Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
133/21.0PAVCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA NATÉRCIA ROCHA
Descritores: INSTRUÇÃO
PRONÚNCIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
Nº do Documento: RP20231219133/21.0PAVCD.P1
Data do Acordão: 12/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na instrução pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança”.
II - São indícios suficientes os vestígios, sinais, suspeitas, presunções, indicações que, logicamente relacionados e conjugados, criam a convicção que, mantendo-se em julgamento, o arguido virá a ser condenado. É o que exige o art.º 283.º, n.º 2, aplicável por força do disposto no art.º 308.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, quando estipula que “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
III - Portanto, os indícios são suficientes quando permitem a formação de um juízo de probabilidade sobre a culpabilidade do arguido, com a produção da convicção de que ele poderá vir a ser condenado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 133/21.0PAVCD.P1
Tribunal de origem: Juízo de Instrução Criminal do Porto – J1 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
No âmbito do processo de instrução n.º 133/21.0PAVCD a correr termos no Juízo de Instrução Criminal do Porto foi proferida decisão instrutória relativamente à arguida AA, nos seguintes termos:
“Pelo exposto, nos termos do artigo 308.º, do Código de Processo Penal, não pronuncio a arguida AA, determinando o arquivamento dos autos”.

Desta decisão veio o Ministério Público interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 133/140dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das conclusões seguintes
1º 0 MM° JIC proferiu despacho de não pronúncia de fls. 126 a 132. por entender que não tinham sido recolhidos indícios suficientes para pronunciar a arguida pelo crime de furto, p. e p. pelo art.º 203.° do Cód. Penal, pois:
- não há testemunhas presenciais dos factos (desconsiderando que o furto ocorreu no interior da loja da A... de Vila do Conde antes da abertura desta).
- não foi apreendido o objeto furtado (desconsiderando que a busca foi efetuada mais de ano após os factos):
- e por as imagens do sistema de videovigilância terem sido gravadas, através de outra câmara o visionamento, num ecrã, contendo parte dos registos de imagem. com sobreposição de sons e vozes, razão pela qual entendeu não terem valor probatório, nos termos do art.º 2.°. 167.° e 168.° do CPP (mas não concluiu que as imagens tivessem sido manipuladas).
2º A gravação em causa é válida conforme tem sido decidido pela jurisprudência (vide acórdão do STJ de 28/09/2011 e do Tribunal da Relação do Porto de 20/09/2017).
3º Salvo o devido respeito. a gravação em causa é válida. e pode ser complementada por prova testemunhal, pois podem ser inquiridos os funcionários que gravaram as imagens juntas em pen e que o fizeram ao mesmo tempo que visionavam o vídeo de vigilância.
5º Apesar de não haver prova direta quanto à autoria do furto, a prova em processo penal pode e deve ser feita através de prova indireta, indiciária ou por presunções, desde que sejam verificados vários requisitos.
6º No caso em apreço, apesar de não ter sido feita a recolha de imagens pela autoridade policial e de não ter sido apreendida na busca o objeto furtado, da prova recolhida há indícios suficientes para a pronúncia.
7º Desde logo, dado que arguida não prestou declarações, ou seja, não negou o furto.
8º A mesma foi filmada a debruçar-se sobre o local onde estavam guardados os phones e a caixa deste apareceu rasgada no lixo, sendo que estes indícios levam a concluir, de acordo com as regras da experiência comum, que foi esta a autora do furto
10º Se é certo que o silêncio da arguida não a pode prejudicar, esta opção de defesa não poderá impedir que se possa efetuar deduções de factos conhecidos (usando as regras das presunções naturais como instrumento de prova) para se concluir que os arguidos atuaram de comum acordo e em comunhão de esforços.
11º Consideramos, assim que, face aos indícios recolhidos é mais provável que a arguida seja condenada do que absolvida.
12° Sendo que. nesta fase processual não se exige o juízo de certeza que a condenação impõe, mas apenas essa probabilidade dominante.
