Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11579/21.3YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: INJUNÇÃO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
QUESTÃO DE DIREITO
NORMAS DE ISO
Nº do Documento: RP2023031411579/21.3YIPRT.P1
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE: DECISÃO CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A qualificação de uma questão como sendo de facto ou de direito depende do objecto da acção: se este estiver dependente do significado jurídico de determinada expressão, estaremos perante uma questão de direito.
II – As normas ISO não são fonte de direito. São meros standards internacionais que visam certificar que as empresas cumprem determinados padrões de qualidade. A sua obrigatoriedade apenas poderá resultar da vontade das partes contratantes ou da lei que remeta para esses standards ou regras.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 11579/21.3YIPRT.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 4


Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório
SUCH - Serviço de Utilização Comum dos Hospitais, com sede no ..., Av. ..., ..., ... Lisboa, intentou contra A..., Lda., com sede na Rua ..., ... ..., procedimento de injunção para cobrança da quantia de 77.865,74€, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de 2.488,26€, e vincendos, correspondente ao preço dos serviços de esterilização e embalamento de zaragatoas que prestou à requerida e que esta não pagou.
A requerida deduziu oposição, alegando que o requerente se obrigou a obter, antes de prestar os serviços de esterilização e embalamento das zaragatoas, a certificação ISO 13485, sendo tal obtenção de certificação condição essencial à concretização do negócio entre as partes, pois que a requerida não teria contratado o serviço se essa certificação não fosse previamente obtida. Mais alegou que o requerente não elaborou nem entregou à requerida relatórios ou registos documentais que permitissem afirmar a validade da esterilização efectuada e demonstrar o cumprimento das regras e imposições previstas, pelo que não é possível proceder à análise da conformidade da esterilização nem, consequentemente, comercializar as referidas zaragatoas.
Com fundamento no cumprimento defeituoso assim invocado, a requerida deduziu pedido reconvencional, alegando ter sofrido os seguintes danos: 83.089,72€ que despendeu na aquisição de 296.749 zaragatoas; 281.892,00€ a título de lucros cessantes pela não venda dos conjuntos de zaragatoas e tubo; 15.434,58€ a título de lucros cessantes pela não venda de zaragatoas individuais. Nestes termos, peticionou a condenação da requerente a pagar-lhe a quantia de 380.416,30€, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a notificação da reconvenção.
Após distribuição dos autos como acção com processo comum, a autora apresentou réplica, pugnando pela improcedência da reconvenção.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio, enunciados os temas da prova e designada data para audiência de discussão e julgamento, que se veio a realizar e na sequência da qual foi proferida sentença, que termina com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, o Tribunal julga a presente acção procedente e a reconvenção improcedente e, em conformidade:
a) absolve ao A. SUCH - Serviço de Utilização Comum dos Hospitais do pedido reconvencional deduzido pela R. A... Ldª;
b) condena a R. A... Ldª a pagar ao A. SUCH - Serviço de Utilização Comum dos Hospitais a quantia de 77.337,48 euros (setenta e sete mil trezentos e trinta e sete euros e quarenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora acrescida de juros de mora comerciais, nos termos definidos nesta decisão, aplicando-se quaisquer taxas que, de futuro, venham a alterar a taxa relativa aos juros de mora comerciais, enquanto tal quantia não se encontrar paga, e ainda 40,00 euros (quarenta euros) de despesas com aquela cobrança.
Custas da acção e da reconvenção pela R. (art. 527º do C. P. Civil).
Notifique e registe, ainda que apenas electronicamente.»
*
Inconformado, o réu apelou da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«I) A sentença recorrida foi proferida, com todo o respeito, ao arrepio do Direito e dos factos, designadamente, a sentença recorrida não poderia ter decidido nos termos em que decidiu ao condenar a Recorrente no pedido formulado pela Recorrida no requerimento de injunção e ao julgar improcedente a reconvenção apresentada.
II) A decisão proferida é profundamente errada do ponto de vista jurídico mas, também, do ponto de vista factual relativamente aos pontos 18.º, 19.º e 22.º ora em crise sendo objeto do presente recurso a sua reapreciação e sua alteração pelos factos existentes e prova produzida que assim o determina após ser por este Colendo Tribunal ouvida e verificar que a sentença padece de manifesto erro de julgamento. (662.º n.º 1 do CPC), mais precisamente, foram mal julgados os seguintes factos: 18 - O A. esterilizou e embalou as zaragatoas cumprindo as determinações da norma ISO 13485; 19 - O A. possui os relatórios e registos documentais que permitem verificar os termos em que foi efectuada a esterilização de cada lote de zaragatoas e que demonstram o cumprimento das regras e imposições previstas, nomeadamente registo de testes químicos, indicadores microbiológicos, temperatura da esterilização etc. (…) 22 - A existência da certificação da norma não é condição obrigatória para a comercialização das zaragatoas, sendo condição para esta comercialização o cumprimento da norma. - cfr. sentença recorrida.
III) Os elementos juntos aos autos, e, principalmente, aqueles que não estavam junto aos autos, determinavam, ao Tribunal Recorrido, uma decisão diversa daquela que foi proferida quanto aos pontos 18.º, 19.º e 22.º que, por conseguinte, deveriam merecer a resposta de NÃO PROVADO e, por conseguinte, em virtude desta alteração da matéria de facto a decisão recorrida terá que ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente o pedido da Autora contra a Ré e, diversamente, que seja julgada totalmente procedente a Reconvenção apresentada pela Autora.
IV) Com efeito, o julgamento dos factos provados 18), 19) e 22) vai expressamente impugnado, o que se faz para os devidos e legais efeitos já que o Tribunal recorrido não considerou a legislação nacional e internacional sobre este tema e não explicou, diretamente em que documentos e/ou testemunhas que se alicerçou para dar esta resposta aos factos provados 18, 19.º e 22.º porquanto analisada a sentença em crise verifica-se que o Tribunal decidiu considerar provados estes factos com base na “prova testemunhal” que foi “inequívoca”
V) A prova testemunhal em momento algum demonstrou, nem poderia demonstrar, algo que só através de documentos poderia ser provado e se há coisa que não foi a prova testemunhal é “inequívoca” para a resposta fática dada pelo Tribunal recorrido aos três factos em crise; refere o Tribunal recorrido que os serviços da R. “seriam prestados com o cumprimento da norma ISO citada, que estava já implementada e em relação à qual o A. se encontrava em processo de certificação. Que esta certificação não era uma exigência prévia à prestação do serviço (…) Quanto à questão dos registos dos ciclos, a troca de e-mails é clara e permite concluir que foi o A. quem revelou à R. que tal registo existia quando esta lhe pediu que concretizasse o que foi feito (…)” - cfr. sentença.
VI) Da prova produzida e da lei resultam, inequivocamente, duas questões e duas obrigações a cargo da Recorrida, empresa contratada para a realização de serviços de esterilização dos lotes dos produtos: a obrigação de cumprimento da norma ISO 13485 (1) e, bem assim, a obrigação de manter relatórios e registos documentais que permitam verificar os termos em que foi efetuada a esterilização de cada lote de zaragatoas (2).
VII) Quanto à primeira questão, como é facto notório (art. 5.º n.º 2 c) do Cód. de Processo Civil), o reprocessamento de dispositivos médicos, atividade que inclui a esterilização, é um processo vital para a minimização dos riscos de saúde de pacientes e profissionais de saúde.
VIII) Não poderemos desconsiderar que os factos em causa se balizam no período temporal mais crítico da crise pandémica global de Covid 19 que enfermou todo o globo, incluindo Portugal, sendo que a matéria sub judice era respeitante a processo de venda de dispositivos médicos cuja produção envolve elevada complexidade e criticidade para a saúde pública, o que determina que o reprocessamento de dispositivos médicos está enquadrado em legislação própria, nacional e comunitária, que estabelece as regras e as linhas de orientação necessárias para assegurar as boas práticas e a eficácia destes processos.
IX) Deste modo, existirá por parte das entidades que executam estes processos, a obrigatoriedade de implementação e certificação de um Sistema de Gestão da Qualidade, circunstancialismo que a Autora, Recorrida não cumpria – cfr. facto provado n.º 16.
X) Com efeito, e no caso dos dispositivos médicos designados de “uso único”, como é o caso das zaragatoas, o Despacho n.º 7021/2013, de 30 de Maio, não deixa qualquer dúvida relativamente a esta questão. No n.º 8 do mesmo pode ler-se: “8 – A entidade reprocessadora deve dispor de um sistema de qualidade implementado e certificado no âmbito da norma NP EN 13485, o qual deve cobrir o processo de reprocessamento”. no caso dos dispositivos médicos reutilizáveis, a análise mais atenta permite concluir que a obrigatoriedade, nestes casos, é também aplicável. Efetivamente, o Decreto-Lei n.º 145/2009, de 17 de Junho, estabelece as disposições aplicáveis aos dispositivos médicos, no que respeita à marcação CE (Capítulo III, artigos 7.º a 10.º) e ao fabrico (Capítulo X, artigos 30.º a 35.º).
XI) No âmbito da marcação CE de dispositivos médicos, o referido decreto-lei estabelece, no artigo 9.º, o seguinte: “Procedimento para esterilização 1 – Qualquer pessoa singular ou colectiva que esterilize, com vista à sua colocação no mercado, dispositivos médicos com a marcação CE, concebidos pelo seu fabricante para serem esterilizados antes da sua utilização, deve optar por um dos procedimentos previstos nos anexos II ou V do presente decreto–lei (…)”
XII) Ora, no Anexo II e, também, no Anexo V do mesmo decreto-lei, é estabelecido que: “(…) O fabricante deve apresentar um pedido de avaliação do seu sistema da qualidade ao organismo notificado (…)” “(…) O fabricante deve aplicar o sistema da qualidade aprovado para a concepção, o fabrico e o controlo final dos produtos em questão (…)”
XIII) Neste mesmo Decreto-Lei, verifica-se que a esterilização de dispositivos médicos está enquadrada no capítulo X – “Fabrico”: “Capítulo X – Fabrico Artigo 30.º – Notificação 1 – O exercício em território nacional das actividades de fabrico, montagem, acondicionamento, execução, renovação, remodelação, alteração do tipo, rotulagem ou esterilização de dispositivos médicos quer destinados à colocação no mercado quer à exportação está sujeito a notificação da autoridade competente e à fiscalização por parte desta nos termos do presente decreto-lei. (…); artigo 31.º -Fabrico (…) – Os requisitos mínimos relativos ao fabrico de dispositivos médicos são estabelecidos em portaria do membro do Governo responsável pela área da saúde, a emitir no prazo de um ano. Até à adopção da portaria referida no número anterior é aplicável a Norma Europeia EN ISO 13485:2003 (…)”
XIV) Ou seja, existe a obrigatoriedade de implementação de um sistema da qualidade de acordo com a norma ISO 13485 e a obrigatoriedade de aprovação do sistema da qualidade por um organismo notificado (tal resulta da lei) e isto porque o processo de esterilização deve cumprir os requisitos regulamentares em vigor e ser avaliado com base em critérios instituídos que comprovem a eficácia do processo, por estarem em causa questões de saúde pública.
XV) Por conseguinte, para se saber se a Autora/Recorrida esterilizou e embalou as zaragatoas em cumprimento as determinações da norma ISSO 13485 cumpria que a Autora o demonstrasse nos autos. Como? Desde logo cumprindo com a legislação em vigor acima referida ou, então, que o demonstrasse por outros meios idóneos, o que não foi o caso, conforme infra se explica.
XVI) Por conseguinte a resposta ao ponto 22) terá que ser alterada nos seguintes termos: A existência da certificação da norma é condição obrigatória para a comercialização das zaragatoas, sendo condição para esta comercialização o cumprimento da norma.
