Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
446/19.0PTPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA FIGUEIREDO
Descritores: ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
INTERESSE EM AGIR
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
INDEMNIZAÇÃO
PERDA DO DIREITO À VIDA
Nº do Documento: RP20231219446/19,9PTPRT.P1
Data do Acordão: 12/19/2023
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: REJEITADO O RECURSO INTERPOSTO PELOS ASSISTENTES E NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO DEMANDADO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No caso em apreço, é rejeitado o recurso interposto pelos assistentes, pois das respetivas alegações não se alcança que visem dele extrair qualquer efeito que lhes seja útil, mas antes, tão só, uma intenção de castigo/punição do arguido, face à sua culpa e à gravidade da sua conduta.
II – No caso em apreço, considerando as concretas especificidades da vítima de acidente de viação, a idade de trinta anos, e a vida que se projetava, o valor da indemnização pela perda do direito à vida fixado em cem mil euros não se revela desproporcional, havendo que afirmar o valor vida como bem maior, e porque, como vem sendo entendido pela jurisprudência, a modificação do valor da indemnização pelo tribunal de recurso, “(…) apenas se justifica quando seja manifestamente desproporcionada e violadora do princípio da igualdade”, o que não é o caso dos autos.
III - Quanto à indemnização fixada pelo dano sofrido pela vítima antes de morrer, tendo em conta que esta se apercebeu da aproximação da viatura e ainda correu para o passeio para evitar a colisão, tal revela um estado de consciência prévio gerador de angustia que só por si justifica o valor da indemnização fixado em trinta mil euros, o qual não se mostra desproporcional, face aos critérios seguidos pela jurisprudência.
IV – Também não é desproporcionado o montante de cem mil euros conjuntamente atribuído pelos danos não patrimoniais sofridos pelos progenitores da vítima.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1ª secção criminal
Proc. nº 446/19.0PTPRT.P1

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

No processo comum (tribunal singular), do Juízo Local Criminal de Gondomar, juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em que são assistentes AA e BB o arguido CC nascido em .../.../1981 foi submetido a julgamento e a final foi proferida sentença de cuja parte decisória consta o seguinte:
(…)
Pelo exposto, decide-se: A) Na parte crime:
Julgar a acusação pública procedente e, em consequência:
I- Condenar o arguido DD pela prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art.º 137.º, n.º 2 do C. Penal, em concurso aparente com o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, agravado pelo resultado, p. e p. pelos artºs. 291.º, n.º 1 e 285.º [este ex vi art.º 294.º, n.º 3, al. a)], todos do C. Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, a ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, com autorização para sair para realização da sua atividade profissional, no período compreendido entre as 8,00 horas e as 20,00 horas, de segunda a sexta feira e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 1 (um) ano e 10 (dez) meses, nos termos do art.º 69.º, n.º 1, al. a) do C. Penal.
Para efeitos de execução fixa-se como habitação a residência do arguido constante dos autos.
III- Condenar o arguido DD pela prática de uma contraordenação muito grave, p. e p. pelo art.º 81.º, nºs. 1, 2 e 6, al. b), do C. Estrada, na sanção de inibição de conduzir pelo período de 2 (dois) meses.
IV- Condenar o mesmo arguido nas custas criminais, fixando-se no mínimo legal o valor da taxa de justiça, reduzida a metade atenta a confissão integral e sem reservas [cfr. artigos 344, n.º 2, al. c), 513.º, e 514.º todos do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa àquele Regulamento].
B) Na parte cível:
I- Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelos Assistentes AA e BB contra o arguido/demandado e o Fundo de garantia Automóvel, a pagar solidariamente, aos Assistentes as quantias:
- Pelo dano de perda da vida o valor de €100.000,00 (cem mil euros);
- Pelo dano sofrido pela vítima antes de morrer o valor de €30.000,00 (trinta mil euros),
- Pelos danos não patrimoniais sofridos pelos familiares Assistentes valor de €100.000,00 (cem mil euros), decorrente da dor pela morte da filha e;
- Pelos Danos Patrimoniais os demandantes peticionam o valor de €1.127,90, correspondente de às despesas com o funeral da vítima EE e de € 1. 504, 31por despesas com medicamentos e exames médicos, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a citação até efetivo e integral pagamento, absolvendo-se a demandada do mais peticionado.

II. Do pedido Cível formulado pelo Centro Hospitalar ..., E.P.E.:

A. Absolver a Demandada A... – Companhia de Seguros, S.A., do pedido.
B. Condenar o arguido /Demandado do peticionando pagamento, na quantia de €142,67 (cento e quarente e dois euros e sessenta e sete cêntimos), decorrente dos custos pelos serviços prestados à Ofendida resultante dos factos constantes da acusação, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a citação até efetivo e integral pagamento, absolvendo-se a demandada do mais peticionado.
C. Custas cíveis pelos Demandados.
Para cumprimento da proibição de condução de veículos com motor, determino que o arguido apresente a sua carta de condução na secretaria deste tribunal, ou em qualquer posto policial, no prazo de dez dias após o trânsito da presente decisão, atento o disposto nos artigos 69.º, n.º 3 do Código Penal e 500.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sob pena de não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.

(…)
*
Inconformados, interpõem recurso desta decisão, os Assistentes AA e BB e o Fundo de Garantia Automóvel arguido, formulando respectivamente sas seguintes conclusões:
(…)
Os ASSISTENTES
A. Os Recorrentes não aceitam a decisão condenatória do douto Tribunal a quo recaiu na escolha da aplicação de uma pena de prisão ao Arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1 e 2 e 15.º do Código Penal, por entenderem que o cômputo concreto da pena produziu uma pena leve em face da ilicitude e culpa verificada na atuação do Arguido.
B. Verificou-se que a violação dos deveres de cuidado omitidos pelo Arguido no exercício da condução estradal de forma grosseira foi causa adequada da produção do resultado morte da vítima, já que foi por via da condução sob efeito de álcool e em excesso de velocidade e o desrespeito pelas normas estradais (nomeadamente pela obrigação de paragem perante a passagem de peões) que desencadearam o embate do veículo conduzido por este e a vítima.
C. Com todo o respeito pela perspetiva de análise do Tribunal a quo, não podem os Recorrentes conformar-se com a mesma na medida em que, quer dos restantes factos assentes, quer da dinâmica de encadeamento dos mesmos onde as regras de experiência comum têm no caso em apreço enorme importância, retira-se entendimento diverso.
D. Dos factos dados com provados fica claro que a elevada censura do resultado do dano morte alcançado foi conseguida pelo Arguido através de uma conduta errática sobre vários aspetos por si plenamente dominados durante um período temporal relativamente alargado, imediatamente anterior aos factos em apreço.
E. Nomeadamente, a ingestão de bebidas alcoólicas pelo Arguido no momento anterior ao início da condução; a condução errática em violação de todas as regras de segurança estradal não demovida por transportar como passageiros a companheira e o filho menor; e a circulação com veículo não segurado por apólice de seguro de responsabilidade civil obrigatória.
F. Todas estas circunstâncias altamente censuráveis não sugeriram, ao Arguido a prática uma atividade de condução cautelosa e atenta, antes sim, não se coibiu de conduzir em manifesto excesso de velocidade e em desrespeito por todas as boas práticas e todas a mais basilares leis da condução.
G. Concluímos que o Arguido representou a possibilidade de poder vir a embater com qualquer peão que se atravessasse na marcha do veículo e que a velocidade a que circulava em conjugação com a inadequação da condução ao meio e inobservância das regras de cuidado, poderiam, em caso de embate ter a capacidade de imprimir no veículo em marcha uma força capaz de provocar lesões mortais, como veio a suceder.
H. Ao nível da culpa, o Arguido revelou uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico-penal, pois seguindo numa reta de boa visibilidade, durante o dia e sem que resulte dos autos a verificação de qualquer circunstância que pudesse atenuar a censurabilidade da sua conduta, é dificilmente compreensível – à luz do que será a conduta estradal de um condutor médio - que naquele circunstancialismo o arguido não conseguisse imobilizar em segurança a viatura onde seguia de forma a ceder passagem à vítima atempadamente.
I. Desta forma o arguido agiu com plena consciência da ilicitude e gravidade da sua conduta e apesar de não desejar o seu resultado, não poderá deixar de ser severamente punido.
J. Os critérios convocados para a determinação da medida concreta da pena são, a culpa e as exigências de prevenção, previstos nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal, onde no artigo 71.º, nº 1 refere que: “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente, e das exigências de prevenção”, pelo que atendendo aos fatores da medida da pena entendemos que deverá a conduta criminosa imputada ao Arguido ser agravada e este condenado numa pena de não inferior a 3 anos e 6 meses de prisão de prisão efetiva pela prática do crime de homicídio por negligência (grosseira).
K. Pelo que, é a todas as luzes a sua condenação vertida na sentença faz errada interpretação e aplicação dos artigos 15.º, 70.º, 71.º e 137.º do Código Penal, devendo ser substituída por outra que agrave a concreta medida da pena nos termos supra expostos.
L. Determinou o Tribunal de primeira instância que seria de aplicar ao Arguido pena de prisão efetiva a ser executada em regime de permanência na habitação, com a qual os assistentes não se conformam.
M. Uma vez que o artigo 42.º do CP estabelece que a execução da pena de prisão ao mesmo tempo que serve a defesa da sociedade e previne a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes não parece adequada a sobrevalorização do Tribunal a quo do percurso pessoal do arguido, do facto de se encontrar a exercer atividade profissional.
N. A aplicação de uma medida privativa da liberdade de semelhante duração àquela que foi aplicada, a acrescer à forma de execução em regime de permanência na habitação entre as 8 horas e as 20 horas, nem sequer é minimamente garante das elevadas exigências de prevenção geral e especial que se verificam no caso concreto quanto ao Arguido, já que este regime não lhe permitirá de forma suficiente interiorizar o desvalor da conduta praticada e muito menos previne a reincidência na prática de crimes de idêntica natureza.
O. Acresce que, não se afigura um válido o argumento da flexibilidade característica do regime de permanência na habitação deva ser aplicado ao arguido para poder garantir que este fica impossibilitado de prosseguir a sua atividade profissional já que uma pena privativa de liberdade não pode almejar preservar a sua inserção profissional, nem proteger a normalidade da sua vida.
P. Ademais, é um dado adquirido que, a executar-se a respetiva pena que foi arbitrada, o Arguido dispõe de todas as condições de voltar a cometer o mesmo tipo de ilícitos.
Q. A execução da pena em regime de permanência na habitação in casu, constituiria uma sanção extremamente leviana, completamente desproporcional face às finalidades de prevenção geral e especial que apenas serão asseguradas com o cumprimento da pena de prisão efetiva pelo Arguido em estabelecimento prisional.
R. Termos em que, ao proceder como procedeu o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, fez uma errada interpretação e aplicação dos artigos 42 e 43.º do Código Penal, devendo a decisão recorrida ser substituída por outra que condene o arguido no cumprimento da pena de prisão efetiva em estabelecimento prisional.

