Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0250059
Nº Convencional: JTRP00031973
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: SUSPENSÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
COOPERATIVA
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RP200202180250059
Data do Acordão: 02/18/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T COMÉRCIO DE V N GAIA 2J
Processo no Tribunal Recorrido: 182-A/00
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CPC95 ART67.
Sumário: O Tribunal de Comércio é incompetente em razão da matéria para conhecer de processo cautelar de suspensão de deliberações sociais de uma cooperativa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Miguel ..........., requereu, em 24.7.2000, pelo Tribunal de ........... contra:
P........
Procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, pedindo que seja ordenada a suspensão da deliberação social da requerida, tomada na Assembleia Geral Extraordinária de 19/07/2000, que aprovou a aquisição de um imóvel para ampliação das instalações escolares da “P........” - cooperativa do ramo de ensino e do 1º grau - de que o requerente é cooperador, e mandatou a Presidente da Direcção da “P.......” para as negociações e intervenção na escritura que se venha a celebrar.
Citada a Ré, apresentou a contestação de fls. 131 e segs.
Concluiu pedindo que seja indeferido o procedimento cautelar.
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Por despacho de fls.214 a 218, o Senhor Juiz considerou incompetente, em razão da matéria, o Tribunal de ..........., absolvendo a requerida da instância.
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Inconformado, recorreu o requerente que, alegando, formulou as seguintes conclusões:
1- A interpretação da al. b) do nºl, do art. 89.°, da Lei 3/99, em conjugação com o disposto na al. d), do mesmo número e artigo, não se impõe, tendo em atenção o elemento literal ou gramatical do texto legal, visto que só em duas das sete alíneas desse n.° 1 existe a referência a sociedades, sendo certo que todas as outras estatuem a competência dos Tribunais de Comércio para causas que não pressupõem a qualidade de sociedade, muito menos de comercial, ainda de comerciante ou até a característica de actos de comércio, como é o caso, a título de mero exemplo, das acções de anulação de marca.
2- A competência atribuída aos Tribunais de Comércio pelas normas constantes de muitas das alíneas do nº1 do artigo citado é para dirimir, preparar e julgar, questões respeitantes a cooperativas, como é o caso, a título de mero exemplo, de todas aquelas a que se refere o Código do Registo Comercial, tendo em atenção a alínea g) do n.° 1 do art. 89°, nomeadamente as que tenham por fim fazer declarar, reconhecer, constituir, modificar ou extinguir qualquer dos direitos referidos no art. 4° do C.R.C., as que tenham por fim a declaração de nulidade ou anulação dos actos de constituição de cooperativas, ainda as de reforma, declaração de nulidade ou anulação de um registo ou do seu cancelamento concernente a cooperativas, as de declaração de nulidade ou anulação de deliberações sociais e procedimentos cautelares para sua suspensão, bem como as de recuperação e de falência de cooperativas.
3- As cooperativas podem ser titulares de empresa e são-no quase sempre, sendo o seu carácter ou natureza empresarial algo que lhes é essencial, que as define e que corresponde à sua actividade normal e, em consequência, podem beneficiar de medidas de recuperação e/ou serem declaradas falidas no âmbito de processos para os quais são competentes os Tribunais de Comércio desde a sua criação e instalação através da Lei 37/96, concretizada pelo Decreto-Lei 40/97, ainda quando se chamavam de Recuperação da Empresa e da Falência, competência essa que se mantém incólume.
4- Os Tribunais de Comércio, que assim se passaram a chamar a partir do início de vigência da Lei 3/99, viram a sua competência em razão da matéria alargada mas não curam apenas de preparar e julgar acções referentes às sociedades comerciais, aos comerciantes ou apenas a actos de comércio, pois do que curam, como resulta da análise do texto legal, é essencialmente da empresa, de coisas e questões a ela inerentes e com ela conexas, da actividade económica dela, empresa, e de litígios de quem tem a sua titularidade, como é o caso das cooperativas.
5- Aliás, os Tribunais de Comércio são, nos termos da alínea b), do n.° 2 do citado art. 89°, competentes para preparar e julgar os recursos dos actos de recusa dos Conservadores do Registo Comercial, dos registos, nomeadamente, dos procedimentos cautelares de suspensão e das acções de anulação de deliberações sociais das cooperativas, sendo que aqueles e estas estão indubitavelmente sujeitos a registo comercial pelo que a unidade do sistema, como elemento a atender na interpretação das leis, só é alcançada se a competência para julgar os litígios da realidade registral for deferida ao mesmo Tribunal para julgar as questões sobre os direitos que aquelas inscrições registais publicitam.