XVII) Quanto à segunda questão, da legislação e da prova produzida resulta que cada lote de zaragatoas esterilizadas pela Recorrida, se cumpridos a lei e o contrato celebrado, estará espelhado em documento comprovativo desse circunstancialismo.
XVIII) Com efeito, as verificações/validações para esterilizações a calor húmido, mesmo que subcontratadas, devem ser realizada pelo ISO 17665-1:2006. A norma exige:
a) Protocolo e relatório referente à validação da esterilização com o produto a comercializar, baseada na qualificação da instalação, qualificação operacional e qualificação de performance, tal como indicado na cláusula 9 da ISO 17665-1:2006:
(…)
b) Registos que comprovam a monitorização e o controlo da esterilização de rotina assim como a respetiva conformidade, tal como indicado na cláusula 10.1 da ISO 17665-1:2006: “Routine monitoring and control shall be performed on each operating cycle.”. Isto traduz-se nos registos do parâmetros a cada ciclo e a documentação/testes associados aos mesmos – testes químicos e/ou de indicadores microbiológicos, tal como indicado nas cláusulas 10.4 (“Delivery of the sterilization process shall be verified from the results of chemical indicators (see 8.8) or biological indicator systems (see 8.5 or 8.6), if used, and by confirming that within specified tolerances, recorded data from routine monitoring match data from validation”) e 10.5, 10.6 da ISSO 17665-1:2006:
(…)
I. Só com a documentação entregue pelo subcontratado é possível proceder à análise da conformidade da esterilização e libertar o material para o mercado, tal como exigido pela ISO 13485:2016, MDR 745/2017 e como indicado na cláusula 11.1 da ISO 17665:2006: “Procedures for the review of records and product release from the sterilization process shall be specified. The procedure(s) shall define the requirements (see 9.5.2 and 10.3 as appropriate) for designating a sterilization process as conforming. If a requirement is not met, product shall be designated as nonconforming and handled in accordance with 4.4”
XIX) Portanto, a legislação acima citada – que o Tribunal recorrido desconsiderou – juntamente com a prova produzida, foram claras ao afirmar que existe documentação passível de demonstrar se as zaragatoas foram ou não esterilizadas de acordo com o cumprimento das regras e imposições previstas, nomeadamente registo de testes químicos, indicadores microbiológicos, temperatura da esterilização, etc.
XX) Tendo ficado patente em julgamento, designadamente através da prova testemunhal de AA e BB que a Ré SUCH recusou-se a entregar tais comprovativos quando lhe foram solicitados para efeitos de cumprimento do contrato que haviam celebrado com uma empresa suíça que havia contratado a Recorrente para o fornecimento de 360 mil zaragatoas esterilizadas.
XXI) Mais precisamente, relevam os depoimentos de CC e DD, ambos responsáveis da Recorrida (cfr. transcrições em alegações 51 e 52 que aqui se consideram reproduzidas para os devidos e legais efeitos), bem como o depoimento de EE, testemunha da Ré/Recorrente, confirmou aos 24m02s do seu depoimento prestado em 15.06.2022, que o contrato foi considerado incumprido pela Recorrente pelo facto da Autora/Recorrida não dar cumprimento ao contratualizado relativamente ao serviço de esterilização das zaragatoas.
XXII) Em idêntico sentido depôs AA, cujo depoimento se considera aqui integralmente reproduzido, à data legal representante da Ré/Recorrente que foi perentório ao afirmar da necessidade que possuíam em ter os comprovativos que as esterilizações das zaragatoas eram realizadas de acordo com a norma ISO 13485.
XXIII) A este propósito veja-se o e-mail de 14.09.2022 através do qual a Recorrente refere “(…) estamos a tratar de alguma documentação relativa às zaragatoas e precisávamos de algumas informações concretas relativas ao trabalho que tem sido realizado no SECH. Além de alguns detalhes sobre os ciclos de autoclave utilizados, precisávamos de documentar um pouco da metodologia de trabalho em termos de receção do material, esterilização, embalamento e expedição. Pedia-lhe alguma informação concreta sobre os procedimentos que asseguram a integridade e organização dos lotes” – cfr. e-mail de 14.09.2020 em fls._dos autos.
XXIV) E, outrossim, o e-mail de 20.10.2022 através do qual a Recorrente questiona a Recorrida sobre qual a situação da ISSO 13485 – cfr. e-mail de 20.10.2022 em fls._dos autos.
XXV) Para além disso, chamamos aqui à colação o depoimento de AA que, de forma segura, espontânea e imparcial explicou os termos do negócio celebrado entre Recorrente e Recorrida e, bem assim , explicitou que a controvérsia entre as partes alicerçou-se no facto da Recorrida não ter entregue a documentação que era pressuposto entregar juntamente com as zaragatoas que haviam sido por esta esterilizadas.
XXVI) Com efeito, no depoimento pela testemunha em 12.07.2022 afirmou AA que a Recorrente decidiu enveredar pela área da produção de zaragatoas e dispositivos médicos utilizados para o combate à pandemia de Covid 19 (3m20m e ss) e explicou, relativamente, à contratação da Recorrida para esterilização das zaragatoas o seguinte: - “A partir do momento em que alguém nos diz que tem uma certificação que está em curso, pode demorar 1 mês, 2 meses, poderia até durar mais eventualmente, já passou auditorias internas (…) por isso é uma coisa muito clara: os procedimento estão a ser implementados. Se estão a ser implementados estão em processo de estarem aptos a serem auditados por um organismo certificado (…) quando a sra. Doutora afirma que nós continuamos a enviar zaragatoas mesmo não tendo conhecimento se a SUCH naquele momento estava certificada ou não, esse não será um grande problema para nós. Porquê? Porque acima de tudo, se temos a informação por parte da SUCH que passamos em auditorias internas e estamos à espera de auditorias externas os procedimentos têm que estar a ser cumpridos. Os procedimentos têm de estar a ser implementados de acordo com a norma. Isto para nós, não sendo a melhor solução do mundo – a melhor solução do mundo seria ter uma empresa que já estivesse certificada e que nos desse essa garantia – numa altura de pandemia, numa altura em que não temos mais alternativa, em Portugal, em Espanha, em França, (…) consultamos várias empresas para nos prestar esse serviço e ninguém nos conseguiu responder afirmativamente (…) teria que ser suficiente para nós. E foi nesse sentido que escolhemos trabalhar com SUCH” – cfr. depoimento de AA prestado em 12.07.2022 - 28m30s.
XXVII) Explicou que, para vender as zaragatoas a Recorrente teria que emitir declarações de conformidade dos produtos de acordo com as normas em vigor – cfr. depoimento de AA prestado em 12.07.2022 - 34m33s.
XXVIII) Aliás, a mercadoria ainda hoje está na empresa à espera de declarações de conformidade para poder ser exportada, o que não pode acontecer porque o prazo de validade das mesmas já expirou -cfr. depoimento de AA prestado em 12.07.2022 - 36m e ss.
XXIX) Consideram-se aqui integralmente reproduzidas as transcrições do depoimento da testemunha AA (cfr. alegações 62 a 71) quando explicou, de forma pormenorizada as circunstancias do incumprimento contratual da Recorrida, explicando que a SUCH disse que não emitiria as declarações enquanto não fossem pagas as facturas que estavam vencidas (1h29m04s) e que nunca ficou contratualizado que a A... Recorrente teria que pagar antecipadamente, o que fazia com que os dispositivos médicos não pudessem ser vendidos ou transacionados no mercado por falta de documentação necessária à emissão das declarações de conformidade do produto, conforme facto provado n.º 23.
XXX) Mais explicou aos 1h33m02 e ss que, como um relógio de marca (deu o exemplo de um ROLEX), é o certificado que garante as condições e integralidade do produto: “isto é um documento, uma espécie de máquina registadora que sai com toda essa informação” (1h33m53s).
XXXI) Com relevância para os presentes autos veja-se, outrossim, o depoimento da testemunha BB, Diretor de Qualidade da Recorrente, que, também, prestou depoimento no mesmo dia 12.07.2022 perante o Tribunal recorrido em audiência de discussão e julgamento (cfr. alegações e transcrições nos arts. 73.º a 82.º) que foi clara ao explicar que era um dever essencial/obrigação da Recorrida em entregar os comprovativos das esterilizações realizadas para que os produtos pudessem ser transacionados e que, as facturas emitidas e reclamadas, não tinham subjacente a prestação de um serviço válido e eficaz para os fins a que se destinavam.
XXXII) Isto é, as zaragatoas esterilizadas pela Recorrida não serviam para serem vendidas pelo que o contrato não estava por esta a ser cumprido; ao contrário do referido pelo Tribunal recorrido, quando cuida de dizer que a Recorrente só se “lembrou” da questão dos certificados e declarações dos lotes quando foi a altura de pagar os serviços prestados pela SUCH, ficou demonstrado que o que sucedeu é que tais certificados foram pedidos quando os mesmos ser reportavam necessários, quando era necessário expedir o produto para o cliente suíço da Recorrente.
XXXIII) Mais confirmou a testemunha, que trabalhava nesta área médica, no âmbito do mercado dos produtos médicos, que, de acordo com as normas, é do senso comum do mercado que quem participa na fabricação destes dispositivos médicos tem que ter esses registos para que possam feitas as declarações de conformidade e que não há necessidade de se pedir esses documentos porque está implícito esse seu pedido (10m56s e ss): “Quando subcontratamos um serviço que é para ser feito de acordo com as normas de referência pressupõem-se sempre que os registos existem e que são disponibilizados a quem contrata o serviço” (cfr. depoimento de BB prestado em 12.07.2022 - 12m20s).
XXXIV) Portanto, não ficou demonstrado nos autos que a Autora esterilizou e embalou as zaragatoas cumprindo as determinações da norma ISSO 13485 porque para isso teria que o demonstrar documentalmente e não através de prova testemunhal; de igual modo, não ficou demonstrado nos autos que a Autora possui relatórios e registos documentais que permitem verificar os termos em que foi efetuada a esterilização de cada lote de zaragatoas e que demonstram o cumprimento das regras e imposições previstas.
XXXV) Isto porque tal matéria era controvertida (vejam-se a contestação com reconvenção e réplica), pelo que cumpriria aferir, como se impõe em sede judicial, da realidade dos factos e da certeza que não a mera fé.
XXXVI) A verdade é que a Recorrente adquiriu zaragatoas e solicitou os serviços da Recorrida para que os pudesse escoar para o mercado, o que não logrou fazer em virtude da falta de cumprimento das normas ISSO 13485 pela Recorrida e da prova que as esterilizações e embalamentos foram realizadas de acordo com as regras gerais.
XXXVII) Já que não poderia a Recorrente garantir perante os seus clientes que tais produtos estariam nas condições impostas pela lei nacional, europeia e internacional porque lhe faltavam os comprovativos para esse efeito, tão-pouco poderia ser emitida a declaração de conformidade a que alude o Decreto-Lei n.º 145/2009, de 17 de Junho relativo às regras a que devem obedecer a investigação, o fabrico, a comercialização, a entrada em serviço, a vigilância e a publicidade dos dispositivos médicos e respectivos acessórios e transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2007/47/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de Setembro.
XXXVIII) Ou consideraria o Tribunal recorrido que a Recorrente, por ter a sentença em crise, a poderá exibir a um cliente, a um hospital, a uma farmácia, etc para demonstrar que os seus produtos estão de acordo com a legislação em vigor? Zaragatoas que, como resultou da prova produzida, estão inutilizadas pelo decurso do prazo de conservação. Naturalmente que isto não é aceitável, muito menos compreensível - mais, como é sabido, nos termos doa rt. 61.º do Decreto-lei nº 145/2009, de 17 de Junho constitui contraordenação elaborar declarações de conformidade ao arrepio da lei já que estão em causa questões de saúde pública que cumpria à Recorrente respeitar.