Face ao exposto e no mais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e por via dele, ser revogada a douta sentença recorrida, fazendo-se, assim, a habitual e necessária justiça.

Recurso do FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL

i. O montante indemnizatório atribuído por perda do direito à vida da vítima, pelo dano pré-morte e ainda, a título de danos não patrimoniais sofrido pelos assistentes/demandantes é excessivo;
ii. O montante atribuído por perda do direito à vida da vítima deve fixar-se em montante não superior a € 60.000,00 (sessenta mil euros);
iii. O montante atribuído pelo dano pré-morte deve fixar-se em montante não superior a € 5.000,00 (cinco mil euros);
iv. O montante atribuído a título de danos não patrimoniais sofridos pelos assistentes/demandantes deve fixar-se em montante não superior a € 40.000,00 (quarenta mil euros);
v. A indemnização global a atribuir ao Autor deve ser reduzida ao montante máximo de € 105.000,00 (cento e cinco mil euros).
vi. O Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 494.º, 496.º, 562.º e 566.º, todos do Código Civil.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, nos termos supra expostos.

(…)

O Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso dos Assistentes no sentido de não terem os mesmos legitimidade para recorrer, por não demostrarem um concreto e próprio interesse em agir;
Também o Arguido CC respondeu ao recurso pugnando pela ilegitimidade dos assistente e improcedência do recurso.
Responderam ainda os Assistentes ao recurso do Demandado Fundo de Garantia Automóvel pugnando pela manutenção da decisão recorrida, revelando-se o pedido de “ser julgado totalmente procedente” um mero lapso de escrita face ao teor das alegações.
Nesta instância, a Exmº Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso dos Assistentes deverá ser rejeitado nos termos das disposições conjugadas dos arts 401º, nº2,414º nº2 e 420º, nº1 al.b) do CPP.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP não foram apresentadas respostas.
*
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
*
A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:
(…)
2.1.1. Factos Provados:

Da discussão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:

1. No dia 30 de Novembro de 2019, pelas 17:15 horas, o arguido CC conduzia a viatura da marca BMW com a matrícula ..-..-SX, da sua propriedade, na Rua ..., em Gondomar, no sentido .../..., este/oeste, com uma taxa de álcool no sangue de 0,8 gr./l, deduzido o erro máximo admissível.
2. O arguido nas circunstâncias de tempo, modo e lugar circulava na viatura descrita em 1. estava acompanhado da sua companheira, FF e ainda com o seu filho menor GG.
3. A referida rua é constituída por uma recta com perfil em ligeira inclinação e dotada de dois sentidos com uma linha descontínua que divide o sentido de circulação. O pavimento é constituído por aglomerado asfáltico, em bom estado de conservação.
4. A artéria apresenta boa visibilidade em toda a sua largura e extensão sendo que àquela hora, estando o céu cinzento, não havia risco de encadeamento.
5. Nessa artéria, junto ao número de polícia ..., existe uma passadeira para peões sinalizada no solo com marcas transversais e com um sinal vertical informando a aproximação de passadeira, no lado direito da via, por onde o arguido circulava.
6. O limite máximo de velocidade naquela localidade é de 50 km/h. 7. Era sábado, o trânsito circulava com fluidez.
8. Nessa circunstância de tempo e lugar, EE iniciou a travessia da referida passadeira, da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do arguido, após a atempada imobilização da viatura com a matrícula ..-..-TH, que circulava em sentido oposto, que lhe cedeu a passagem.
9. O arguido, por sua vez, circulava com a sua viatura, imprimindo a esta uma velocidade não concretamente apurada mas entre os 66,21 km/h e os 104,52 km/h, vindo a assumir uma condução temerária, tentando ultrapassar de forma insistente as viaturas que circulavam à sua frente obrigando nomeadamente, já nessa artéria, o condutor da viatura com a matrícula ..- AV-.., que circulava à sua frente em idêntico sentido, a encostar a viatura para permitir a sua ultrapassagem.
10. O arguido não adequou a velocidade da viatura, nem com a aproximação da passadeira, continuando a circular a uma velocidade não concretamente apurada mas entre os 66,21 km/h e os 104,52 km/h.
11. O arguido só avistou EE quando se encontrava a 15 metros da passadeira e aquela concluía a travessia da passadeira já na sua faixa de rodagem, momento em que iniciou a travagem da viatura.
12. EE, apercebendo-se da aproximação da viatura do arguido e do barulho resultante da travagem, correu para o passeio para evitar a colisão mas sem sucesso.
13. O arguido não logrou imobilizar a viatura antes de alcançar a passadeira circulando ainda a uma velocidade não concretamente apurada mas entre os 48 km/h e os 89,9 km/h, quando embateu com o para-choques, grelha frontal, capô e para-brisas do lado direito da sua viatura no corpo de EE, projetando-a a cerca de 31 metros de distância, local onde o corpo caiu já inanimado.
14. EE foi assistida no local pelo INEM e foi transportada para o Hospital ... no Porto, sendo admitida sob o episódio n.º ..., tendo sido encaminhada para a sala de emergência onde veio a falecer pelas 18:52 horas.
15. Como consequência directa do atropelamento, EE sofreu de ferida temporal direita sangrante, fratura mandibular direita e base orbitária direita, otorragia bilateral, fractura exposta da perna direita, esfacelos e equimoses na face anterior da perna esquerda, na anca esquerda, na face anterolateral tórax direita, ferida incisa axilar direita, o que se traduziram em lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, torácicas e dos membros que causaram o seu falecimento.
16. A morte de EE adveio do acidente de viação cuja produção é da exclusiva responsabilidade do arguido, que imprimiu à viatura uma velocidade desadequada por excessiva, entre os 66,21 km/h e os 104,52 km/h, numa localidade e próxima de uma passagem para peões.
17. O arguido não adequou a sua condução e respectiva velocidade à via onde circulava vendo-se, por força disso, incapaz de reduzir repentina e atempadamente a velocidade da sua viatura quando avistou EE na passadeira e, como tal, de impedir o atropelamento, agindo assim de forma imprudente, descuidada e desatenta e com manifesta falta de cuidado e previdência que podia e devia ter para o evitar, mas que não chegou a representar.
18. Ao agir desta forma, o arguido não respeitou as mais elementares regras de condução, como seja, não respeitou o limite de velocidade imposto nas localidades, imprimindo à viatura uma velocidade elevada e desadequada, nem reduziu atempadamente a velocidade da viatura com a aproximação da passadeira para peões, que se encontrava devidamente sinalizada no solo e através de sinal vertical.
19. Não adoptou as precauções indispensáveis para evitar que o veículo viesse a colher, como veio, EE, provocando-lhe a morte.
20. Sabia o arguido que havia ingerido bebidas alcoólicas e que a condução de viatura a motor na via pública com aquela taxa de álcool no sangue é proibida e punida como contra- ordenação.
21. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

