Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1617/10.0TBSTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
HIPOTECA
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO GERAL
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
Nº do Documento: RP201203131617/10.0TBSTS-A.P1
Data do Acordão: 03/13/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Face à actual redacção do art. 751° do Cód. Civil, apenas os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores, sendo excluídos do seu campo de aplicação os privilégios imobiliários gerais criados por leis avulsas;
II - Assim, um crédito hipotecário tem preferência sobre créditos relativos a IRS e a IRC, muito embora estes gozem de privilégio imobiliário geral.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1617/10.0 TBSTS-A.P1
Tribunal Judicial de Santo Tirso – 1º Juízo Cível
Apelação
Recorrente: “B…, SA – Sociedade Aberta”
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Pinto dos Santos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
Por apenso aos autos de execução com o nº 1617/10.0 TBSTS, veio o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, reclamar créditos no total de 6.966,06€, sendo:
- 506,93€ relativos a IMI inscrito para cobrança em 2009;
- 342,08€ relativos a IMI inscrito para cobrança em 2010;
- 4.080,24€ relativos a IRS inscrito para cobrança em 8.4.2009 a que acrescem juros de mora que se liquidam em 969,33€;
- 1.066,76€ relativos a IRC inscrito para cobrança em 11.12.2010.
Nos autos principais foi penhorado, em 9.3.2011, o imóvel pertencente aos executados, registado na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso, sob o nº 1563/19960216, inscrito na matriz da freguesia de Santo Tirso (Zona Industrial de …) sob o artigo 4584 e sobre o qual incide hipoteca registada a favor do exequente “B…, SA”.
Cumprido o disposto no nº 2 do art. 866° do Cód. de Processo Civil, não foi deduzida qualquer oposição.
Seguidamente proferiu-se decisão que julgou verificado o crédito reclamado e o graduou com o crédito exequendo, em concurso, para serem pagos da seguinte forma:
1º) O crédito reclamado pelo Ministério Público
2º) O crédito exequendo.
Mais se consignou que as custas da execução saem precípuas do produto dos bens penhorados.
Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso de apelação o exequente “B…, SA – Sociedade Aberta”, que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
I – A (...) decisão recorrida não deve manter-se pois não consagra a justa e correcta aplicação das normas legais e dos princípios jurídicos aplicáveis.
II – A graduação de créditos (...) não se mostra efectuada de acordo com as disposições legais aplicáveis.
III – Conforme decorre do disposto nos arts. 743º e 744º e segs. e 686º do Cód. Civil, os créditos provenientes de IRS e IRC não gozam de privilégio imobiliário especial, pelo que jamais poderiam ter sido graduados antes do crédito do recorrente.
IV – Apenas o art. 111º do CIRS (art. 104º na redacção anterior do CIRS) poderia, por hipótese, atribuir ao referido crédito o privilégio creditório que lhe foi atribuído na graduação de créditos.
V – No entanto, a solução consagrada no art. 111º do CIRS é materialmente inconstitucional por violar o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito e por violar o princípio da proporcionalidade previstos, respectivamente, nos art. 2º e no nº 2 do art. 18º da Constituição da República Portuguesa.
VI – O referido privilégio creditório (respeitante a IRS) não está sujeito a registo e, tal como a generalidade dos privilégios creditórios imobiliários, em caso de penhora de imóvel então existente no património do devedor, importa para o beneficiário dos mesmos a faculdade de vir a ser pago com preferência sobre o credor que detenha uma hipoteca sobre esse bem, ainda que registada anteriormente à constituição do crédito de imposto.
VII – Sucede, porém, que contrariamente à generalidade dos privilégios imobiliários, o privilégio aqui em causa não é um privilégio especial, pois oneram todos os imóveis existentes no património do devedor naquele momento e, também diferentemente daquela generalidade, não incidem necessariamente sobre bens especialmente ligados ao facto que gerou a dívida.
VIII – Ora, resulta demonstrado nos autos que o registo da aquisição do imóvel em causa a favor dos executados e, bem assim, a hipoteca registada a favor do banco recorrente foram efectuados em data anterior ao registo da penhora sobre o imóvel em apreço.
IX – Consequentemente, não era possível as recorrente ter tido conhecimento, antes da concessão do crédito aos executados da constituição da hipoteca sobre o imóvel, da existência do crédito reclamado proveniente de IRS.