XXXIX) Tais declarações de conformidade apenas poderiam ser redigidas para que o produto pudesse ser vendido se a Recorrida as tivesse fornecido, pelo que, com todo o respeito, carece de fundamento legal a resposta dada aos factos provados n.ºs 18 e 19.
XL) Com efeito, a inércia processual da Recorrida, de juntar aos autos os elementos demonstrativos que à Recorrida nunca foram demonstrados – porque, em boa verdade, não existem – foi premiada com o mérito da causa, contra a ideia de que aquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (art. 342.º n.º 1)- Actor probat actionem; Isto porque, o que “não está nos autos, não está no mundo” - Quod non est in actis, non est in mundo.
XLI) Resulta do disposto do art. 341.º do Código Civil que as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que a demonstração da realidade dos factos de que nos fala o legislador, tem, naturalmente, carácter subjectivo e tem por finalidade convencer o tribunal da bondade dos argumentos apresentados num e noutro sentido, formando nele uma convicção acerca de cada facto quesitado.
XLII) A prova visa fundamentalmente convencer o Julgador da veracidade das afirmações feitas pelas partes, devendo o Tribunal julgar com base nos conhecimentos adquiridos através do processo e não por outros conhecimentos que cheguem a si fora dele; tal concepção advém do princípio do dispositivo consagrado entre nós, isto é, de que o Julgador só pode ater-se aos factos transportados para o Tribunal pelas partes – art. 5.º CPC – sendo que só os factos notórios é que não carecem de prova (art. 5.º n.º 2 c) do CPC).
XLIII) Nesse sentido, e numa interpretação a contrario, todos os outros necessitam da sua demonstração; a tese do Tribunal recorrido, que a prova testemunhal é idónea a demonstrar algo tão objetivo e evidente que é provável por documento não se pode aceitar, quando ficou demonstrado o oposto: que existiam relatórios e registos que não foram emitidos e enviados à Recorrente e só esses demonstrariam o cumprimento das regras legais para efeitos de resposta positiva aos factos 18 e 19.
XLIV) A Recorrida tinha o ónus – a obrigação legal – de demonstrar perante o Tribunal (já que perante a Recorrente nunca o fez previamente ao litigio sub judice), que o embalamento e esterilização das zaragatoas estavam realizada de acordo com os procedimentos em vigor para cumprimento do contrato de prestação de serviço que outorgou com a Recorrente[1].
XLV) Tinha por conseguinte a Recorrida o encargo de fornecer a prova do facto visado, através da junção dos documentos que alegadamente existiam (“registos documentais que permitem verifica ros termos em que foi efetuada a esterilização de cad lote de zaragatoas”), por isso, caso não o fizesse, incorreria “nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova; ou da necessidade de, em todo o caso sofrer tais consequências se os autos não contiverem prova bastante desse facto (trazida ou não pela mesma parte” (Vd. MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1956, pág. 184) – o que aqui não sucedeu, pois quem sofreu as desvantajosas consequências foi a Recorrente.
XLVI) Mais se diga que não estamos perante a discricionariedade da livre apreciação da prova, porquanto o principio da livre apreciação da prova, segundo os sábios ensinamentos do Professor ALBERTO DOS REIS, “significa apenas a libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, entretanto, se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas” - Vd. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3, pág. 245; e em sentido idêntico vide Vol. 4.º, pág. 570
XLVII) Deste modo, consubstanciando-se o ónus da prova num encargo para a parte a quem compete (o Recorrido), e não tendo este logrado fazer prova do facto integrativo do seu direito através da junção dos documentos que se impunham (designadamente os relatórios e registos documentais dos trabalhos para cada lote), sendo impossível para a Recorrente fazer prova negativa desse facto.
XLVIII) Seria a prova documental (art. 362.º Cód. Civil) o meio idóneo e legal a cargo da Recorrida, e do Julgador para aferir da existência ou não da existência dos mesmos porque só os mesmos poderiam demonstrar aquilo que ficou dado como PROVADO, porquanto o documento corporiza “uma declaração de verdade ou ciência, isto é, uma declaração testemunhal destinada a representar um estado de coisas, pelo que deve ser um documento em sentido estrito. Há-de ser ainda um documento decisivo, dotado, em si mesmo, de tal força que possa conduzir o juiz à persuasão de que só através dele a causa poderá ter solução diversa daquela que deve” - Vd. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Março de 1974, BMJ, pág. 219.
XLIX) O mais flagrante é, no entender da Recorrente, violação do disposto nos arts. 393.º e 394.º do Código Civil, pois se existam documentos impostos pela legislação para prova do cumprimento das regras de acondicionamento e esterilização dos produtos (como referiram todas as testemunha que prestaram depoimento perante o Tribunal recorrido, desde logo, aquelas que foram indicadas pela Recorrida), significa então que a prova testemunhal não poderia ser utilizada da forma como foi pelo Tribunal Recorrido para se dar como provado os factos 18) e 19): ”A prova desse acto só pode produzir-se através de documento escrito; essa exibição apenas poderá ser substituída por confissão expressa judicial ou por confissão expressa extrajudicial constante de documento de valor igual ou superior - Vd INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Parecer do Professor, publicado na CJ, 1984, 4.º, pág. 5.
L) No litígio aqui em causa, violou-se o disposto no art. 393.º do Código Civil, mas, também, a decisão recorrida viola outra norma do nosso Código Civil: o art. 394.º; tal norma destina-se, como nos ensina VAZ SERRA, a defender a autoridade e estabilidade dos documentos contra a falibilidade da prova testemunhal, em conformidade com a máxima lettres passent téamoins - Vd. VAZ SERRA, RLJ, 113 – 121.
LI) Tal configura, como dissemos, uma manifesta violação das normas dos artigos 393.º e 394.º do CC, assim como de todas as regras existentes quanto à repartição do ónus da prova (arts. 342.º e seguintes CC) pelo que a decisão recorrida deu como provado que as zaragatoas que a Recorrente tem em sua posse foram embaladas e esterilizadas cumprimento as determinações da norma ISO 13485 sem que tenha sido realizada qualquer prova, não obstante os documentos que o comprovem e que estão na posse da Recorrida, não ter sido carreados para os autos pela parte que alegou a sua existência (e que fundamentava o seu direito) – a Recorrida.
LII) Por isso não se pode aceitar, com todo o respeito, a resposta dada pelo Tribunal recorrido ao facto PROVADO n.º 18 e, de igual modo, não poderia o Tribunal recorrido considerar PROVADO o que veio a considerar PROVADO no facto n.º 19 relativamente à circunstância da Recorrida ter em sua posse os relatórios e registos documentais que permitem verificar os termos em que foi efetuada a esterilização de cada lote de zaragatoas e que demonstram io cumprimento das regras e imposições previstas nomeadamente registo de testes químicos, indicadores microbiológicos, temperatura da esterilização, etc-.
LIII) Por isso, foi premiada e galardoada a inércia e o desinteresse processual da Recorrida, sendo que os documentos acima referidos eram o único meio de prova admissíveis para permitir a prova dos factos 18) e 19): a existência de certificação que comprovava que a Recorrida havia implementado a norma ISO 13485 e a prova da existência dos relatórios e registos documentais de cada um dos lotes de zaragatoas que haviam sido pela Recorrida esterilizados.
LIV) Ou seja, deverá este Colendo Tribunal proceder à alteração da resposta dada aos factos provados 18) e 19) considerando-os NÃO PROVADOS, isto é, NÃO PROVADO QUE O A. esterilizou e embalou as zaragatoas cumprindo as determinações da norma ISO 13485 (facto 18) e NÃO PROVADO que o A. possui os relatórios e registos documentais que permitem verificar os termos em que foi efectuada a esterilização de cada lote de zaragatoas e que demonstram o cumprimento das regras e imposições previstas, nomeadamente registo de testes químicos, indicadores microbiológicos, temperatura da esterilização etc (facto 19); De igual modo, pela legislação acima citada o ponto 22) terá que ser alterada nos seguintes termos: A existência da certificação da norma é condição obrigatória para a comercialização das zaragatoas, sendo condição para esta comercialização o cumprimento da norma.
LV) Por tudo isto, a Decisão recorrida viola gravemente várias normas, pelo que ao julgar como julgou o Tribunal recorrido violou, entre outras, as disposições dos artigos 341.º, 342.º, 392.º, 393.º, 394.º do Código Civil, 5.º n.º 2 c), 264.º do Código de Processo Civil, bem como foram violados o despacho n.º 7021/2013, de 30 de Maio e o Decreto-Lei n.º 145/2009, de 17 de Junho.
LVI) Considerando a alteração à resposta à matéria de facto relativamente aos pontos 18.º, 19.º e 22.º que cumpre que este Tribunal altere a decisão recorrida terá, naturalmente, que ser revogada e substituída por outra que condene a Recorrida nos pedidos formulados na P.I
LVII) Com efeito, o contrato de compra e venda celebrado entre a A. e a Ré foi deficientemente cumprido – cumprimento defeituoso[2].
LVIII) O artº 799º do Código Civil, como diz A. VARELA, coloca o cumprimento defeituoso da obrigação ao lado da falta de cumprimento, dentro da categoria geral da falta culposa de cumprimento a que genericamente se refere o artº 798º do mesmo Código.
LIX) Não logrando o devedor ilidir a presunção de culpa contida no nº 1 do artº 799º do Código Civil, verifica-se o concurso de todos os pressupostos ou requisitos da sua responsabilidade contratual (cfr. entre outros Ac. do STJ de 25.10.2012, processo n.º 3362/05.TBVCT.G1.S1 em www.dgsi.pt).
LX) Ora, a Recorrida não ilidiu a presunção de culpa: muito pelo contrário. Ficou demonstrado que a Recorrida forneceu à Recorrente produtos e um serviço que não estavam aptos para os fins a que se destinavam: as zaragatoas que haviam sido esterilizadas pela Recorrida não estavam acompanhadas dos documentos que atestavam o cumprimento das normas.
LXI) Essa documentação é intrínseca ao cumprimento do contrato: sem esses documentos não pode dizer-se que a Recorrida cumpriu o contrato.
LXII) A Recorrida violou os deveres laterais de conduta a que estava obrigada: “I -Nas relações obrigacionais contratuais, além dos deveres principais ou típicos e dos deveres secundários de prestação, existem os deveres acessórios de conduta também essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional e que encontram o seu fundamento legal no dever de boa-fé a que alude o n. 2 do artigo 762 do Código Civil” – cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 10.03.1994, processo n.º 084699 em www.dgsi.pt[3]
LXIII) E a violação dos deveres de conduta consubstancia incumprimento contratual, conforme salientam os Senhores 1. A violação dos deveres laterais ou acessórios constitui violação dos deveres inscritos na relação obrigacional (…) Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra: “” – cfr. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 09 de Novembro de 2004, processo n.º 2278/04 em www.dgsi.pt.
LXIV) Por conseguinte, a Recorrente não conseguiu vender as zaragatoas e incumpriu o contrato através do qual havia recebido a quantia de €360.750,00 mas através do qual iria receber um montante global de EUR. 481.000,00 (2600 Kits x €185,00) – cfr. factos provados n.ºs 24 a 27.
LXV) Ou seja, ficou demonstrado que a Recorrente em Abril de 2020 havia celebrado mm contrato de fornecimento de dispositivos médicos, o qual incluía o fornecimento de 260.000 zaragatoas esterilizadas e embaladas, pelo qual ia receber o montante global de EUR. 481.000,00 (2600 Kits x €185,00).