Mais se provou, com relevância para a determinação das consequências jurídicas da conduta perpetrada pelo arguido, o seguinte:
22. Do relatório social do arguido consta, nomeadamente, que: “O arguido é o elemento mais novo de dois irmãos, oriundo de um agregado familiar de modesta condição sócio económica, o pai técnico de ar condicionado e a mãe costureira, contexto onde permaneceu até aos 25 anos, sem registo de disfuncionalidades. CC efetuou percurso escolar regular, vindo a concluir aos 21 anos o ensino secundário em curso técnico profissional de eletrónico nível 3. Iniciou experiência laboral naquela idade, tendo encetado atividade de técnico de eletrónica para a empresa B..., posteriormente passou a exercer outras funções, designadamente de revelador de fotografia na C..., para a D... na E... como rececionista, atividade de motorista de táxi durante alguns anos e desde há cerca de oito anos que trabalha na, F.... S. A, sita em ..., Santo Tirso. Manteve com regularidade desde os 9 aos 33 anos a modalidade desportiva de futebol como federado. À data dos factos por que se encontra acusado, CC residia na Rua ..., ... Gondomar, junto do agregado familiar constituído pela companheira, FF de 31 anos com habilitações literárias do 12º ano, laboralmente ativa como auxiliar de geriatria e dois menores em idades escolares, o seu descendente de 13 anos e a filha da companheira de 8 anos. Em março último, aquela relação conjugal viria a cessar, por desgaste e decorrente da alteração comportamental do arguido, na sequência do funesto incidente, manifestando o arguido grande agitação pelo sofrimento psíquico, não conseguindo descansar á noite, perturbando a vida familiar, relato pela então companheira, privilegiando esta a proteção da filha menor e decidindo o seu afastamento e posterior rutura. Apesar dessa situação descrita por FF, esta manifestou informação positiva do seu relacionamento afetivo anterior, considerado então como gratificante, com interação de qualidade junto dos dois menores, reforçando em especial o investimento afetivo de suporte e de competências do arguido na esfera da parentalidade. Na atualidade, o arguido mantém residência com o descendente, GG, de 14 anos de idade a frequentar a escola no 6º ano, cuja tutela lhe formalmente confiada em 14 de Julho de 2021 no âmbito do procº 3132/20.5T8GDGDM, regulação das responsabilidades parentais. Bene4ficia de suporte e apoio afetivo dos progenitores residentes próximos, convivendo com o filho e aqueles regularmente. O arguido encontra-se em fase de alteração residencial, tendo apresentado contrato de arrendamento por três anos prorrogável e a iniciar a 1 de janeiro de 2023 para a Rua ... nº ..., ...- .... A situação sócio económica é considerada pelo arguido como modesta, auferindo um vencimento no valor líquido de 1.000€00, acrescido de gratificações eventuais, prémios de produtividade e assiduidade em cerca de 142€ e de abono de família do filho menor em 37,80€. CC assevera a necessidade de uma gestão equilibrada face às despesas com a habitação, pagando de renda 350€ e condomínio 30€, detendo como outras despesas de água, luz, cerca de 100€; telecomunicações 55€. O arguido não deterá consumos ou comportamento aditivo de álcool, observará consumos mínimos e eventuais em contexto festivo, situação corroborada por familiares designadamente pela mãe e pela ex companheira.”

Foram dados, ainda, como provados, e com relevância para apreciação dos pedidos de indemnização civil, os seguintes factos:

23. Os custos pelos serviços prestados à Ofendida resultante dos factos constantes da acuação computaram a quantia de €142,67 (cento e quarente e dois euros e sessenta e sete cêntimos) suportados pelo Centro Hospitalar ..., E.P.E..
24. O arguido/Demandado não procedeu ao pagamento do prémio da apólice de seguro contratada, no último trimestre do ano de 2019, isto é, não pagou o recibo n.º ..., com data de vencimento de 28/10/2019
25. À data da prática dos factos, a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação, relativa ao veículo automóvel da marca BMW, com matrícula ..-..-SX, não se encontrava transferida para a A..., por ausência de seguro válido à data do sinistro.
26. A vítima à data do sinistro era solteira, saudável, alegre, bem disposta, muito dedicada à família, aos amigos e ao trabalho; a vitima comentava com a família e amigos que tinha o sonho de constituir família.
27. EE demonstrou ter uma grande vocação artística, nomeadamente, para o teatro e dança, tendo ganho vários prémios na sua infância de pintura infantil e em concursos literários; em 2013 a vítima conclui a licenciatura com a classificação de 7,48 na escala de 1 a 10.
28. A vítima frequentou vários cursos em teatro físico e dança e trabalhou com vários encenadores e corégrafos em espetáculos de teatro e dança.
29. O atropelamento da vítima EE ocorreu às 17h 15 min do dia 30 de novembro de 2019 e faleceu às 18h 52 min. do mesmo dia, ou seja, 1h 37 min. depois.
30. A morte da vítima de modo súbito e trágico teve consequências devastadoras na vida dos demandantes, ao nível pessoal, familiar, social e profissional; a Demandante BB desenvolveu depressão major reativa.
31. A Demandante BB passou a ter tratamento psiquiátrico e psicológico e a ser medicada.
32. A morte da vítima de modo súbito e trágico teve e tem um impacto significativo e desorganizador na saúde mental, com graves consequências ao nível do relacionamento interpessoal, familiar e profissional à Demandante BB.
33. A Demandante BB tem dificuldades na concentração, perda de interesse por quase todas as atividades quotidianas, diminuição na destreza cognitiva, dificuldades de atenção e na tomada de decisões.
34. A Demandante BB era coordenadora do serviço de pediatria do Hospital 1..., em Vila do Conde, onde fazia consultas, atendimento em urgência e partos, dessa atividade profissional a Demandante BB auferia cerca de €4.000,00 por mês.
35. A Demandante BB teve que reduzir drasticamente a sua carga laboral; com a redução da carga laboral a Demandante BB aufere, desde 2021, cerca de €500,00 por mês.
36. O Demandante AA ficou profundamente traumatizado com a morte da Filha.
37. O Demandante AA era alegre, bem-disposto, dedicado à família, orgulhoso do percurso de vida da Filha, muito dedicado à profissão; desde a morte da Filha o Demandante AA é medicado para ajudar a combater o quadro de ansiedade e alterações do sono.
38. Devido ao trauma psicológico o Demandante AA reduziu drasticamente a sua carga laboral entre janeiro de 2020 a março de 2021, com a consequente diminuição de rendimentos.
39. O Demandante AA sentiu-se incapaz de continuar a trabalhar no Hospital 2... e, por essa razão, comunicou a sua demissão à administração do Hospital no dia 8 de dezembro de 2019.
40. Os Demandantes gastaram o valor de €1.127,90, correspondente de às despesas com o funeral da vitima EE, atendendo que do valor global de €2.435,18, o Centro Nacional de Pensões do Instituto da Segurança Social, I.P., deferiu o reembolso de despesas de funeral, no valor de € 1.307,28.
41. Os Demandantes tiveram despesas com medicamentos e exames médico no valor global de € 1. 504, 31.
*
Factos não provados:

Inexistem factos não provado com relevância para a boa decisão da causa.
*
A restante factualidade alegada (designadamente, no pedido de indemnização civil e nas contestações) não foi considerada provada, nem não provada, portanto, foi tida por não-escrita, por constituir matéria irrelevante para a decisão a proferir, repetitiva, opinativa ou conclusiva, ou constituir alegação de matéria direito.
*
2.1.2. Exame Crítico e Motivação da Prova:

O Tribunal formou a sua convicção, relativamente aos factos considerados como provados, bem como, relativamente aos factos não provados, com base na análise e valoração global da prova constante dos autos e da produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da lógica, da experiência comum, e a livre convicção do julgador [cfr. art. 127º do Código de Processo Penal], a saber
Prova pericial: Relatório de autópsia, fls. 77 a 83 e Relatório de toxicologia forense, fls. 187.
Prova documental: a dos autos nomeadamente: Participação do acidente, fls. 1 a 8, e aditamentos, fls. 16, 185; Registos, fls. 10 e 11; Boletim de informação clínica, fls. 24; Participação, fls. 37 a 41; Relatório de Inspecção Judiciária, fls. 51 a 62; Reportagem fotográfica, fls. 137 a 140; Cálculo informático, fls. 142 e 143; Registos
clínicos, fls. 169 a170 e Registos clínicos, fls. 174. Acresce a prova documental junta pelos Demandantes e Demandados.
Vejamos, em primeiro lugar, os meios de prova analisados e qual o peso que tais meios de prova tiveram na formação da convicção do Tribunal.

2.1.3. Quanto à prova pericial – Relatório de autópsia médico-legal:

Quanto ao relatório de autópsia médico-legal, de fls. 77 a 83, atentos os conhecimentos técnico-científicos demonstrados e reconhecidos, bem como atento o seu teor, o qual se suporta e fundamenta em elementos clínicos, o Tribunal julgou como válidas as conclusões médicas referidas pelos Ex.mos. Srs. Peritos Médicos nas respetivas análises, tanto mais que, não resultaram demonstrados quaisquer elementos de igual natureza que ponham em causa tais perícias.
Por último, não se logrou provar, de resto, a existência de um qualquer evento traumático posterior aos factos ocorridos, que levasse a duvidar da existência do nexo de causalidade entre o acidente sofrido pela sinistrada e as lesões posteriormente que lhe foram detetadas, e, consequentemente, que as mesmas, foram causa direta e necessária da sua morte.

2.1.4. Quanto aos documentos constantes dos autos:

Todos os documentos constantes dos autos, por não conterem quaisquer elementos suscetíveis de indiciar a sua falsidade, nem conterem informações inverosímeis e/ou contraditórias, lograram criar no Tribunal a convicção de veracidade do teor das declarações e factos aí vertidos.
Quanto aos fotogramas e fotografias constantes dos autos, inexistindo elementos que permitam duvidar da sua falta de autenticidade ou genuinidade, lograram convencer o Tribunal do teor e características dos locais, bem como dos objetos aí representados.

2.1.5. Quanto às declarações do arguido:

O arguido confessou de modo livre, integral e sem reservas os factos pelos quais vem acusado, referindo estar arrependido.
2.1.6. Quanto às declarações dos assistentes/demandantes AA e BB:
Os assistentes/demandantes prestaram declarações referentes à personalidade da sinistrada, sua Filha, seus hábitos de vida, de trabalho, os seus projectos de vida, a espiral ascendente a nível profissional em que se encontrava a Filha à data da morte com trabalho reconhecido e trabalhos programados quer para o ano em que a mesma faleceu quer para o ano seguinte, bem como o desejo que a mesma tinha em constituir família. Lograram, ainda, referir ao Tribunal os sentimentos por si vivenciados, após o óbito da Filha/sinistrada, e ainda, logrararm descrever as diferenças do estilo de vida e experiências familiares, antes e depois do acidente, logrando descrever o impacto negativo do acidente na sua vida, a nível pessoal de cada um, familiar, social e laboral, quer do ponto de vista psicológico (da necessidade de tratamentos e exames médicos e as limitações decorrentes das patologias diagnosticadas), quer do ponto de vista económico-financeiro.
Resulta do senso comum que a morte de uma filha de um modo trágico, repentino e inesperado é das experiências mais traumáticas e dolorosas que um Ser Humano pode passar, porque foge ao normal ciclo da Vida, pelo que os Pais sofrem danos emocionais, psicológicos e financeiros significativos, como resultaram provados, quer pelas declarações dos Assistentes, quer pelos documentos juntos com o pedido cível formulado, quer pelo depoimento das testemunhas pelas mesmas arroladas, Colegas de trabalho, Amigos e o Filho.
Resulta do senso comum que a perda de uma filha nos moldes em que faleceu a vítima EE provoca, emocionalmente, choque, tristeza, ansiedade, depressão e isolamento social. O luto, para além de ser doloroso, pode durar anos, não para ultrapassar, porque o vazio de quem parte nunca será preenchido, mas até que se consiga lidar melhor com a perda e ter uma vida o mais normal possível.
Assim, porque as declarações dos assistentes foram prestadas de forma lógica, sincera, espontânea e convicta, e atenta a ausência de quaisquer hesitações e/ou contradições, tal levou o Tribunal a atribuir relevância e credibilidade às suas declarações.

