Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0312993
Nº Convencional: JTRP00037262
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
TEMPESTIVIDADE
Nº do Documento: RP200410200312993
Data do Acordão: 10/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: O mecanismo processual previsto no artigo 358 n.1 do Código de Processo Penal de 1998 pode ser accionado até à publicação da sentença.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
No 1º Juízo do Tribunal Judicial de..... foram julgados em processo comum e com intervenção do tribunal singular, os arguidos B....., C..... e D....., identificados nos autos, tendo sido decidido:
“- condenar o arguido B..... como autor material de um crime de ofensa à integridade física e em consequência condená-lo na pena de multa de 120 (cento e vinte) dias à taxa diária de € 2.00 (dois).
- condenar a arguida C..... como autora material de um crime de ofensa à integridade física e em consequência condená-la na pena de multa de 120 (cento e vinte) dias à taxa diária de 2.00 (dois) €.
- Absolver a arguida D..... como autora material de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 146º n.º 1 e 2 com referência ao art. 132° n.º 2 al. g) e 143º n.º 1 do C.P., mas condená-la corno autora material de um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo art. 143º n.º 1 do C.P. na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 2.50 (dois euros e cinquenta cêntimos).
- condenar o arguido B..... corno autor material de um crime injúrias na pena de multa de 50 (cinquenta) dias à taxa diária de € 2.00.
- condenar a arguida C..... corno autora material de um crime injúrias na pena de multa de 40 (quarenta) dias à taxa diária de € 2.00 .
- condenar a arguida D..... como autora material de um crime injúrias na pena de multa de 50 (cinquenta) dias à taxa diária de € 2.50 (dois euros e cinquenta cêntimos).
- Em cúmulo, condena-se o arguido B..... na pena única de 140 (cento e quarenta) dias à taxa diária de € 2.00.
- Em cúmulo, condena-se a arguida D..... na pena única de 140 (cento e quarenta) dias, à taxa diária de € 2.50.
- Em cúmulo, condena-se a arguida C..... na pena única de 135 (cento e trinta e cinco) dias à taxa diária de € 2.00.

Condenam-se ainda os arguidos nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, fixando-se no mínimo a procuradoria e em 1% a favor das vítimas de crimes violentos.

Julga-se parcialmente procedente o pedido cível formulado pela assistente E..... e em consequência condena-se cada urna das arguidas C..... e D..... a pagar a quantia 300.00 € acrescida de juros de mora à taxa legal contados a partir do trânsito em julgado da sentença até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se no demais as demandadas.
Julga-se parcialmente procedente o pedido cível formulado pelo assistente F..... e em consequência condena-se o arguido B..... a pagar a quantia 300.00 € acrescida de juros de mora à taxa legal contados a partir do trânsito em julgado da sentença até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se no demais o demandado.”

Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso os arguidos B....., C..... e D....., concluindo, em síntese:

- os factos dados como provados nos n.ºs 6, 7, 9, 10 e 11 deverão ser dados como não provados (conclusões 1ª e 2ª);

- foi violado o art. 379º, n.1, al. c) e o art. 374º, n.º 2 do C.P.Penal, por não ter sido feito um exame crítico das provas que sustentam a convicção quanto a matéria de facto (conclusões 4ª a 8ª);

- não se entendo assim, tal fundamentação é contraditória (conclusão 9ª);

- houve violação do art. 32º da CRP - violação do principio “in dubio pro reo” (conclusões 12º a 14º);

- a matéria de facto é manifestamente insuficiente para a decisão (conclusões 15ª e 18ª);

- foi violado o art. 181º do C.P, dado que os arguidos foram condenados por crimes de injúrias que não foram participados pelos assistentes (conclusões 19ª e 20º);

- os assistentes não se sentiram lesados na sua honra pelas expressões proferidas pelos arguidos, mas sim pelas expressões constantes das acusações particulares (conclusão 21ª);

- não podia a M. Juiz, após o encerramento da audiência, notificar os arguidos para uma alteração não substancial dos factos, nos termos do art. 358º, n.º 2 do CPP (conclusões 23ª e 24ª).

Terminam pedindo a sua absolvição.

O M.P. junto do Tribunal “a quo” respondeu, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Os assistentes responderam, defendendo igualmente a manutenção da decisão recorrida.

O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto nesta Relação emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

As fls. 512 vieram os assistentes apresentar um requerimento, subscrito também pelos arguidos/recorrentes, declarando desistir das queixas apresentadas contra os arguidos e do pedido cível.

Sendo impossível, nesta fase do recurso, a desistência da queixa, os recorrentes manifestaram a sua intenção de prosseguir com o recurso (fls. 520).

Colhidos os vistos, procedeu-se à audiência de julgamento com observância de todo o formalismo legal.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
A sentença recorrida deu como assentes os seguintes factos:

a) Provados:

1 - Os arguidos B..... e esposa C..... são familiares dos assistentes e desde há algum tempo que se encontram zangados. Por seu turno a arguida D..... é filha dos arguidos B..... e C......

2 - No dia 14 de Março de 2001 o arguido B..... estacionou o seu carro perto da sua residência.

3 - O carro do arguido B..... e sem que ninguém se encontrasse no seu interior acabou por se movimentar e embater no muro de um vizinho, o que obrigou a que o arguido B..... o fosse buscar.

4 - Os assistentes, F..... e E....., encontravam-se na sua residência, perto do local onde o carro se encontrava estacionado.

5 - Os arguidos B....., C..... e D..... envolveram-se em discussão com os assistentes.
6 - No decurso dessa discussão o arguido B..... atirou com um pau na direcção das pernas do assistente F..... atingindo-o na perna esquerda.

7 - Em consequência desta agressão o arguido foi assistido, nos serviços de urgência do Hospital....., tendo-lhe sido diagnosticada escoriação de cerca de 5 cm de extensão com hematoma na região poplitica esquerda.

8 - Tais lesões demandaram-lhe dez dias de doença sem incapacidade para o trabalho.

9 - Por seu turno a arguida C..... atirou com um pau na direcção da assistente E..... que a veio atingir no braço esquerdo.

10 - A arguida D..... também arremessou com um pau na direcção da assistente E..... acabando-a por atingir na cabeça.

11 - Em consequência das agressões supra aludidas, a assistente E..... recorreu aos serviços de urgência do Hospital..... e tendo-lhe sido diagnosticado hematoma no couro cabeludo e da região fronto-parietal direita e outro na face posterior esquerda do antebraço esquerdo.

12 - Tais lesões demandaram 8 dias de doença com incapacidade para o trabalho nos primeiros dois.

13 - Os arguidos agiram livre e conscientemente com o propósito conseguido de atingir fisicamente o F..... e a E......

14 - A assistente E..... sofreu dores.

15 - O assistente F..... sofreu dores.

16 - No decurso dos factos supra-referidos a arguida D..... dirigindo-se à assistente E..... proferiu a seguinte expressão “vai trabalhar badalhoca”.

17 - Nas mesmas circunstâncias a arguida C..... dirigindo-se à assistente E..... chamou-lhe “filha da puta”, “Vai trabalhar badalhoca”, “vai-te foder”.

18 - Por seu turno o arguido B..... dirigindo-se ao arguido F..... disse-lhe que se fosse foder e que fosse para o caralho.

19 - Os arguidos ao proferirem as expressões supra-aludidas fizeram-no com a intenção de ofender a honra e consideração dos assistentes.

20 - Os arguidos sabiam que as respectivas condutas eram proibidas e punidas por lei.

21 - Os encargos resultantes com o tratamento do assistente F..... no Hospital..... - ..... importaram na quantia de 32,47 €.

22 - Os encargos resultantes com o tratamento do assistente E..... no Hospital....., ..... importaram na quantia de 25,94 €.

23 - O arguido B..... está actualmente desempregado.

24 - O arguido B..... é casado.

25 - O arguido B..... tem como habilitações literárias a 4ª classe.

26 - A arguida C..... é casada.

27 - A arguida C..... é doméstica.

28 - A arguida C..... tem corno habilitações literárias a 3ª classe.

29 - A arguida D..... é casada e tem um filho.

30 - A arguida D..... aufere na sua profissão de costureira a quantia de cerca de 364.00€.

31 - A arguida D..... tem corno habilitações literárias o 6º ano.

32 - Os arguidos não têm antecedentes criminais.

b) Não provados:

Não se provaram outros factos sendo designadamente factos não provados que:

- a arguida D..... soubesse da especial perigosidade do instrumento que utilizou e que tivesse a noção de que o mesmo poderia produzir lesões graves atenta a região do corpo atingida.

- as arguidas C..... e D..... tenham proferido as seguintes expressões dirigindo-se à queixosa: “quando vens de pintar o cabelo tens sempre um viúvo no meio do mato para te assapar a cona”; “vais para as matas com os viúvos dar o pito”;

- a assistente seja pessoa séria e honesta gozando do respeito e consideração das pessoas que a conhecem;

- a E..... tenha sentido imenso medo pela sua vida

- o assistente F..... sofra de uma grave deficiência na perna não atingida, o que lhe fez aumentar o seu mau estar físico e a sua imobilização quase total enquanto se processava a cura da perna agredida;

- o assistente F..... se sentisse profundamente humilhado e revoltado;

- o F..... seja uma pessoa sensível e nervosa dada a sua deficiência física, já que se sentiu que não se pode defender à altura de um homem sem qualquer deficiência física;

- os factos tivessem ocorrido na presença de pessoas estranhas que entretanto se deslocaram ao local para verem o que se estaria a passar;

- o ofendido fosse à data da prática dos factos uma pessoa publicamente reconhecida e respeitada e muito comunicativa e que a partir desse dia e durante algum tempo evitasse o contacto social que sentia aliado à humilhação por ter sido agredido;

- o assistente F..... se sentisse bastante envergonhado com os factos já que é pessoa que nunca se envolveu em discussões;

- as palavras proferidas pelo arguido B..... tenham sido “filho da puta, corno, paneleiro”

c) Motivação:
O Tribunal ponderou criticamente toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento.
O arguido B..... referiu que estacionou o seu carro que acabou por ir embater no muro de um vizinho e que na sequência deste facto existiu uma troca de palavras com os assistentes relacionadas com a prática de bruxarias por parte da sua mulher, mas que não os insultou, tendo alias sido insultado pelo assistente F..... e que apenas trazia na mão uma chave do carro e que o F..... atirou-lhe com um pau e que não fez nada com a chaves que tinha na mão. E disse-lhes que se estavam a insultá-lo e se queriam alguma coisa para saltarem para o caminho. Por seu turno a E..... veio com uma pá e mandou com uma pá à cabeça da C..... que tinha um neto ao colo e depois nada fizeram e vieram para casa. Disse, ainda, que os filhos do assistente depois foram para a sua porta insultá-lo. Não ouviu a esposa e a filha a chamarem nomes; a sua filha quando chegou referiu que disse aos assistentes para irem trabalhar e sua mulher disse para ir ao médico. Deu conta de que ele a esposa não falavam com os assistentes há muito tempo, mas que os respectivos filhos falavam e que aqueles chamavam bruxa à sua mulher.
Por seu turno a arguida C..... deu conta de que era habitual o assistente F..... insultá-la a assistente E..... também a insultou e que viu os assistentes a rirem-se; arguida disse à assistente que ela andava tola e que ela andava com o pai às costas e que para eles se irem ocupar que passavam o dia inteiro na borda do caminho; e que ao F..... chamou "bragança" e "manco"; posteriormente admitiu que chamou filho da puta à E..... e que por diversas vezes disse à E..... " vai trabalhar badalhoca" e que a filha D..... também disse “vai trabalhar badalhoca” e que o marido disse a F..... “que fosse foder e que fosse para o caralho”
A arguida D..... chegou a casa e viu foi ter com o pai e que o pai terá dito aos assistentes para virem falar cá para fora e que o F..... terá dado com um pau no pai e não viu mais nada porque a filha estava a chorar nada e não chamou nomes e depois foi buscar o pai e que a única coisa que disse foi para a assistente ir trabalhar já que se trabalhasse não tinha tempo de andar em bruxedos e que como não fazem nada ficam tolos da cabeça; negou que tivesse atirado com o pau.
O assistente F..... disse que estava de relações cortadas com os arguidos há cerca de 20 anos e que o carro do cunhado deslizou e foi bater no muro contrário e que o assistente foi ver o que se passava e o seu cunhado B..... chamou-lhe “Corno, paneleiro, azeiteiro, filho da puta”. Referiu que foi atingido com um pau na sua perna atirado pelo F..... e que a esposa foi atingida com um pau na cabeça atirado pela D..... e no braço atirado pela C......
Por seu turno a assistente E..... também deu conta das más relações existentes e dos nomes proferidos pelo arguido B..... e de que o seu marido foi atingido na perna esquerda e que por seu turno ela foi atingida na cabeça e que a arguida C..... atirou-lhe um pau para o braço. Referiu, ainda, que os palavrões que as arguidas teriam dito e que eram coincidentes com os que tinha referido na acusação.
No que concerne ao depoimento dos assistentes cumpre referir que na sua análise crítica não deixou de se ponderar o facto de estes estarem de relações cortadas e de existir um processo-crime instaurado pelos assistentes contra os arguidos e de nos ter ficado a sensação de ter havido não só insultos mútuos corno também agressões.
Relativamente às declarações da testemunha G..... cumpre referir que o Tribunal ficou com sérias dúvidas de que a mesma tenha estado no local onde ocorreram os acontecimentos.
Por seu turno a testemunha H..... familiar quer dos arguidos quer dos assistentes assumiu o que se pode chamar uma posição cómoda não se querendo comprometer com a versão dos factos de qualquer das partes, mas não deixou de referir que viu paus no ar.
Relativamente as testemunhas, I..... e L, filhos dos assistentes, os mesmos afirmaram que não presenciaram os factos.
A testemunha M..... também não presenciou os factos.
A testemunha N..... referiu que presenciou os factos tendo ouvido insultos mútuos e que ouviu o B..... a chamar “filho da puta, vai-te foder e vai para o caralho”, não viu cavacos espalhados na rua, mas quando chegou ao local viu urna ripa no ar e o arguido B..... levantou o braço, não viu qualquer participação da arguida D..... e disse que a filha estava em pânico.
O Tribunal ponderou, ainda, as fichas clínicas juntas aos autos, bem como os exames directos e as facturas de fls. 86 e 86 dos autos.
No que concerne à situação pessoa e económica dos arguidos atendeu o Tribunal às suas declarações.
Relativamente aos factos não provados cumpre referir que não foi feita qualquer prova de molde a que a Tribunal pudesse afirmar, sem margem para dúvidas, a sua verificação.

2.2. Matéria de direito
Os recorrentes insurgem-se contra a decisão recorrida, suscitando as seguintes questões: i) alteração da matéria de facto provada, relativamente aos pontos 6, 7, 9, 10 e 11 que, no seu entender, devem constar dos “factos não provados”; ii) falta de fundamentação e fundamentação contraditória da sentença recorrida; iii) violação do art. 32º da CRP (princípio in dubio pro reo); iv) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; v) violação dos arts. 115º e 181º do Cód. Penal (ausência de queixa quanto ao crime de injúrias); vi) as expressões dadas como provadas não lesaram a honra dos assistentes e as expressões por estes indicadas, nas acusações particulares, não se provaram; vii) inadmissibilidade da “alteração não substancial dos factos” (art. 358º do CPP), após o encerramento da audiência.

Dado que relativamente a algumas destas questões há um claro nexo de prejudicialidade, afim de poder extrair-se do julgamento toda a sua virtualidade jurídica, julgamos adequado apreciar o recurso em três grupos fundamentais:

- em primeiro lugar, apreciaremos a validade da desistência da queixa relativamente ao pedido de indemnização cível (efectuada posteriormente à interposição do recurso e constante de fls. 514), dado que sendo a mesma admissível, ficará prejudicada a questão formulada em vi);

- em segundo lugar, apreciaremos as questões processuais cujo desfecho possa implicar a nulidade (ou reenvio) da decisão, isto é: inexistência de queixa, invalidade da alteração não substancial dos factos, falta e contradição da fundamentação e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

- finalmente, apreciaremos a pretendida alteração da matéria de facto e a violação do art. 32º da CRP (princípio in dubio pro reo).

i) Desistência do pedido cível
A fls. 514 os assistentes e os arguidos vieram apresentar um requerimento conjunto onde, além do mais, referiam:
“Quanto aos pedidos de indemnização os ofendidos supra identificados também desistem dos mesmos, pelo que os arguidos nada têm a pagar aos ofendidos.
Quanto a custas, os arguidos e ofendidos acordam que as mesmas sejam suportadas em partes iguais
(…)”.

A desistência do pedido cível é possível “em qualquer altura do processo” – art. 81º do Cód. Proc. Penal.

Tendo em atenção a qualidade dos intervenientes e o seu objecto (o direito à indemnização é um direito disponível), julgo válida e legal a desistência do pedido cível, bem como a transacção quanto a custas relativamente a tal pedido, pelo que a homologamos, julgando extinto o direito que os assistentes aqui pretendiam fazer valer - cfr arts 81º, al. a) do Cód. Proc. Penal e 295º, 1 do Cód. Proc. Civil.

Ficam, deste modo, prejudicadas a questões levantadas neste recurso quanto ao pedido de indemnização civil.

ii) Questões processuais
Nesta sede iremos apreciar a existência de queixa relativamente aos factos dados como provados (respeitantes ao crime de injúria), a validade da alteração não substancial dos factos, prevista no art. 358º do CPP e os vícios da decisão quanto à fundamentação (inexistência, contradição e insuficiência).

Os recorrentes alegam terem sido condenados por crimes de injúrias, por expressões por si proferidas, diferentes daquelas que constavam da acusação. Levantam duas ilegalidades: falta de participação quanto aos crimes efectivamente dados como provados e invalidade de uma alteração não substancial de factos.

O M.P. junto do tribunal “a quo” defendeu a sentença recorrida, considerando que os crimes de injúria pelos quais os arguidos foram condenados foram exactamente os mesmos pelos quais os assistentes apresentaram a respectiva queixa. “Sucede, tão só (diz aquele Magistrado) que em audiência de julgamento se provou que os arguidos proferiram, além de algumas palavras já descritas na acusação, outras que aí se não haviam mencionado e que foram, inclusivamente, confessadas pela arguida C...... Ora este facto, tão vulgar, redunda tão só de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, que traduz uma concretização de algumas das expressões injuriosas já aí mencionadas” – fls. 304.

Nesta Relação, o Ex.mo P.G.A. defendeu idêntica posição.

Na motivação do recurso, os arguidos não explicitam concretamente quais as expressões relativamente às quais houve divergência entre a acusação e a matéria dada como provada. No entanto, tal divergência decorre do texto da decisão recorrida, maxime, do confronto dos factos dados como “provados” e “não provados”. É portanto perante esta realidade que iremos enfrentar a questão.

A decisão deu como “não provado” que:

- “as arguidas C..... e D..... tenham proferido as seguintes expressões dirigindo-se à queixosa: "quando vens de pintar o cabelo tens sempre um viúvo no meio do mato para te assapar a cona"; "vais para as matas com os viúvos dar o pito”;

- as palavras proferidas pelo arguido B..... tenham sido " filho da puta, corno, paneleiro".

A mesma decisão deu como “provado” que:

“16 - No decurso dos factos supra-referidos a arguida D..... dirigindo-se à assistente E..... proferiu a seguinte expressão “vai trabalhar badalhoca”.

17 - Nas mesmas circunstâncias a arguida C..... dirigindo-se à assistente E..... chamou-lhe "filha da puta", Vai trabalhar badalhoca", “vai-te foder”.

18 - Por seu turno o arguido B..... dirigindo-se ao arguido F..... disse-lhe que se fosse foder e que fosse para o caralho.”

É certo que as expressões em que se materializou o crime de injúria são diferentes. Pensamos contudo que essa diferença não é bastante para se falar numa alteração essencial dos factos descritos na acusação. Como refere GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, I, pág. 382 “o crime será o mesmo, ou melhor, não será materialmente diverso, desde que o bem jurídico tutelado seja essencialmente o mesmo. E será essencialmente o mesmo quando os seus elementos constitutivos essenciais não divergirem. Se os novos factos puderem ainda integrar a hipótese de facto histórico descrita na acusação, podem alterar-se as modalidades da acção, pode o evento material não ser inteiramente coicindente com o modo descrito, podem alterar-se as circunstâncias e a forma de culpabilidade que o crime não será materialmente diverso, desde que a razão do juízo de ilicitude permaneça o mesmo”.

No presente caso, o sentido essencial das expressões usadas é o mesmo: denegrir a imagem dos destinatários. Não é o sentido literal – referindo-se a práticas sexuais, ou a uma moralidade sexual não aceite socialmente – que constitui a essência do crime de injúria. A ofensa da honra e consideração, neste tipo de crime, dá-se através de um sentido difuso, através de conotações mais ou menos intuídas e implícitas, ressaltando, no essencial, a exibição pública de desprezo. As palavras usadas, referenciadas àquele dia, hora e local, não são em si mesmas relevantes, desde que o sentido social (desvalor) dessas palavras seja o mesmo. Comparando as expressões denunciadas, constantes das acusações e as dadas como provadas, verificamos que o seu sentido é essencialmente o mesmo.

Deste modo, a queixa ou participação apresentada, relativamente ao crime de injúria, reportado ao dia, hora e local constantes da decisão, deve considerar-se relevante – o crime é essencialmente o mesmo.

Improcede, deste modo, a alegada falta de queixa quanto aos crimes de injúria dados como provados na decisão recorrida.
Poderia, quando muito, ter ocorrido uma alteração não substancial dos factos da acusação, mas este aspecto (também questionado pelos recorrentes) será apreciado já a seguir.

Entendem os recorrentes que o M. Juiz “a quo” não poderia ter atendido à alteração não substancial dos factos (quer para os crimes de injúria, quer para a convolação do crime de ofensa à integridade física qualificada, para o crime de ofensa à integridade física simples), no momento em que o fez, ou seja, antes da leitura da sentença.

O art. 358º, 1 do Cód. Proc. Penal tem a seguinte redacção: “Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”.

Para este efeito, julgamos dever considerar-se “decurso da audiência”, toda a fase anterior à publicação da sentença (como defende o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, no seu parecer). O preceito pretende que o arguido possa defender-se dos novos factos ou da nova qualificação jurídica, o que é possível, desde que seja dada ao arguido a possibilidade de requerer, em prazo adequado, o que entender pertinente para a sua defesa, maxime a repetição de prova ou a produção de novos meios de prova.

No presente caso, o juiz presidente ordenou a notificação dos arguidos “nos termos e para os efeitos do art. 358º, n.º 1 e 3 do CPP, para querendo requererem prazo para a defesa” – fls. 216.
O mandatário dos arguidos requereu o prazo de “10 dias para a presentação da defesa”, o que foi deferido por despacho – fls. 217. Dentro desse prazo, o arguido veio dizer que estava já encerrada a audiência de discussão e julgamento, pelo que a referida alteração não substancial dos factos era extemporânea – fls. 218.

Como se viu, foi dada aos arguidos a possibilidade de se defenderem da referida alteração, podendo, se assim o entendessem, ter requerido a produção de prova. Esta possibilidade de produção de prova, implícita no despacho do juiz concedendo prazo para apresentação da defesa, mostra que a audiência não estava definitivamente encerrada. Seria uma pura contradição, manter a pendência de um prazo de 10 dias para os arguidos apresentarem a defesa e, ao mesmo tempo, considerar que a audiência já estava encerrada.
É verdade que os arguidos não requereram a produção de quaisquer provas, mas tiveram a possibilidade de o fazer, o que é bastante para se considerar cumprido o disposto no art. 358º, n.º1 do C.P.Penal.

Deste modo, não tendo ocorrido uma alteração substancial dos factos – (como acima vimos) e tendo sido dado cumprimento ao disposto no art. 358º, 1 do C.P.Penal, nada há a censurar à decisão recorrida, quanto a este ponto.

Entendem os recorrentes que, relativamente à fundamentação da matéria de facto, não houve um exame crítico da prova produzida, como o impunha o art. 374, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, mas apenas a descrição dos depoimentos prestados em audiência.

Os recorrentes também não têm razão.

A sentença recorrida, na parte relativa à fundamentação da matéria de facto, contém a indicação dos motivos que levaram o tribunal a dar credibilidade à prova testemunhal. Acresce que o tribunal indicou também como relevante na formação da sua convicção a prova documental, designadamente as fichas clínicas juntas aos autos. É certo que, em grande medida, descreve o que considerou “essencial” do depoimento das testemunhas ouvidas, mas não se limita a essa indicação. Relativamente ao depoimento dos assistentes, ponderou “o facto de estes estarem de relações cortadas e de existir um processo-crime instaurado pelos assistentes contra os arguidos e de nos ter ficado a sensação de ter havido não só insultos mútuos como também agressões”. Quanto à testemunha G....., o “tribunal ficou com sérias dúvidas de que a mesma tenha estado no local”. Quanto à testemunha H..... “assumiu o que se pode chamar uma posição cómoda não se querendo comprometer com a versão dos factos de qualquer das partes”.

Da leitura da fundamentação da matéria de facto podemos assim compreender quais as razões que estiveram na base da formação da convicção do Tribunal, o que é bastante para se considerar cumprido o disposto no art. 374º, 2 do Cód. Proc. Penal.

Entendem ainda os recorrentes que a fundamentação da sentença é contraditória. Para tanto, alegam que a mesma se serviu das declarações dos assistentes e da testemunha N....., sendo que os depoimentos por estes prestados são contraditórios. Exemplificam a contradição, nos seguintes termos: “(…) é contraditório e mesmo impossível que a assistente E..... tenha vindo com a pá e mandado com esta na cabeça da arguida C..... que tinha o neto ao colo, e ao mesmo tempo, que a arguida C..... estava munida com um cavaco na mão e arremessou um pau com que atingiu o braço da assistente”.

Como facilmente se vê, o que os recorrentes entendem, é haver contradição dos depoimentos das testemunhas e da assistente. Ora, tal facto (verdadeiro) nada tem a ver com a contradição da fundamentação da matéria de facto.
A contradição dos depoimentos das pessoas ouvidas não obsta a que o Tribunal acolha uma versão coerente dos factos. No presente caso, não há qualquer contradição nos factos dados como provados, e o facto do tribunal se ter referido aos vários depoimentos prestados (contraditórios), não afasta a possibilidade de uma ponderação global e coerente da prova. Assim, e tendo a sentença explicitado que a matéria de facto resultou da apreciação crítica de “toda a prova produzida”, não podemos considerar que haja contradição da fundamentação, pelo facto de as testemunhas terem apresentado versões contraditórias entre si.

Finalmente, e no que respeita ainda aos vícios da fundamentação, defendem os recorrentes haver insuficiência da matéria de facto para a decisão. Explicitam esta sua alegação, considerando “essencial que o Tribunal recorrido se tivesse pronunciado sobre o facto do arguido B..... estar situado num patamar inferior ao do assistente F....., em pelo menos 2 metros, estando ambos os intervenientes separados por um muro e uma grade. Na modesta opinião dos ora recorrentes, o facto de estar num patamar superior e protegido por um muro com uma grade seria adequado a afastar sequer a mínima probabilidade de ser atingido na perna esquerda por um objecto arremessado”.

A matéria provada foi a seguinte: “no decurso dessa discussão o arguido B..... atirou com um pau na direcção da perna do assistente F..... atingindo-o na perna esquerda” (ponto 6).

Não se entende, com efeito, a “modesta opinião” dos recorrentes, recortando aqui um vício de “insuficiência da matéria de facto para a decisão”. Se foi dado como provado que o arguido B..... atirou e atingiu o ofendido com um pau na perna esquerda, não há insuficiência de factos para a decisão, ou seja, para a condenação do arguido.
O que os recorrentes pretendiam era que fosse dado como provado um quadro de circunstâncias que tornasse empiricamente impossível a agressão, designadamente que o ofendido tinha a parte da perna atingida, protegida. Este aspecto é retomado pelos recorrentes, ao pretenderem alterar a matéria de facto provada, e será de novo e nessa perspectiva, analisado.
Resulta da matéria de facto “provada” que o quadro factual alegado pelos recorrentes não se provou, isto é, que o ofendido não tinha a zona da perna atingida, em situação que impossibilitava a agressão.
Não há, assim, insuficiência de factos para a decisão, mas sim falta de prova da versão dos arguidos, coisa bem diferente…

Nestes termos, improcede também este vício.

iii) Alteração da matéria de facto
Nesta vertente do recurso vamos apreciar, em primeiro lugar, a pretendida alteração da matéria de facto e, seguidamente, a invocada violação do princípio “in dubio pro reo” (art. 32º da CRP).

No ponto 6 da matéria de facto deu-se como provado: “No decurso dessa discussão o arguido B..... atirou com um pau na direcção das pernas do assistente F..... atingindo-o na perna esquerda”.

Entendem os recorrentes que tal não resultou provado - fls. 272 da motivação.

Verifica-se, da leitura da transcrição, que o assistente, F....., referiu ter sido atingido com o pau (fls. 267). As lesões por si sofridas foram documentadas na ficha clínica do Hospital....., em termos concordantes (fls. 31 dos autos). Há, assim, um reforço claro da veracidade do depoimento do assistente, justificativo da convicção formada pelo tribunal “a quo”.

No ponto 7 da matéria de facto, deu-se como provado: “Em consequência desta agressão o arguido foi assistido, nos serviços de urgência do Hospital..... tendo-lhe sido diagnosticado escoriação de cerca de 5 cm de extensão com hematoma na região poplitica esquerda”.

Tendo em atenção a ficha clínica junta a fls. 31 dos autos, esta matéria tinha necessariamente que considerar-se provada, sendo que a relação de causalidade entre a agressão e as lesões apresentadas, decorreu do depoimento do próprio assistente. Na sua argumentação, os recorrentes dizem que o assistente F..... afirmou “estar encostado à grade e de frente para o arguido, quando o suposto cavaco é arremessado”. Este facto impossibilitava, em seu entender, as lesões acima descritas. Contudo, no depoimento que fez o assistente (F.....), o mesmo disse ter sido atingido quando “ia a fugir e foi mesmo dentro da porta que fui atingido com o pau” (fls. 267). Como se vê, os recorrentes tentam a todo custo criar uma situação de facto que torne impossível (logicamente) aquilo que de facto ocorreu. (lesões sofridas e observadas no hospital).

Nos pontos 9, 10 e 11 da matéria de facto, deu-se como provado:
“9 - Por seu turno a arguida C..... atirou com um pau na direcção da assistente E..... que a veio atingir no braço esquerdo.
10 - A arguida D..... também arremessou com um pau na direcção da assistente E..... acabando-a por atingir na cabeça.
11 - Em consequência das agressões supra-aludidas a assistente E..... recorreu aos serviços de urgência do Hospital..... e tendo-lhe sido diagnosticado hematoma no couro cabeludo e da região fronto-parietal direita e outro na face posterior esquerda do antebraço esquerdo”.

Pretendem os recorrentes que não se dê crédito às declarações dos assistentes, mas antes às das arguidas que negaram tais factos.
A versão da assistente E..... é corroborada pela ficha clínica do hospital onde foi receber tratamento – cfr. fls. 29 e seguintes. É portanto natural que o tribunal acolha o seu depoimento como credível, uma vez que o mesmo é comprovado por outros elementos (clínicos), onde as lesões são observadas e descritas com total objectividade.
Assim, também neste ponto a convicção do julgador é perfeitamente explicável perante os elementos disponíveis.
O mesmo se diga quanto ao ponto 11 da matéria de facto, onde se faz a descrição das lesões sofridas pela assistente E...... Dado que tal descrição está conforme a ficha clínica de fls. 29 e seguintes, também se mostra explicada a convicção do julgador.

Improcedem, deste modo, as pretendidas alterações à matéria de facto dada como provada.

Impõe-se apreciar uma última questão, relativa à violação do art. 32º da CRP, ou seja, à violação do “princípio in dubio pro reo”. É, em nosso entender, manifesta a improcedência desta alegação.
A prova produzida em audiência de julgamento relativamente às agressões teve, na sua base de sustentação, as declarações das vítimas e a existência (objectivamente comprovada) das lesões. Em termos circunstanciais, houve uma discussão e foram proferidas palavras injuriosas. Neste contexto, aceitar como verdadeiras as declarações dos ofendidos, referindo que foram agredidos e sofreram lesões, as quais são descritas nos competentes relatórios médicos, não é, de forma alguma, violador do “princípio in dubio pro reo”.
O julgador, perante os elementos disponíveis, formou uma convicção perfeitamente plausível segundo as regras da experiência comum. A versão dos arguidos não foi apoiada em meios de prova bastantes para criar, no espírito do julgador, a dúvida. Pelo contrário, o julgador não teve dúvidas em dar como provados os factos acima referidos e, portanto, não houve necessidade de recorrer à aplicação do “princípio in dubio pro reo”.

Deste modo, improcedem todas as conclusões dos recorrentes.

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam:

a) Julgar extinto, por desistência, o direito à indemnização cível que os assistentes pretendiam fazer valer neste processo;

b) Negar provimento ao recurso, confirmando, no mais, a sentença recorrida;

c) Condenar os recorrentes nas custas do processo, fixando a taxa de justiça em 4 UC;

d) Condenar demandantes e demandados nas custas do pedido cível, em partes iguais, conforme o acordado.

Porto, 20 de Outubro de 2004
Élia Costa de Mendonça São Pedro
José Henriques Marques Salgueiro
Manuel Joaquim Braz
José Manuel Baião Papão