6- As dissemelhanças entre a natureza jurídica das associações e das cooperativas e, especialmente, os seus regimes legais, faz com que não seja lícito argumentar com razões ou decisões judiciais àquelas referentes no que concerne a afastá-las da competência dos Tribunais de Comércio para as aplicar às cooperativas.
7- Independentemente da natureza jurídica das cooperativas, “vexata questio”, o seu regime legal é decalcado na estrutura das sociedades anónimas, sendo certo que alguns institutos desta são importados em bloco para o regime legal das cooperativas, como é o caso do regime legal da suspensão e da anulação das deliberações sociais, o que torna a subsidiariedade a que alude o art.9° do Código Cooperativo para as normas das sociedade anónimas uma questão de pudor, e a remissão directa uma realidade.
8- A disciplina legal da suspensão e anulação das deliberações sociais é praticamente a mesma no que respeita às sociedades, especialmente às anónimas, e às cooperativas, pelo que as razões que presidem à atribuição de competência especializada a um Tribunal são as mesmas em relação a ambos os tipos de deliberações sociais, o que significa que o elemento teleológico ou racional de interpretação dos textos legais aponta no sentido contrário ao decidido no despacho em crise.
9- Acresce que a interpretação restritiva do texto da alínea d) do nº1 do citado art. 89.° é ilegal visto que aquele texto não é dúbio e o pensamento legislativo nele objectivado não colide com outras disposições legais, antes tem correspondência verbal com o texto, contribuindo para a unidade do sistema, respeitando o fim da norma, os seus objectivos e até a sua génese histórica.
10- Pode e deve entender-se que a vontade do legislador objectivada naquela norma e de acordo com o texto legal foi no sentido de atribuir competência especializada a um tribunal para preparar e julgar causas sobre uma matéria específica - a suspensão e a anulação de deliberações sociais - que implica a análise, interpretação e aplicação das mesmas normas jurídicas, quer quando emanadas de sociedades comerciais, quer quando derivadas das cooperativas.
11- Para a hipótese de assim não se entender e ser mantida a decisão que julgou o Tribunal de Comércio incompetente em razão da matéria para preparar e julgar esta causa, sempre o despacho recorrido viola a Lei, em específico o disposto nos arts. 105°, nº2, e 288.°, do C.P.C., visto que absolveu a agravada da instância sem ter dado cumprimento ao disposto no nº2 do art. 105.° do C.P.C., isto é, sem ter dado a possibilidade às partes de aproveitarem os articulados e se submeterem à decisão de outro Tribunal.
Termos em que deverá o recurso ser julgado procedente, declarando-se a competência do Tribunal de ........... para preparar e julgar o procedimento cautelar em apreço, assim se revogando a decisão sob recurso ou, subsidiariamente, ordenando-se sempre o cumprimento do art. 105°, nº2, com a revogação da absolvição da instância decretada.
Não houve contra-alegações.
O Senhor Juiz sustentou o seu despacho.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Fundamentação:
A questão objecto do processo, delimitada pelo teor das conclusões do recorrente, que balizam o respectivo âmbito de conhecimento, consiste, nuclearmente, em saber se o Tribunal de Comércio recorrido, é o competente em razão da matéria, para preparar e julgar a presente Providência Cautelar de Suspensão de Deliberações Sociais.
É inquestionável que a requerida é uma cooperativa do ramo de ensino e do 1º grau, constituída por escritura pública de 18.12.1987, sendo o requerente, cooperante fundador.
Segundo o art. 5º dos seus Estatutos, a requerida tem por objecto - “A promoção da cultura e a investigação pedagógica quando autorizada e nos termos da lei, ministrando especificamente, nos termos do estatutos, os ensinos pré-escolar, básico, secundário e superior, em cursos normais, intensivos ou “ad-hoc”.
A questão da competência material tem a ver com a pretensão submetida a Juízo.
Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 207 define-a do seguinte modo:
“É a distribuição da competência por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre eles.
Na base desta competência está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram”.
A questão a dirimir no recurso, se passa pela interpretação do normativo que define o leque das competências do Tribunal de Comércio – Lei 3/99, de 13.1 – passa, sobretudo, pela qualificação normativa da realidade jurídica “cooperativa”.