2.1.7. Quanto às testemunhas:
- HH, casado, profissional de seguros, trabalha para A..., no essencial, referiu que o arguido teve um seguro (automóvel) que pagava semestralmente e a partir de 28.10.2019 o arguido não pagou, o seguro é automaticamente anulado; à A... não foi dado conhecimento do sinistro em causa dos autos, receberam uma carta do Hospital para pagamento de despesas num valor superior a €100,00 .

Porque o depoimento desta testemunha foi prestado de forma isenta, segura e descomprometida e convergente com os demais elementos documentais constantes dos autos, nomeadamente, com os documentos 1 e 2 juntos pela Demandada A... – Companhia de Seguros, S.A., aliado à ausência de hesitações e/ou contradições, o Tribunal considerou-o como relevante e credível, no que à ausência de seguro por parte do arguido à data do sinistro diz respeito.
*
As testemunhas II, casada, médica, JJ, solteira, médica, KK, divorciada, auxiliar de acção médica, no essencial, referiram conhecer os Assistentes, e atenta essa razão de ciência, descreveram o estado de espírito que se abateram sobre os Assistentes, após o óbito da sinistrada, e o impacto psicológico negativo que a morte da sinistrada teve nos mesmos, descrevendo as diversas reações que percecionaram nestes e as implicações quer a nível laboral e social.
Porque o depoimento destas testemunhas foi prestado de forma isenta, segura, aliado à ausência de hesitações e/ou contradições, o Tribunal considerou-os como relevantes e credíveis.
A testemunha LL, solteiro, psicólogo, irmão da vítima, teve um discurso isento, apesar de carregado de dor pela perda da sua irmã. O seu depoimento foi essencial, juntamente com a dos Assistentes, para conhecer melhor a vítima EE e o seu percurso de vida até ao fatídico dia, sendo ficado bem vincado que a vítima estava numa fase ascendente a nível profissional e com sonhos de constituir família a nível pessoal. Foi ainda relevante para elucidar o Tribunal sobre como ficaram os Assistentes, seus Pais, após o falecimento da sua irmã, quer a nível pessoal, profissional quer familiar.
A testemunha FF, solteira, vigilante, no essencial, referiu que foi namorada do arguido e que após o acidente em causa nos autos o arguido ficou afetado psicologicamente, o que levou à rutura da relação entre ambos.
O depoimento da testemunha revelou-se isento e credível uma vez que o mesmo é corroborado conjugando com o relatório social junto aos autos
A testemunha MM, casado, ourives, no essencial, que conhecia o arguido e que o considera “uma pessoa normal”, nunca viu o mesmo beber nada de anormal; o arguido é trabalhador.
O depoimento da testemunha revelou-se isento e credível uma vez que o mesmo é corroborado conjugando com o relatório social junto aos autos
*
Analisados os meios de prova acima referidos, e verificado o peso que os mesmos tiveram na formação da convicção do Tribunal, cumpre agora, verificar quais os meios de prova que levaram o Tribunal a julgar cada um dos factos provados, bem como os factos não provados.
Assim, para prova da dinâmica do acidente, da taxa de álcool no sangue detetada ao arguido (Relatório de toxicologia forense, fls. 187), características do local do embate, características, condições e estado da via, no momento do embate, o Tribunal fundou-se, na análise global do teor dos seguintes meios de prova: Participação do acidente, fls. 1 a 8, e aditamentos, fls. 16, 185; Registos, fls. 10 e 11; Boletim de informação clínica, fls. 24; Participação, fls. 37 a 41; Relatório de Inspecção Judiciária, fls. 51 a 62; Reportagem fotográfica, fls. 137 a 140 e Cálculo informático, fls. 142 e 143.
Tais elementos de prova também permitiram formar a convicção da prova dos factos 1 a 20, sendo que, os mesmos são, ainda, comprováveis por presunções ligadas ao princípio da normalidade ou regras gerais da experiência.
Com efeito, não pode olvidar-se que, ao lado da prova suficiente, que forma a plena convicção do juiz devido ao alto grau de probabilidade do facto, existe a prova de primeira aparência ("prima facie") que, como é sabido, se reconduz, no fundo, à figura da presunção natural [cfr. neste sentido, na doutrina o Professor VAZ SERRA, Provas, 21-26, e na jurisprudência Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/5/81, in BMJ n.º 307, p. 191].
Por outro lado, é sabido que, o dolo e a negligência, dada a natureza subjetiva, são insuscetíveis de apreensão direta, só podendo captar-se a sua existência através de factos materiais, entre os quais o preenchimento dos elementos integrantes da infração, e por meio das presunções materiais ligadas ao princípio da causalidade ou das regras gerais da experiência.
É certo que as presunções naturais cedem perante a simples dúvida sobre a sua exatidão no caso concreto [cfr. neste sentido, o entendimento do Professor CAVALEIRO FERREIRA, in Processo Penal, tomo II, p. 315].
No entanto, é lícito, ao Tribunal presumir, à luz das regras da experiência comum, a violação, pelo respetivo condutor, dos inerentes deveres de cuidado [cfr. neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-05-2005, no Processo 9359/2004-3, in www.dgsi.pt].
Com efeito, tem sido entendimento uniforme na nossa jurisprudência que “Em matéria rodoviária, dado o enorme perigo que envolve a utilização do automóvel e a velocidade, a infração de norma de trânsito constitui presunção – natural, judicial ou de prova, nos termos do art. 439º e 351º do C. Civil, que não presunção legal de culpa, inadmissível em processo penal face ao princípio in dubio pro reo – de que não foi cumprido o dever de cuidado específico imposto pela norma violada, desde que o resultado seja daqueles que a lei ou regulamento quis evitar” [cfr. neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-02-2010, Proc. 3/08.7GDFND.C1, in www.dgsi.pt].
O alcance das conclusões acima acabadas de enunciar, com o devido respeito por entendimento contrário, não contende com a livre apreciação da prova, pois que, é lícito ao Tribunal, para além dos meios de prova diretos, socorrer-se dos procedimentos lógicos para prova indireta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções, como tem já vinha a ser defendido pelo Professor Vaz Serra, (in “Direito Probatório Material”, BMJ, nº 112 pág., 190, apud Ac. STJ de 6/10/2010, proferido no âmbito do Processo n.º 936/08.JAPRT, in www.dgsi.pt), e, também, pelo Sr. Juiz-Conselheiro Santos Cabral (no artigo “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, publicado na revista “Julgar”, n.º 17, Maio-Agosto de 2012, pp. 13 e ss.) e também pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (vide a este respeito, v.g., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13/07/2011, proferido no âmbito do Processo n.º 6/08.1GDPNF.P2.S1, e de 6/10/2010, proferido no âmbito do Processo n.º 936/08.JAPRT, ambos in www.dgsi.pt).
Na passagem do facto conhecido (prova direta) para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido (prova indireta), têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
Assim, como refere Santos Cabral (ob.cit., pág. 13) “a prova indiciária pressupõe um facto, demonstrado através de uma prova direta, ao qual se associa uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra do sentido comum”, pelo que, “o facto indiciante resultante da prova direta permite a elaboração de um facto-consequência em virtude de uma ligação racional e lógica”.
Ora, atenta a dinâmica do acidente, logrou provar-se que: no dia 30 de Novembro de 2019, pelas 17:15 horas, o arguido CC conduzia a viatura da marca BMW com a matrícula ..-..-SX, da sua propriedade, na Rua ..., em Gondomar, no sentido .../..., este/oeste, com uma taxa de álcool no sangue de 0,8 gr./l, deduzido o erro máximo admissível; o arguido nas circunstâncias de tempo, modo e lugar circulava na viatura descrita em 1. estava acompanhado da sua companheira, FF e ainda com o seu filho menor GG; a referida rua é constituída por uma recta com perfil em ligeira inclinação e dotada de dois sentidos com uma linha descontínua que divide o sentido de circulação; o pavimento é constituído por aglomerado asfáltico, em bom estado de conservação; a artéria apresenta boa visibilidade em toda a sua largura e extensão sendo que àquela hora, estando o céu cinzento, não havia risco de encadeamento; nessa artéria, junto ao número de policia ..., existe uma passadeira para peões sinalizada no solo com marcas transversais e com um sinal vertical informando a aproximação de passadeira, no lado direito da via, por onde o arguido circulava; o limite máximo de velocidade naquela localidade é de 50 km/h; era sábado, o trânsito circulava com fluidez; nessa circunstância de tempo e lugar, EE iniciou a travessia da referida passadeira, da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do arguido, após a atempada imobilização da viatura com a matrícula ..-..-TH, que circulava em sentido oposto, que lhe cedeu a passagem; o arguido, por sua vez, circulava com a sua viatura, imprimindo a esta uma velocidade não concretamente apurada mas entre os 66,21 km/h e os 104,52 km/h, vindo a assumir uma condução temerária, tentando ultrapassar de forma insistente as viaturas que circulavam à sua frente obrigando nomeadamente, já nessa artéria, o condutor da viatura com a matrícula ..-AV-.., que circulava à sua frente em idêntico sentido, a encostar a viatura para permitir a sua ultrapassagem; o arguido não adequou a velocidade da viatura, nem com a aproximação da passadeira, continuando a circular a uma velocidade não concretamente apurada mas entre os 66,21 km/h e os 104,52 km/h.; o arguido só avistou EE quando se encontrava a 15 metros da passadeira e aquela concluía a travessia da passadeira já na sua faixa de rodagem, momento em que iniciou a travagem da viatura; EE, apercebendo-se da aproximação da viatura do arguido e do barulho resultante da travagem, correu para o passeio para evitar a colisão mas sem sucesso; o arguido não logrou imobilizar a viatura antes de alcançar a passadeira circulando ainda a uma velocidade não concretamente apurada mas entre os 48 km/h e os 89,9 km/h, quando embateu com o para-choques, grelha frontal, capô e para-brisas do lado direito da sua viatura no corpo de EE, projetando-a a cerca de 31 metros de distância, local onde o corpo caiu já inanimado.
Ou seja, quando o embate se deu, o arguido, não só conduzia com uma taxa de álcool no sangue superior ao legalmente permitindo, atingindo, uma TAS de 0,8, cujo valor é punido por lei como contraordenação, como também circulava em velocidade superior à estabelecida no local do acidente, a uma velocidade não concretamente apurada mas entre os 66,21 km/h e os 104,52 km/h, o que o impediu de imobilizar o veículo que conduzia quando se depara com a vítima a atravessar na passadeira, local onde a colhe. Demonstrativo da velocidade é o facto de o corpo de EE foi projetado a cerca de 31 metros de distância, local onde o corpo caiu já inanimado. De referir, ainda, que o arguido ia acompanhado da companheira e do seu filho menor de idade, o que deveria ser um fator inibidor de comportamentos como os referidos, no que à condução diz respeito.
Com efeito, o arguido, não podia ignorar que agindo da forma dada como provada, agia em violação grosseira das mais elementares regras de condução estradais, e que daquela forma punha em perigo, como pôs, a vida e a integridade física dos demais condutores que seguiam na via pública bem como dos peões.
De resto, não foi produzida prova suscetível infirmar a convicção do Tribunal.
A ausência de antecedentes criminais resulta do teor do registo criminal junto aos autos.
As condições socioeconómicas do arguido resultam das declarações do mesmo, conjugado com o relatório social.