LXVI) Sucede que, resultou evidente que iniciados os serviços de esterilização e embalamento, verificou-se que a Recorrida não estava a cumprir com o acordado entre as partes, nomeadamente, com o estabelecido nos pontos 3.2 da proposta apresentada e, consequentemente, com o estabelecido na 3ª clausula do contrato celebrado
LXVII) Resultou demonstrado que a Recorrente não estava a efetuar os serviços contratualizados sem ainda ter obtido a certificação da unidade pelo SGQ (norma ISO 13485), E, mais grave, sem que tivesse efetuado o serviço contratualizado cumprindo as regras, procedimentos e documentação impostos na norma ISO 13485, Regulamento (UE) 2017/745 e norma ISO 17665 (aplicável por força da remissão feita pela norma ISO 13485 relativamente aos serviços de esterilização).
LXVIII) Mais concretamente, não cumpriu com o estabelecido nas cláusulas nºs 9, 10.1., 10.5 e 10.6 da ISO 17665-1:2006 (aplicável por força da remissão feita pela norma ISO 13485 relativamente aos serviços de esterilização), pois não elaborou, nem entregou à Recorrente os relatórios e/ou registos documentais que permitissem validar a esterilização efetuada e demonstrassem o cumprimento das regras e imposições previstas nessas cláusulas de cada uma das zaragatoas esterilizadas, nomeadamente, registo de testes químicos, indicadores microbiológicos, temperatura da esterilização, etc.
LXIX) Omissão essa que faz com que não seja possível proceder à análise da conformidade da esterilização e, consequentemente, não seja possível comercializar as zaragatoas esterelizadas nesses moldes, razão pela qual, a Recorrente deixou de enviar mais zaragatoas para que a Recorrida as esterilizasse e embalasse.
LXX) Porque tais omissões não podem ser corrigidas e/ou sanadas à posteriori, isso fez com que as zaragatoas deficientemente esterilizadas pela Recorrida, num total de 296.749 (Duzentas e noventa e seis mil, setecentas e quarenta e nove), se tornassem impróprias para comercialização (fim visado com a sua fabricação e esterilização), deixando, por isso, de terem qualquer uso e/ou utilidade comercial para a Recorrente, pelo que nada mais restará à mesma do que proceder à sua destruição.
LXXI) Por esse motivo, conforme facto PROVADO n.º 21 em Dezembro de 2020, a Recorrente remeteu à Recorrida um oficio nos termos do qual lhe comunicava que “(…) Perante isto, face ao supra descrito, e porque V. Exas. não cumpriram o contratualmente estabelecido, nomeadamente, por violação do estabelecido na 3ª Cláusula, incumprimento esse que impede que a n/empresa possa comercializar os produtos em causa, vimos por este meio informar que não iremos liquidar o valor das faturas emitidas por V. Exas.” – Trans. Parcial do doc. 04 junto com a Contestação.
LXXII) Para além de outras reclamações e queixas feitas verbalmente e por escrito, conforme resultou demonstrado do depoimento prestado por AA e BB em audiência de discussão e julgamento perante o Tribunal recorrido.
LXXIII) No fabrico das zaragatoas estragadas pela Recorrida, excluindo os custos referentes à esterilização e embalamento, a Recorrente teve custos de produção de EUR. 0,28 (vinte e oito cêntimos) por zaragatoa; as zaragatoas produzidas pela Recorrente são feitas por impressão 3D, usando para o efeito impressoras FORMLABS, usando o software Preform, seguindo a metodologia de fabricação, utilizando os produtos e com os custos mais bem descritos no documento que ora se remete e se designa de cálculo custos de produção de zaragatoas para cujo conteúdo se remete na sua integralidade por uma questão de economia processual.
LXXIV) Os custos em causa reportam-se, sumariamente, a custos de mão-de-obra, aquisição e desgaste de equipamentos, eletricidade, embalamento, matérias-primas utilizadas (resina, álcool, tanques das impressoras daí que, a Recorrida com a sua conduta incumpridora, ao inutilizar as 296.749 zaragatoas indevidamente esterilizadas, causou à Recorrente um prejuízo (na modalidade de dano emergente), no valor global de EUR. 83.089,72 (296.749 zaragatoas x €0,28) – cfr. documentos juntos com a Contestação.
LXXV) Continuando, ao não cumprir com o contratualizado, a Recorrida causou prejuízos à Recorrente a nível de lucros cessantes, isto porque fruto do incumprimento da Recorrida, a Recorrente não pode cumprir com o contrato de fornecimento de conjuntos/Kits de testes PCR à COVID-19 celebrado com a sociedade Suíça B..., SA – factos provados n.ºs 25 a 27.
LXXVI) Mais concretamente, conforme já referenciado, a obrigação contratual da Recorrente para com esse empresa consista no fornecimento de 2600 (dois mil e seiscentos) conjuntos/Kits de testes PCR à COVID-19, ao preço de EUR. 185,00 cada conjunto; Os conjuntos em causa eram compostos por: 100 zaragatoas esterelizadas, 100 tubos estéreis de colheita, 03 frascos de 10ml de meio de cultura e um manual de instruções; Ou seja, a Recorrente obrigou-se a fornecer 260.000 zaragatoas, 260.000 tubos estéreis de colheita e 7800 frascos de meio de cultura; Para o efeito, a mesma adquiriu à sociedade C..., Lda., NIPC nº ..., os tubos estéreis de colheita necessários, tendo pago a quantia de EUR. 32.103,00 para comprar 261.000, dos quais 260.000 se destinavam ao cumprimento do contrato – cfr. doc.s juntos com a Contestação.
LXXVII)Comprou à sociedade D... Ltd, sita em Israel, 7800 fracos de meio de cultura (MEM Eagle (Earle´s), tendo pago o montante global de US Dólares 32.760,00; feitos os câmbio à data da aquisição, a Recorrente despendeu a quantia de EUR. 30.123,60, na aquisição desses produtos – cfr. doc.s 08 e 09 juntos com a Contestação.
LXXVIII) Em conclusão, no fabrico das zaragatoas destinadas ao cliente em causa, incluíndo a esterilização, bem como o manual de instruções, a Recorrente ia ter custos unitários de EUR. 0,53 e na compra dos tubos estéreis de colheita, a Recorrente ia ter custos unitários de EUR. 0,12 cada; e na compra de frascos de meio de cultura, a Recorrente ia ter custos unitários de EUR. 3,86 – cfr. doc.s 08 e 09 juntos com a Contestação.
LXXIX) Pelo que, em cada conjunto, a Recorrente ia ter custos de EUR. 76,58 (100 zaragatoas x 0,53 + 100 tubos x 0,12 + 3 fracos x 3,84) – cfr. docs 05 a 09 juntos com a Contestação
LXXX) Como tal, tendo a Recorrente contratualizado a venda desses conjuntos ao preço unitário de EUR. 185,00 resulta que a Recorrente, por força do incumprimento da Recorrida, teve um prejuízo (na modalidade de lucros cessantes) de EUR. 281.892,00 (2600 conjuntos x EUR. 108,42), que urge reparar, o que se cuja condenação o Tribunal recorrido deveria ter determinado, o que não fez.
LXXXI) Para além disso, a Recorrente teve ainda prejuízos decorrentes da impossibilidade de comercializar as restantes 36.749 zaragatoas esterilizadas pela Recorrida que não se destinavam ao cumprimento do contrato supra referenciado.
LXXXII) Ora, à data dos serviços prestados pela Recorrida, a Recorrente comercializava as mesmas ao preço unitário de EUR. 0,95, pelo que, tendo as mesmas um custo unitário de EUR.0,53, REQUERIA iria ter um lucro de 0,42 em cada zaragatoa comercializada (€0,95 – €0,53) – cfr. facto provado n-º 26.
LXXXIII) Como tal, com a conduta incumpridora da Recorrida, a Recorrente sofreu prejuízos, na modalidade de lucros cessante, no montante de EUR. 15.434,58 (36.749 zaragatoas x €0,42).
LXXXIV) Em conclusão, fruto do incumprimento da Recorrida, a Recorrente, entre danos emergentes e lucro cessante, teve um prejuízo global de EUR. 380.416,30 (Trezentos e oitenta mil euros, quatrocentos e dezasseis euros, trinta cêntimos), acrescido dos juros de mora, cuja condenação o Tribunal recorrido deveria ter determinado, o que, indevidamente, não o fez, pelo que, ao julgar como julgou, o Tribunal recorrido violou, entre outras, o disposto no art. 799.º do Cód. Civil, devendo a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva a Recorrente do pedido formulado pela Recorrida e, ainda, que seja a Recorrida condenada a pagar à Recorrente o montante global de EUR. 380.416,30 (Trezentos e oitenta mil euros, quatrocentos e dezasseis euros, trinta cêntimos), acrescido dos respectivos juros de mora.»
Terminou pugnando pela revogação da sentença ora recorrida e pela sua substituição por outra que absolva a recorrente do pedido formulado pela recorrida e que condene esta última no pedido reconvencional formulado pela recorrente.
A autora respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela total improcedência do recurso interposto.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, são as seguintes:
1. O erro no julgamento da matéria de facto no que concerne aos pontos 18, 19 e 22 dos factos provados.
2. A improcedência da acção e a procedência da reconvenção com fundamento na alteração da decisão sobre a matéria de facto.
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III. Fundamentação
A. Decisão sobre a matéria de facto na primeira instância
1. Factos Provados
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
Da petição injuntiva:
1 – O A. é uma associação sem fins lucrativos, cujo objeto social consiste na realização de uma missão de serviço público, no âmbito da qual efectua a realização da generalidade dos serviços de apoio à prestação de cuidados de saúde.
2 – No âmbito do seu objeto social, o A. celebrou com a R., em 02/05/2020, um contrato de prestação de serviços de esterilização e embalamento de zaragatoas.
3 – Tal prestação de serviços traduziu-se na emissão das seguintes facturas:
- ...51 no valor de 9.569,15 euros, emitida em 29/05/2020 e com data de vencimento de 28/06/2020;
- ...20 no valor de 30.365,50 euros, emitida em 30/06/2020 e com data de vencimento de 30/07/2020;
- ...98 no valor de 10.732,24 euros, emitida em 31/07/2020 e com data de vencimento de 30/08/2020;
- ...15 no valor de 22.773,70 euros emitida em 31/08/2020 e com data de vencimento de 30/09/2020;
- ...30 no valor de 3.896,89 euros, emitida em 30/09/2020 e com data de vencimento de 30/10/2020.
4 – Apesar de insistentemente interpelada para efetuar o pagamento da divida, a R. nunca o fez.
Da oposição:
5 – A R. tinha, à data da celebração do acordo com o A., como objecto social “centro genético para investigação e desenvolvimento de aplicações clínicas da área da genética e do genoma humano”.
6 – Na data em questão, a R. não tinha meios, nem condições para proceder à esterilização e embalamento de zaragatoas esterilizadas de acordo com as regras e procedimentos impostos pelas normas internacionais aplicáveis à fabricação e comercialização de dispositivos médicos.
7 – A R. entrou em contacto com o A. expondo-lhe os serviços pretendidos, tendo o A., a 14/04/2020, apresentado a sua proposta para execução dos serviços de esterilização a calor húmido e embalamento das zaragatoas produzidas pelo A..