Para uns, um ente diferenciável da sociedade, para outros com ela assimilável e segundos muitos um “tertium genus”, não enquadrável em qualquer das qualificações que aqueles conceitos encerram.
Sem qualquer pretensão de abordar o assunto de forma exaustiva ou académica, vejamos o essencial acerca da realidade jurídica em causa.
O art. 2°, nº1, do Código Cooperativo – Lei 51/96, de 7.9 – define:
"As cooperativas são pessoas colectivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis, que, através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles”.
O legislador, na definição legal, subtraiu-se, desde logo, a qualquer tipo de qualificação, limitando-se a afirmar que as cooperativas são “pessoas colectivas”.
Não diz que são sociedades, nem associações, preferindo para as definir, realçar os elementos que integram o conceito.
Enquanto a sociedade – art. 980º do Código Civil – é essencialmente definida pelo seu escopo lucrativo, tal fim é, geralmente, recusado às cooperativas.
O Código Comercial atribuía-lhes a designação de “sociedades cooperativas”, que tinham que adoptar, como modo de constituição, alguma das espécies previstas para as sociedades comerciais - §1º do art. 207º.
A evolução doutrinal e normativa, que se encaminhava para equiparar as cooperativas às sociedades comercias, – cfr. Anteprojecto de Lei das Sociedades Comerciais, 1970, nº6, págs. 16/17, de Ferrer Correia – com a colaboração de António Caeiro, afirmava:
“São para todos os efeitos consideradas sociedades as empresas colectivas que tenham por fim o proveito económico dos associados, embora se não proponham obter lucros a repartir por estes”.
Os ventos da história mudaram, conceitualmente, com a publicação do Código Cooperativo, aprovado pelo DL. 454/80, de 9 de Outubro, que na sequência do enquadramento constitucionalmente dado às cooperativas [e diga-se, até ao clima de incentivo ao seu crescimento (sobretudo daquelas que sobreviveram ao regime corporativo)], sentido após o 25 de Abril, e ao seu incentivo como modo de produção alternativo às sociedades, considerou no preâmbulo que a inclusão das cooperativas no Código Comercial de 1888 - “feria e fere a sensibilidade dos cooperativistas” e “esvaziava aquelas organizações populares do seu conteúdo associativo”.
Segundo Pinto Furtado , in “ Curso de Direito das Sociedades” – 3ª edição , pág. 144:
“Análoga ideia à exteriorizada em 1980 veio, no entanto, a ser ainda mais fortemente afirmada no Código Cooperativo em vigor, aprovado pela Lei n.° 51/96, de 7 de Setembro, em cujo art. 3° se proclama que as cooperativas obedecem, na sua constituição e funcionamento, aos princípios cooperativos que integram a declaração sobre a identidade cooperativa adoptada pela Aliança Cooperativa Internacional: adesão voluntária e livre; gestão democrática pelos seus membros; participação económica deles; autonomia e independência; educação, formação e informação; “intercooperação”; interesse pelo desenvolvimento da sua comunidade.
Este Código, ideologicamente muito marcado, define-as assim: “são pessoas colectivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis, que, através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins lucrativos a [rectius, à] satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais e culturais daqueles" (art. 1°-1.-(sublinhámos).
O reputado tratadista chega mesmo a considerar que - “(...) muito mais que o que o rigor científico, foi decisivamente o preconceito político que, entre nós, arrebatou tal disciplina (leia-se das cooperativas) ao diploma regulador das sociedades, que é por direito próprio, o seu real universo”.- obra citada pág. 152.
Para o citado autor, as cooperativas são sociedades que, nos casos omissos do seu regime jurídico, se regem pelo estatuto das sociedades anónimas - cfr. pág. 161, “in fine”.
Dificilmente compaginável com este entendimento é, salvo o devido respeito, o preceituado no actual Código Cooperativo cujo art. 80º estipula: - “É nula a transformação de uma cooperativa em qualquer tipo de sociedade comercial, sendo também feridos de nulidade os actos que procurem ilidir esta proibição legal”.
Este normativo é expressão manifesta da natureza não societária das cooperativas- cfr. Coutinho de Abreu, in “Curso de Direito Comercial”- II. Volume- edição de Janeiro de 2002, págs. 28/29.
A Constituição da República - art. 82º, nºs 1 a 3 - afirma a coexistência de três sectores de propriedade dos meios de produção: público, privado e “cooperativo e social”.