(…)

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões dos recursos, as questões submetidas à apreciação deste tribunal são as seguintes:
Recurso dos Assistentes
Se a pena aplicada ao Arguido deve ser agravada para uma pena de prisão não inferior a 3 anos e 6 meses de prisão efectiva a cumprir em estabelecimento prisional;
A estas questões acresce a questão colocada pelo MP nesta Relação relativa à falta de interesse em agir dos Assistentes no recurso.
Recurso do Fundo de Garantia Automóvel
Se os montantes indemnizatórios atribuídos por perda do direito à vida da vítima, pelo dano pré-morte e a título de danos não patrimoniais sofridos pelos Assistentes/demandantes são excessivos devendo antes fixar-se respectivamente em montantes não superiores a 60.000€, 5,000€ e 40.000€;
*
II - FUNDAMENTAÇÃO:
Recurso dos Assistentes
Começamos pela apreciação da questão prévia suscitada pelo MP relativa ao interesse em agir dos assistentes uma vez que caso a mesma venha a proceder ficariam prejudicadas as questões colocadas no recurso.
Nos termos do artº 401º nº1 b) do CPP a lei confere legitimidade ao Assistente para recorrer das decisões contra ele proferidas, mas que no nº 2 do mesmo preceito estabelece que «Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir».
O Assento do STJ 8/99 de 30/10/97 –AR 1ª séria – de 10/8/99, firmou jurisprudência no sentido de que «o assistente não tem legitimidade para recorrer desacompanhado do MP, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir».
Na fundamentação deste assento e acerca da delimitação do que deve entender-se por um concreto e próprio interesse em agir do assistente, escreveu-se “Se a discordância deriva de causa que afectou o interesse do assistente e em razão de tal se possa considerar vencido [ CPP-401, 1b) e 2, e 69, 1 e 2c)], tem este interesse em agir, pelo que pode recorrer.” Mas “Este interesse em agir tem de ser concreto e do próprio, pelo que é insuficiente se o Tribunal, concluindo que se não está face a um mero desejo de vindicta privada, nada mais encontrar; (..)” (negrito nosso).
Por sua vez, e também relacionado com o interesse do Assistente na fixação da pena aplicada, há que ter em conta o Ac de Fixação de Jurisprudência, do STJ nº2/2020, que fixou jurisprudência no sentido de que “O assistente, ainda que desacompanhado do Ministério Público, pode recorrer para que a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado fique condicionada ao pagamento, dentro de certo prazo, da indemnização que lhe foi arbitrada.”
Tendo-se escrito em sede de fundamentação deste último acórdão que, “a possibilidade legal de subordinar a suspensão ao cumprimento do dever de o condenado pagar, total ou parcialmente, a indemnização devida ao lesado, para além da realização de finalidades da pena, visa, sem dúvida, a protecção dos interesses deste, em ordem à reposição da situação em que se encontraria se não tivesse sido praticado o crime. Daí que não possa ser-lhe negado o seu interesse processual em pugnar, por meio de recurso, pela imposição ao arguido desse dever como condição da suspensão…”
Das normas referidas e Jurisprudência fixada, resulta claro que o assistente tem legitimidade para recorrer também da espécie da pena, desde que tenha um interesse concreto e próprio em agir, e não um mero desejo de vindicta privada.
Ora no caso dos autos, e tal como delimitado pelas conclusões do recurso, os recorrentes/Assistentes pretendem apenas o agravamento da pena de prisão aplicada ao arguido, e a efectividade da mesma em meio prisional, o que insere tal pretensão tão só numa vertente punitiva.
Como escreve Damião da Cunha em A Participação dos particulares no Exercício da Acção Penal, RPCC, 1998, p 638. citado no referido Ac 2/2020 “o interesse que o assistente eventualmente corporize (que tem de ser um interesse particular, autónomo) tem que estar subordinado ao interesse público, pelo que a actuação do assistente, fundada no interesse particular, só assume relevância (processual) na medida em que contribua para uma melhor realização da Administração da Justiça”. Daqui decorre, desde logo, que a autonomia do assistente no direito ao recurso não põe em causa o ius puniendi estatal, nem traduz qualquer desejo de vindicta privada.”
Ou seja, do alegado no recurso não emerge qualquer interesse próprio e concreto dos recorrentes quanto à natureza da pena aplicada, mas antes e tão só uma intenção de castigo/punição do Arguido, face à sua culpa e ilicitude da conduta.
Ora, restringida a alegação às finalidades da punição, o que se afirma no recurso é antes um interesse dos assistentes na vertente punitiva e preventiva do direito penal, uma vez que não alegam nem demonstram, aquele «concreto e próprio interesse em agir,» -isto é - a necessidade de recorrer ao recurso para defender um direito seu.
De facto, não se alcança face às alegações e conclusões do recurso que os assistentes visem extrair qualquer efeito que lhe seja útil.
Pelo contrário o que se afirma no recurso é antes um interesse da assistente na vertente punitiva e preventiva do direito penal, interesse este que não é próprio dos assistentes mas antes do Ministério Público enquanto titular da acção penal.
Nota-se que a Jurisprudência fixada no recente ac. de Fixação nº2/2020, não contraria nem revogou a jurisprudência fixada pelo Assento STJ 8/99 de 30/10/97, já que na fundamentação do mesmo expressamente se afirma a necessidade de existência de um interesse autónomo em agir diferenciado de uma qualquer agravação da pena ou de alteração da qualificação jurídica, ao se escrever: “Esse interesse existe no caso do acórdão recorrido, perante a pretensão autónoma dos assistentes (diversa de qualquer agravação da pena ou de alteração da qualificação jurídico -penal), relacionada com a reparação do prejuízo por eles sofridos com a prática do crime e cuja condição da suspensão não deixa de estar associada às finalidades preventivas da pena, de forma a melhor defender os interesses patrimoniais lesados.” (negrito nosso)
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva “o interesse na revogação da decisão impugnada, não é um interesse meramente abstracto, interesse na correcção das decisões Judiciais, mas um interesse em concreto, pelo efeito que se busca em benefício do recorrente, salvo no que respeita ao Ministério Público.”[1]
Também no ac. do STJ de 14/7/2022 proferido no proc.811/21.3PAPTMS.P1, escreveu-se: “I. As finalidades da punição, que se refletem na espécie e medida da pena, não visam dar satisfação imediata aos assistentes, enquanto ofendidos pela prática dos crimes e, por isso, não se pode considerar, em regra, que são afetados pela espécie ou medida da pena, continuando a entender-se que o interesse em agir do assistente depende da invocação pelo mesmo de um interesse concreto e próprio..”[2]

Como tal impõe-se a rejeição dos recursos dos Assistentes nos termos do disposto no artº 420º nº1 .al.b) ex vi artº 414 nº2e 3 do CPP.

