Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5337/21.2T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
DELIBERAÇÃO SOCIAL RENOVATÓRIA
EFEITOS
Nº do Documento: RP202401165337/21.2MTS.P1
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A renovação de uma deliberação social corresponde a uma nova deliberação, de conteúdo idêntico à primeira, mas expurgada do vício que a afectava.
II – Do artigo 62.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, decorre que a renovação de deliberações anuláveis tem, por regra, efeito retroactivo, que apenas é afastado quando, ao abrigo dessa norma, o sócio que tenha um interesse atendível obtenha a anulação da primeira deliberação relativamente ao período anterior à deliberação renovatória.
III – Quando a deliberação renovatória tem efeitos retroactivos, não estamos perante uma mera sucessão de deliberações, mas perante uma verdadeira substituição da deliberação renovada. Por força deste efeito substitutivo, a deliberação renovatória ocupa o lugar da deliberação renovada e todos os efeitos se passam a reportar à nova deliberação.
IV – Consequentemente, deixa de ser possível obter ganho de causa na acção que visa a impugnação da deliberação substituída, o que determina a sua improcedência.
V – Compete à parte que pretende beneficiar da renovação da deliberação anulável o ónus de alegar que renovou a deliberação anulável mediante outra deliberação, em conformidade com o primeiro segmento da norma do artigo 62.º, n.º 2, do CSC; compete à parte que pretende obstar aos efeitos dessa renovação alegar a invalidade da segunda deliberação, em conformidade com o segundo segmento da mesma norma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 5337/21.2T8MTS.P1



Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório

AA, residente na ..., ... ..., intentou a presente acção declarativa comum contra Associação de Socorros Mútuos de ..., com sede na Rua ... de Infesta, ..., deduzindo o seguinte pedido:
«Nestes termos e nos demais de direito:
a) Deve ser declarado nulo ou anulado todo o processo disciplinar.
b) Deve ser declarado que a suspensão do autor foi ilegal.
c) Deve declarar-se que não foi cumprido o prazo e formalidades previstas no artigo 36 dos Estatutos da ASM... para a convocação da Assembleia Geral Extraordinária realizada no dia 28.05.2021.
d) Deve declarar-se nulas ou anuladas todas as deliberações adoptadas na Assembleia Geral Extraordinária de 28.05.2021.
e) Deve declarar-se nula ou anulável a deliberação social adoptada na Assembleia Geral de 28/05/2021 que decide ratificar a suspensão do autor.
f) Repondo-lhe todos os direitos e deveres como associado consagrados no artº 15 dos Estatutos.
g) Repondo-lhe todos os direitos e deveres como vogal do Conselho de Administração da ré, cargo para o qual foi eleito pelos seus associados.
h) Deve a Ré ser condenada a pagar ao autor pelos danos patrimoniais causados pela suspensão decretada em 13.07.2021 as despesas por este suportadas relativamente às consultas médicas pagas no montante de 81,00€
i) Deve ser a ré condenada a pagar ao autor todas as despesas que foram e/ou venham a ser suportadas pelo autor inerentes à defesa dos seus direitos como associado e como vogal da Ré, nomeadamente de honorários a advogado e outras despesas até final do processo, a liquidar em incidente de liquidação de sentença.
j) Deve ainda a Ré ser condenada a pagar ao autor uma compensação monetária por danos morais causados ao autor desde o dia da suspensão (13.01.2021) até ao termo da presente acção, nunca inferior a 10.000,00€ (dez mil euros).
k) Deve ainda a Ré ser condenada a pagar ao autor, desde a sentença de 13/07/2021 até à data em que se verificar o seu cumprimento, a sanção pecuniária compulsória de €200,00 (duzentos euros) por cada dia de atraso no cumprimento do determinado na providência cautelar.
l) Bem como deve ser condenada no pagamento de juros sobre todas as quantias desde a citação.
m) E na sanção pecuniária geral e automática desde o trânsito em julgado, no montante de 5% por cento ao ano.
n) Dever ser a Ré condenada no pagamento de custas de parte e demais de lei».
Para sustentar os pedidos formulados sob as alíneas c) a e) – únicos que, como veremos, cumpre decidir nestes autos – alegou, em essência, o seguinte:
- A convocatória para a assembleia é nula porque não foi publicitada com os 15 dias de antecedência que estão definidos nos Estatutos;
- A convocatória apenas foi publicitada num jornal e deveria ter sido em dois;
- Foi violado o direito de defesa do A., pois que este não esteve presente e não esteve porque estava suspenso do exercício dos direitos de associado.
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A ré apresentou contestação onde, para além arguir a ineptidão da petição inicial, o erro na forma de processo e a litispendência, alegou que, apesar das várias questões suscitadas pelo autor a respeito da legalidade dos actos da assembleia geral da ré de 28.05.2021, os mesmos foram alvo «de retificação em Assembleia Geral do dia 20-21-2021, sanado assim, toda e qualquer irregularidade, onde foi essa retificação (sanação de qualquer vício) aprovada por UNANIMIDADE dos Associados (Cfr. Doc. 10), o que só este documento/ decisão, aniquila todos os pedidos do aqui Autor».
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Mediante convite do Tribunal, o autor pronunciou-se sobre as excepções dilatórias de ineptidão da petição inicial, erro na forma de processo e de litispendência alegadas pela ré na sua contestação, pugnando pela sua improcedência.
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Por decisão proferida na audiência prévia realizada em 27.06.2023, foi a ré absolvida da instância, com fundamento em litispendência, no que concerne aos pedidos formulados sob as alíneas a), b) e f) a m), prosseguindo os autos apenas para apreciação dos seguintes pedidos (correspondentes aos originariamente formulados sob as alíneas c) a e)):
«a) Que se declare que não foi cumprido o prazo e formalidades previstas nos Estatutos da R. para a convocatória da assembleia realizada em 28/05/2021.
b) Que se declarem nulas ou anuláveis todas as deliberações dessa assembleia.
c) Que se declare nula ou anulável a deliberação dessa assembleia que ratificou a sua suspensão».
Acto contínuo, foi comunicado às partes o seguinte:
«O Tribunal entende poder proferir de imediato decisão de mérito sobre esta matéria, nos termos do art. 595º, nº1, alínea b), do C. P. Civil.
Com efeito, após a assembleia geral da R. de 28/05/2021 foi realizada uma outra, em 20/12/2021 e na qual “foi colocada à votação a ratificação das deliberações tomadas pela assembleia geral do dia 28 de Maio de 2021”, tendo essa deliberação sido aprovada “por unanimidade”, sendo certo que, nessa data, o A. não estava impedido de a ela comparecer pois que estava em vigor o acordo judicial alcançado no processo cautelar 8226/21.7T8PRT.
Esta questão foi suscitada pela R. no art. 74º da contestação.
Assim, concede-se ao A. o direito de se pronunciar sobre esta questão, considerando que no despacho de 21/06/2022 apenas lhe foi permitido o direito de contraditório sobre as excepções referidas nesse despacho, de natureza dilatória e não peremptória como é a presente».
Pelo mandatário do autor foi, então, solicitado um prazo de 10 dias para se pronunciar relativamente ao artigo 74.º da contestação, o qual lhe foi concedido
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Em 05.07.2023 o autor apresentou a sua pronúncia, alegando o seguinte: a “rectificação” (termo efectivamente usado no artigo 74.º da contestação, mas que o tribunal a quo entendeu como “ratificação”, o que o autor optou por ignorar) de 20.12.2021 não tem o dom de corrigir os erros cometidos ou saná-los; a ré não alegou que a assembleia realizada nesta data tivesse sido convocada em dois jornais, como mandam os Estatutos, pelo que se mantêm os erros e vícios alegados; os actos anuláveis são sanáveis por confirmação, nos termos do artigo 288.º do CC, mas esta confirmação, por se tratar da renúncia ao direito potestativo de invocar a invalidade, compete apenas à pessoa a quem pertence o direito de anulação; o negócio produz os seus efeitos enquanto não for anulado; a nulidade não é susceptível de confirmação; a confirmação está sujeita aos requisitos gerais da validade dos negócios jurídicos, estando sujeita à foram legal exigida para os próprios negócios jurídicos que pretende sanar; não evita a procedência da acção anulatória o facto de, em nova deliberação, se confirmar a 1.ª deliberação e não tem efeito retroactivo a posteriormente tomada no mesmo sentido com a observância da lei; a confirmação não é susceptível de afectar direitos de terceiros, como o do titular do direito à anulação; ratificar é confirmar o que foi feito, é validar, comprovar; a ratificação tem de ser um acto pessoal e expresso de concordância e de assunção do acto praticado em seu nome por terceiro; assim, o que a ré fez nada vale.