O seu nº4 precisa o âmbito deste sector, nos seguintes termos:
“O sector cooperativo e social compreende especificamente:
a) - Os meios de produção possuídos e geridos por cooperativas, em obediência aos princípios cooperativos, sem prejuízo das especificidades estabelecidas na lei para as cooperativas com participação pública, justificadas pela sua especial natureza;
b) - Os meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais;
c) - Os meios de produção objecto de exploração colectiva por trabalhadores;
d) - Os meios de produção possuídos e geridos por pessoas colectivas, sem carácter lucrativo, que tenham como principal objectivo a solidariedade social, designadamente entidades de natureza mutualista”.
Opinião contrária à de Pinto Furtado, é a de Coutinho de Abreu, in “Da Empresarialidade - As Empresas no Direito”, Colecção Teses – Almedina - quando escreve.
“Característico das cooperativas é serem simultaneamente associações e empresas: eis um asserto que, nado (parece) em França há sessenta anos se tem reproduzido em escritos lusos.
A cooperativa "não é um agrupamento impessoal de capital: é no sentido pleno do termo uma associação de pessoas"; é uma associação democrática, onde vigora a regra "um homem, um voto" .
Por outro lado, a empresa cooperativa é criada e gerida para satisfazer directamente as necessidades dos associados--utentes: é uma "empresa de serviço" (não uma "empresa de relação- como a capitalista - gerida “em função da soma dos lucros a retirar”, e em que a "satisfação das necessidades dos utentes é uma condição, não é um fim". – págs. 104-105.
“Concluindo: não andou mal o legislador quando na noção de cooperativa introduziu a expressão "sem fins lucrativos”.
Sendo assim, as cooperativas não devem ser qualificadas como "sociedades”.
Recebiam essa qualificação em legislação anterior ao Código Cooperativo.
Mas já não neste código podemos dizer que as cooperativas são hoje pessoas colectivas privadas que se situam entre as associações de regime geral (afastando-se em vários pontos do regime para estas previsto no Código Civil) e as sociedades (...)”.págs. 183/184.
O Código Cooperativo, actual, no seu art. 3º, adopta e integra os “sete princípios cooperativos” que são: 1º- adesão voluntária e livre, “porta aberta”; 2º- gestão democrática; 3º- participação económica dos seus membros; 4º- autonomia e independência; 5º- educação formação e informação; 6º- intercooperação; 7º - interesse pela comunidade.
O facto de o art. 9º do Código Cooperativo vigente, estabelecer que as suas lacunas são supridas pelo que consta do CSC, nomeadamente, com aplicação dos preceitos das sociedades anónimas, não é argumento decisivo para se concluir que as cooperativas, pelo menos, têm afinidades relevantes com as sociedades, porquanto o citado normativo ressalva, antes de mais, a aplicação prioritária da “legislação complementar aplicável aos diversos ramos do sector cooperativo” e só depois aponta o citado critério subsidiário do CSC, e ainda com uma restrição - “...na medida em que não desrespeitem os princípios cooperativos”.
Esta ressalva e a prioridade elencada no colmatar de lacunas, com o recurso “residual” ao regime societário das sociedades anónimas, de modo algum constitui argumento a favor dos que pretendem que as cooperativas sejam sociedades, ainda que peculiares.
Finalmente, em amparo da tese que sufragamos de que as cooperativas não são sociedades, citaremos Rui Namorado in “Introdução ao Direito Cooperativo-Para Uma Expressão Jurídica da Cooperatividade” - Almedina 2000 -, quando, a propósito da natureza jurídica das cooperativas no direito português actual escreve, pág. 255:
“Toda a estrutura jurídica da cooperativa, impregnada pelo imperativo de se conformar com os princípios cooperativos, aponta no mesmo sentido. Pondere-se nomeadamente, a variabilidade do capital e do número de cooperadores, sem necessidade de se alterarem os estatutos.
São características incompatíveis com a lucratividade própria das sociedades comerciais, uma vez que constituiriam, se fossem admitidas em conjunto com ela, elementos de permanente indeterminação do montante dos lucros, se estes se concebessem e apurassem numa lógica de remuneração do capital”.
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Mas, mesmo que as cooperativas não possam, a nosso ver, ser qualificadas como sociedades comerciais, nem mesmo como sociedades, será que a questão “sub-judice” não cai no âmbito da competência material do Tribunal de Comércio?
Estatui o art. 67º do Código de Processo Civil – “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada”.
A vigente Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - LOFTJ- Lei 3/99, de 13 de Janeiro, criou os Tribunais de Comércio em substituição dos Tribunais de Recuperação de Empresa e Falência - arts. 78º e 89º do citado diploma.