Recurso do Fundo de Garantia Automóvel
Como decorre das conclusões e motivação do recurso, o recorrente não questiona a sua legitimidade passiva enquanto demandado, nem a factualidade provada e existência dos pressupostos da responsabilidade civil previstos no artº 483º do C.C.
Questiona o recorrente os montantes indemnizatório fixados.
A decisão recorrida atribuiu aos demandantes pais da vítima o valor de 100,000€ (cem mil) euros pela perda de vida da ofendida, 100.000€ (cem mil euros) pelos danos morais dos ascendentes/progenitores e 30.000€ pelo dano sofrido pela vítima antes de morre com a seguinte fundamentação na parte relevante:
1. No tocante à perda da vida da vítima:
Na atualidade, é jurisprudência pacificamente aceite que a violação do direito à vida e integridade física reveste gravidade suficiente para merecer proteção constitucional [cfr. artigos 24º n.º 1 e 25º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa], e em sede legal, na tutela geral da personalidade [cfr. art. 70º, do Código Civil]. E como já tivemos de referir acima, o direito à vida, como direito pessoal, inerente à personalidade, é de aquisição automática sendo a sua perda indemnizável.
Mas sendo a vida um valor absoluto, independente da idade, condição sociocultural, ou estado de saúde, irrelevam na fixação desta indemnização quaisquer outros elementos da vítima, que não a vida em si mesma. Importam, tão-somente os outros critérios do artigo 494º, aplicável "ex vi" do nº3 do artigo 496º do Código Civil.
Quanto aos critérios de fixação do “quantum” indemnizatório pela perda do direito à vida como referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-06-2015 (Processo n.º 2567/09.9TBABF.E1.S1, in www.dgsi.pt) “vem-se consolidando na jurisprudência o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida – direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos – deve situar-se, com algumas oscilações, entre os €50.000 e os €80.000”, devendo, precisar-se que, conforme referido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-11-2013 (Processo n.º 177/11.0TBPCR.S1, in www.dgsi.pt) “Os Tribunais, na fixação equitativa dos montantes indemnizatórios a atribuir aos lesados, em sede de acidentes de viação, não estão vinculados á aplicação das tabelas constantes da Portaria nº 377/08, de 26 de Maio, alterada pela Portaria nº 679/09, de 25 de Junho. Reportando-se estas, apenas, a um conjunto de regras e princípios que permita agilizar a apresentação extrajudicial de propostas razoáveis destinadas a indemnizar o dano corporal”.
Daí que essa indemnização – havendo, obviamente, de respeitar “o grau de culpabilidade do agente” e “a situação económica deste e do lesado” [cfr. artigos 496.º, n.º 3 e 494º do Código Civil] – tenha, sobretudo, que atender, no seu simbolismo, ao “valor social” e à “representatividade comunitária” da vítima [dentro de parâmetros que considerem os seus feitos em prol da comunidade, incluindo naturalmente o núcleo familiar de enquadramento, e as esperanças que seriam ainda de alimentar quanto ao seu futuro contributo para o bem estar dos seus concidadãos] e, na sua representação simbólica, à dinâmica da própria “praxis” jurisprudencial, pese embora, sejamos de opinião, e com o mais elevado respeito pela posição jurisprudencial seguida pelos nossos Tribunais Superiores, que os montantes indemnizatórios entre os quais se vem situando a fixação da indemnização pela perda da vida, se afiguram, atualmente, e no nosso modesto entendimento, relativamente diminutos, tendo em consideração o bem jurídico em causa – a vida – o mais importante e valioso dos bens jurídicos tutelados pelo Direito, por um lado, e o aumento progressivo da esperança média de vida, em decorrência dos avanços da Medicina, por outro.
Diríamos, assim, que à falta de outro critério legal, na determinação do respetivo montante compensatório importa ter em linha de conta, a idade da vítima, o circunstancialismo em que se verificou a sua morte, a vontade e alegria de viver da vítima, a sua relação com a família e amigos, e a sua saúde. São estes elementos que nos permitem aferir a quantidade e a qualidade da vida que ficou por viver.
*
No caso em apreço, logrou provar-se com relevância para esta questão, que a vítima mortal à data do acidente tinha 30 anos de idade, solteira, saudável, alegre, bem disposta, muito dedicada à família, aos amigos e ao trabalho; a vitima comentava com a família e amigos que tinha o sonho de constituir família. A vítima estava num fase ascendente profissionalmente com trabalhos programados para o ano em que faleceu e para o ano seguinte.
Assim, podemos concluir, à luz do acervo factual dos autos, conjugado com as regras da experiência comum, que tendo a falecida o carinho dos Pais, irmão e amigos, e provando-se que gozava os seus tempos livres, que tinha uma qualidade de vida satisfatória, que se adivinhava prolongar até à sua velhice, e a qual foi subitamente interrompida com a morte, atrevemo-nos a dizer, que face ao acervo factual apurado, a sinistrada, era feli!
Pelo exposto, atendendo aos elementos “supra” enunciados configura este Tribunal justo e adequado fixar em €100.000,00, o montante indemnizatório devido pelos demandados aos demandantes pela perda do direito à vida da falecida EE.
2. No tocante aos danos não patrimoniais sofridos pelos Assistentes/Demandantes:
No caso dos autos logrou provar-se que com o falecimento da Filha, de modo trágico e inesperado, a morte da vitima nos moldes em que foi, de modo súbito, inesperado e trágico, teve consequências devastadoras na vida dos demandantes, ao nível pessoal, familiar, social e profissional; a Demandante BB desenvolveu depressão major reativa; a Demandante BB passou a ter tratamento psiquiátrico e psicológico e a ser medicada; a morte da vitima de modo súbito e trágico teve e tem um impacto significativo e desorganizador na saúde mental, com graves consequências ao nível do relacionamento interpessoal, familiar e profissional à Demandante BB; a Demandante BB tem dificuldades na concentração, perda de interesse por quase todas as atividades quotidianas, diminuição na destreza cognitiva, dificuldades de atenção e na tomada de decisões; o Demandante AA ficou profundamente traumatizado com a morte da Filha; o Demandante AA era alegre, bem-disposto, dedicado à família, orgulhoso do percurso de vida da Filha, muito dedicado à profissão; desde a morte da Filha o Demandante AA é medicado para ajudar a combater o quadro de ansiedade e alterações do sono; o Demandante AA sentiu-se incapaz de continuar a trabalhar no Hospital 2... e, por essa razão, comunicou a sua demissão à administração do Hospital no dia 8 de dezembro de 2019.
Não é um facto da vida que possa ser esperado pelos Pais assistirem ao desaparecimento prematuro e repentino de uma Filha, pelo que, a lesão traumática resultante de tal evento – nas hipóteses em que, como a presente, o relacionamento entre aqueles se pauta por uma grande correspondência de afeto e carinho – reveste grau elevadíssimo e duradouro.
Pelo exposto, atendendo aos elementos “supra” enunciados configura este Tribunal justo e adequado fixar em €100.000,00, o montante indemnizatório devido pelos demandados aos Demandantes, pelos danos não patrimoniais.
(…)
4. Da presciência da morte, isto é, da consciência que a vítima tenha de que está na iminência de morrer, e seu sofrimento físico
Resultou provado que a vítima teve noção que iria ser atropelada, razão pela qual correu na tentativa de chegar ao passeio o, que, infelizmente, não veio a ocorrer.
Pelo exposto, atendendo aos elementos “supra” enunciados configura este Tribunal justo e adequado fixar em €30.000,00, o montante indemnizatório devido pelos demandados aos Demandantes, pelos danos decorrente da presciência da morte.”
A obrigação de indemnização é determinada nos termos do artigo 562º do Código Civil, o qual prescreve que «quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação», sendo, segundo o artigo 566º, nº 1, do Código Civil, «fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos, ou seja excessivamente onerosa para o devedor».
No entanto, «a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão», pelo prescrito no artigo 563º, do Código Civil e de acordo com a teoria da causalidade adequada.
Da análise da matéria de facto dada como provada, bem como daquilo que resultou quanto ao apuramento da responsabilidade criminal, impõe-se concluir que a conduta do arguido é geradora da obrigação de indemnizar pelos danos causados com a sua conduta supra descrita, nos termos dos artigos 483º, 487º, e 562º, do Código Civil, sendo o Demandado Fundo de GARANTIA solidariamente, pelo menos nas relações externas, responsável pelo pagamento de tal obrigação nos termos previstos no artº 47º do DL nº291/2007, de 21 de Agosto.
Especificamente no que concerne aos danos não patrimoniais:
Ao abrigo do disposto no artigo 496º nº1 do Código Civil serão indemnizáveis os «danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito».
A sua gravidade será avaliada segundo critérios objectivos, devendo ser de tal ordem que em última análise justifique a atribuição de uma indemnização ao lesado.
Pelo artigo 496º, nº 4, do Código Civil será a indemnização fixada segundo critérios de equidade, bem como, a situação económica do agente e do lesado, o grau de culpabilidade e as circunstâncias de cada caso, como por exemplo a natureza e a intensidade do dano.
No caso de morte dispõe o nº2 do mesmo preceito que « 2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.» e, «podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.»cf. nº4 do mesmo preceito.
Será de referir que não se trata de uma mera indemnização, mas sim de uma compensação «insusceptível de avaliação em dinheiro e representa a dor corporal sofrida, bem como o prejuízo de equilíbrio anímico ou espiritual» Ac. S.T.J. de 28 de Fevereiro de 1969, R.L.J. ano 103º, pág. 176.
Importa, ainda, referir que, desde que pela sua gravidade mereçam a «tutela do direito, são ressarcíveis, mesmo que não derivem de lesão corporal» (Adriano Vaz Serra em anotação ao Ac. S.T.J. de 23 de Outubro de 1979, R.L.J. ano 113º, pág. 96).
Há ainda que não esquecer que a indemnização por danos morais tem ainda um carácter punitivo, já que como evidencia Menezes Cordeiro, “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança aliás de qualquer indemnização”[3].
Também segundo Galvão Teles, a indemnização por danos não patrimoniais é “uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima – na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e lesado”.[4]
Face ao que supra se deixou exposto “No cômputo equitativo de uma compensação por danos não patrimoniais atender-se-á à extensão e gravidade dos prejuízos, ao grau de culpa do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso”.[5]
E nesta sede, (julgamento segundo a equidade) os tribunais de recurso devem limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”.[6]