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Foi então proferida decisão, que termina com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, considerando as deliberações tomadas na assembleia da R. de 20/12/2021 em relação às quais o A. nenhum vício invocou, o Tribunal julga improcedente a acção no que se reporta aos fundamentos que visam a declaração de nulidade ou anulabilidade das deliberações tomadas na assembleia da R. realizada em 28/05/2021, absolvendo a R. Associação Socorros Mútuos ... dos pedidos que foram formulados pelo A. AA e relativos a essas deliberações.
Custas, nesta parte, pela R., nos termos do art. 536º do C. P. Civil., pois que a assembleia de Dezembro de 2021 é posterior à propositura desta acção, sendo o decaimento da R. de 30.000,01 euros, considerando os termos em que foi fixado o valor da acção».
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Inconformado, o autor apelou desta decisão, apresentando a respectiva alegação, que termina com as seguintes conclusões:
«1. Não consta que a Assembleia de “rectificação” (sic) tivesse sido convocada em dois jornais como mandam os Estatutos, artigo 36, e com a antecedência legal, pelo que se mantêm os erros e vícios alegados.
2. A ré nada alegou a esse respeito.
3. Se forem consultadas as anotações ao artigo 288, nº 2, verifica-se que o negócio produz os seus efeitos enquanto não for anulado, que a nulidade não é susceptível de confirmação, que a confirmação está sujeita aos requisitos gerais da validade dos negócios jurídicos, que tem de ter a foram legal exigida para os próprios negócios jurídicos que pretende sanar.
4. Não evita a procedência da acção anulatória o facto de haver nova deliberação a confirmar a 1ª deliberação e não tem efeito retroactivo a posteriormente tomada no mesmo sentido com a observância da lei. Ac do STJ de 26/11/1971, BMJ 211 e RT 90º, 155.
5. A confirmação não é susceptível de afectar direitos de terceiros, como o do titular do direito à anulação. (STJ, 14/12/1994, BMJ 442,144)
6. A ratificação tem de ser um acto pessoal e expresso de concordância e de assunção do acto praticado em seu nome por terceiro.
7. Nos termos do artigo 341 e seguintes do CC, e artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem compete à ré alegar e provar a existência de todos os requisitos da nova Assembleia ou das suas deliberações, alegando e provando que estavam conformes aos Estatutos e lei.
8. Com efeito, os Estatutos dizem no artigo 36, nos autos, que as Assembleias devem ser convocadas com 15 dias de antecedência e publicadas num jornal local e outro nacional.
9. O autor não pode saber qual foi o jornal local e quais os outros em que teria sido publicada a convocatória, pois: A) Tinha de pesquisar em todos os jornais nacionais e locais publicados nos últimos 15 dias B) E isso é manifestamente impossível, difícil, e C) é um facto negativo, alegar que não foi assim publicada/convocada.
10. Por outro lado, os factos negativos não se provam.
11. E por outro, só a ré é que o sabe e tem os documentos na sua posse.
12. Nessas circunstâncias diz o TEDH que há violação do artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: direito a um processo equitativo, porque o tribunal obriga os requerentes a fazer prova do impossível ou difícil.
13. O que terá feito a ré: Procedeu a rectificação, como diz, ratificação, renovação ou confirmação?
14. É que são 4 conceitos diferentes. Sem se saber o que a ré fez não se lhe pode responder.
15. O acórdão da Relação do Porto que fundamenta a sentença diz o contrário da mesma sentença.
16. Aliás, a mesma não alegou nem provou que cumpriu as formalidades legais exigíveis para o acto.
17. O tribunal considerou que a invocação da rectificação (sic) era uma excepção peremptória.
18. Porém, na contestação, a ré não invocou qualquer excepção relativa à alegada rectificação (sic), devendo faze-lo nos termos do artigo 572, alínea c) do CPC.
19. No seu devido tempo, o autor só foi notificado para responder às excepções.
20. Como a ré não invocou essa excepção, não foi respondido ao artigo 74º.
21. Assim, o autor foi posto pelo tribunal perante factos consumados.
22. E de nada servia agora a resposta pois a Senhora Juíza disse na audiência que ia conhecer dos pedidos restantes e mesmo antes do autor responder.
23. Ao dizê-lo, violou o artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que consagra o princípio do contraditório e igualdade de armas e o princípio da imparcialidade também aí constante.
24. Pelo que a acção tem de continuar os seus termos.
25. A sentença viola o artigo 341 e seguintes do CC e artigo 572, alínea c) do CPC.
26. Bem como o artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
27. Que deveriam ser interpretados e aplicados no sentido das conclusões anteriores.
28. Pelo que deve a sentença ser revogada, ser anulada, e mandando-se prosseguir a acção nos precisos termos da PI».
A ré não respondeu à alegação da recorrente.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, a única questão a decidir consiste em saber se a deliberação da assembleia geral da ré de 20.12.2021, que ratificou as deliberações da assembleia geral de 28.05.2021, importa a improcedência dos pedidos aqui formulados de declaração da nulidade ou de anulabilidade destas deliberações de 28.05.2021, conforme decidiu o tribunal a quo, ou se a acção deverá prosseguir para julgamento relativamente e tais pedidos, conforme pretende o recorrente.
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III. Fundamentação

A. Factos Provados
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância (renumerando-se aqui o último ponto, que na decisão recorrida repete o número 4):
1 – Em assembleia geral da Associação R. realizada em 28/05/2021 foi deliberado:
a) Aprovar a acta referente à assembleia anterior por unanimidade.
b) Rejeitar o recurso apresentado pelo aqui A., com 45 votos a favor, relativo à sua suspensão, validando-se a suspensão decretada.
c) Aprovar por maioria de 42 votos a favor e 2 votos contra a decisão de expulsão do A..
2 – Na providência cautelar que está apensa a estes autos, por Acórdão proferido em 21/10/2021, foi proferida a seguinte decisão:
“Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a exceção da litispendência invocada e julgar improcedente o recurso interposto, mantendo o sentido decisório da decisão recorrida, cujo ponto 1, passa a ter a seguinte redacção:
1) Determina-se a suspensão da execução da deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária da Requerida de 28/05/2021 que decidiu rejeitar o recurso apresentado pelo aqui requerente-recorrido relativamente à deliberação do Conselho de Administração pela qual, o requerente, associado nº2859, foi suspenso, ratificando a deliberação do Conselho de Administração que suspendeu o requerente”.
3 - A convocatória para essa assembleia foi publicada no Jornal de Notícias no dia 14/05/2021, com a ordem de trabalhos referida no art. 242º da petição inicial e cujo teor aqui se considera reproduzida.
4 - Em assembleia geral da Associação R. realizada no dia 20/12/2021 foi deliberado:
a) Aprovar a acta referente à assembleia geral anterior com três abstenções;
b) Ratificar as deliberações tomadas pela assembleia geral de 28 de Maio de 2021, constando da acta que “pelo presidente da mesa foi explicado que existia uma interpretação de que a publicação de convocatória nos jornais para a assembleia geral da associação teria que ser com a antecedência de 15 dias em relação à data da sua realização. Explicou também que essa não é a sua opinião, pois entende que a publicação no jornal é apenas para publicitar a convocatória que é efectuada essa sim com os tais 15 dias de antecedência. No entanto, com o objectivo de sanar eventuais irregularidades, na óptica de quem tem tal interpretação, entende-se ser vantajoso a própria assembleia ter a possibilidade agora de ratificar a decisão tomada, sem esse eventual erro formal, caso assim o entenda, já que a presente reunião foi convocada, publicitada e devidamente publicada em jornal com a antecedência dos referidos 15 dias.
Após a referida explicação, foram colocadas algumas questões rápidas que foram respondidas pelo presidente da mesa.