Os Tribunais de Comércio são tribunais de competência especializada - arts. 78º, e) e 89º da LOFTJ.
Como pode ler-se, in “A Nova Competência dos Tribunais Civis”, de Miguel Teixeira de Sousa, Edições Lex, 1999, págs. 31-32:
“A competência material dos tribunais civis é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual.
Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal civil todas as causas cujo objecto seja uma situação jurídica regulada pelo direito privado, nomeadamente civil ou comercial (...).
(...) Segundo o critério de competência residual, incluem-se na competência dos tribunais civis todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum outro tribunal.
Isto é: os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual (art. 211º, nº1, da Constituição da república Portuguesa; art. 18º, nº1, da LOFTJ) e no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais civis aqueles que possuem a competência residual - (cfr. arts. 34º e 57º LOFTJ)”.
Compete aos Tribunais de Comércio preparar e julgar “as acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais”- art. 89º, nº1, d) da LOFTJ, competência que, di-lo expressamente, o seu nº3 abrange os respectivos “incidentes e apensos”.
Os procedimentos cautelares são processos urgentes que visam uma rápida e provisória composição de litígios, que serão definitivamente definidos na acção própria.
Podem ser instaurados, preliminarmente ou durante a pendência de acções declarativas ou executivas – art. 383º, nº1, do Código de Processo Civil.
O procedimento cautelar tem, uma natureza acessória, em termos de competência material, relativamente ao processo principal, constituindo um processo que “gravita” na dependência dele (é a ele apensado, o que exprime esse carácter de seguimento ou dependência).
O art. 89º da LOFTJ estabelece a competência dos Tribunais de Comércio nos seguintes termos:
“1. Compete aos tribunais de comércio preparar e julgar:
a) Os processos especiais de recuperação da empresa e de falência;
b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As acções de dissolução e de liquidação judicial de sociedades;
j) As acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial;
g) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial;
h) As acções de nulidade e de anulação previstas no Código da Propriedade Industrial.
2. Compete ainda aos tribunais de comércio julgar:
a) Os recursos de decisões que, nos termos previstos no Código da Propriedade Industrial, concedam, recusem ou tenham por efeito a extinção de qualquer dos direitos privativos nele previstos;
b) Os recursos dos despachos dos conservadores do registo comercial;
c) Os recursos das decisões do Conselho da Concorrência referidas no n.° 1 do artigo 27.° do Decreto-Lei n.° 371 /93, de 29 de Outubro, e os recursos das decisões do Conselho da Concorrência e da Direcção-Geral do Comércio e da Concorrência, em processo de contra--ordenação, nos termos do artigo 38.° do mesmo diploma.
3. A competência a que se refere o n.° 1 abrange os respectivos incidentes e apensos”.
O agravante sustenta que, do elenco de competências constante do transcrito normativo, resulta a competência material dos Tribunais de Comércio, para conhecer de matérias tão diferentes, como a de recursos de actos de recusa de conservadores do registo comercial, revela que o critério restritivo adoptado na interpretação alínea d) do seu nº1 é ilegal, porquanto o legislador pretendeu que os Tribunais de Comércio tivessem competência para conhecer, para lá de acções referentes às sociedades comerciais, das questões relativas “aos comerciantes e aos actos de comércio...”, que tratasse, “essencialmente da empresa, de coisas e questões a ela inerentes e com elas conexas, da actividade económica dela, e de litígios de quem tem a sua titularidade, como é o caso das cooperativas”- cfr. conclusão 4ª.
A questão está em saber se devem interpretar-se, em conjugação, as alíneas b) e d) do nº1 do citado art. 89º, porquanto se assim se fizer, pode concluir-se que a competência definida na b) – “conhecer das acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade” - está relacionada com as acções relativas à suspensão e anulação de deliberações sociais...apenas de sociedades, assim se interpretando, restritivamente, a al. d).
O núcleo essencial da competência material dos Tribunais de Comércio, sem dúvida que versa sobre conflitos envolvendo sociedades – cfr. als. a), b), e) e f) – onde, expressamente, se utiliza a palavra “sociedade”.
Os Tribunais de Comércio não foram criados para conhecer todos e quaisquer conflitos envolvendo entidades que possam ser consideradas entes colectivos com actuação empresarial, v.g. cooperativas, associações sem fim lucrativo, etc, sob pena de se frustar a especialização que lei lhe quis emprestar.