Uma vez que a lei não fornece um critério quantitativo para a fixação dos danos não patrimoniais, torna-se uma mais valia o cotejo jurisprudencial sobre a fixação de danos em situações análogas, critério enunciado no ac. do STJ de 25/11/2009 proferido no proc- 397/03.GEBNV.S1. [7]
Dito isto passemos à apreciação das questões do recurso
Alega o recorrente que o montante de 100.000 € fixado pela perda da vida da vítima é “ excessivo e desrespeitadora de qualquer juízo de equidade ou proporcionalidade”, já que a decisão recorrida ignorou por completo o entendimento “vertido pelos tribunais superiores”, já que na jurisprudência do STJ o dano pela perda do direito à vida situa-se entre os 50.000,00 € e os 80.000,00 € indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a 100.000,00 ” (negrito nosso)
Mais alega que tendo a sentença recorrida referido que “A vítima estava num fase ascendente profissionalmente com trabalhos programados para o ano em que faleceu e para o ano seguinte,” que tal não resulta da factualidade provada, “não obstante o mesmo resultar das declarações dos demandantes.”
Mais invoca que com 30 anos de idade à data da morte, “nessa data, a vítima já tinha vivido praticamente metade da sua vida.”
Vejamos, começando pela questão da factualidade considerada na fundamentação, não se encontrar dada como provada, face ao alegado no ponto 56 do pedido civil “ A vítima tinha em curso desde 2018 um projecto de investigação com vista à introdução de novas técnicas e homogeneização do “Pole dance”, tendo previsto dar aulas dessa modalidade a partir de janeiro de 2020.” poderíamos estar perante uma nulidade por falta de fundamentação nos termos dos artº 379º nº1 al.a) 374º nº2 do CPP, caso tal matéria fosse considerada relevante para a questão de saber se se verificavam os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil, cfr. aertº 368º nº2 al.f) do CPP,
Porém, a verdade é que lida integralmente a fundamentação da sentença recorrida, verifica-se que o tribunal não só apurou “A vítima estava num fase ascendente profissionalmente com trabalhos programados para o ano em que faleceu e para o ano seguinte,” como deu tal facto como assente ainda que não o tenha elencado entre os factos provados.
É o que resulta da fundamentação, quando na mesma se escreveu relativamente ao depoimento da testemunha LL, que: “O seu depoimento foi essencial, juntamente com a dos Assistentes, para conhecer melhor a vítima EE e o seu percurso de vida até ao fatídico dia, sendo ficado bem vincado que a vítima estava numa fase ascendente a nível profissional e com sonhos de constituir família a nível pessoal…” sendo que, como o próprio recorrente alega e consta também da fundamentação, os Assistentes “.prestaram declarações referentes à personalidade da sinistrada, sua Filha, seus hábitos de vida, de trabalho, os seus projectos de vida, a espiral ascendente a nível profissional em que se encontrava a Filha à data da morte com trabalho reconhecido e trabalhos programados quer para o ano em que a mesma faleceu quer para o ano seguinte,” declarações que o tribunal credibilizou, tendo escrito “Assim, porque as declarações dos assistentes foram prestadas de forma lógica, sincera, espontânea e convicta, e atenta a ausência de quaisquer hesitações e/ou contradições, tal levou o Tribunal a atribuir relevância e credibilidade às suas declarações.” .
Como tal ainda que a matéria em causa não conste formalmente elencada nos factos provados, resulta claro que o tribunal apurou a mesma e considerou-a provada.
Tanto basta para a improcedência desta alegação.
Mais se constata-se que da matéria de facto provada não consta a idade da vítima, apesar de na fundamentação de direito ser considerado ter a idade de 30 anos.
Ora, também aqui resulta da fundamentação de facto a referência aos documentos constantes dos autos e juntos pelos Assistentes, dos quais consta, cfr. certidão de óbito e Relatório de autópsia, a idade da vítima.
Assim, sanando a nulidade por falta de elenco nos factos provados, artº 3740º nº2 e 379º do CPP, e sendo tal facto também invocado pelo recorrente, nos termos do artº 379º nº2 do CPP dá-se como provado que “A vítima à data do acidente tinha 30 anos de idade”.
No mais, como o próprio recorrente reconhece, actualmente o próprio STJ, já tem fixado indemnizações no montante de 100.000 €, pela perda do direito à vida, como foi o caso no ac do STJ de 11-02-2021 proc 625/18.8T8AGH.L1.S1 –relator o Conselheiro Abrantes Geraldes em que se sumariou “.I - Num acidente de viação que vitimou uma criança de 7 anos, numa reta com 200 metros e com boa visibilidade, quando procedia ao atravessamento da estrada que iniciara numa altura em que não havia qualquer veículo a aproximar-se, a responsabilidade é de imputar em exclusivo ao condutor do veículo pelo facto de seguir desatento e descuidado e nem sequer ter reparado na presença da criança que atropelou mortalmente, sem dela se desviar ou travar. II - Não existem motivos para considerar excessiva a indemnização pela perda do direito à vida que a Relação fixou equitativamente em € 100 000,00. III - Também não existem motivos para reduzir a indemnização de € 40 000,00 arbitrada a cada um dos progenitores pelos danos morais decorrentes da morte da única filha, nem tão pouco para estabelecer qualquer distinção entre os progenitores em função do respetivo percurso pessoal, pois ambos ficaram profundamente abalados.
Procurando ainda um critério na jurisprudência dos tribunais superiores, vale a pena por alguma similitude atentar no ac.do STJ de 22/2/2018, invocado pelos assistentes, e proferido no proc. nº33/12.4GTSTB.E1,S1, de que foi relator o conselheiro Manuel Braz, no qual num caso de uma vítima “ jovem de 25 anos de idade, solteiro, saudável, com formação académica superior, sendo piloto da Força Aérea, com a patente de alferes, competente, dedicado e com fundadas aspirações de progressão na carreira”, depois de se aludir aos critérios daquele tribunal STJ, a oscilarem entre 50.000e 100.000€ se manteve ao valor de 120.000€ fixado.
Muito embora, face à natureza superlativa do valor Vida, em abstracto todas as vidas tenham o mesmo valor, como também se escreveu no ac.do STJ de 13/5/2021 a n.º 10157/16.3T8LRS.L1.S1 –relator Conselheiro Fernando Baptista– V- Não obstante a idêntica dignidade de toda e qualquer vida humana, uma vida não tem apenas um valor de natureza, mas sobretudo um valor social. Pelo que as circunstâncias pessoais de cada vítima não são (nem podem ser) irrelevantes para a atribuição da compensação pelo dano da morte (da lesão do direito à vida – sendo que tal indemnização ou compensação deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista), sob pena de, em nome de um conceptualismo extremo, se olvidarem as realidades da vida e a ordem natural das coisas. VI - O recurso à equidade aludido no n.º 3 do art. 496.º do CC não contende com a necessidade de atender às exigências do princípio da igualdade, a exigir a busca de uma uniformização de critérios, sem descurar a especificidade das circunstâncias do caso concreto a apreciar.
Considerando as concretas especificidades da vítima, a idade de 30 anos, e a vida que se projectava, o valor de 100.000€ fixado não se revela desproporcional, antes proporcional, havendo que afirmar o valor vida como bem maior, e porque como vem sendo entendido pela jurisprudênciasupra referida, a modificação do valor da indemnização pelo tribunal de recurso, “ (…) apenas se justifica quando seja manifestamente desproporcionada e violadora do princípio da igualdade”(negrito nosso), o que não é o caso dos autos. Não se mostra pois minimamente aceitável o argumento dos recorrentes de que a vítima com “30 anos, já tinha vivido praticamente metade da sua vida”, pois que a idade adulta apenas se inicia a partir dos 18 anos, idade a partir da qual um indivíduo pode viver a plenitude dos seus direitos.
Quanto à indemnização fixada pelo dano sofrido pela vítima antes de morrer, alega o recorrente que face à matéria provada sob o ponto 29 da factualidade provada a mesma faleceu passado uma hora e trinta e sete minutos depois do embate, pelo que tendo em conta os padrões adoptados pela jurisprudência a indemnização deve ser fixada em 5.000,00€.
Também neste aspecto não assiste razão ao recorrente.
Recorrendo mais uma vez à Jurisprudência dos tribunais como critério de referência, sendo este dano relativo ao sofrimento físico e/ou psíquico suportado pela vítima entre o momento em que sofre a lesão e o momento da morte, têm-se valorizado no mesmo “as dores físicas causadas directamente pelas lesões sofridas e eventualmente no âmbito de subsequentes tratamentos e/ou intervenções cirúrgicas e ainda a angústia sentida com o aproximar da morte” cfr ac do STJ de 22/2/2018 que vem de se citar.(negrito nosso)
No caso dos autos, a vítima apercebeu-se da aproximação da viatura e ainda correu para o passeio para evitar a colisão, o que revela um estado de consciência prévio gerador de angustia que só por si justifica o valor da indemnização fixado. O montante de 30.000€ fixado não se mostra desproporcional, face aos critérios expressos no referido acórdão do STJ, e porquanto se entende que as indemnizações por danos não patrimoniais não devem ter um valor meramente simbólico, antes significativo, como se escreve no Ac do STJ de 25/10/2007 proferido no proc. 07B3026, (relator conselheiro Santos Bernardino) .
Por fim, quanto ao montante de 100.000 € conjuntamente atribuído pelos danos não patrimoniais dos progenitores, mantendo-nos no esteio da jurisprudência do STJ, já citada, e ponderando os concretos factos provados relativamente às consequências psíquicas da morte da vítima nos Assistentes seus pais, pontos 30 a 39 da matéria de facto que aqui se dão por reproduzidos, a fim de evitar inúteis repetições, oscilando a jurisprudência mais recente entre valores de 30.000€ e 50.000€ pelos danos de cada uma dos progenitores, cfr o já citado ac. do STJ de 11-02-2021, e ainda o ac, do STJ de 23/2/2011 proferido no proc. 395/03.4GTSTB.L1.S1, (relator conselheiro Pires da Graça), em situação com pontos similares ao dos autos, o montante conjunto de 100.000€ fixado, mostra-se justo e adequado numa perspectiva actualista, à compensação dos danos sofridos, pelo que não se justifica qualquer intervenção correctiva.
Não se mostram pois violadas as normas invocadas pelo recorrente improcedendo o recurso.
Em suma improcede pois o recurso.
*
*
III – DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em;
Rejeitar o recurso interposto pelos Assistentes AA e BB nos termos do disposto no artº 420º nº1 .al.b) ex vi artº 414 nº2e 3 do CPP.
Custas pelos Assistentes nos termos do artº 515º al.b) do CPP fixando-se a taxa de justiça em 3UC
Negar provimento ao recurso interposto pelo Demandado FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL e manter a decisão recorrida, ainda que com a alteração efectuada à matéria de facto.
Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 3 UC