8 – Nos termos da proposta apresentada, o A. comprometia-se a “para a prossecução da presente prestação de serviços o SUCH obriga-se igualmente à obtenção e manutenção da certificação da unidade pelo SGQ (NP EN ISSO 13485), sua validade e compatibilização com a Directiva Comunitária sobre DM, 94/42/E de 14 de Julhos de 1998, alterada pela Directiva 2007/47/CE de 05 de Setembro de 2007, transposta para direito interno pelo actual Decreto-Lei nº145/2009, de 17 de Junho, assim como a Norma Portuguesa Esterilização de Produtos de Cuidados de Saúde NP 14937 - homologada em 27/2003 de 25 de março, com a EN ISSO 15883 e com o Manual de Normas e Procedimentos para uma Serviço Central de Esterilização em estabelecimentos de saúde da Direcção Geral de Saúde e o Regulamento (EU) 2017/745 do Parlamento Europeu e do Conselho de 05 de Abril de 2017, relativo aos dispositivos médicos, que altera a Directiva 2001/83/CE, o Regulamento (CE) nº178/2002 e o Regulamento (CE) nº1223/2009 e que revoga as Directivas 90/385/CE e 93/42/CEE do Conselho, publicado no Jornal Oficial da União Europeia em 05/05/2017 (…)”.
9 – Bem como se comprometia a efectuar os serviços conforme instruções e do fabricante: inspecção e embalagem.
10 – O A. obrigou-se a efectuar a esterilização e embalamento das zaragatoas cumprindo todas as regras, procedimentos e documentação impostos nas normas referidas, nomeadamente ISO 13485 e Regulamento (UE) 2017/745.
11 – Este cumprimento era condição essencial à concretização do negócio entre as partes.
12 – Assegurado que o A. cumpriria esta condição, em 02 de Maio de 2020, as partes celebraram, por escrito, um acordo de prestação de serviços de esterilização de zaragatoas, nos termos que constam do documento junto aos autos a fls. 30 e sgs. e cujo teor aqui se considera reproduzido.
13 – Aquando da celebração do acordo escrito, o A. voltou a reafirmar o compromisso de efectuar a esterilização e embalamento das zaragatoas cumprindo todas as regras, procedimentos e documentação impostos para a esterilização de serviços médicos, nomeadamente a norma ISO 13485.
14 – A R. destinava as zaragatoas esterilizadas para o cumprimento de um negócio que havia celebrado com uma empresa Suíça para o fornecimento de 2600 Kits de testes PCR à Covid 19 e que seriam vendidos ao preço de 185,00 euros cada um.
15 – Cada conjunto era composto por 100 zaragatoas esterilizadas, 100 tubos estéreis de colheita, 03 frascos de 10 ml de meio de cultura e manual de instruções.
16 – O A. estava a efectuar os serviços acordados sem ter obtido a certificação da unidade pelo SGQ.
17 – Falta de certificação que, à data da apresentação da contestação, se mantinha.
18 – O A. esterilizou e embalou as zaragatoas cumprindo as determinações da norma ISO 13485.
19 – O A. possui os relatórios e registos documentais que permitem verificar os termos em que foi efectuada a esterilização de cada lote de zaragatoas e que demonstram o cumprimento das regras e imposições previstas, nomeadamente registo de testes químicos, indicadores microbiológicos, temperatura da esterilização etc.
20 – O A. não entregou à R. os relatórios e / ou registo documentais que permitem verificar os termos em que foi efectuada a esterilização de cada lote de zaragatoas e que demonstram o cumprimento das regras e imposições previstas, nomeadamente registo de testes químicos, indicadores microbiológicos, temperatura da esterilização etc.
21 – Em Dezembro de 2020, a R. remeteu ao A. uma comunicação através da qual lhe comunicou que entendia que sendo a obtenção e a manutenção da certificação ISO 13485 uma condição obrigatória para a comercialização das zaragatoas esterilizadas pelo A. e não tendo tal certificação sido obtida, entendiam que o A. não tinha cumprido o acordo celebrado, incumprimento que impedia a R. de comercializar as zaragatoas, informando que não iriam liquidar o valor das facturas emitidas.
22 – A existência da certificação da norma não é condição obrigatória para a comercialização das zaragatoas, sendo condição para esta comercialização o cumprimento da norma.
23 - As zaragatoas esterilizadas pelo A. não foram comercializadas, estando excedido o seu prazo de validade.
24 - Na produção de cada uma das 295.359 zaragatoas esterilizadas pelo A. a R. suportou custos de 0,28 euros.
25 - A R. teria um lucro na venda de cada Kit ao cliente Suíço no valor de 108,42 euros.
26 - A R. teria um lucro na venda de cada zaragota de 0,42 euros.
27 - A R. recebeu do cliente Suíço a quantia de 360.750,00 euros que, na data em que foi realizada a audiência de julgamento, ainda não havia devolvido.
28 - O A. deixou de proceder à esterilização e embalamento das zaragatoas porquanto a R. não procedeu ao pagamento dos serviços que foram prestados, nem após o vencimento das facturas nem depois de interpelada para o seu pagamento.
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2. Factos Não Provados
O tribunal recorrido julgou não provados os seguintes factos:
1 – O A. se tivesse obrigado a obter a certificação ISO 13485 previamente à execução do serviço.
2 – O A. se tivesse obrigado ao cumprimento da norma ISO 17665.
3 – A obtenção prévia dessa certificação e desse cumprimento fosse essencial à concretização do negócio entre as partes.
4 – Aquando da celebração do acordo escrito o A. tivesse voltado a reafirmar o compromisso de obter a certificação ISO 13485 previamente à execução do serviço.
5 – Já depois de iniciado o processo de esterilização, a R. tivesse verificado que o A. não estava a cumprir com o acordado.
6 – O A. tivesse efectuado o serviço acordado sem cumprimento das regras impostas pela norma ISO 13485, Regulamento (EU) 2017/745 e norma ISO17665.
7 – Tivesse sido por falta da entrega dos relatórios do ciclo de esterilização que a R. deixou de remeter à A. zaragatoas para esterilização.
8 – Tivessem sido esterilizadas mais zaragatoas do que aquelas que resultaram provadas.
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B. Fundamentação de Direito
1. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está expressamente consagrada e regulada no CPC actualmente vigente, nomeadamente nos seus artigos 640.º e 662.º.
1.1. Resulta do n.º 1, do primeiro destes preceitos que o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
Concatenando este ónus, a cargo do recorrente que impugne a decisão sobre matéria de facto, com o ónus de alegar e formular conclusões consagrado no artigo 639.º do CPC, que impende sobre qualquer recorrente, independentemente do recurso visar a matéria de facto e/ou a matéria de direito, Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Coimbra 2020, pp. 196 e s.) sintetiza assim o sistema que vigora sempre que a apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
- O recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
- Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
- Relativamente aos factos cuja impugnação se funde em prova gravada, deve indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes (podendo proceder à transcrição dos excertos que considere oportunos);
- O recorrente deve ainda deixar expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No caso vertente, a recorrente indicou, tanto na motivação como nas conclusões da sua alegação, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (os pontos 18, 19 e 22 da matéria de facto julgada provada) e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre esse facto (julgando aqueles factos não provados e, quanto ao ponto 22, alterando a sua redacção nos seguintes termos: «A existência da certificação da norma é condição obrigatória para a comercialização das zaragatoas, sendo condição para esta comercialização o cumprimento da norma»), fundamentando a sua discordância quanto à decisão do Tribunal a quo nos concretos meios de prova que refere na motivação das suas alegações e que também menciona nas respectivas conclusões (os depoimentos das testemunhas CC, DD, EE, AA e BB, os e-mails de 14.09.2022 e de 20.10.2022 e a não junção aos autos dos registos aludidos no referido ponto 19). Por fim, indicou com exactidão as passagens da gravação dos aludidos depoimentos.
Nestes termos, impõe-se considerar cumpridos os ónus ou requisitos formais de que depende o conhecimento do recurso da decisão sobre a matéria de facto.
1.2. Dispõe, por sua vez, o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC).
É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591), «o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância». De resto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720), o juiz deve «expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados».
Mas não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
No caso vertente, a recorrente pugnou pela alteração da decisão no que respeita aos pontos 18, 19 e 22, todos julgados provados, mas que, no seu entender, devem ser julgados não provados.
Vejamos se lhe assiste razão.
1.2.1. Depois de ouvida a gravação integral da audiência de julgamento e de analisada a prova documental junta aos autos, verifica-se que, como bem concluiu o Tribunal a quo, a prova produzida demonstra com segurança a factualidade descrita no ponto 18 dos factos provados, isto é, que o autor esterilizou e embalou as zaragatoas cumprindo as determinações da norma ISO 13485.
As testemunhas DD, directora do departamento do SUCH que procede à esterilização de dispositivos médicos (SECH), CC, engenheiro biomédico que trabalhou do SECH até Março de 2021, que conhece bem as exigências da norma ISO 13485 no que concerne à fabricação de dispositivos médicos e que contactou com o recorrente desde o início, e FF, técnica superior do SECH desde 2017, que coordena a respectiva produção e que acompanhou os factos em apreço desde o primeiro contacto do recorrente, confirmaram de forma peremptória que, na altura em que o recorrido prestou à recorrente os serviços de esterilização em discussão nestes autos, estava ainda em curso o processo destinado a obter a certificação a que respeita a norma ISO 13485 (certificação que só viria a ser obtida, por força dos atrasos gerados pela pandemia de Covid-19, no início de 2021), mas que esta norma já estava implementada, ou seja, já estavam a ser cumpridas todas as exigências aí previstas.
Este facto é corroborado pela circunstância de ter sido o próprio Ministério da Saúde a lançar ao recorrido o desafio de criar em Lisboa uma unidade centralizada para prestar aquele tipo de serviços, como esclareceu a testemunha DD, e de o SUCH prestar tais serviços de esterilização à maior parte dos hospitais públicos e privados do país, como foi afirmando pelas testemunhas FF e AA (que foi sócio/accionista e gerente/administrador da recorrente e que negociou o contrato em discussão nestes autos), o que certamente não sucederia se não cumprisse todas as exigências, inclusivamente as previstas naquela norma.
É ainda corroborado pela circunstância, já referida, de aquele certificado ter sido efectivamente atribuído. Como esclareceu a testemunha FF, a auditoria externa realizada no âmbito do processo de certificação confirmou que a norma estava implementada desde o início de funcionamento da unidade (referindo-se ao SECH).
Em contrapartida, o facto em apreço não foi infirmado pelos documentos juntos aos autos ou pelas demais de testemunhas ouvidas, cujos depoimentos acabaram igualmente por corroborá-lo.
A testemunha EE, que foi funcionária administrativa da recorrente entre Julho de 2020 e Agosto de 2021, esclareceu que recebeu muitos telefonemas em nome do recorrido a pedir o pagamento das facturas já vencidas, que nesses telefonemas se limitava a prometer o pagamento em determinado prazo, nada mais sendo discutido, designadamente alguma falta de conformidade, e que a dada altura o recorrido deixou de fornecer os seus serviços por causa do não pagamento. Mais esclareceu que só posteriormente a recorrente enviou uma carta ao recorrido (que a testemunha não redigiu, mas na qual apôs o carimbo) invocando um argumento diferente para o não pagamento, relacionado com o trabalho que era realizado na zaragatoa.
Por sua vez, a testemunha GG, que trabalha na Direcção Regional ... do SUCH, onde dá apoio à diretora regional, referiu que, já depois de o recorrido ter deixado de prestar serviços à recorrente por falta de pagamento, esta propôs um plano de pagamento e solicitou que a prestação dos serviços fosse retomada, nunca tendo sido questionada a qualidade dos serviços antes prestados.
A testemunha AA confirmou que o SUCH tinha a norma ISO 13485 implementada, acrescentando que nunca lhe passaria pela cabeça que o recorrido não cumprisse todos as exigências aí previstas, pois trabalha com a maioria dos hospitais portugueses, conforme já referido, fazendo esterilizações para os blocos operatórios. Mais referiu que, num primeiro momento, o recorrente não pagou por dificuldades de tesouraria e, num segundo momento, por não lhe terem sido fornecidos os registos da esterilização de cada um dos lotes. Acrescentou, porém, que lhe foi remetido um registo, não tendo mencionado qualquer anomalia que esse relatório pudesse ter evidenciado.