X – O banco recorrente não sabia, nem tinha qualquer possibilidade de saber, se os executados, ora recorridos, eram devedores ao Fisco, em virtude do sigilo sobre a situação contributiva das entidades empregadoras.
XI – A ausência de registo dos privilégios mencionados no art. 111º do CIRS e a consequente falta de publicidade implica uma clara violação do princípio da boa fé de terceiros, lesando os interesses do recorrente.
XII – Nesta conformidade, porque inconstitucional, não pode ter lugar a aplicação do art. 111º do CIRS ao caso “sub judice”;
XIII – Por outro lado, nos termos do disposto no art. 751º do Cód. Civil, com a nova redacção introduzida pelo Dec. Lei nº 38/2003, de 8.3, apenas os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.
XIV – O crédito do recorrente é provido de garantia real – hipoteca – a qual incide sobre o imóvel em causa, sendo certo que não existe qualquer outra hipoteca ou direito real de garantia em data anterior e não existem credores que gozem de privilégio especial.
XV – Em face de tudo quanto foi exposto, deve ser revogada a sentença de graduação de créditos e substituída por outra que reconheça e gradue os créditos nos termos supra referidos.
XVI – A [decisão] recorrida viola as normas e os princípios jurídicos constantes dos arts. 2º, 18º nº 2, 140º, 240º da Constituição da República Portuguesa e arts. 686º, 736º, 743º, 744º, 747º, 748º e 751º do Cód. Civil, porquanto as mesmas não foram interpretadas e aplicadas com o sentido versado nas considerações anteriores.
Nestes termos, pretende o recorrente que seja revogado o acórdão recorrido e que, em conformidade, o seu crédito seja reconhecido e graduado em segundo lugar, depois do crédito proveniente de IMI, mas à frente dos créditos provenientes de IRS e IRC, para ser pago pelo produto da venda do imóvel penhorado nos autos.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir.
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Aos presentes autos, face à data da sua entrada em juízo, é aplicável o regime de recursos resultante do Dec. Lei nº 303/2007, de 24.8.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 684º, nº 3 e 685º – A, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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QUESTÃO A DECIDIR:
Ordem de graduação dos créditos do exequente “B…, SA” e dos que foram reclamados pelo Min. Público, em representação da Fazenda Nacional, relativos a IMI, IRS e IRC.
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A factualidade relevante para o conhecimento do presente recurso é a que consta do precedente relatório, para o qual se remete.
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O DIREITO
O art. 686º, nº 1 do Cód. Civil estabelece que «a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.»
Por seu turno, o art. 733º do Cód. Civil diz-nos que «privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros.»
Esta garantia visa apenas assegurar dívidas que, por sua natureza, se encontram especialmente relacionadas com determinados bens do devedor, justificando-se, portanto, que sejam pagas de preferência a quaisquer outras, até ao valor dos mesmos bens.[1]
Os privilégios creditórios podem ser mobiliários ou imobiliários. Os mobiliários são gerais, se abrangerem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente ou especiais, quando compreendem apenas o valor de determinados bens móveis. Os imobiliários, por seu lado, são sempre especiais (cfr. art. 735º, nºs 1, 2 e 3 do Cód. Civil).
Sucede, porém, que, apesar do disposto neste art. 735º, vários diplomas avulsos posteriores à entrada em vigor do Cód. Civil, designadamente na área fiscal, vieram criar privilégios imobiliários gerais.
No caso dos autos, o que se verifica é que o Min. Público, em representação da Fazenda Nacional, reclamou créditos relativos a IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis), a IRS (Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares) e a IRC (Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas).
Na primeira situação dispõe o art. 122º, nº 1 do Código respectivo que «o imposto municipal sobre imóveis goza das garantias especiais previstas no Código Civil para a contribuição predial», daí resultando que tais créditos, inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou acto equivalente, e nos dois anos anteriores, têm privilégio sobre os bens cujos rendimentos estão sujeitos àquela contribuição – cfr. art. 744º, nº 1 do Cód. Civil.
Já na segunda e terceira situações estabelecem os arts. 111º do Cód. do IRS e 116º do Cód. do IRC que para pagamento de IRS e IRC relativos aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente.
Significa isto que nestes dois casos (IRS e IRC) a lei consagra um privilégio imobiliário geral.
Contudo, o Tribunal Constitucional, através do seu acórdão nº 362/2002, publicado no “Diário da República”, I Série A, nº 239, de 16.10, declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, por violação do princípio da confiança, consagrado no art. 2 da Constituição, da norma constante do art. 104º do CIRS, aprovado pelo Dec-Lei nº 442-A/88, de 30/11, e, hoje, na numeração resultante do Dec-Lei nº 198/2001, de 3/7, no seu art. 111º, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Nacional prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do Código Civil.
Posteriormente a este acórdão, por força do Dec. Lei nº 38/2003, de 8.3, viria a ser alterada a redacção do art. 751º do Cód. Civil, referente às relações entre privilégios imobiliários e direitos de terceiro, passando este a ter a seguinte redacção:
«Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.»
A alteração desta norma, de grande relevo para a decisão do presente recurso, que se concretizou na adição da palavra “especiais” acima sublinhada, traduziu-se pois na sua circunscrição aos privilégios imobiliários especiais, daí resultando, de forma inequívoca, que apenas estes privilégios são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.
Excluiram-se, portanto, do seu campo de aplicação os privilégios imobiliários gerais.
Prosseguindo, e tendo em conta a actual redacção deste art. 751º do Cód. Civil, referir-se-à que no caso dos autos os créditos resultantes de IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis) referente ao prédio registado na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o nº 1563/19960216, inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora e nos dois anos anteriores, reclamados pelo Min. Público em representação da Fazenda Nacional, gozam de privilégio imobiliário especial, preferindo ao crédito do exequente garantido por hipoteca constituída sobre este prédio, pelo que deverão ser graduados em primeiro lugar.
Já os créditos relativos a IRS e a IRC, também reclamados pelo Min. Público, porque o privilégio imobiliário de que beneficiam é geral, não gozarão de prioridade na sua graduação em confronto com o crédito do exequente garantido por hipoteca.
Por conseguinte, em segundo lugar, será graduado o crédito do exequente garantido por hipoteca constituída sobre o imóvel penhorado, acompanhado pelos seus acessórios que constem do registo, sendo, porém, os juros circunscritos a três anos – cfr. também art. 693º do Cód. Civil.
Depois, em terceiro lugar, serão então graduados os créditos respeitantes a IRS e a IRC.[2]
O recurso interposto pelo exequente será pois de julgar procedente.
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Sintetizando:
- Face à actual redacção do art. 751º do Cód. Civil, apenas os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores, sendo excluídos do seu campo de aplicação os privilégios imobiliários gerais criados por leis avulsas;
- Assim, um crédito hipotecário tem preferência sobre créditos relativos a IRS e a IRC, muito embora estes gozem de privilégio imobiliário geral. [3]
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo exequente “B…, SA – Sociedade Aberta” e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida que será substituída por outra que procede à graduação de créditos pela seguinte forma:
1) Créditos resultantes de IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis) relativo ao imóvel penhorado nos autos, registado na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o nº 1563/19960216 e inscrito na matriz sob o artigo 4584;
2) Crédito exequendo, garantido por hipoteca constituída sobre este imóvel;
3) Créditos resultantes de IRS (Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares) e IRC (Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas);
Sem custas, na instância de recurso.

Porto, 13.3.2012
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
Márcia Portela
Manuel Pinto dos Santos
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[1] Cfr. Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 11ª ed., pág. 960.
[2] Anote-se que no tocante aos créditos que beneficiam de privilégio creditório (neste caso, IMI, IRS e IRC) este abrange somente os juros relativos aos últimos dois anos – cfr. art. 734º do Cód. Civil
[3] Em sentido idêntico, por ex., Ac. STJ de 22.3.2007, CJ STJ, ano XV, tomo I, págs. 144/4; Ac. Rel. Porto de 10.1.2012, p. 750/09.6 TBAMT-A.P1; Ac. Rel. Porto de 9.5.2007, p. 0750820; Ac. Rel. Porto de 3.11.2005, p. 0534225 e Ac. Rel. Lisboa de 12.5.2011, p. 1431/08.3 TBPDL-B.L1-8 disponíveis in www.dgsi.pt.