13° Na verdade. reunidos que estão os indícios suficientes para pronunciar a arguida AA pelos factos e como autora do crime de furto de que vem acusada, o despacho de não pronúncia violou o disposto nos art.ºs 26.º e 203.º, n.º 1 e n.º 2 do Cód. Penal e o disposto no art.º 308.º, n.º 1 do CPP.
Termina pedindo seja dado provimento ao recurso e, em consequência, seja proferido despacho de pronúncia da arguida AA, de acordo com os factos e crime que lhe é imputado na acusação pública.

Neste Tribunal de recurso a Digna Procuradora-Geral Adjunta no parecer que emitiu, e que se encontra a fls. 145/146 dos autos, pugna pela procedência do recurso interposto, acompanhando-o.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada mais veio a ser acrescentado com relevo para a decisão em causa.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II- Fundamentação:
Fundamentação de facto
A) Com data de 02.11.2022, foi proferida pelo Ministério Público a seguinte acusação, constante dos autos a fls. 96/98:
“(…).
Para julgamento em Processo Comum, com Intervenção do Tribunal Singular, o Ministério Público nesta Comarca vem deduzir acusação contra:
AA, solteira, filha de BB e de CC, nascida a .../.../1967, residente na Rua ..., ..., 4.º esquerdo frente, em Vila do Conde, titular do CC ....
Porquanto resulta suficientemente indiciada a seguinte factualidade:
1. A arguida AA era, a 12.03.2021 empregada de limpeza, sendo sua entidade empregadora a empresa “B...”.
2. Em tal data, a arguida desempenhava as suas funções no estabelecimento comercial denominado “A...”, sito na Avenida ..., em Vila do Conde,
3. Tendo formulado o propósito de aí se apropriar de uns auriculares.
4. A 12.03.2021, pelas 08h50m, a arguida colocou em prática tal plano e, apercebendo-se da presença de uns auriculares da Marca JBL, Free IIWHT, de cor branca, com o n.º de série ..., com o valor de €79,99 na parte interior do balcão de atendimento, decidiu apropriar-se dos mesmos,
5. O que fez, colocando primeiramente a caixa onde os auriculares se encontravam acondicionados no interior do saco do lixo.
6. Posteriormente, a arguida transportou o saco do lixo para um local mais resguardado, onde retirou os auriculares da respetiva caixa e os escondeu nas calças da respetiva farda, ausentando-se do estabelecimento comercial com os mesmos,
7. Posto o que voltou a colocar a caixa no saco do lixo,
8. Tendo sido a mesma recuperada, mas já sem os auriculares.
9. A arguida agiu com o propósito conseguido de fazer seus os referidos auriculares, sem pagar o correspondente preço, apesar de saber que os mesmos não lhe pertenciam e que agia, como agiu, sem o consentimento e contra a vontade da ofendida e seus legais representantes.
10. A arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.
Pelo exposto, cometeu a arguida um crime de furto, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 203.º do Código Penal, mais incorrendo na perda de vantagens, no valor de €79,99 (setenta e nove euros e noventa e nove cêntimos), nos termos do disposto no artigo 110.º, n.º 1, alínea b), n.º 3 e n.º 4 do Código Penal.
*
Prova: a dos autos, nomeadamente:
Documental:
- Auto de denúncia de fls. 3;
- Reportagem fotográfica de fls. 18 e seguintes
- PEN de fls. 21;
- Documento de fls. 33;
- Auto de busca e apreensão de fls. 67;
- CRC;
Testemunhal:
- DD, melhor id. a fls. 16;
(…)”.
B) Com data de 15.12.2022, a arguida apresentou requerimento de abertura de instrução, constante a fls. 108/109 dos autos, nos seguintes termos:
Questão Prévia: da nulidade da acusação /da falta de legitimidade do MP:
1.º Nos termos do disposto no n.º 3 do art. 283.º do CPP. "[al acusação contém, sob pena de nulidade: b) A narração. ainda que sintética. dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. incluindo, se possível. o lugar, o tempo e a motivação da sua prática. o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada."