Também a testemunha BB, engenheiro bioquímico, que é director de qualidade da recorrente desde Março de 2020, confirmou que lhe foi dito que a norma estava implementada, embora não houvesse certificação, acrescentado que, se assim não fosse, teria procurado outra solução, e que lhe enviaram um ou dois registos da esterilização de um ou dois lotes, cujos ciclos correram bem, mas que reputou insuficiente para emitir as declarações de conformidade relativas a todos os lotes.
Estas duas últimas testemunhas confirmaram, assim, os depoimentos das testemunhas DD e CC, que afirmaram ter sido enviado ao recorrente um ou dois relatórios de esterilização, comprovativos de que os respectivos ciclos decorreram na sua plenitude e foram eficientes.
Por fim, no e-mail de 20.10.2020 agora invocando pela recorrente, o que esta questiona é a “situação formal” do recorrido quanto à norma ISO 13485 – ao que esta responde que está em processo de certificação e que prevê obter o certificado até ao início de 2021 –, não pondo em causa, do ponto de vista substancial, que as exigências previstas na referida norma estavam a ser cumpridas pelo recorrido.
A prova acabada de descrever demonstra à saciedade que a unidade de esterilização de dispositivos médicos do SUCH implementou a norma ISO 13485, dando cumprimento a todas as exigências aí previstas. Tal prova revela-se igualmente suficiente para demonstrar que esse cumprimento ocorreu nos serviços concretamente prestados ao recorrente, pois nada na prova produzida permite equacionar que pudesse ter ignorado tais exigências neste caso específico ou que, na hipótese de algum ciclo não ter sido realizado ou completado com sucesso, designadamente por força de alguma falha técnica ou humana – o que, como veremos, é sindicável por via de relatórios digitais gerados pelos meios utilizados nesse processo –, tivesse entregue as zaragatoas sem antes corrigir o que houvesse a corrigir, deitando por terra toda a sua credibilidade junto dos seus clientes do sector público e privado. Dito de outra forma, não foi produzida qualquer contraprova (cfr. artigo 346.º do CC) que justifique, sequer, equacionar essa possibilidade.
Nestes termos, consideramos que, ao julgar provado o facto descrito no ponto 18, o Tribunal a quo avaliou correctamente a prova produzida, nada justificando a alteração da decisão proferida relativamente àquele facto.
1.2.2. A conclusão a que chegamos não é distinta no que concerne ao ponto 19 dos factos provados.
Desde logo porque todas as testemunhas que se pronunciaram sobre tal factualidade – DD, CC, AA e BB – confirmaram que os relatórios ou registos documentais que permitem verificar os termos em que foi efectuada a esterilização de cada lote de zaragatoas são digitalmente gerados pela própria máquina que realiza os processos de esterilização. Mais esclareceram as mesmas testemunhas que, juntamente com cada lote, era enviada ao recorrente uma nota de entrega, onde constava um número de rastreabilidade digital, que permite ao recorrido chegar a toda a informação pormenorizada desse lote e ver todo o ciclo.
A testemunha FF corroborou estes depoimentos, afirmando de forma expressa que o recorrido tem os referidos registos, esclarecendo que não foram entregues ao recorrente por causa da falta de pagamento das facturas, como também já havia dito a testemunha CC.
Acresce que, conforme foi antes referido, o recorrido enviou à recorrente um ou dois registos, o que corrobora a sua existência.
Também a prova documental, designadamente a prova invocada pela recorrente, corrobora essa mesma existência. Na verdade, como se refere na sentença recorrida, no e-mail de 14.09.2020 que a testemunha CC enviou para a recorrente (junto como documento n.º 11 da réplica), em resposta ao pedido da testemunha BB «sobre os procedimentos que asseguram a integridade da organização por lotes», esclarece-se o seguinte: «Cada lote fica sempre associado ao ciclo de esterilização respectivo e pode ser consultado através do nosso sistema de rastreabilidade. A título de exemplo, anexo o relatório do ciclo de esterilização ao qual foram submetidos uns dos últimos lotes enviados ao SECH». Diferentemente, do e-mail de 20.10.2020 (junto como documento n.º 12 da réplica) nada revela a respeito do facto em apreço.
Por fim, não é verosímil que uma entidade credível e com responsabilidades a nível nacional no âmbito da esterilização de dispositivos médicos não mantenha, até para sua própria segurança, os registos dos procedimentos que desenvolve naquele domínio.
De resto, a própria recorrente entra em contradição ao afirmar, na conclusão LI, que «a decisão recorrida deu como provado que as zaragatoas que a Recorrente tem em sua posse foram embaladas e esterilizadas cumprimento as determinações da norma ISO 13485 sem que tenha sido realizada qualquer prova, não obstante os documentos que o comprovem e que estão na posse da Recorrida, não ter sido carreados para os autos pela parte que alegou a sua existência (e que fundamentava o seu direito) – a Recorrida» (o sublinhado é nosso).
Assim, mais uma vez, verificamos que o recorrido fez prova do facto que vimos analisando, não tendo sido produzida contraprova do mesmo.
1.2.3. Argumenta a recorrente que o Tribunal a quo não podia ter julgados provados os dois factos antes analisados sem que o recorrido tivesse junto aos autos os registos aludidos no ponto 19, comprovativos do cumprimento das determinações aludidas no ponto 18, pois não estamos no âmbito da livre apreciação da prova, razão pela qual violou o disposto nos artigos 393.º e 394.º do CPC.
Mas não tem razão.
A exclusão da prova testemunhal consagrada no artigo 393.º, n.º 1, do CC, abrange a declaração negocial que, por força da lei ou da estipulação das partes, tiver de ser reduzida a escrito (caso em que o documento escrito constitui uma formalidade ad substantiam) ou necessitar de ser provada por escrito (caso em que o documento escrito constitui uma formalidade ad probationem). Ora, na situação concreta, não está sequer em questão a prova de uma declaração negocial, mas antes a prova do cumprimento ou incumprimento de determinados procedimentos de esterilização de dipositivos médicos e a prova da existência ou inexistência de registos dos procedimentos concretamente efectuados.
O n.º 2 da mesma disposição legal estende a referida exclusão às situações em que o facto estiver plenamente provado (nomeadamente nos termos previstos nos artigos 358.º, n.ºs 1 e 2, 371.º, n.º 1, 376.º, n.º 1, 383.º, n.º 1, 386.º, n.º 1, todos do CC), o que manifestamente não sucede no caso em apreço.
Por sua vez, a exclusão da prova testemunhal consagrada no artigo 394.º do CC diz respeito à demonstração das convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 372.º a 379.º, cuja forma é regulada nos artigos 221.º e 222.º do CC. Mais uma vez, é patente a inaplicabilidade destas normas à prova cumprimento ou incumprimento dos procedimentos de esterilização de dipositivos médicos consagrados na norma ISO 134585 e prova da existência ou inexistência de registos dos procedimentos concretamente efectuados.
Por fim, não existe – nem a recorrente invoca – qualquer norma legal ou convencional que imponha que a prova destes factos só possa fazer-se por documento, o que não resulta da alegada exigência de elaboração e entrega de registos dos procedimentos de esterilização.
Não estamos, portanto, no domínio da prova legal, mas antes no domínio da regra geral da livre apreciação da prova, prevista no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, nos termos já antes expostos, pelo que nada impedia o recurso à prova testemunhal ou à restante prova acima referida, sendo certo que toda essa prova foi criticamente analisada e a sua valoração foi devidamente explicitada e fundamentada, nos termos impostos pelo artigo 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC, tanto pelo Tribunal a quo como por este Tribunal ad quem, nos termos antes expostos.
1.2.4. A recorrente pugnou ainda pela alteração da decisão no que respeita ao ponto 22 dos factos provados (cuja redacção relembramos: «A existência da certificação da norma não é condição obrigatória para a comercialização das zaragatoas, sendo condição para esta comercialização o cumprimento da norma»), propondo que esse ponto passe a ter a seguinte formulação: «A existência da certificação da norma é condição obrigatória para a comercialização das zaragatoas, sendo condição para esta comercialização o cumprimento da norma».
Mas esta questão, tal como está formulada, tanto pelo Tribunal a quo na decisão recorrida, como pela recorrente na sua alegação, não é uma questão de facto, sobre a qual deva ou possa ser produzida prova. Trata-se, ao invés, de uma questão de direito, não reconduzível ao disposto nos artigos 5.º, n.ºs 1 e 2, 410.º, 596.º, n.º 1, parte final, e 607.º, n.ºs 3, 1.ª parte, e 4, todos do CPC, o que, de resto, está em consonância com os temas da prova oportunamente enunciados pelo Tribunal a quo, pelo que se impõe expurgar a fundamentação de facto da decisão dessa matéria de direito, relegando o seu conhecimento para sede própria, em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, e 607.º, n.º 3, 2.ª parte, do mesmo código.
É certo que, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, pp. 24 e 25) em anotação ao artigo 5.º do CPC, «[o] preceituado no n.º 3, associado à eliminação no actual CPC do que se previa no n.º 4 do art. 646.º do CPC de 1961 (que considerava “não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito”), implica que deva ser moderada a ideia tradicionalmente arreigada, posto que formalmente excessiva, de se estabelecer uma rígida delimitação entre o que constitui matéria de facto e matéria de direito».
Mas, reconhecendo a persistência no nosso ordenamento jurídico da distinção entre o que constitui matéria de facto e matéria de direito, bem como a existência de conceitos ambivalentes e, por isso, de frequentes dúvidas quanto ao estabelecimento de linhas de demarcação entre as questões de facto e as questões de direito, os mesmos autores acrescentam que «sem dogmatismos que já nem sequer encontravam apoio numa norma como a do n.º 4 do art. 646.º do CPC de 1961 (que não transitou para o CPC de 2013) e tendo em consideração o modo como em simultâneo na sentença final serão abordadas as questões de facto e as questões de direito, podemos já antecipar que a inclusão daquelas expressões numa ou noutra das categorias dependerá fundamentalmente do objecto da acção. Se este, no todo ou em parte, estiver precisamente dependente do significado real daquelas expressões, tem de considerar-se que estamos perante matéria de direito, pois o significado a atribuir-lhes será determinante para o desfecho da causa. Se, pelo contrário, o objecto da acção não estiver directamente associado ao significado a conferir a certas afirmações das partes, as expressões assim utilizadas (arrendamento, renda, hóspede, e outras de cariz semelhante) poderão ser tomadas no âmbito da matéria de facto, sendo passíveis de apuramento por via da prova e de pronúncia em sede de julgamento, sempre encaradas com o significado vulgar e corrente, não já com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais».
No caso concreto, a obrigatoriedade da certificação, enquanto condição para a comercialização das zaragatoas, não é invocada, na decisão recorrida ou na alegação da recorrente, no sentido de uma condição a que as partes se autovincularam (matéria que foi incluída nos pontos 8 dos factos provados e 1 dos factos não provados), tal como não é invocada no sentido de uma condição imposta à recorrente (eventualmente com conhecimento do recorrido) por um concreto adquirente das zaragatoas ou por um concreto mercado a que as mesmas se destinassem, situações em que estaríamos, inquestionavelmente, perante uma questão de facto a submeter ao crivo da prova produzida. Ainda que o sentido da expressão “obrigatoriedade de certificação” seja ambivalente, os termos em que a questão é formulada no contexto em apreço revelam que, com tal expressão, se pretendeu aludir à imposição daquela certificação pelos instrumentos normativos nacionais e internacionais que fazem apelo à aludida norma ISO 13485.