Porto, 19/12/2023
Elaborado e revisto pela relatora.
Lígia Figueiredo
Nuno Pires Salpico [Declaração de voto:
“Muito embora concorde com o acórdão, no que concerne à legitimidade do recurso interposto pelos assistentes, teria admitido esse recurso e apreciado o mesmo.
Com efeito, tal como sustenta Paulo Pinto Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., págs.224 e 1055, Lisboa, 2011) “A constituição como assistente e a dedução de uma acusação pelo assistente ou acompanhamento da acusação pública pelo assistente são mostras claras do seu interesse pessoal direto no destino da causa penal, que o habilitam desde então a fazer valer o seu ponto de vista sobre esse mesmo destino. (….) Assim, o assistente tem o direito constitucional de interpor recurso ….da condenação em pena cuja espécie ou medida considera insuficientes, sempre que o assistente deduziu acusação ou acompanhou a acusação pública, independentemente de o Ministério Público ter recorrido ou não.”. Nos presentes autos, os assistentes tiveram intervenção ao longo da lide mostrando interesse processual pelo apuramento da responsabilidade criminal imputada, e nesse ponto de vista têm legitimidade e interesse em agir, independentemente do Ministério Público ter recorrido, ou não. Neste sentido, no seio de jurisprudência controversa, aqui se citam alguns acórdãos (entre muitos outros, num e noutro sentido), Ac da RC de 20/12/2011, processo 305/08.2GBPBL.C1, in www.dgsi.ptO assistente tem legitimidade para recorrer, mesmo desacompanhado do Mº Pº, em relação aos crimes em que é ofendido, pedindo a agravação da pena aplicada, por ainda assim estar a colaborar na administração da justiça submetendo a decisão a exame por um tribunal superior, por a mesma não realizar o direito, na sua perspectiva.”; também o Ac da RL de 5/12/2013, processo 456/10.3JDLSB-A.L1-5, in www.dgsi.pt “I - O assistente, sendo imediata ou mediatamente atingido com o crime, adquire o estatuto processual em função de um interesse próprio, individual ou colectivo. II - Porém, a sua intervenção no processo penal, sendo embora legitimada pela ofensa ao interesse que pretende afirmar, contribui ao mesmo tempo para a realização do interesse público da boa administração da justiça, cabendo-lhe, na defesa do interesse próprio, o direito de submeter à apreciação do tribunal a sua perspectiva sobre a justeza da decisão, substituindo-se ao Ministério Público, se entender que não tomou a posição processual mais adequada, ou complementando a sua actividade, sempre no respeito pelo princípio e pela natureza do carácter público do processo penal. III - A circunstância de haver ou não recurso do Ministério Público não condiciona as possibilidades de recurso do assistente.”.
Com efeito, se o estatuto do assistente permite-lhe intervir processualmente, de forma substancial e intensa, deduzindo acusação independente da acusação do MP; oferecendo prova, pronunciando-se sobre a decretação da excecional complexidade do processo; requerer a conexão e separação de processos; pronunciar-se sobre as pretensões probatórias, requerendo a abertura de instrução como fez no caso dos autos, de forma exuberante, onde pretendeu discutir a imputação jurídica dirigida ao arguido NN (cfr.art.69 nº2 alínea a) do CPP); pode requerer a intervenção do Tribunal de júri; pode deduzir a incompetência do tribunal; direito a intervir e alegar em audiência de julgamento.
E no horizonte dessas amplas possibilidades que o legislador lhe confere sob o manto do interesse do assistente (pressuposto que permitiu a sua admissão aos autos), não podem as mesmas ser adiante anuladas pela negação do direito ao recurso. Nada permite supor que a legitimidade do assistente é somente exercida em 1ª instância. Que sentido, faz conferir poderes ao assistente para deduzir acusação subordinada, influir diretamente na prova quer na apresentação de meios de prova, quer nas instâncias em audiência, alegar a final, e depois afirmar que se recorrer quanto à medida da pena estará a exercer “vindicta privada”. De notar que o essencial dessas faculdades legais conferidas ao assistente, podem ser usadas pelo mesmo com vista ao apuramento de factos que permitam apurar dda gravidade do ilícito e da culpa, assim pretendendo uma melhor administração da justiça quando se decidir das consequências jurídicas do delito, da pena a aplicar (parte essencial da justiça penal).
Com efeito, as expressões legais que somente admitem o recurso do assistente “das decisões que o afetem” cfr.art.69 nº2 c) do CPP (aqui reporta-se a toda a miríade de despachos decisórios, só fazendo sentido atribuir o direito ao recurso, quando estiverem em causa os interesses do assistente, e não decisões que somente afetem outros ofendidos); e “decisões contra ele proferida” cfr.art.401º nº1 alínea b) do CPP respeitam ao objeto de processo que seja atinente às suas pretensões, por contraponto, à parte da sentença que não respeita a este ofendido, como será o caso em que a sentença aprecia delitos cujo bem jurídico nada tem quer com os interesses e bens jurídicos do ofendido, ou quando se reporta a arguidos cuja atuação nada têm que ver com a lesão do ofendido. Os processos frequentemente são depositários de vários interesses, consoante os delitos cometidos, crimes de perigo abstrato ou que respeitam a bens jurídicos, totalmente distintos dos bens jurídicos próprios do assistente (como o delito de falso testemunho); ou delitos que lesaram outros ofendidos que não o assistente. É esse o sentido da norma que define a legitimidade para recorrer cfr.art.401º n1 alínea b) do CPP. E com isto não se contradiz o Assento do STJ 8/99 de 30/10/97 –AR 1ª séria – de 10/8/99, que firmou jurisprudência no sentido de que «o assistente não tem legitimidade para recorrer desacompanhado do MP, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir». Aí se sustentando que “Este interesse em agir tem de ser concreto e do próprio, pelo que é insuficiente se o Tribunal, concluindo que se não está face a um mero desejo de vindicta privada, nada mais encontrar”. Muitas vezes, o objeto dos processos tem vários ofendidos e arguidos (cuja atuação não colide ou ofende o ofendido/assistente) e a apreciação sobre os interesses de outros ofendidos, não constitui uma decisão “proferida contra o assistente”, neste caso, a interposição de recurso da sua parte seria, aí sim, “um mero desejo de vindicta privada”. Porém, o recurso sobre a medida da pena de um delito cometido sobre a sua pessoa, não constitui qualquer desejo de “vendetta”, antes encontra-se a coberto dos poderes legais com que o assistente interveio sempre no processo, atuação essa, que nada tem que ver com vendetta, mas antes com o legal acompanhamento que o legislador lhe permite.
A questão sofre profunda distorção, e cava repetidas divergências na jurisprudência, sobre quem quer descobrir o sentido da expressão “decisão contra ele proferida”, num objeto de processo onde apenas existe um crime que ofendeu o assistente, mas como vimos não é esse o foco da alínea b) do nº1 do art.401º do CPP. Acresce que a medida em que uma decisão possa ser contra o assistente, depende das posições que o mesmo assumiu no processo, seja na qualificação do delito, seja na pena e sua medida. Nos pontos em que a decisão divergir, subsiste legitimidade ao assistente em interpor recurso. Claro está que, se a sentença condenar o arguido em pena de prisão na medida pretendida pelo assistente, a este falece legitimidade para interpor recurso.
Não se pode negar a possibilidade de recurso e de ver apreciada pelo Tribunal Superior um interesse e uma posição que já discutiu nos autos em primeira instância e sobretudo de um delito que foi cometido sobre a pessoa da assistente ou de familiares seus.]
Pedro Afonso Lucas
______________
[1] Cf. Germano Marques da Silva Curso de processo Penal III, pág. 325.
[2] Cf. Ac STJ. 14/7/2022 proferido no processo .811/21.3PAPTMS.P1.
[3] Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, cit. pág.288.
[4] Galvão Teles, Direito das Obrigações, cit. p.387.
[5] Ac.RP de 2/12/2010 relator (Melo Lima).
[6] [Ac.STJ de 13/07/2006, 17/06/2004 e de 29/11/2001 todos disponíveis em www.dgsi.pt].
[7] Relator Raul Borges.