Colocado á votação o ponto 2 o mesmo foi aprovado por unanimidade”.
c) Apreciação e votação do plano de acção para o ano de 2022, acompanhado do parecer do Conselho Fiscal, aprovado por unanimidade.
d) Apreciação de adesão à conta corrente Banco 1... com garantia de Fundo Europeu de investimento sem hipoteca, tendo sido aprovado por unanimidade com a redacção “apreciação e votação de adesão à linha de crédito Banco 1..., ou, em alternativa, um acréscimo de 100.000,00 euros à linha de apoio ao Sector Social, já efectuado através do banco Banco 2..., ou outra entidade bancária mais vantajosa”.
5 – No âmbito do acordo realizado na providência cautelar 8226/21.7T8PRT, em 02/09/2021, e homologado por sentença de 23/09/2021, A. e R. acordaram que “o requerente terá todos os direitos inerente à qualidade de associado, conforme previsto nos estatutos da requerida e no regulamento de benefícios, mediante o pagamento das respectivas quotas”.
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B. O Direito
1. A decisão recorrida, tendo em conta a procedência parcial da excepção de litispendência que havia sido arguida pela ré, cingiu o thema decidendum à apreciação da nulidade ou anulabilidade das deliberações tomadas na assembleia geral da ré de 28.05.2021 (afirmando que se mantêm por apreciar apenas os seguintes pedidos: «a) Que se declare que não foi cumprido o prazo e formalidades previstas nos Estatutos da R. para a convocatória da assembleia realizada em 28/05/2021. b) Que se declarem nulas ou anuláveis todas as deliberações dessa assembleia. c) Que se declare nula ou anulável a deliberação dessa assembleia que ratificou a sua suspensão»; acrescentando que o primeiro não é um pedido autónomo, mas apenas um dos fundamentos da alegada nulidade ou anulabilidade das deliberações tomadas).
O autor alicerçou esta arguição nos seguintes fundamentos: «a) A convocatória para a assembleia é nula porque não foi publicitada com os 15 dias de antecedência que estão definidos nos Estatutos; b) A convocatória apenas foi publicitada num jornal e deveria ter sido em dois. c) Foi violado o direito de defesa do A., pois que este não esteve presente e não esteve porque estava suspenso do exercício dos direitos de associado».
A esta alegação a ré apenas opôs, na sua contestação, que os vícios da referida assembleia geral foram ratificados na assembleia realizada no dia 20.12.2021.
Em face da pronúncia do autor relativamente a esta defesa da ré, o tribunal a quo entendeu que «a única questão que se coloca é saber se as deliberações de Dezembro de 2021, em relação às quais nenhum vício foi invocado pelo A., tornam irrelevantes os vícios que o A. alegava colocarem em causa todas as deliberações de Maio de 2021», tendo concluído que sim, invocando a existência de «vasta jurisprudência que, de forma clara, expressa o entendimento de que, renovadas as deliberações, e não sendo estas colocadas em causa, com novos fundamentos de invalidade (que podem ou não ser os mesmos), tal implica necessariamente a improcedência da acção em que se discuta a validade das primeiras».
É contra este entendimento que se insurge o recorrente, o qual não vê razões que obstem à declaração dos vícios que enfermam as deliberações tomadas na assembleia geral da recorrida de 28 de Maio de 2021.
2. A decisão recorrida começa por evidenciar que o autor invocou de forma absolutamente indistinta os vícios da nulidade e da anulabilidade, pedindo a sua declaração alternativa, sem que se verifiquem os pressupostos da dedução de pedidos alternativos (cfr. artigo 553.º do CPC), acrescentando que apenas faria sentido a dedução de tais pedidos a título subsidiário (cfr. artigo 554.º do CPC).
Não obstante a apontada inconsistência jurídica da alegação, o tribunal a quo, aderindo à fundamentação esgrimida na decisão do procedimento cautelar apenso, considerou que os vícios que afectam as deliberações da assembleia realizada em Maio de 2021 – tanto os respeitantes às formalidades da convocatória para aquela assembleia, como o relativo ao impedimento da participação do autor na mesma assembleia – conduziriam à anulabilidade das respectivas deliberações, por força do disposto nos artigos 36.º, n.º 1, 39.º, n.º 3, e 41.º dos Estatutos da ré, e nos artigos 177.º e 178.º, n.º 1, do Código Civil (CC), não existindo qualquer fundamento invocado pelo autor que seja gerador da nulidade das referidas deliberações.
Em sede de recurso, o recorrente limitou-se a afirmar, na motivação da sua alegação, que «o Tribunal superior julgará da bondade do raciocínio do tribunal nas primeiras páginas da sentença», mas sem nunca questionar o enquadramento legal antes descrito, nem sequer abordando esta questão nas conclusões da alegação.
De todo o modo, porque a falta de impugnação do enquadramento jurídico preconizado na decisão recorrida não o torna vinculativo para este tribunal ad quem, que naturalmente mantém a sua total liberdade no que concerne a tal enquadramento, sempre se dirá que merece a nossa concordância a afirmação de que os vícios que afectam as deliberações impugnadas nesta acção nunca seriam susceptíveis de gerar a nulidade das mesmas, mas tão somente a sua anulabilidade, pelas razões que passamos a expor.
A actividade da ré, enquanto associação mutualista, é regulada pelo Código das Associações Mutualistas (CAM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2018, de 2 de Agosto (tendo em conta o regime transitório previsto neste Decreto-Lei) e, naturalmente, pelos seus Estatutos. Subsidiariamente, por força do disposto no artigo 145.º do CAM, é regulada pela seguinte legislação: o estatuto das instituições particulares de solidariedade social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro (cfr. artigo 76.º deste diploma), e a respectiva legislação complementar; o Código Civil, designadamente o disposto nos artigos 157.º e seguintes relativamente às pessoas colectivas, em especial o disposto nos artigos 167.º e seguintes relativamente às associações; o disposto na legislação aplicável aos regimes complementares de iniciativa coletiva e individual e, na ausência desta, o disposto na lei que regula os fundos de pensões, em matéria de gestão de ativos das associações mutualistas.
Como se escreve no ac. do TRP, de 14.11.2022, citado na decisão recorrida (proc. n.º 4424/21.1T8PRT.P1, rel. Fátima Andrade, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da fonte), quando se justifique, por ausência de regulamentação, são-lhe ainda «aplicáveis as regras relativas às sociedades comerciais previstas no C.S. Comerciais, nomeadamente e no que ora releva nas regras gerais constantes dos artigos 53.º e seguintes relativos às deliberações dos sócios». No mesmo sentido cita-se, naquele aresto, o ac. do TRL, de 17/12/2009 (proc. n.º 1541/08.7TVLSB-A.L1-2, rel. Teresa Albuquerque), o ac. do TRE, de 17/01/2019 (proc. n.º 3275/17.2T8STR.E1, rel. Maria Domingas Simões) e, na doutrina, Menezes de Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português - Parte Geral, 2004, III, p.566), acrescentando-se que este autor «justifica tal recurso com a proximidade dos valores se “tivermos em conta um fenómeno capital (…): o de boa parte das regras relativas a associações e fundações ter tido a sua origem no regime das sociedades anónimas. Nestas condições, não há obstáculos de princípio à aplicação analógica, no campo civil, das regras relativas a sociedades comerciais. O recurso ao Direito Comercial implica, todavia, a presença dos diversos requisitos de que depende a analogia: o caso omisso; o facto de esse caso dever ter, à luz do sistema, uma solução jurídico normativa; a analogia de situações; a presença de uma norma comercial aplicável ao caso análogo. Verificadas as condições, as pessoas coletivas civis podem recorrer ao inesgotável manancial representado pelo Direito das sociedades comerciais. E como estas, a título subsidiário, também podem recorrer às sociedades civis e ao Direito das pessoas coletivas, fecha-se o círculo: mais uma vez, reforçada fica a unidade do Direito privado português”».
Dispõe assim o artigo 114.º do CAM:
Nulidade e anulabilidade de deliberações
1 – São nulas as deliberações dos órgãos associativos tomadas em reunião não convocada, em violação de disposições legais imperativas, cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrárias à ordem pública ou aos bons costumes, ou sobre matéria que exorbite a respetiva competência.
2 – São anuláveis as deliberações tomadas em assembleia convocada com preterição de formalidades legais ou sobre matérias que não constem da ordem de trabalhos fixada na convocatória, salvo se estiverem presentes ou representados todos os membros no pleno gozo dos seus direitos e todos concordarem em que a assembleia se realize e delibere.