2.º A acusação pública deduzida contra a Arguida refere que esta praticou o crime de furto (art.º 203.º, n.º 1 do CP), pelo facto de, alegadamente, ter subtraído à ofendida uns auriculares no valor de 79,99€
3.º Ao abrigo do disposto no art.º 207.º al b) do CP "[a] coisa ou o animal furtados ou ilegitimamente apropriados forem de valor diminuto e destinados a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou de outra pessoa mencionada na alínea a)".
4.º Note-se que o libelo acusatório - que é manifestamente falso - em momento algum refere que o objeto subtraído não foi para servir uma necessidade imediata e indispensável da Arguida.
5.º A propósito da alínea b) do art.º 207.º. refere FIGUEIREDO DIAS, doutrina que, por correta, se acompanha: "(...) na aparente singeleza da roupagem de uma mera alínea, talvez queira dizer mais do que o que o seu invólucro possa fazer sugerir. Na verdade, temos para nós que a norma prevista nesta alínea é uma verdadeira e inequívoca norma incriminadora e que, por isso, devia beneficiar de um tratamento que lhe desse a merecida e justa autonomia. E dizemos isto, não tanto - mas com certeza também - pela clara imposição de a coisa furtada dever ter "valor diminuto" - que reforça a nossa posição de que no furto o valor é um elemento implícito do tipo - mas sobretudo pela consignação legal da finalidade intencional com que a coisa é furtada. É, por conseguinte, este elemento de vinculação temática que torna, sem sombra para dúvidas, a norma que subjaz a esta alínea em um crime autónomo a merecer também autónomo tratamento sistemático-formal". Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Comentário Conimbricense do Código Penal, TOMO II, Coimbra Editora, 1999, p.129.
6.º Atendendo ao valor diminuto da coisa alegadamente furtada (inferior a uma UC - art.º 202.º c), impunha-se que a acusação expressamente mencionasse que o bem supostamente furtado não serviu para suprir uma necessidade imediata e indispensável da Arguida.
7.º Posto isto, se por um lado não se encontram narrados todos os elementos subjetivos do crime imputado à Arguida, por outro lado o Ministério Público, salvo o devido respeito, não tem legitimidade para a prossecução da ação penal (atendendo ao facto de inexistir acusação particular e estarmos nós perante um crime de natureza particular, nos termos das citadas normas).
8.º A Arguida não praticou o crime de que vem acusada, pelo que o teor da acusação pública é manifestamente falso.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exa. mui sabiamente suprirá, deverá ser declarada aberta a instrução e, após decurso do debate instrutório, deverá ser proferido despacho de não pronúncia.”
C) Em 17.05.2023 foi realizado debate instrutório, conforme consta da ata de fls. 125 dos autos e com data de 28.06.2023 foi proferida decisão instrutória nos seguintes termos (cf. fls. 126/132 dos autos):
Despacho de não pronúncia proferido na instrução n.º 133/21.0PAVCD.
A arguida AA veio requerer a abertura de instrução por não se conformar com a acusação pública, registada em 02.11.2022, que lhe imputa a prática de um crime de furto, previsto e punível pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal.
Alegou, no sentido da sua não pronúncia, a nulidade da acusação, por violação do disposto no art.º 283.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, por considerar que não se encontram narrados todos os elementos subjetivos do crime imputado, e que a acusação devia expressamente mencionar que o bem supostamente furtado, pelo seu valor diminuto, não serviu para suprir uma necessidade imediata e indispensável da arguida.
Alegou ainda a falta de legitimidade do Ministério Público para a prossecução da ação penal, com o argumento que o crime em causa tem natureza particular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 202.º, al. c) e 207.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, faltando uma acusação particular.
Por último, afirmou a inocência da arguida, (art.º 8.º do seu requerimento de fls. 108).