Mas, como é bom de ver, a decisão da acção depende do que o Tribunal conclua sobre essa obrigatoriedade legal, na medida em que a violação de uma obrigação em sentido técnico gera responsabilidade contratual, independentemente de aquela obrigação surgir de um contrato, de um negócio jurídico unilateral ou da própria lei (no caso, a falta de certificação que seja imposta por lei).
Assim, afirmar, na descrição dos factos provados, que a lei faz (ou não faz) depender a comercialização de zaragatoas da existência de certificação traduzir-se-ia numa subversão do silogismo judiciário previsto no artigo 607.º, n.º 3, do CPC.
De resto, a própria alegação da recorrente tem pressuposto o raciocínio que vimos desenvolvendo, visto que a alteração por si propugnada assenta exclusivamente na análise da lei e não da prova produzida.
Nestes termos, como já afirmámos, impõe-se expurgar a fundamentação de facto da decisão dessa matéria de direito.
1.3. Em suma, pelas razões expostas, julga-se improcedente a impugnação da matéria de facto deduzida pela recorrente, mas decide-se eliminar o ponto 22 dos factos provados.
*
2. O Direito
Perante a manutenção da decisão da matéria de facto fixada pela primeira instância, que apenas foi expurgada das considerações jurídicas que haviam sido vertidas no ponto 22, mantendo-se inalterada a demais descrição factual, o presente recurso – que a próprio recorrente baseou na alteração da matéria de facto por si preconizada – está naturalmente votado ao fracasso, pois a factualidade apurada não confirma que o recorrido tenha cumprido defeituosamente o contrato, como foi invocado pela recorrente.
2.1. Consta da matéria de facto provada que o recorrido se obrigou a prestar à recorrente serviços de esterilização e embalamento de zaragatoas. No requerimento injuntivo e na oposição apresentada, as partes referem-se a este acordo como um contrato de prestação de serviços, qualificação igualmente acolhida pelo Tribunal a quo, como decorre da decisão recorrida. Porém, na alegação deste recurso, a recorrente reporta-se ao «contrato de compra e venda celebrado entre a A. e a Ré» (cfr. pontos 128 e 129 da motivação e ponto LVII das conclusões), sem fundamentar este novo enquadramento jurídico. Mas cremos ser de meridiana clareza que o acordo celebrado entre as partes desta acção não é subsumível à figura contratual da compra e venda.
Nos termos do artigo 874.º do CC, «compra e venda é contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço». Esta noção é desenvolvida no artigo 879.º do mesmo código, onde se dispõe que «a compra e venda tem como efeitos essenciais: a) a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; b) a obrigação de entregar a coisa; c) a obrigação de pagar o preço». O contrato de compra e venda é, assim, um contrato oneroso, bilateral e com prestações recíprocas. É também um contrato dotado de eficácia real, pois produz sempre a transferência da propriedade ou de outro direito real – cfr. Galvão Telles, Contratos Civis, p. 9, apud Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. II, p.161.
No caso concreto, as partes não visaram a transmissão da propriedade das zaragatoas ou de qualquer outra coisa, o que afasta, in limine, a qualificação do acordo que celebraram como um contrato de compra e venda.
Esse acordo configura, inquestionavelmente, um contrato de prestação de serviços, que o artigo 1154.º do Código Civil define como «aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição». Trata-se de um contrato bilateral ou sinalagmático, visto haver um nexo de reciprocidade entre a prestação de um dos contraentes e a contraprestação do outro, oneroso (ainda que esta não seja uma característica necessária da figura contratual em análise), na medida em que cada uma das partes busca para si uma vantagem económica, mediante a correlativa atribuição de outra vantagem económica à contraparte, causal, sendo a sua causa constituída pela prática do serviço acordado mediante contraprestação, e comutativo, sendo as prestações de ambas as partes certas, equivalentes e determináveis.
Quando muito, poderia questionar-se se estamos perante um contrato de prestação de serviço inominado – ao qual se devem aplicar, naquilo que a lex contractus for omissa, as disposições do mandato, com as necessárias adaptações (cfr. artigo 1156.º do CC), e as disposições gerais que regem as obrigações, designadamente quanto ao seu cumprimento e não cumprimento – por não se enquadrar em nenhuma das modalidades do contrato de prestação de serviços expressamente reguladas no Código Civil (cfr. artigo 1155.º do referido código), como propendemos a considerar, ou se estamos perante um contrato de empreitada, que o artigo 1207.º do CC define como «o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço».
Em todo o caso, como melhor decorrerá da exposição subsequente, esta distinção não assume, no caso concreto, relevância prática.
2.2. Estando provado que o recorrido prestou os serviços acordados, tem naturalmente direito à retribuição acordada, atento o disposto nos artigos 406.º, n.º 1, e 1167.º, al. b), ex vi artigo 1156.º, todos do CC.
2.3. Veio, porém, a recorrente alegar o cumprimento defeituoso da obrigação do recorrido –que a exime da correspectiva prestação de pagamento da retribuição acordada – e os prejuízos que o aquele cumprimento defeituoso lhe causou – que lhe confere o direito à respectiva indemnização.
Contudo, não logrou demonstrar tal incumprimento (rectius, cumprimento defeituoso).
2.3.1. Afirma a recorrente que, na prestação dos serviços a que se obrigou, o recorrido não cumpriu as regras, procedimentos e documentação previstos na norma ISO 13485, no Regulamento (UE) 2017/745 e na norma ISO 17665 (aplicável por força da remissão feita pela norma ISO 13485 relativamente aos serviços de esterilização).
Da matéria de facto provada resulta que o autor, ora recorrido, se obrigou a efectuar a esterilização e embalamento das zaragatoas cumprindo todas as regras, procedimentos e documentação impostos nas normas referidas no ponto 8, nomeadamente a norma ISO 13485 e o Regulamento (UE) 2017/745, e que tal cumprimento era condição essencial à concretização do negócio entre as partes (cfr. pontos 10 a 13).
Mas, como vimos, também se provou que o recorrido esterilizou e embalou as zaragatoas cumprindo as determinações da norma ISO 13485. O recorrido demonstrou, assim, o cumprimento da obrigação que assumiu, não se vislumbrando que normas do Regulamento (UE) 2017/745 possa ter violado, sendo certo que a recorrente também não as especificou.
2.3.2. Afirma também a recorrente que o recorrido prestou os serviços em causa sem ter obtido a certificação da unidade (leia-se, do SECH) pelo SGQ, o que efectivamente ficou demonstrado, como decorre dos pontos 16 e 17 dos factos provados.
Mas, por um lado, a recorrente não logrou provar que o recorrido se tivesse obrigado a obter a certificação ISO 13485 previamente à execução dos referidos serviços (cfr. pontos 1 e 4 dos factos não provados, cuja decisão não foi questionada no âmbito deste recurso), tendo-se apurado apenas que o recorrido se comprometeu a obter e manter essa certificação (cfr. ponto 8 e 12 dos factos provados, que remetem para o ponto 3.2. da proposta referida no ponto 8 e para a cláusula 3.ª do acordo escrito referido no ponto 12), mas sem que daí resulte o compromisso de o fazer previamente à prestação dos serviços.
Por outro lado, a obrigatoriedade da aludida certificação ISO também não decorre da lei.
Recorde-se que as denominadas normas ISO não são fonte de direito (cfr. artigo 1.º do CC), nem sequer de direito internacional. Tais “normas” constituem «standards ou regras internacionais, que visam certificar que as empresas possuem determinadas práticas, procedimentos, instrumentos ou têm implementados certos sistemas e formas de organização interna, que lhe conferem determinadas competências, que são as certificadas» (cfr. ac. do STA, de 30.01.2013, proc. n.º 0993/12, rel. Políbio Henriques, disponível e www.dgsi.pt), ou seja, visam garantir que as empresas cumprem determinados padrões de qualidade.
A recorrente afirma que a obrigatoriedade desta certificação prévia resulta, no que concerne aos dispositivos médicos designados de “uso único”, como sucede com as zaragatoas, do Despacho n.º 7021/2013, de 30 de Maio, designadamente do seu n.º 8. No mesmo sentido, invoca ainda o Decreto-Lei n.º 145/2009, de 17 de Junho, nomeadamente as disposições que regulam a marcação CE (Capítulo III, artigos 7.º a 10.º) e o fabrico (Capítulo X, artigos 30.º a 35.º) dos dispositivos médicos, maxime os artigos 9.º, 30.º e 31.º.
Todavia, estas normas não têm aplicação no caso dos autos.
2.3.2.1. Do preâmbulo do Despacho n.º 7021/2013, do Secretário de Estado da Saúde, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 104, de 30 de Maio de 2013, decorre que o mesmo visa «definir as condições e requisitos a que deve obedecer a utilização, nos serviços e estabelecimentos do SNS, de dispositivos médicos de uso único reprocessados, com o objetivo de estabelecer as condições de adequada segurança que permitam alcançar poupanças indispensáveis para continuar a disponibilizar terapias e tecnologias inovadoras», estabelecendo «as condições da respetiva validação e avaliação, prevenindo e minimizando riscos potenciais de contaminação microbiológica, da persistência de substâncias químicas utilizadas ou da alteração do desempenho do dispositivo médico reprocessado» e assegurando «exigências em matéria de rotulagem, de modo a evitar potenciais confusões com dispositivos não reprocessados». Neste contexto, dispõe assim o n.º 8 deste Despacho: «A entidade reprocessadora deve dispor de um sistema de qualidade implementado e certificado no âmbito da norma NP EN 13485, o qual deve cobrir o processo de reprocessamento».
De acordo com o sítio electrónico ofcial da Comissão Europeia dedicado à Saúde Pública, por «reprocessamento» entende-se um processo executado num dispositivo usado para permitir a sua reutilização segura. Inclui a limpeza, desinfeção, esterilização e procedimentos conexos, bem como testes e o restabelecimento da segurança técnica e funcional do dispositivo utilizado (https://health.ec.europa.eu/medical-devices-topics-interest/reprocessing-medical-devices_pt).
É com este sentido que aquela expressão é utilizada no Regulamento (UE) 2017/745, relativo aos dispositivos médicos, e no Regulamento (UE) 2017/746, relativo aos dispositivos médicos para diagnóstico in vitro, nomeadamente quando preceituam que o reprocessamento e a posterior utilização de dispositivos de uso único só podem ter lugar se a legislação nacional o permitir. É, igualmente com este alcance que o Despacho acima citado regula o reprocessamento de dispositivos médicos de uso único.
No caso concreto, os serviços prestados pelo recorrido à recorrente não consistiram no reprocessamento de dispositivos usados tendo em vista a sua reutilização, mas antes na esterilização e embalamento de zaragatoas fabricadas pela recorrente (cfr. pontos 2, 7, 10, 12, 13 e 24 dos factos provados). Assim sendo, não tem aplicação ao caso o Despacho acima referido.
2.3.2.2. Dispõe assim o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 145/2009, de 17 de Junho:
Artigo 9.º (Procedimento para esterilização)
1 - Qualquer pessoa singular ou colectiva que esterilize, com vista à sua colocação no mercado, dispositivos médicos com a marcação CE, concebidos pelo seu fabricante para serem esterilizados antes da sua utilização, deve optar por um dos procedimentos previstos nos anexos ii ou v do presente decreto-lei, do qual fazem parte integrante, e elaborar declaração que afirme que a esterilização foi feita de acordo com as instruções do fabricante.
(…)
4 - A declaração referida no n.º 1 deve ser mantida à disposição da autoridade competente durante um período de cinco anos a contar da data da sua emissão.