3 – São nulas as deliberações tomadas pela assembleia geral se nelas tiver votado quem não gozava do direito de voto, salvo quando esse voto não tenha sido determinante do sentido da deliberação tomada.
4 – São anuláveis as deliberações que violem a lei ou os estatutos e não padeçam de nulidade.
No caso concreto, baseando-se o autor na preterição das formalidades da convocatória da assembleia geral da ré previstas no artigo 36.º, n.º 1, dos respectivos Estatutos (que dispõe assim: «A Assembleia Geral será convocada pelo Presidente da Mesa da Assembleia, ou seu substituto, com a antecedência mínima de 15 dias, por meio de avisos afixados na sede da Associação, através de anúncios publicados em dois jornais de entre os de maior circulação na área da sede, sendo um regional se o houver»), é inquestionável que o vício assim imputado às deliberações tomadas naquela assembleia é gerador da sua anulabilidade, nos termos previstos no n.º 4, do artigo 114.º, do CAM, e não da nulidade daquelas deliberações. Note-se que, nos termos do n.º 2, do mesmo artigo, a própria preterição das formalidades legais da convocatória apenas geraria a anulabilidade das deliberações tomadas na respectiva assembleia, pelo que essa é, por maioria de razão, a sanção aplicável para a preterição das formalidades estatutariamente previstas.
O autor baseia ainda o seu pedido (de declaração de nulidade ou anulabilidade) na circunstância de não poder ter estado presente na assembleia geral de 28.05.2021, por estar suspenso do exercício dos seus direitos de associado, circunstância que o mesmo considera violadora do seu “direito de defesa” (embora reconheça que nunca poderia ter votado as deliberações em causa, atento o preceituado no artigo 41.º dos Estatutos da ré: «Os associados não podem votar por si ou como representantes de outrem, em assuntos que directamente lhes digam respeito e nos quais sejam interessados os cônjuges, ascendentes, descendentes e equiparados»).
Tendo em conta que foi o próprio autor quem recorreu para a Assembleia Geral da sanção disciplinar de suspensão aplicada pelo Conselho de Administração, é verdadeiramente incompreensível que considere inválida (nula ou anulável) a deliberação daquela Assembleia Geral sobre tal recurso em virtude de estar impedido de participar na mesma por força da sanção recorrida. Note-se que esta linha argumentativa do ora recorrente levar-nos-ia a considerar inválida (nula a anulável) qualquer deliberação da Assembleia Geral, quer esta decidisse alterar a deliberação do Conselho de Administração, conforme pretendido pelo recorrente, quer decidisse manter (ratificar, na terminologia do autor/recorrente) essa deliberação, o que tornaria inadmissível ou inútil e, em todo o caso, um verdadeiro contrassenso o recurso para a Assembleia Geral que o próprio interpôs ao abrigo do disposto no artigo 34.º, al. g), dos seus Estatutos e do artigo 77.º, n.º 1, al. g), do CAM.
Seja como for, a apontada circunstância de o autor não poder participar na assembleia geral da ré por estar disciplinarmente suspenso do exercício dos seus direitos de associado não integra nenhuma das situações que o artigo 114.º do CAM erige como geradoras da nulidade das deliberações dos órgãos das associações mutualistas (assim elencadas: deliberações tomadas em reunião não convocada, em violação de disposições legais imperativas, cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrárias à ordem pública ou aos bons costumes, ou sobre matéria que exorbite a respetiva competência, ou ainda deliberações tomadas pela assembleia geral se nelas tiver votado quem não gozava do direito de voto), pelo que, a haver alguma invalidade, a mesma sempre se reconduziria à categoria residual das anulabilidades previsto no n.º 4, daquele artigo 114.º.
3. Já vimos que a decisão recorrida se baseou no «entendimento de que, renovadas as deliberações, e não sendo estas colocadas em causa, com novos fundamentos de invalidade (que podem ou não ser os mesmos), tal implica necessariamente a improcedência da acção em que se discuta a validade das primeiras»; mas, como se refere na mesma decisão e resulta do ponto 4 dos factos provados, o que foi deliberado na assembleia geral da ré realizada no dia 20.12.2021 foi (para além do mais) “ratificar as deliberações tomadas pela assembleia geral de 28 de Maio de 2021”, “com o objectivo de sanar eventuais irregularidades” (os itálicos foram acrescentados por nós).
Por sua vez, o recorrente alude à rectificação das deliberações – termo usado pela ré no artigo 74.º da sua contestação –, à sua confirmação, nos termos previsto no artigo 288.º do CC, questionando ainda se a deliberação de Dezembro de 2021 configura uma rectificação, ratificação, renovação ou confirmação das deliberações de Maio de 2021.
Rectificar significa, na linguagem comum, corrigir ou emendar, sendo usado pelo legislador nesse mesmo sentido, nomeadamente no artigo 614.º do CPC. Ora, do teor da acta da assembleia geral da ré de 20.12.2021, nomeadamente do seu ponto 2, não é legítimo extrair que se pretendeu rectificar algum erro das deliberações tomadas na assembleia geral de 28.05.2021; pelo contrário, o que se pretendeu foi reiterar na íntegra o conteúdo destas deliberações. De resto, o termo rectificar não consta daquela acta de 20.12.2021, surgindo apenas na contestação apresentada nestes autos pela ré, supõe-se que por mero lapso de escrita, não sendo retomado ou, sequer, aludido na decisão recorrida, pelo que a discussão suscitada pelo recorrente a respeito desse termo nem sequer faz sentido nesta fase processual.
Igualmente deslocada se revela a invocação pelo recorrente da figura da confirmação, a qual, de resto, não foi invocada pela ré (seja na deliberação de 20.12.2021 ou na contestação que apresentou nestes autos) ou pelo tribunal a quo na decisão recorrida, nem a sua aplicação é preconizada pelo próprio recorrente.
A confirmação está regulada no artigo 288.º do CC.
De harmonia com o n.º 1 deste artigo a anulabilidade dos negócios jurídicos é sanável mediante confirmação, que Manuel de Andrade (Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, p. 418) define como «o acto pelo qual as pessoas com legitimidade para arguir a nulidade declaram que prescindem de a invocar, aproveitando o negócio não obstante o vício de que enferma». Excepcionalmente, a lei admite também a confirmação de actos nulos. É o que sucede em matéria testamentária, por força do disposto no artigo 2309.º do CC.
Nos termos do disposto no n.º 2, do citado artigo 288.º, a confirmação compete à pessoa a quem pertencer o direito de anulação e só é eficaz quando for posterior à cessação do vício que serve de fundamento à anulabilidade e o seu autor tiver conhecimento do vício e do direito à anulação.
Em conformidade com o preceituado nos n.ºs 3 e 4, do mesmo artigo 288.º, a confirmação pode ser expressa ou tácita, não depende de forma especial e tem eficácia retroactiva, mesmo em relação a terceiro.
Esta brevíssima descrição do regime jurídico da confirmação é suficiente para concluirmos não ser aí subsumível a “ratificação” deliberada na assembleia geral da ré de 20.12.2021, desde logo porque esta não promanou de nenhum dos titulares do direito à anulação da deliberação “ratificada”, maxime algum dos associados da ré, mas de um órgão associativo da própria ré, isto é, da autora do acto anulável.
Mas a referida deliberação também não corresponde, do ponto de visto técnico-jurídico, a uma ratificação, tendo sido esta expressão utilizada naquela deliberação com o significado vulgar, distinto do consagrado nos artigos 268.º e 269.º do CC.
De harmonia com estas normas, a ratificação corresponde à declaração de aceitação de um negócio, que foi celebrado por terceiro em nome do declarante, sem estar dotado de poderes de representação ou em abuso desses poderes. Nos termos do n.º 2, do citado artigo 268.º, a ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, mas não prejudica os direitos de terceiro.
Como é bom de ver, no caso concreto, a deliberação da assembleia geral da ré realizada em Dezembro de 2021 não teve em vista aceitar a validade de um acto celebrado em nome daquela assembleia por quem não tinha poderes para a representar, antes visando uma outra deliberação do mesmo órgão, de Maio do mesmo ano. Não estamos, portanto, perante uma verdadeira ratificação.
Com mais propriedade – pois é disso que se trata – a decisão recorrida qualificou a deliberação de 20.12.2021 como uma renovação das anteriores deliberações de 28.05.2021.
