1 CPC, visto se tratar da prática de um ato que a lei não admita; mas o mesmo acontece quanto ao ato de admissão da prova” (cfr. J. Lebre de Freitas, Novos Estudos Sobre Direito Civil e Processo Civil, p. 253).
Tome-se em consideração, por fim, que a manutenção da designação da diligência em causa implicaria, em rigor, a possibilidade de imposição à pessoa visada das sanções e meios coercivos a que alude o art. 417.º/2 do CPC, o que, estando em causa um meio de prova inadmissível, é claramente de rejeitar.
Tal como sempre seria de recusar, porque totalmente incoerente, a nosso ver, a eventualidade de manter uma decisão judicial sobre a prova desacompanhada de quaisquer consequências para o seu incumprimento.
Procedem, pois, as conclusões 1 a 18 e o recurso, sem necessidade de apreciar as restantes questões que nele foram suscitadas.
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DECISÃO:
Com os fundamentos expostos, concede-se provimento à apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida.
Não são devidas custas (arts. 527.º CPC e 4.º/1, al. a), do RCP).
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SUMÁRIO
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(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)

Porto, 10/11/2025
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Ana Olívia Loureiro
Carlos Gil