(…)
Acresce que, como afirma a própria recorrente (cfr. conclusão 39), no Anexo II e, também, no Anexo V do mesmo decreto-lei, é estabelecido que “(…) O fabricante deve apresentar um pedido de avaliação do seu sistema da qualidade ao organismo notificado (…)” e que “(…) O fabricante deve aplicar o sistema da qualidade aprovado para a concepção, o fabrico e o controlo final dos produtos em questão (…)”.
Ora, daqui não decorre a obrigatoriedade da certificação ISO 13485, mas antes a obrigatoriedade de apresentação de um pedido de avaliação do sistema de qualidade ao organismo notificado (o organismo designado para avaliar e verificar a conformidade dos dispositivos com os requisitos exigidos no referido decreto-lei, bem como aprovar, emitir e manter os certificados de conformidade, conforme dispõe o artigo 3.º, al. jj), daquele diploma legal) e a obrigatoriedade de aplicação desse sistema de qualidade, sendo certo que tanto na proposta referida no ponto 8 como no acordo escrito referido no ponto 12 dos factos provados é referido que o recorrido dispõe de um Sistema de Gestão Qualidade, certificado pela Associação Portuguesa de Certificação – APCER, cumprindo os requisitos da NP EN ISO 9001:2015.
Por sua, dispõem assim os artigos 30.º e 31.º do referido Decreto-Lei n.º 145/2009, de 17 de Junho:
Artigo 30.º (Notificação)
1 – O exercício em território nacional das actividades de fabrico, montagem, acondicionamento, execução, renovação, remodelação, alteração do tipo, rotulagem ou esterilização de dispositivos médicos quer destinados à colocação no mercado quer à exportação está sujeito a notificação da autoridade competente e à fiscalização por parte desta nos termos do presente decreto-lei.
(…)
Artigo 31.º (Requisitos)
1 – O exercício das actividades referidas no n.º 1 do artigo anterior só é permitido no caso de o interessado dispor de:
a) Responsável técnico que assegure a qualidade das actividades desenvolvidas;
b) Instalações e equipamentos adequados e com capacidade para assegurar o fabrico, armazenagem e conservação dos dispositivos médicos, de modo a manter os seus requisitos de desempenho e segurança.
2 – O responsável técnico deve possuir uma qualificação técnica adequada à gestão e garantia da qualidade da actividade em causa, bem como conhecimento adequado da legislação e demais regulamentação aplicável aos dispositivos médicos em causa.
3 - Os requisitos mínimos relativos ao fabrico de dispositivos médicos são estabelecidos em portaria do membro do Governo responsável pela área da saúde, a emitir no prazo de um ano.
4 - Até à adopção da portaria referida no número anterior é aplicável a Norma Europeia EN ISO 13485:2003.
Mas esta remissão para a Norma Europeia EN ISO 13485:2003 parece respeitar apenas ao fabrico de dispositivos médicos, e não a todas as actividades referidas no n.º 1, do artigo 30.º, do diploma em análise. Na verdade, enquanto o n.º 1, do artigo 31.º, refere expressamente «[o] exercício das actividades referidas no n.º 1 do artigo anterior», o n.º 3 do mesmo artigo 31.º refere-se apenas aos «requisitos mínimos relativos ao fabrico de dispositivos médicos».
Ora, o fabricante das zaragatoas não é o recorrido, mas sim a recorrente, como referimos anteriormente.
Por outro lado, o artigo 9.º refere-se apenas à esterilização de dispositivos médicos «com vista à sua colocação no mercado» e o artigo 30.º refere-se à esterilização (entre outras actividades) de dispositivos médicos «quer destinados à colocação no mercado quer à exportação».
Ora, embora se tenha apurado que a recorrente destinava as zaragatoas esterilizadas pelo recorrido ao cumprimento de um negócio que havia celebrado com uma empresa Suíça para o fornecimento de 2600 Kits de testes PCR à Covid 19 (cfr. ponto 14 dos factos provados), não decorre da factualidade julgada provada que a recorrente tivesse informado o recorrido dessa finalidade, antes decorrendo da proposta negocial referida no ponto 7 dos factos provados, para a qual remete a cláusula 4.ª do acordo celebrado entre as partes, que o recorrido não reprocessa (termo utilizado nesta proposta com uma abrangência maior do que a referida supra, incluindo a esterilização de zaragatoas que, obviamente, não haviam sido anteriormente utilizadas) material para colocação no mercado.
Deste modo, não se verificam os pressupostos de aplicação de nenhuma das referidas normas.
Em todo o caso, como a própria recorrente afirma (cfr. conclusão 42), o que as referidas normas legais exigem é, por um lado, a aprovação do sistema da qualidade por um organismo notificado, nos termos já antes referidos, e, por outro lado, a implementação da norma ISO 13485, ou seja, o cumprimento das exigências previstas nessa norma, o que, como também já vimos, o recorrido cumpriu.
Em suma, como começámos por referir, os factos apurados não permitem concluir que o recorrido incumpriu a obrigação de obter a certificação do SECH pelo SGQ.
2.3.3. Afirma, por fim, a recorrente que o recorrido violou a sua obrigação (secundária ou acessória) de fornecer os documentos que atestam o cumprimento das normas aplicáveis, maxime das regras previstas na norma ISO 13485, o que se traduziu num incumprimento contratual, pois impediu a recorrente de vender as zaragatoas fornecidas, ou seja, de lhes dar a finalidade para que estavam destinadas.
Embora se tenha provado que o recorrido possui os relatórios e registos documentais que permitem verificar os termos em que foi efectuada a esterilização de cada lote de zaragatoas e que demonstram o cumprimento das regras e imposições previstas, nomeadamente registo de testes químicos, indicadores microbiológicos, temperatura da esterilização etc. (cfr. ponto 19 dos factos provados), também se provou que aquele não entregou à recorrente esses relatórios e registos documentais (cfr. ponto 20 dos factos provados).
Mas, uma vez mais, não decorre dos factos apurados, designadamente da proposta referida no ponto 8 e do acordo escrito referido no ponto 12, que o recorrido tenha assumida contratualmente tal obrigação, tal como não decorre que a recorrente tenha solicitado o envio dos referidos relatórios e registos, ao contrário do que é afirmado por esta (cfr. conclusão XXXII), nem a razão pela qual os mesmos não foram fornecidos. De resto, como se afirma na sentença recorrida, «em momento algum alegou a R., na sua contestação, que antes de ter recusado o pagamento das facturas, alguma vez solicitou tais documentos e que a sua entrega tivesse sido recusada pelo A.».
Acresce que tal obrigação também não encontra base legal.
A recorrente baseia tal obrigação acessória nas cláusulas 9, 10.1, 10.5, 10.6 e 11.1 da norma ISO 17665-1:2006 (que transcreve na sua alegação, embora sem tradução para a língua portuguesa), aplicáveis por força da remissão feita pela norma ISO 13485. Mas, por um lado, o Tribunal a quo julgou não provado que o recorrido se tivesse obrigado a cumprir a norma ISO 17665 (cfr. ponto 2 dos factos não provados). Por outro lado, ainda que se considere que a obrigação de cumprimento das cláusulas desta norma decorre da obrigação assumida pelo recorrido de efectuar a esterilização e embalamento das zaragatoas cumprindo todas as regras, procedimentos e documentação impostos na norma ISO 13485 (sendo este cumprimento uma condição essencial à concretização do negócio entre as partes, como decorre dos pontos 10 e 11 dos factos provados), das referidas cláusulas decorre apenas a necessidade de proceder aos aludidos registos, o que, no caso, foi cumprido pelo recorrido, conforme demonstra o ponto 19 dos factos provados.
O que, de resto, está em consonância com o disposto no já citado artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 145/2009, de 17 de Junho, igualmente invocado pela recorrente, que impõe à pessoa que esterilize dispositivos médicos com vista à sua colocação no mercado a elaboração de uma declaração «que afirme que a esterilização foi feita de acordo com as instruções do fabricante», a qual «deve ser mantida à disposição da autoridade competente durante um período de cinco anos a contar da data da sua emissão».
Afirma, porém, a recorrente que era a si que competia elaborar esta declaração de conformidade, tendo em vista a comercialização das zaragatoas por si fabricadas e esterilizadas pelo recorrido, e que não o pode fazer, por não dispor dos registos que atestam o cumprimento das regras.
Mas, como também já vimos, não decorrendo da factualidade julgada provada que a recorrente tivesse informado o recorrido dessa finalidade, antes decorrendo da proposta negocial referida no ponto 7 dos factos provados, para a qual remete a cláusula 4.ª do acordo celebrado entre as partes, que o recorrido não esteriliza dispositivos médicos para colocação no mercado, não vemos que como se possa afirmar a existência da obrigação da acessória de disponibilizar registos tendo em vista essa colocação no mercado.
Em suma, os factos apurados também não permitem concluir que o recorrido incumpriu alguma obrigação acessória baseada no princípio geral da boa fé negocial, maxime de fornecer os registos digitais da esterilização efectuada.
2.4. Concluindo, não estando demonstrado o incumprimento ou o cumprimento defeituoso da prestação do recorrido, nada obsta à procedência do pedido de cumprimento da prestação da recorrente, isto é, de pagamento da retribuição acordada, carecendo de fundamento o pedido indemnizatório formulado por via reconvencional pela recorrente.
Impõe-se, nestes termos, julgar totalmente improcede o recurso interposto e confirmar a sentença recorrida.
Consequentemente, as custas do recurso serão suportadas pela recorrente, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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III. Decisão
Pelo exposto, os Juízes desta 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Registe e notifique.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 14 de Março de 2023
Artur Dionísio Oliveira
Maria Eiró
João Proença
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[1] “O ónus consiste na necessidade de observância de determinado comportamento, não para satisfação do interesse de outrem, mas como pressuposto da obtenção de uma vantagem para o próprio, a qual pode inclusivamente cifrar-se em evitar a perda de um benefício antes adquirido” - Vd. ANTUNES VARELA. Das Obrigações, pág. 35.
[2] Veja-se o referido pelo Prof. ANTUNES VARELA, no seu douto Parecer, Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda (a excepção do contrato não cumprido), onde o mesmo escreveu: «Há venda de coisa defeituosa sempre que no contrato de compra e venda, tendo por objecto a transmissão da propriedade de uma coisa, a coisa vendida sofrer dos vícios ou carecer das qualidades abrangida no art. 913,° do Código Civil, quer a coisa entregue corresponda, quer não, à prestação a que o vendedor se en-contra vinculado. O cumprimento defeituoso da obrigação verifica-se não apenas em relação à obrigação da entrega da coisa proveniente da compra e venda, mas quanto a toda e qualquer outra obrigação, proveniente de contrato ou qualquer outra fonte. E apenas se dá quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito» [ANTUNES VARELA, Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda ( a excepção do contrato não cumprido), Parecer publicado na Col. Jur., ano XII ( 1987), T. 4, pg. 30].
[3] E, ainda, “I - Os contratos incluem não só as obrigações deles expressamente constantes, mas também deveres acessórios inerentes à prossecução do resultado por eles visado. II - Estes deveres resultantes acessoriamente do próprio contrato, em paralelo com a obrigação principal e destinados a assegurar a perfeita execução desta, a ponto de a sua violação poder gerar uma situação de incumprimento, implicam a adopção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento exacto da prestação, com destaque para o dever de cooperação, sem o qual muitas vezes a utilidade final do contrato não é alcançada. III - Tais deveres são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma actuação de boa-fé – art. 762.°, n.° 2, do CC – entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade e consideração pelos interesses da outra parte – princípio da concretização (…)” – cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Dezembro de 2010, processo n.º 984/07.8TVLSB.P1.S1 em www.dgsi.pt.