A figura jurídica da renovação tem consagração legal no artigo 62.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), que dispõe o seguinte:
(Renovação da deliberação)
1 – Uma deliberação nula por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 56.º pode ser renovada por outra deliberação e a esta pode ser atribuída eficácia retroactiva, ressalvados os direitos de terceiros.
2 – A anulabilidade cessa quando os sócios renovem a deliberação anulável mediante outra deliberação, desde que esta não enferme do vício da precedente. O sócio, porém, que nisso tiver um interesse atendível pode obter anulação da primeira deliberação, relativamente ao período anterior à deliberação renovatória.
Assim, em traços gerais, podemos afirmar que a renovação de uma deliberação social corresponde a uma nova deliberação, de conteúdo idêntico à primeira, mas expurgada do vício que a afectava (cfr. ac. do TRP, de 14.11.2022, já antes citado).
Como se escreve no ac. do STJ, de 23.03.1999 (proc. n.º 99A166, rel. Garcia Marques), «[a]través da renovação, os sócios refazem a deliberação que antes haviam tomado, concluindo sobre o seu objecto uma nova deliberação destinada a absorver o conteúdo daquela e a tomar o seu lugar.
Ensaiando distingui-la de outras figuras afins, Carneiro da Frada procede ao confronto da renovação com a substituição, a revogação e a confirmação.
Em mera, e simplificada, síntese, pode dizer-se que, ao contrário do que pode acontecer com a substituição, a deliberação renovatória deve respeitar o essencial do conteúdo da deliberação renovada.
Quanto à revogação, a aproximação que dela é feita relativamente à renovação resulta do facto de esta envolver necessariamente a sua revogação quando essa deliberação, por não ser nula, for apta à produção dos efeitos jurídicos por ela visados. É justamente o que acontece com a deliberação anulável, pois que, então, essa deliberação surte eficácia desde o início e enquanto não for anulada.
Distinguindo renovação e confirmação, poderá dizer-se, acompanhando o citado Autor, também com subsídios recolhidos no ensino de Rui Alarcão, que, ao passo que, na renovação, uma deliberação se conclui ex novo, como se não tivesse existido negócio anterior, na confirmação, a deliberação inválida anterior é convalidada por força de um acto complementar e integrativo, cuja função é a de operar o convalescimento daquela outra, a qual fica a valer como se tivesse sido celebrada sem defeito. Ou seja, havendo renovação, os efeitos jurídicos passam a imputar-se unicamente à deliberação renovatória. Inversamente, na confirmação, a fonte de efeitos jurídicos é a própria deliberação inválida integrada ou complementada pelo acto confirmativo. Segundo Carneiro da Frada, o nosso sistema jurídico não consente a confirmação de uma deliberação anulável mediante nova deliberação, posto que falta à assembleia geral legitimidade para tomar a deliberação confirmatória. Com efeito, o artigo 288º, nº 2, do Código Civil apenas confere o poder de confirmar um acto inválido a quem tenha legitimidade para arguir a anulabilidade do acto. Ora, no domínio das deliberações sociais, os titulares do direito de anulação daquelas são os sócios, pelo que só eles – e não a assembleia geral – detêm o poder de as confirmar».
Voltando ao caso concreto, é o seguinte o teor do ponto 2 da acta da assembleia geral da ré realizada em 20.12.2021:
2. Ratificação das deliberações tomadas pela Assembleia Geral do dia 28 de maio de 2021.
Pelo Presidente da Mesa foi explicado que existia uma interpretação de que a publicação da convocatória nos jornais para a Assembleia Geral da Associação teria que ser com a antecedência de 15 dias em relação a data da sua realização. Explicou também que essa não é a sua opinião, pois entende que a publicação no jornal é apenas para publicitar a convocatória que é efectuada essa sim com os tais 15 dias de antecedência. No entanto, com o objectivo de sanar eventuais irregularidades, na óptica de quem tem tal interpretação, entenbde-se ser vantajoso a própria Assembleia ter a possibilidade de agora ratificar a decisão tomada, sem esse eventual erro formal, caso assim o entenda, já que a presente reunião foi convocada, publicitada e devidamente publicada em jornal com a antecedência dos referidos 15 dias.
Após a referida explicação, foram colocadas algumas questões rápidas a que foram respondidas pelo Presidente da Mesa.
Colocado a votação o ponto 2, o mesmo foi aprovado por UNANIMIDADE.
Assim, dúvidas não restam de que, na assembleia geral da ré realizada em 20.12.2021, foi tomada uma nova deliberação, que reproduziu na íntegra o conteúdo das deliberações tomadas na assembleia geral realizada no dia 28.05.2021, mas, como ficou a constar da respectiva acta, sem os erros formais que – numa determinada interpretação do artigo 36.º, n.º 1, dos Estatutos da ré – afectavam estas anteriores deliberações.
Estamos, portanto, perante uma verdadeira renovação de deliberações sociais. À mesma conclusão chegou o já citado ac. do TRP, de 14.11.2022, numa situação similar à destes autos, em que havia sido deliberado “ratificar” uma anterior deliberação. Na verdade, escreve-se o seguinte nesse acórdão: «Tanto a convocatória como a Ata da AG falam em ratificação das deliberações tomadas. Mas nesta última deu-se nota – através da leitura de carta subscrita pelos membros da Mesa – das razões justificativas da convocatória da AGE por referência precisamente à pendência destes autos e do pedido de anulabilidade das deliberações em causa com vista à sua “ratificação”, atendendo às repercussões económicas para o R. decorrentes de eventual anulação de tais deliberações. É claro pois o propósito do assunto posto à votação da AGE – a renovação da deliberação anterior que fora posta em causa, por forma a sanar a sua anulabilidade através da substituição pela nova deliberação, reiterando a expressão da vontade anteriormente manifestada, mas cuja validade estava posta em causa. E se assim é, deve a deliberação de 04/11/21 ser interpretada como uma renovação da anterior deliberação substituindo esta, pois esse é o sentido inequívoco da vontade expressa pelos associados em deliberação, não podendo ser considerada a mencionada “ratificação” com o sentido técnico jurídico que acima deixámos enunciado».
4. Nos termos já antes expostos, a analogia das situações justifica a aplicação do regime legal consagrado no artigo 62.º do CSC para as deliberações (dos sócios) das sociedades comerciais às deliberações (dos associados) das associações civis.
Como se escreve no ac. do TRP, de 14.02.2007 (proc. n.º 0730577, rel. Fernando Baptista), «trata-se de norma que surgiu da preocupação crescente do Direito das Sociedades com as perturbações que a pendência de acções de invalidade de deliberações sempre represente para os entes colectivos. É que instaurada a acção de impugnação da deliberação, visando conseguir a declaração da sua invalidade, pode bem acontecer que as coisas fiquem sem serem definidas por muitos e muitos anos, com os consequentes prejuízos, maxime para os sócios – não se olvidando o prejuízo que tal também acarreta para a própria sociedade, desde logo pela publicidade negativa que o decurso da acção sempre lhe acarreta. Por isso, o legislador entendeu minorar o problema, por via da figura da renovação de deliberação inválida – sendo certo que muitas das vezes apenas ad cautelam se usa desse mecanismo da renovação da deliberação».
Já vimos que os vícios que afectam as deliberações tomadas em Maio de 2021 são geradores da sua anulabilidade, pelo que a situação se subsume do disposto no n.º 2, do artigo 62.º, do CSC.
O n.º 1 desde artigo 62.º prevê a renovação de determinadas deliberações nulas e permite que a esta renovação possa ser atribuída eficácia retroactiva (ressalvando os direitos de terceiros).
O n.º 2 do mesmo artigo prevê a renovação da generalidade das deliberações anuláveis, mas permite que o sócio que tenha um interesse atendível possa obter a anulação da primeira deliberação relativamente ao período anterior à deliberação renovatória. Mas isto significa que, nos casos de renovação de deliberações anuláveis, o efeito retroactivo é a regra, apenas sendo afastado por esta via. Neste sentido, escreve-se o seguinte no já citado ac. do STJ, de 3.03.1999:
«O referido n.º 2 integra, efectivamente, duas estatuições distintas, a saber:
a) 1ª parte: “a anulabilidade cessa quando os sócios renovem a deliberação anulável mediante outra deliberação, desde que esta não enferme do vício da precedente”;
b) 2.ª parte: “O sócio, porém, que nisso tiver um interesse atendível pode obter anulação da primeira deliberação, relativamente ao período anterior à deliberação renovatória”.
Resulta da primeira parte que a lei confere um efeito sanatório às apontadas deliberações. Quer isto dizer que o legislador concebeu a renovação de deliberações anuláveis como uma verdadeira renovação sanante ( ) É este o entendimento de Carneiro da Frada - cfr. loc. cit, págs. 315 e segs.).
Por sua vez, o disposto no n.º 2, 2.ª parte, deve entender-se como uma espécie de contradireito ou excepção conferido ao sócio para este, se quiser, se opor à, de princípio, retroactiva sanação da deliberação».
Mas logo se acrescenta no mesmo acórdão que, «para que a deliberação renovada seja anulada “relativamente ao período anterior à deliberação renovatória”, tem o sócio que fazer prova de um interesse atendível, no sentido de que a anulação evita a ofensa de um direito seu ou a ocorrência de um prejuízo na sua esfera.
Como ensina Carneiro da Frada, a prova desta verdadeira condição da acção não se lhe exigiria se do exercício do direito comum de anulação se tratasse. Aqui, o interesse do demandante, além de não ser condição da acção, é presumido à face apenas da ofensa da lei ou dos estatutos que tornam a deliberação anulável e tal interesse não pode ter-se por excluído pelo simples facto de à ofensa referida não estar ligado um dano ou o perigo de um dano para o sócio ou até para a sociedade ( ) Cfr. loc. cit, págs. 321-322.)
No Acórdão deste S.T.J. de 14-12-94, o interesse atendível previsto na 2.ª parte do n.º 2 do artigo 62.º não se confunde com o mero interesse processual ou interesse em agir, tratando-se antes do interesse substantivo, traduzido na susceptibilidade de prejuízo causado ao titular do direito de anulação pela eficácia retroactiva da deliberação renovatória ( ) Acórdão publicado no BMJ nº 442, pág. 147.).
Cabe, pois, ao sócio que invoca o “interesse atendível”, fazer a prova dos factos constitutivos do mesmo, para efeitos de se obter a anulação da primeira deliberação relativamente ao período anterior à deliberação renovatória. Não há, com efeito, razões para presumir o prejuízo do sócio impugnante com a execução da deliberação e consequente interesse atendível; antes a alegação e a prova desse prejuízo deverão ser feitas pelo sócio que alegar o interesse atendível».
No caso em análise, o autor não só não invocou qualquer interesse atendível na anulação das deliberações de maio de 2021 relativamente ao período anterior à deliberação de Dezembro do mesmo ano, como nem sequer manifestou o propósito de obter tal anulação.
Nestes termos, resta concluir que a deliberação de Dezembro de 2021 configura uma deliberação renovatória com efeitos retroactivos.
5. Facilmente se compreende que, quando é tomada com efeitos retroactivos, a deliberação renovatória «substitui a deliberação anterior, eliminando-a e passando a ocupar o seu lugar e, dado tal efeito substitutivo, todos os efeitos se passam a reportar à nova deliberação, deixando a deliberação inicial substituída de existir» (ac. do TRG, de 26.10.2023, proc. n.º 487/22.0T8VCT.G1, rel. Rosália Cunha; no mesmo sentido, o já citado ac. do TRP, de 14.11.2022, onde se explica que, no caso contrário, não estaremos perante uma substituição, mas perante uma mera sucessão de deliberações).
Mas se é assim, deixa de ser possível obter ganho de causa na acção que visa a impugnação da deliberação substituída, dada a “impossibilidade lógica do seu objecto”, razão pela qual a jurisprudência vem defendendo que aquela substituição importa a improcedência da referida acção e não apenas a sua inutilidade superveniente. Isto mesmo é afirmado no já citado ac. do TRP de 14.11.2022. No mesmo sentido, vide o ac. do TRP, de 25.05.2009 (proc. n.º 413/08.0TYVNG.P1, rel. Sousa Lameira), onde é citada outra jurisprudência que preconiza a mesma solução, embora dando também nota de alguma jurisprudência que defende como solução a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
Em todo o caso, para que se possa falar de renovação substitutiva de uma deliberação anulável, é necessário que a deliberação renovatória não enferme do vício da precedente, como expressamente preceitua o artigo 62.º, n.º 2, do CSC. Compreende-se que assim seja, pois uma deliberação renovatória que não sane o vício da deliberação renovada não produz o efeito renovatório e substitutivo desta deliberação inicial e, por conseguinte, não inviabiliza o pedido de anulação da mesma (mais controversa é a questão de saber se a eficácia da deliberação renovatória está igualmente sujeita à ausência de outros vícios, isto é, se a deliberação renovatória pressupõe a isenção de qualquer mácula, mas tal questão nem sequer se coloca nestes autos).
No presente caso, como bem assinala a decisão recorrida, o ponto 5 dos factos julgados provados permite afirmar que o ora recorrente não estava impedido de participar na assembleia geral da ré realizada em Dezembro de 2021, pois, ao contrário do que sucedia quando teve lugar a assembleia geral realizada em Maio de 2021, naquela data já não estava privado de nenhum dos seus direitos enquanto associado da ré. O autor apenas continuava impedido de votar nas deliberações que directamente lhe dissessem respeito ou em que fossem interessados o seu cônjuge, ascendentes, descendentes e equiparados, nos termos estatutariamente previstos. Deste modo, a invalidade que pudesse afectar as deliberações tomadas na assembleia geral de Maio por causa da suspensão aplicada ao autor, não afectou as deliberações tomadas na assembleia geral de Dezembro.
Quanto aos vícios relativos à preterição das formalidades da convocatória para a assembleia geral, consagrados no artigo 36.º, n.º 1, dos Estatutos da ré, que estão demonstrados no que concerne à assembleia geral de Maio de 2021 (cfr. ponto 3 dos factos provados), nada se apurou relativamente à assembleia geral de Dezembro de 2021, pois nada foi alegado a esse respeito pelo autor.
Já a ré alegou, como decore do artigo 74.º da contestação, que os vícios das deliberações tomadas na assembleia geral do dia 28.05.2021 foram sanados pela deliberação tomada na assembleia geral de 20.12.2021, remetendo para a acta desta assembleia, que juntou como documento n.º 10, na qual se refere que a nova deliberação é tomada sem esse eventual erro formal, já que a presente reunião foi convocada, publicitada e devidamente publicada em jornal com a antecedência dos referidos 15 dias.
Em coerência com o entendimento expresso na decisão recorrida, de que era o autor que tinha de invocar os vícios formais de que padecesse esta nova deliberação (e não a ré que tinha de invocar a ausência desses vícios), o tribunal a quo não se pronunciou sobre as afirmações exaradas no artigo 74.º da contestação e no excerto da acta acabado de transcrever, reconheceu a natureza renovatória da referida deliberação e, com fundamento na jurisprudência já antes aludida, julgou a acção improcedente.
É, precisamente, nesta questão que o recorrente põe o acento tónico da sua alegação, afirmando que era à ré que cabia alegar e provar que a deliberação de 20.12.2021 não padecia dos mesmos vícios que a anterior, ou seja, que a convocatória para a respectiva assembleia não preteriu as formalidades previstas no artigo 36.º, n.º 1, dos Estatutos; não o tendo feito, a acção não podia ter sido julgada improcedente.
Mas não tem razão, pelas razões que passamos a expor.
Dispõe assim o artigo 552.º, n.º 1, al. d), do CPC: «Na petição, com que propõe a ação, deve o autor: (...) Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação». Em sentido próximo, o artigo 572.º, alíneas b) e c), estatui que, na contestação, o réu deve expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor e expor os factos essenciais em que se baseiam as exceções deduzidas. Por sua vez, decorre do artigo 5.º do mesmo código que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, mas só pode servir-se dos factos essenciais articulados pelas partes (que constituam a causa de pedir e em que se baseiam as exceções invocadas), dos factos instrumentais que resultem da instrução da causa e dos factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa (desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar), bem como dos factos notórios e daqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Das referidas disposições legais resulta clara a necessidade de as partes alegarem os factos essenciais sobre os quais assenta a sua pretensão ou as excepções deduzidas contra a mesma, sob pena de não poderem ser atendidas.
Mas qual o alcance deste ónus de alegação ou afirmação?
Tendo a nossa lei processual acolhido a teoria da substanciação, em detrimento da teoria da individualização, será sempre necessário indicar o facto ou factos constitutivos do direito que se pretende fazer valer, i. é, o título particular de aquisição desse direito. A este respeito vide Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., Coimbra 1981, p. 353 s.
Esta questão está, assim, intimamente ligada ao problema da repartição do ónus da prova, embora não se confunda com ele. De facto, ao contrário do que parece afirmar Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Coimbra 1982, p. 355), a repartição do ónus da prova não determina necessariamente igual repartição do ónus de alegar.
Determinar quais sejam os factos constitutivos do direito do autor (cuja alegação e prova impendem, em princípio, sobre o autor), por contraposição aos factos impeditivos, modificativos e extintivos (cuja alegação e prova impende, em princípio, sobre o réu), é algo que só com recurso ao direito substantivo se pode fazer. Como diz Anselmo de Castro (ob. cit., p. 353), «não há por natureza factos constitutivos, impeditivos ou extintivos. Seria, por isso, erro dar invariavelmente a um facto uma outra natureza. O que para um direito ou no domínio de uma relação jurídica é facto impeditivo, para outro bem pode ser facto constitutivo. É, pois, à respectiva norma ou normas aplicáveis e só a elas, que há que recorrer. Assim, mais do que de factos constitutivos, impeditivos ou extintivos, se deve falar de normas constitutivas, impeditivas, ou extintivas».
Subjacente a esta construção está a teoria da norma de Rosenberg, generalizadamente aceite entre nós, que Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora (Manual de Processo Civil, p. 455) expressivamente sintetizam da seguinte forma: «Cada uma das partes terá assim (o ónus) de alegar e provar os factos correspondentes à previsão da norma que aproveita à sua pretensão ou à sua excepção. Cada uma das partes tem de provar os factos que constituem os pressupostos da norma que lhe é favorável».
No caso concreto, o autor veio pedir que se declarem nulas ou anuláveis as deliberações tomadas na assembleia geral da ré realizada no dia 28.05.2021, alegando, como lhe competia, os factos constitutivos desse direito de anulação, mais concretamente os vícios de que enfermou a convocatória e o próprio funcionamento dessa assembleia.
A ré defendeu-se arguindo diversas excepções, cumprindo igualmente o ónus de alegação dos factos em que as mesmas assentam. Entre essas excepções conta-se a excepção peremptória de renovação das deliberações anuláveis, nos termos da alegação constante do artigo 74.º da contestação.
Embora a ré não tenha especificado separadamente esta excepção peremptória, nos termos impostos pelo já citado artigo 572.º, al. c), do CPC (omissão que tem como única consequência não se considerarem admitidos por acordo por falta de impugnação os factos que sustentam tal excepção, mas que não obsta ao conhecimento dessa excepção com base na prova que for produzida), o tribunal a quo alertou de forma expressa o autor para a arguição desta excepção e concedeu-lhe um prazo adicional para se pronunciar sobre a mesma, o que este fez nos termos que considerou adequados.
Como vimos, foi com base na procedência desta excepção peremptória que o tribunal a quo julgou improcedente a acção.
A norma em que tal excepção se baseia é, conforme já exposto, a do artigo 62.º, n.º 2, do CSC. Analisada essa norma, afigura-se isento de dúvida que à arguente cabia alegar que os associados da ré renovaram as deliberações anuláveis mediante outra deliberação, em conformidade com o primeiro segmento da norma em apreço («A anulabilidade cessa quando os sócios renovem a deliberação anulável mediante outra deliberação»), o que aquela fez com sucesso, como decorre do teor do artigo 74.º da contestação e do ponto 4 dos facto provados, onde é descrito o teor da acta da assembleia geral de 20.12.2021, junta aos autos como documento n.º 10 da contestação.
Mas cremos ser igualmente isento de dúvida que o segundo segmento da mesma norma («desde que esta não enferme do vício da precedente») revela que cabia ao autor, para obstar à produção dos efeitos desta segunda deliberação, nomeadamente o seu efeito renovatório, alegar a invalidade da mesma.
Atento o já exposto, esta é solução decorrente da lei para a distribuição do ónus de alegação na generalidade das acções que visam a anulação de actos jurídicos, não se vislumbrando qualquer razão válida para inverter esse ónus quando está em causa a invalidade de deliberações renovatórias. Neste sentido, Diogo Almeida Coimbra Casqueiro afirma que «este trecho do n.º 2 do artigo 62.º mais não será, quanto a nós, que uma manifestação de uma princípio de legalidade a que se encontram adstritos todos os actos jurídicos. Nessa medida, seria até dispensável. Achou por bem o legislador, transpondo a solução vigente na Alemanha para o n.º 2 do artigo 62.º, salientar tal afloramento de obediência à legalidade» (Da Renovação de Deliberações dos Sócios, p. 125, disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/21309/1/1.%20Disserta%c3%a7%c3%a3o%20-%20Da%20Renova%c3%a7%c3%a3o%20de%20Delibera%c3%a7%c3%b5es%20dos%20S%c3%b3cios.pdf).
De resto, o que vem sendo debatido na doutrina e na jurisprudência é saber se a invalidade da deliberação renovatória pode ser apreciada e judicialmente declarada na acção onde foi pedida a anulação da deliberação renovada, ou se apenas o pode ser em acção própria, assumindo esta natureza prejudicial relativamente à anterior (a este respeito vide Diogo Almeida Coimbra Casqueiro, cit., pp. 117 e seguintes, e o ac. do TRP, de 25.05.2009, já antes citado), discussão que tem, necessariamente, como pressuposto o entendimento de que cabe ao autor, interessado na anulação da primeira deliberação, alegar a invalidade da segunda deliberação, que obsta ao seu efeito renovatório.
Acrescente-se que entendimento diverso conduziria à subversão do próprio regime da anulabilidade, nomeadamente da sujeição da sua arguição a um prazo curto de caducidade sob pena de sanação (cfr. artigo 287.º do CC).
Em suma, independentemente da questão de saber se a impugnação da validade da deliberação renovatória podia ser conhecida nesta acção ou implicava a proposição de uma outra acção para esse efeito, não restam dúvidas de que era ao interessado na sua anulação – no caso o autor ora recorrente – que incumbia alegar as razões dessa invalidade.
Pugnando-se pela impossibilidade o fazer nesta acção, como defendem Diogo Casqueiro e o já citado ac. do TRP de 25.05.2009, impor-se-ia concluir como faz aquele autor (cit., p. 129): «Perguntar-se-á, no entanto, se tal solução não determina uma violação do princípio do contraditório (artigos 3.º, n.º 3, e 588.º, n.º 4, in fine, ambos do CPC). Com o devido respeito: princípio do contraditório e objecto do processo são matérias distintas. Assumimos a hipótese em que é a sociedade-ré a trazer a renovação ao processo. Nada impedirá o autor de, ao abrigo dos preceitos supramencionados, se pronunciar sobre ela: tanto reclama um conteúdo mínimo de igualdade entre os sujeitos processuais. Perante a renovação, duas hipóteses se perfilam ao autor: ou (i) nada diz, e o tribunal não poderá senão absolver a ré da instância; ou (ii) contesta a validade da nova deliberação. Só perante esta última hipótese a questão se coloca. E, a resposta, quanto a nós, não poderá senão ser a de que o tribunal deverá ordenar a suspensão da instância (artigos 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º, n.º 1, in fine, ambos do CPC), até ao momento em que fique definitivamente julgada a causa prejudicial (artigo 276.º, n.º 1, alínea c), do CPC).
Seja como for, no caso concreto, tendo sido expressamente notificado para se pronunciar sobre a renovação invocada pela ré, o autor não questionou a validade formal dessa deliberação, não tendo, designadamente, alegado que a mesma padece dos mesmos vícios que a deliberação precedente, mesmo sabendo que da respectiva acta consta expressamente que a mesma não padece daqueles vícios formais, nem tendo invocado a pendência de qualquer acção onde essa validade se discuta.
Consequentemente, resta a este tribunal tomar em consideração a deliberação renovatória e os seus efeitos, nos termos já antes expostos.
Foi, precisamente à mesma conclusão que chegou o ac. do TRP de 14.11.2022, citado na decisão recorrida, numa situação semelhante à destes autos. Por esta razão, assim como por tudo quanto já ficou exposto, não se compreende a afirmação do recorrente de que o acórdão da Relação do Porto que fundamenta a sentença diz o contrário da mesma sentença.
Na verdade, depois de constatar que os ali autores não se pronunciaram sobre o requerimento por via do qual a ali ré juntou aos autos a deliberação renovatória tomada já pendência da acção, afirmou o seguinte: «Os AA. não responderam à junção deste último requerimento. E assim não deram nota de ter sido esta deliberação alvo de qualquer impugnação que afetasse a sua validade. Certo sendo que da Ata junta resulta que a AG Extraordinária teve lugar em 04/11/2021. Na mesma não foram suscitadas quaisquer questões quanto à regularidade da sua convocação, não confirmando as dúvidas que os recorridos haviam suscitado na sua resposta quanto à regularidade da composição da Mesa da AG e assim da regularidade da convocatória e da realização da AG. O vício de que a primeira deliberação padecia – a realização de uma AG não presencial – mostra-se claramente sanado».
No nosso caso, apesar de se ter pronunciado sobre a alegada deliberação renovatória e respectiva acta, o autor também não suscitou qualquer questão quanto à sua regularidade, pelo que não podemos considerar que padeça dos mesmos vícios que as deliberações precedentes, nada obstando ao efeito substitutivo da deliberação renovatória.
Afirma, porém, o recorrente que este entendimento quanto à distribuição dos ónus da alegação e da prova viola o disposto nos artigos 341.º e seguintes do CC e no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), por força dos quais «compete à ré alegar e provar a existência de todos os requisitos da nova Assembleia ou das suas deliberações, alegando e provando que estavam conformes aos Estatutos e lei», acrescentando que o autor não pode saber qual foi o jornal local e quais os outros em que teria sido publicada a convocatória, pois teria de pesquisar em todos os jornais nacionais e locais publicados nos últimos 15 dias, o que é manifestamente impossível ou difícil, acrescentando ainda que o referido entendimento equivale a onerá-lo com a alegação e prova de um facto negativo – que a convocatória não foi publicada nos termos previstos no artigo 36.º dos Estatutos da ré –, sendo certo que os factos negativos não se provam.
Já antes dissemos que o ónus da alegação não se confunde com o ónus da prova. Como vimos, o ónus (de natureza processual) da alegação está previsto e regulado no artigo 5.º, n.º 1, do CPC (e regulado noutras disposições adjectivas, nomeadamente nos artigos 3.º, n.º 4, 552.º, n.º 1, al. d), 572.º, alíneas b) e c), 587.º, n.º 2, 588.º, n.º 1, 590.º, n.º 2, al. b), 4, 5 e 6, todos do CPC). O ónus (de natureza material) da prova está previsto e regulado nos artigos 342.º e seguintes do CC. Embora a distribuição destes ónus seja frequentemente coincidente, pode suceder que a parte esteja onerada com a alegação de determinados factos mas não com a sua prova. Tal sucede, desde logo, nas situações de inversão do ónus da prova, que não são acompanhadas da corresponde inversão do ónus da alegação. O mesmo pode suceder, conforme é amplamente aceite na doutrina e na jurisprudência, relativamente a determinados factos negativos. Na verdade, as dificuldades de prova destes factos, que a doutrina e a jurisprudência consideram justificativas de alguns “ajustamentos” ou “afinamentos” das regras de repartição do ónus probatório, não são necessariamente extensíveis ao ónus de alegação. Concretizando, a circunstância de um direito (ou um facto modificativo, impeditivo ou extintivo de um direito) assentar num facto negativo, de prova difícil ou mesmo impossível (a chamada prova diabólica), pode justificar que o titular desse direito (ou a pessoa interessada em modificar, impedir ou extinguir o mesmo direito) fique dispensado de fazer a respectiva prova, passando a incumbir à parte contrária a prova o facto contrário. Mas não justifica necessariamente que o mesmo seja dispensado de alegar todos os factos constitutivos do seu direito (ou de alegar todos os factos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito exercido contra si). Por exemplo, compreende-se que, numa acção de despejo, o senhorio seja dispensado de provar a falta de pagamento das rendas, cabendo ao inquilino a prova desse pagamento. Mas seria inaceitável e totalmente injustificado dispensar o senhorio de alegar essa falta de pagamento, até porque a falta desta alegação geraria a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir ou a manifesta improcedência da acção por insuficiência da causa de pedir.
Ora, no caso em apreço, a improcedência da acção ficou a dever-se à falta de alegação de alguma causa de invalidade da deliberação renovatória, e não à falta de prova.
Por outro lado, sendo absolutamente inequívoco que a impugnação da deliberação renovatória em acção própria pressupõe a alegação, pelo autor, dos factos em que assenta o seu pedido anulatório, sob pena de ineptidão da petição inicial ou manifesta improcedência do pedido, não se vislumbra qualquer razão para que assim não fosse se essa impugnação pudesse ser feita nesta acção (o que, de resto, sem sequer se afigura possível de acordo com a doutrina e a jurisprudência já antes mencionadas).
Em todo o caso, não vislumbramos qualquer dificuldade que impeça o autor, ou outro associado da ré nisso interessado, de alegar que a convocatória para a assembleia geral de Dezembro de 2021 violou as formalidades previstas no artigo 36.º dos Estatutos desta Associação. A demonstrá-lo está a circunstância de o autor o ter feito nestes autos, a respeito da convocatória para a assembleia geral de Maio de 2021, alegando de forma assertiva que apenas foi feita uma das duas publicações exigidas e com uma antecedência inferior aos 15 dias ali previstos.
Flui do exposto que não ocorre qualquer violação do direito a um processo equitativo previsto no artigo 6.º da CEDH, visto não ter sido cerceado qualquer direito adjectivo ou substantivo do autor, não lhe tendo sido imposta a alegação ou mesmo a produção de alguma prova impossível ou muito difícil.
Pelas razões expostas, reiteramos que nada obsta a que se tenha em consideração a deliberação renovatória invocada pela ré e os respectivos efeitos, nos termos já antes expostos.
6. Embora Diogo Casqueiro considere que a renovação das deliberações anuláveis (com efeitos retroactivos, como vimos) conduz à absolvição da ré da instância, já vimos não ser essa a posição maioritária na jurisprudência, que defende a improcedência da acção e a consequente absolvição da ré do pedido. Para além dos já citados acórdãos do TRP (de 25.05.2009 e de 14.11.2002) e do STJ (de 23.03.1999), vide, a título de exemplo, o ac. do STJ, de 26.02.2009 (proc. n.º 07B4311, rel. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), merecendo esta jurisprudência a nossa inteira concordância, sendo certo que este entendimento nem sequer foi questionado pelo recorrente.
7. Refira-se, por fim, ser difícil de compreender – estando no limiar da litigância de má-fé – a alegação do recorrente sintetizada nas conclusões 19 a 21. Como o recorrente não pode desconhecer, o tribunal a quo respeitou todos os princípios e garantias processuais a que estava adstrito, adoptando uma postura de transparência, lealdade processual e respeito pelo contraditório, alertando-o para a arguição de uma excepção peremptória que a ré não especificou separadamente, como devia, razão pela qual lhe concedeu um prazo adicional para se pronunciar sobre a mesma, ao mesmo tempo que o advertiu para a possibilidade de conhecimento imediato do mérito da causa, sem necessidade de mais provas. Neste contexto, o autor pôde, de forma livre e esclarecida, exercer os seus diretos e defender os seus interesses, da forma que julgou mais adequada, nada o impedindo de invocar as razões que, na sua óptica, obstavam ao efeito substitutivo da deliberação renovatória, pelo que está longe da verdade a afirmação de que foi posto perante factos consumados.
Em suma, os autos não revelam qualquer violação do princípio do contraditório, da igualdade de armas ou, muito menos, do princípio da imparcialidade, cuja alegação, não obstante a sua gravidade, se revela totalmente destituída de fundamentação.
Atento tudo quanto ficou exposto, resta concluir pela total improcedência da apelação, razão pela qual as respectivas custas serão suportadas pelo recorrente, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 16 de Janeiro de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Anabela Dias da Silva
Maria Eiró