EM posterior requerimento, apresentado no debate instrutório, a defesa da arguida invocou ainda a nulidade da acusação por violação do disposto na alínea g) do n.º 3 do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, por não discriminar a prova contida na “pen de fls. 21”.
Realizou-se o debate instrutório, no decurso do qual o ilustre defensor da arguida invocou a insuficiência da instrução por falta do visionamento do conteúdo da pen USB indicada como prova na acusação, tendo reafirmado a insuficiência dos indícios para a pronúncia, nomeadamente por não ter sido encontrado nem apreendido, à arguida, o artigo alegadamente furtado por esta.
Das questões prévias ou incidentais:
Da alegada ilegitimidade do Ministério Público:
Nos termos do artigo 48.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º, do mesmo Código.
E nos termos do artigo 49.º, n.º 1, “quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”.
Foi o que sucedeu nos presentes autos, como decorre do auto de denúncia registado em 18.03.2021, na sequência da queixa apresentada pela gerente da loja A..., em Vila do Conde, relativamente ao furto de uns auriculares, de marca JBL, no valor de € 79,99.
Este auto de denúncia foi distribuído e registado como inquérito, pelo crime de furto simples, conforme resulta dos documentos de fls. 2 a 7, não existindo qualquer indício ou elemento do processo que permita concluir, minimamente, pela possibilidade de um furto visando a utilização imediata da coisa furtada para a indispensável satisfação de uma necessidade da arguida ou de um seu familiar ou parente (nesse sentido, a jurisprudência relativa ao furto por formigueiro tem considerado a sua relação com alimentos, bebidas ou produtos agrícolas em pequena quantidade e de pequeno valor para utilização imediata).
Por outro lado, negando a arguida a imputação que lhe é feita, não vemos como pode pretender que o artigo furtado se destinasse a satisfazer uma necessidade imediata, ou que a acusação referisse o destino a dar à coisa furtada.
Parece-nos algo absurdo e, como tal improcedente.
Da questão relativa à alegada nulidade da acusação:
Analisada a acusação, interpretada no contexto normativo do artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e da maior parte da jurisprudência, bastante restritiva da declaração deste tipo de nulidade, somos levados a concluir pela não violação dos requisitos legais de forma e de conteúdo da acusação.
A acusação deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
A acusação formulada pelo Ministério Público cumpre estes requisitos, assim como cumpre a indicação das provas a produzir ou a requerer, ao mencionar, entre a prova documental, a “pen” de fls. 21, referindo-se ao dispositivo informático eu se liga a um computador através de uma porta “USB” e que permite armazenar e transferir informação em suporte digital, nomeadamente ficheiros informáticos.
Assim, constando da referida “pen” cinco ficheiros vídeo do tipo MP4, são esses ficheiros e não outros, os elementos de prova indicados pelo Ministério Público para sustentar a acusação.
Consideramos válida esta indicação de meios de prova, independentemente da validade ou invalidade daqueles registos para uma condenação da arguida. Voltaremos a este último aspeto no momento da análise da prova.
Da alegada nulidade da insuficiência da instrução, por não terem sido reproduzidos, no debate instrutório, os registos contidos na pen USB:
Como decorre dos artigos 286.º, 288.º e 290.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o juiz de instrução investiga autonomamente o caso submetido à instrução, com respeito pelas garantias de defesa e da presunção de inocência reconhecidas pela Constituição da República.
Alegando a defesa a insuficiência dos indícios para a pronúncia e para a condenação da arguida, não vemos como o indeferimento, em sede de debate, do visionamento dos cinco aludidos ficheiros, pode justificar uma declaração de nulidade do debate ou da instrução, quando o objetivo da arquida será outro, obter uma decisão de mérito no sentido da sua não pronúncia.
Por conseguinte, julgamos improcedente a arguida nulidade da insuficiência da instrução.
Não existem outras nulidades, questões prévias ou incidentais que ora cumpre conhecer, sem prejuízo de ulterior melhor apreciação se for caso disso.