Os trabalhos preparatórios, assim como a “mens legis”, são relevantes para conhecer a “ratio legis” do preceito do art. 89º da Lei 3/99, de 13 de Janeiro – art. 9º,nº1, do Código Civil.
O intérprete deve socorrer-se desses elementos para, transcendendo a simples análise gramatical ou lógica dos textos legais, descobrir dentro dos vários sentidos possíveis da lei, o seu “sentido decisivo” – cfr. Manuel de Andrade, “Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação da Lei”, 2ª edição, págs. 9 e 10.
Os Tribunais de Comércio foram criados com base na Proposta de Lei nº182/VII, in D.R., IIª Série, de 12.6.1998, onde (pág. 1279) se pode ler:
- “A criação (...) dos tribunais de recuperação da empresa e de falência (...) tem--se revelado positiva, na prática.
É altura de lhes ampliar prudentemente a competência em razão da matéria, não para se reatar o antigo modelo dos clássicos tribunais de comércio, mas fazendo-os actuar em questões para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade.
Assim, (...) os tribunais de comércio, serão competentes para as acções relativas ao contencioso das sociedades comerciais, ao contencioso da propriedade industrial, às acções e recursos previstos no Código de Registo Comercial, aos recursos das decisões em processo de contra-ordenação no âmbito da defesa e promoção da concorrência”-(destaque nosso).
Como se cita no douto despacho de sustentação:
- “Também o Sr. Ministro da Justiça de então, na discussão da proposta de lei, referiu expressamente aos Srs. Deputados da Assembleia da República que se pretendia alargar a competência dos tribunais de recuperação da empresa e de falência para outras matérias relativas à actividade empresarial, (...) consagrar-se-á a sua competência para todas as acções de direito societário, de propriedade industrial, para as acções respeitantes ao registo comercial, bem como para os recursos, nomeadamente, os interpostos das decisões do conselho da concorrência (...) trata-se de criar tribunais onde serão tratadas as questões mais complexas respeitantes à actividade empresarial, designadamente de direito societário, de concorrência e de propriedade industrial - (cfr. D.R., 18 de Setembro de 1998, I Série, n° 2, pág. 58 )”.
Ora, destas afirmações resulta claro que a razão que presidiu à ampliação da competência material dos Tribunais de Comércio foi essencialmente o “contencioso das sociedades comercias”.
Porque as cooperativas não são sociedades, nem sequer sociedades comerciais, por não visarem fins lucrativos, o procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais que lhes respeite, não cabe no âmbito da competência dos referidos Tribunais.
“(...) As Cooperativas não visando lucro não podem considerar-se sociedades”. - Ac. do STJ, de 28.3.1996, CJSTJ, 1996, I, 165.
Neste sentido, Ac. desta Relação de, 24.5.2001, in CJ, Ano XXVI, Tomo III, 204.
Por tal, não merece censura o despacho agravado.
Finalmente, o agravante censura a decisão, pelo facto de o Senhor Juiz não ter dado às partes a possibilidade conferida pelo nº2 do art. 105º do Código de Processo Civil.
Tal normativo estatui- “Se a incompetência só for decretada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que, estando as partes de acordo sobre o aproveitamento, o autor requeira a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta”.
O objectivo do preceito é, claramente, de economia processual – tempo e meios - estando o preceito redigido a pensar em “acção” em sentido estrito, mas aplicável ao procedimento cautelar por flagrante identidade de razão.
Todavia, não cabia ao Julgador despoletar o “processo de aproveitamento” dos articulados, decidida que foi – até sem trânsito em julgado – a decisão que absolveu a requerida da instância, por incompetência “ratione materiae” do Tribunal de Comércio.
Tal dependeria, em primeiro lugar, do requerente, “in casu”, do procedimento cautelar; depois, pressupõe um acordo dos pleiteantes, no sentido da remessa ao Tribunal considerado competente, facto que deve ser comunicado ao Juiz.
Estando as partes de acordo, estarão a tempo, após a baixa do processo, e do trânsito em julgado desta decisão, de adoptar o procedimento que o normativo prevê.
Ao omitir qualquer convite ou sugestão às partes, no sentido de “encaminharem”, querendo, o processo para o Tribunal em que a acção deveria ter sido proposta, o Ex.mo Julgador não violou a Lei.
O despacho não merece censura.
Decisão:
Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas pelo agravante.
Porto, 18 de Fevereiro de 2002
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale