Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3889/21.6T8VLG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL FERREIRA
Descritores: PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
ÂMBITO DE APLICAÇÃO
INCUMPRIMENTO CONTRATUAL
OUTRAS QUANTIAS DEVIDAS
Nº do Documento: RP202307123889/21.6T8VLG-A.P1
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não cabe no âmbito das “outras quantias devidas”, no que respeita ao procedimento de injunção geral, o pedido de pagamento de encargos associados à cobrança da dívida, os quais constituem danos decorrentes do incumprimento contratual, não sendo obrigação directamente emergente do contrato.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3889/21.6T8VLG-A.P1
(Comarca do Porto – Juízo de Execução de Valongo – Juiz 1)

Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1ª Adjunta: Deolinda Varão
2ª Adjunta: Isoleta Costa
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – “A..., S.A.”, apresentou, no âmbito da Execução Sumária nº 3889/21.6T8VLG, do Juízo de Execução de Valongo do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em que é executado AA, requerimento para cumulação de execuções, com vista ao pagamento da quantia de € 574,40, dando à execução um requerimento de injunção ao qual foi aposta fórmula executória e no qual reclama o pagamento da quantia de € 548,53, onde inclui o montante de € 100,00 “a título de indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida”.
Por despacho de 29/09/2022, considerando-se que a importância de € 100,00 não constitui obrigação emergente de contrato, mas indemnização por responsabilidade contratual inerente ao incumprimento do contrato, pelo que nesta parte se estava “perante o uso indevido do procedimento de injunção o que configura erro na forma de processo”, decidiu-se indeferir liminarmente “o pedido de cumulação quanto à quantia de € 100,00”.
Desta decisão veio a exequente interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1. Foi indeferido, liminarmente, o requerimento executivo pelo Tribunal a quo, por ter considerado que “estamos perante o uso indevido do procedimento de injunção o que configura erro na forma de processo” relativamente à importância de € 100,00 (a título de indemnização pelos encargos com a cobrança da dívida”).
2. Salvo, porém, o devido respeito, tal decisão carece de oportunidade e fundamento, uma vez que,
3. A injunção é um meio adequado para peticionar ao devedor o pagamento dos referidos custos administrativos relacionados com diligências de cobrança da dívida.
4. Outra conclusão seria manifestamente contrári[o][a] ao “espírito” legislativo associado à criação do DL 269/98, de 01 de Setembro, conforme decorre, indubitavelmente da leitura do preâmbulo deste diploma legal.
De tudo quanto ficou exposto, resulta que, a decisão proferida nos presentes autos
- violou o artigo 1º do diploma preambular anexo ao DL 269/98, de 01 de Setembro.
- violou o art.º 590º do CPC
- violou o artigo 726.º n.º 2 al. a) do CPC
Nestes termos e nos demais de direito, que doutamente se suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida.».
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), é uma única a questão a tratar:
a) averiguar da admissibilidade do recurso ao procedimento de injunção para peticionar o pagamento dos “encargos associados à cobrança da dívida”.
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Apreciemos então, sendo a factualidade relevante a que consta do relatório que antecede.
Nos termos do art. 7º do diploma anexo ao D.L. 269/98, de 01/09, considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro [referência actualmente para o D.L. 62/2013, de 10/05, por força do disposto no art. 13º, nºs 1 e 2, deste diploma, que revogou aquele].
Sendo que no art. 1º do D.L. 269/98, de 01/09 (diploma preambular) se afirma a aprovação do regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15 000.
Portanto, não há dúvidas de que a injunção é um procedimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, ou seja de obrigações pecuniárias que decorram directamente de contratos celebrados entre as partes. Está em causa o cumprimento do contrato, ainda que de forma coerciva, e não as consequências do incumprimento, designadamente ao nível indemnizatório.
Este procedimento pode ser utilizado para exigir créditos decorrentes do próprio acordo contratual, mas “não tem a virtualidade de servir para obter indemnização no âmbito da responsabilidade civil contratual ou extracontratual ou com base no enriquecimento sem causa” (cfr. Salvador da Costa, A Injunção e as Conexas Ação e Execução, Almedina, 8ª ed., 2021, pág. 13).
É, porém, questionado o sentido da expressão “outras quantias devidas”, constante do art. 10º, nº 2, al. e), do diploma anexo ao D.L. 269/98, com a epígrafe “Forma e conteúdo do requerimento” e com o seguinte teor:
1 - O modelo de requerimento de injunção é aprovado por portaria do Ministro da Justiça.
2 - No requerimento, deve o requerente:
a) (…);
b) (…);
c) (…);
d) Expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão;
e) Formular o pedido, com discriminação do valor do capital, juros vencidos e outras quantias devidas;
(…)
Discute-se se a referida expressão “abrange ou não os juros vincendos, as despesas administrativas do contrato, incluindo as de expediente concernentes às comunicações de advogados e os honorários a estes pagos pelo requerente”, justificando-se, “a propósito da interpretação do referido segmento normativo”, “a distinção entre o procedimento de injunção geral” “e o especial, previsto no Decreto-Lei no 62/2013” (cfr. ob e aut. cits., pág. 76).
O D.L. 62/2013, de 10/05, que respeita às obrigações emergentes de transacções comerciais, relativamente às quais o credor se pode socorrer também do procedimento de injunção, neste caso sem limite de valor, dispõe, no seu art. 7º, com a epígrafe, “Indemnização pelos custos suportados com a cobrança da dívida”, que quando se vençam juros de mora em transacções comerciais, nos termos dos artigos 4.º e 5.º, o credor tem direito a receber do devedor um montante mínimo de 40,00 EUR (quarenta euros), sem necessidade de interpelação, a título de indemnização pelos custos de cobrança da dívida, sem prejuízo de poder provar que suportou custos razoáveis que excedam aquele montante, nomeadamente com o recurso aos serviços de advogado, solicitador ou agente de execução, e exigir indemnização superior correspondente.
Não existe norma semelhante no D.L. 269/98, de 01/09, não obstante este ter sido alterado em 2019 (pela Lei nº 117/2019, de 13/09), já muito depois do D.L. 62/2013. Caso o legislador entendesse que deveria contemplar solução semelhante nos casos do procedimento geral de injunção, poderia tê-lo feito nesta altura, pelo que, se não o fez, foi porque entendeu que uma tal norma não tinha cabimento neste procedimento. Note-se que, de acordo com o disposto no art. 9º, nº 3, do Código Civil, o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
E compreende-se que assim seja, pois, como se vê do preâmbulo do D.L. 62/2013, este diploma visou transpor para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16/02/2011, resultando a norma em causa precisamente de uma imposição da Directiva, que regula todas as transacções comerciais (e só estas), não se aplicando nomeadamente às transacções com os consumidores (o que também sucede com o Decreto-Lei em causa, como decorre do seu art. 2º, nº 2, al. a), que exclui do âmbito de aplicação deste os contratos celebrados entre consumidores – que é o caso dos autos).
Assim, afigura-se-nos que a indemnização prevista no art. 7º do D.L. 62/2013 não se aplica ao procedimento geral de injunção (neste sentido, Salvador da Costa, ob. cit., pág. 76).
Ademais, há que ter em conta que estando em causa obrigações pecuniárias emergentes de contrato “as referidas quantias a que se reporta o normativo, hão-de resultar do que foi objecto do contrato em causa” (cfr. Joel Timóteo Ramos Pereira, Revista Julgar, nº 18, pág. 116, citando Salvador da Costa).
Daí que se entenda que não cabe no âmbito das “outras quantias devidas”, no que respeita ao procedimento de injunção geral, o pedido de pagamento de encargos associados à cobrança da dívida, os quais constituem danos decorrentes do incumprimento contratual, não sendo obrigação directamente emergente do contrato (tanto assim que, como se viu, no caso das transacções comerciais foi necessário criar uma norma expressa a prever tal pagamento, o que não seria preciso se tais quantias se considerassem “obrigação emergente do contrato”).
Conforme se diz no Ac. da R.L. de 25/05/2021, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de processo 113862/19.2YIPRT.L1-7, citando Paulo Duarte Teixeira (in revista “Themis”, nº 13), “só pode ser objeto do pedido de injunção o cumprimento de obrigações pecuniárias diretamente emergentes do contrato, mas já não pode ser peticionado naquela forma processual obrigações com outra fonte, nomeadamente, derivada de responsabilidade civil. O pedido processualmente admissível será, assim, a prestação contratual estabelecida entre as partes cujo objeto seja em si mesmo uma soma de dinheiro e não um valor representado em dinheiro”.
Neste sentido, para além do acabado de referir, podem ver-se, entre outros, os Acs. da R.P. de 07/06/2021, com o nº de processo 2495/19.0T8VLG-A.P1 (citado pela recorrente como defendendo a sua posição, certamente por lapso, pois, lido com atenção, verifica-se que neste acórdão igualmente se entendeu que a “indemnização pelos custos administrativos e internos associados à cobrança da dívida (…) não deixa de ser um direito indemnizatório concernente à responsabilidade contratual que, como vimos, não pode ser exercido através do mecanismo simplificado da injunção”), de 27/09/2022, com o nº de processo 418/22.8T8VLG.-A.P1, e de 08/11/2022, com o nº de processo 901/22.5T8VLG-A.P1, da R.L. de 28/04/2022, com o nº de processo 28046/21.8YIPRT.L1-8, e da R.E. de 15/09/2022, com o nº de processo 2274/20.1T8ENT.E1, todos publicados em www.dgsi.pt.
Não desconhecemos a existência de jurisprudência que defende que podem ser peticionadas no procedimento de injunção as despesas tidas com a cobrança da dívida (cfr. Ac. da R.L. de 17/12/2015, com o nº de processo 122528/14.9YIPRT.L1-2, Ac. da R.C. de 25/10/2016, com o nº de processo 166428/15.5YRPRT.C1, e Ac. da R.P. de 11/10/2018, com o nº de processo 99372/17.8YIPRT.P1), porém, afigura-se-nos que o entendimento que supra expusemos e que é o defendido na jurisprudência mais recente (que citamos) é o mais consentâneo com o regime legal simplificado do procedimento de injunção geral (o que não decorre de transacções comerciais) tal como foi delineado pelo legislador.
Não assiste, pois, razão à recorrente, não sendo possível peticionar a referida quantia de € 100,00 “a título de indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida” no procedimento injuntivo, justificando-se o indeferimento liminar parcial do requerimento executivo nessa parte.
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Em face do resultado do tratamento da questão analisada, é de concluir pela não obtenção de provimento do recurso interposto pela exequente e pela consequente confirmação da decisão recorrida.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente
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Porto, 12/7/2023
Isabel Ferreira
Deolinda Varão
Isoleta de Almeida Costa