Entrando na análise do objeto da instrução, conforme resulta do artigo 285.º do Código de Processo Pena, esta fase processual visa a comprovação judicial da acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Assim, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia – artigo 308.º do Código de Processo Penal.
Só podem considerar-se suficientes os indícios quando deles resulta uma possibilidade razoável de condenação do arguido numa pena ou medida de segurança – artigo 283.º do Código de Processo Penal.
Factos suficientemente indiciados:
A arguida AA era, a 12.03.2021 empregada de limpeza, sendo sua entidade empregadora a empresa “B...”.
Na mesma data, a arguida desempenhava as suas funções no estabelecimento comercial denominado “A...”, sito na Avenida ..., em Vila do Conde,
Factos não indiciados:
Que a arguida tenha formulado o propósito de se apropriar de uns auriculares que se encontravam naquele estabelecimento;
Que a arguida tenha colocado em prática tal plano, nomeadamente em 12.03.2021, pelas 08h50m, e, apercebendo-se da presença de uns auriculares da Marca JBL, Free IIWHT, de cor branca, com o n.º de série ..., com o valor de €79,99 na parte interior do balcão de atendimento, tenha decidido apropriar-se dos mesmos,
Que a arguida tenha feito isso e tenha colocado primeiramente a caixa onde os auriculares se encontravam acondicionados no interior do saco do lixo.
Que a arguida tenha posteriormente transportado o saco do lixo para um local mais resguardado, onde retirou os auriculares da respetiva caixa e os escondeu nas calças da respetiva farda, ausentando-se do estabelecimento comercial com os mesmos,
Que a arguida tenha voltado a colocar a caixa no saco do lixo e que a caixa tenha sido recuperada, mas já sem os auriculares.
Que a arguida tenha agido com o propósito conseguido de fazer seus os referidos auriculares, sem pagar o correspondente preço, apesar de saber que os mesmos não lhe pertenciam e que agia, como agiu, sem o consentimento e contra a vontade da ofendida e seus legais representantes.
Que a arguida tenha agido deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.
A convicção do tribunal resultou da análise e ponderação de toda a prova produzida no inquérito, daquilo que a única testemunha arrolada na acusação declarou no inquérito com conhecimento direto dos factos e daquilo que não declarou, dos ficheiros constantes da pen USB junta a fls. 21, e da forma como esses ficheiros foram gravados, daquilo que devia ter resultado da busca domiciliária e da não apreensão dos auriculares que supostamente estariam na posse da arguida.
Da falta e insuficiência da prova testemunhal:
A acusação identifica uma testemunha, a única inquirida no inquérito, conforme auto de inquirição datado de 09.11.2021.
No entanto, das suas declarações resulta que a mesma é gerente da loja onde alegadamente desapareceram os auriculares, denotando não ter um conhecimento direto dos factos imputados à arguida, referindo-se essencialmente à intervenção dos funcionários/colaboradores de loja e dos operadores do sistema de videovigilância, depoimento indireto que não se mostra adequado a servir como meio de prova para a condenação da arguida em face do disposto nos artigos 2.º e 128.º, do Código de Processo Penal.
Não se indicia que algum desses colaboradores tenha presenciado os factos.
A gerente de loja, “representante” da queixosa, declarou não ter testemunhas a indicar.
Apresentou um relato e concluiu. “mediante as imagens”, ter a certeza absoluta que foi a arguida a furtar os auscultadores.
No entanto, esta declaração não é confirmada por registos do sistema de videovigilância daquela loja.
Nos autos constam apenas cinco ficheiros de vídeo, contidos na pen USB a fls. 21 dos autos, com os nomes seguintes:
...
...
...
...
...
Para a elaboração da decisão instrutória procedemos à abertura e reprodução dos referidos ficheiros, o mais curto com 13 segundos, e o mais longo com um minuto e 17 segundos.
Os mesmos não constituem reproduções mecânicas de gravação registadas através da câmara de videovigilância existente no local aludido na acusação.
Não foram os agentes de investigação criminal a selecionar e recolher os registos do sistema de videovigilância.
Aparentemente, dois funcionários da loja ou operadores do sistema de videovigilância procederam ao visionamento de uma parte dos registos, e gravaram esse visionamento num equipamento distinto, incluindo o registo sonoro dos comentários que iam fazendo a propósito.
Os registos de videovigilância não foram preservados, nem gravados por forma a permitir a sua correta e integral análise e o necessário contraditório.
Ao invés, alguém considerou suficiente gravar, através de outra câmara, o visionamento, num écran, de parte dos registos de imagem, com sobreposição de sons e vozes, incluindo expressões extravagantes, sem que seja visível a existência do objeto alegadamente furtado pela arguida, e sem qualquer preocupação de garantir a integridade da cadeia de produção de prova e a integralidade das imagens digitais que deviam existir no sistema de videovigilância.
Nestas circunstâncias, aqueles ficheiros não têm valor probatório nos termos dos artigos 2.º, 167.º e 168.º do Código de Processo Penal, o que invalida a “afixação de fotogramas” registada a fls. 18 a 20.
A este respeito, note-se os comentários de voz, desagradáveis e depreciativos, gravados no ficheiro ... (00:55 em diante), que se nos afiguram adequados a pôr em crise a isenção e a idoneidade profissional dos seus autores.
Por último, temos o resultado negativo da busca à residência da arguida.
Recorde-se que, por despacho registado em 05.04.2022, o Ministério Público promoveu a emissão de mandados de busca, se necessário com recurso a arrombamento, para a residência e respetivos anexos e garagens da denunciada AA, “por se revelar de todo indispensável à obtenção de prova”.
Autorizada essa busca pelo juiz de instrução, conforme despachos registados a fls. 42, 44, 56 e 58, efetuada a busca à residência da arguida, e percorridas todas as suas divisões, não foram encontrados os auriculares a apreender, conforme auto de busca registado a fls. 67 e 68 dos autos, resultado que veio confirmar a presunção de inocência da arguida.
Perante a não apreensão da coisa furtada, considerada indispensável para a prova, não deve a arguida ser submetida a julgamento, em face daquela presunção de inocência e dos princípios da confiança e de boa fé.
Pelo exposto, nos termos do artigo 308.º do Código de Processo Penal, não pronuncio a arguida AA, determinando o arquivamento dos autos.
Não há lugar a tributação.
Notifique. (…)”.
*
Fundamentos do recurso:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).

A questão que cumpre apreciar é a de saber se existem indícios suficientes da prática pela arguida de um crime de furto, p. e p. pelo art.º 203.º, n.º 1 do Código Penal.

Vejamos.
Alega o recorrente que, ao contrário da decisão recorrida, considerando os elementos de prova coligida no decurso dos presentes autos, não se pode concluir pela inexistência de indícios suficientes de se ter verificado o crime pelo qual a arguida foi acusada. Ao contrário, existe prova suficiente nos autos que demonstram que a arguida praticou os atos pelo qual o recorrente deduziu acusação contra a mesma.
Dispõe o art.º 203.º, n.º 1, do Cód. Penal, que:
“Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
(…).”
O bem jurídico protegido pela incriminação é a propriedade, na aceção que inclui o poder de disposição sobre a coisa, com fruição das utilidades da mesma. Daí a inclusão deste tipo de crime no capítulo dos crimes contra a propriedade.
No que concerne ao grau de lesão do bem jurídico protegido, o crime de furto é um crime de dano e um crime de resultado se atendermos à forma de consumação do ataque ao objeto da ação (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e à Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 3.ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora).
Delineado que está o tipo legal de crime em discussão nos presentes autos, vejamos, agora, o caso concreto.
A questão fulcral nos presentes autos é a de saber se há indícios suficientes que permitam concluir ter a arguida praticado um crime de furto.
Dispõe o art.º 286.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Fazendo apelo ao disposto no art.º 308.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e tal como é referido por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, à luz da CRP e da CEDH, 3.ª Edição atualizada, “Nela [na instrução] pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança”.
São indícios suficientes os vestígios, sinais, suspeitas, presunções, indicações que, logicamente relacionados e conjugados, criam a convicção que, mantendo-se em julgamento, o arguido virá a ser condenado. É o que exige o art.º 283.º, n.º 2, aplicável por força do disposto no art.º 308.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, quando estipula que “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”. Portanto os indícios são suficientes quando permitem a formação de um juízo de probabilidade sobre a culpabilidade do arguido, com a produção da convicção de que ele poderá vir a ser condenado.
Para fundamentar o seu recurso alega o recorrente que, ao contrário do defendido na decisão recorrida, a gravação em causa é válida, apesar de não ter sido feita a recolha de imagens pela autoridade policial. Acresce que, não obstante não haver prova direta quanto à autoria do furto e de não ter sido apreendida na busca o objeto furtado, da prova recolhida há indícios suficientes para a pronúncia, pois a mesma foi filmada a debruçar-se sobre o local onde estavam guardados os phones e a caixa deste apareceu rasgada no lixo, sendo que estes indícios levam a concluir, de acordo com as regras da experiência comum, que foi esta a autora do furto. Acresce que, dado que arguida não prestou declarações, não negou o furto,
Não poderemos acompanhar a alegação do recorrente.
Em primeiro lugar, o facto de a arguida não ter prestado declarações não nos permite concluir, sem mais, que a mesma não negou o furto de que é acusada. Aliás, tal como é referido – e bem-, na decisão recorrida, a arguida no seu requerimento de abertura de instrução (cf. art.º 8.º de fls. 108 dos autos) negou a prática do crime, afirmando a sua inocência.
Como bem sabe o recorrente, por também o ter afirmado nas suas alegações de recurso, o silêncio da arguida não a pode prejudicar. Tal opção de defesa apenas não poderá impedir que se possam efetuar deduções de factos conhecidos (usando as regras das presunções naturais como instrumento de prova) para se concluir pela prática do crime pela arguida.
Vejamos, pois, se foi colhida durante o inquérito prova de factos conhecidos suficientes que, usando as regras das presunções naturais, nos permitem concluir pela prática do crime de furto de uns auriculares de que é acusada a arguida.
Como sabemos, não foi apresentada qualquer testemunha que tenha presenciado os factos e na busca efetuada nos anexos e residência da arguida também não foram encontrados os identificados auriculares.
Contudo, como sabemos, e bem nos lembra o recorrente nas suas alegações de recurso, quer a prova direta, quer a prova indireta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum: pela primeira via ou método, “a perceção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, ao passo que na segunda “a perceção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79).
Atendendo ao exposto, na prova indireta o apuramento de factos que são imputados ao agente infere-se dos meios de prova sempre à luz das regras da experiência comum, estribadas na lógica, como instrumentos que medem e confrontam probabilidades.
Considerando o caso concreto e admitindo que a gravação efetuada, constante dos cinco ficheiros armazenados na “pen USB”, é válida, apesar de a recolha de imagens não ter sido efetuada pela autoridade policial e conter registo sonoro de comentários desagradáveis de quem fez tal recolha, os referidos vídeos e os fotogramas constantes a fls. 15 e 16 dos autos dos mesmos retirados, apenas nos mostram o local onde, alegadamente, foi deixada a caixa contendo os auriculares (fotograma n.º 1 e ficheiro ...) e uma pessoa, que admitimos seja a arguida (pelas declarações prestadas pela única testemunha inquirida) debruçada sobre aquele local (fotogramas nºs 2 e 3 e ficheiros ..., ... e ...) e a retirar-se do local (fotograma n.º 4 e ficheiro ...).
Analisada a referida prova apresentada (os indicados ficheiros vídeo e fotogramas dos mesmos retirados), ao contrário das legendas ali constantes, por aqueles fotogramas n.ºs 3 e 4/ ..., ..., ... e ... não se nos afigura possível concluir que aquela pessoa está a colocar algo na mão e depois no bolso. Mas, mesmo que assim não se entendesse, não nos poderemos esquecer que resultou indiciariamente provado que a arguida era, a 12.03.2021, empregada de limpeza, e na mesma data, desempenhava as suas funções no estabelecimento comercial denominado “A...”, sito na Avenida ..., em Vila do Conde, de onde, alegadamente, desapareceram os identificados auriculares. Assim, mesmo que fosse possível visionar (que entendemos não ser possível) o que a legenda dos indicados fotogramas refere (“a suspeita coloca algo na mão” e “a suspeita coloca algo no bolso”, desacompanhados de qualquer outro facto indiciado que envolva a arguida, apenas permite concluir que a arguida poderia aproximar-se e debruçar-se, e até mexer e agarrar algo, junto daquela estante ou armário aberto onde, alegadamente, se encontravam os ditos auriculares, no cumprimento das funções – limpeza – a que estava obrigada, nomeadamente agarrando vário tipo de lixo do caixote que ali parece encontrar-se e colocar no saco de plástico grande que transporta (o que, de facto, se visiona perfeitamente). Acresce que o facto de a referida caixa onde, alegadamente, estavam os ditos auriculares ter sido encontrada nos sacos do lixo também não permite qualquer outra conclusão que não seja que alguém, desconhecendo-se quem, colocou a referida caixa nos sacos de lixo.
Assim, no presente caso, temos uma primeira proposição – desaparecimento de uns auriculares de um local onde a arguida exercia as funções de empregada de limpeza-, mas falta-nos precisamente as restantes para que possamos, com base nas regras jurídicas ou máximas da experiência, formar a presunção. Falta-nos os auriculares na posse da arguida ou faltam-nos os auriculares encontrados em local de domínio da arguida. Estas seriam as sequentes, -e não cumulativas-, proposições que, com base nas regras da experiência comum, nos levariam à presunção de que o desaparecimento de uns auriculares de um local onde a arguida exercia funções de empregada de limpeza, haviam sido retirados por ela com o objetivo de os fazer seus.
O recorrente apela como proposição para atingir a presunção ao facto de a arguida ter estado junto ao local onde, alegadamente, se encontravam os auriculares. Ora, como já o referimos, o facto de a arguida poder ter estado debruçada junto ao local onde, alegadamente, se encontravam os auriculares, não pode constituir, só por si e sem margem para dúvidas, uma das proposições que permita levar à presunção de que aquela retirou os auriculares e os fez seus. Acresce que não poderemos esquecer que a arguida exercia, à data, as funções de empregada de limpeza do local onde os mesmos, alegadamente, se encontravam.
Assim, atendendo a tudo quanto se deixa exposto, teremos que concluir que a retirada dos auriculares e a apropriação dos mesmos –– considerado pelo recorrente para imputar tal conduta à arguida- apenas poderia ser atribuído por presunção judicial. Contudo, a prova indiciária a que poderíamos recorrer para chegar a tal presunção é manifestamente insuficiente, razão pela qual não poderemos deixar de concluir nos mesmos termos que o fez a decisão instrutória recorrida e, perante tão parcos indícios recolhidos, aplicar o princípio in dúbio pro reo.
Concordando com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, não se encontram recolhidos indícios suficientes que, em face da presunção da inocência consagrada constitucionalmente, permitam a formação de um juízo de probabilidade sobre a culpabilidade da arguida, com a produção da convicção de que ela poderá vir a ser condenada, no que se refere à prática de um crime de furto, p. e p. pelo art.º 203.º, do Cód. Penal.
Deste modo, e sem necessidade de outros considerandos, o presente recurso improcede, devendo manter-se a decisão instrutória.

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, manter a decisão instrutória nos seus precisos termos.
Sem custas.

Porto, 19 de dezembro de 2023
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelas suas signatárias)
Paula Natércia Rocha
Lígia Trovão
Maria Joana Grácio