Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
20183/21.5T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: DIREÇÃO EFETIVA DE VIATURA
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
SEGURO DE GARAGISTA
Nº do Documento: RP2024013020183/21.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 01/30/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - É quem tem a direcção efectiva do veiculo que assume o risco da sua circulação e, havendo contrato de seguro, sobre a seguradora não recai uma obrigação de indemnização autónoma perante terceiros lesados, respondendo apenas se e na medida em que houver responsabilidades que lhes caibam garantir.
II - A exigência da direcção efectiva é para afastar a responsabilidade daqueles que, a qualquer título, não tenham o poder efectivo da direcção ou disposição do veículo e, por isso, não criem o risco especial derivado da sua utilização.
III - A intervenção do FGA acontece para garantir o pagamento das indemnizações devidas a terceiro pelo sujeito da obrigação de segurar que não tenha cumprido essa obrigação, de acordo com o disposto no artigo 49º do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto
IV - O seguro de garagista é o seguro que está actualmente previsto no artigo 6º, nº3, do DL 291/2007, sendo um seguro de responsabilidade civil para garantir a utilização do veículo enquanto o garagista tiver a sua direcção efectiva, isto é, o utilizar por virtude das suas funções e no exercício da sua actividade profissional. Neste caso, segura-se o risco decorrente do exercício de uma actividade bem delimitada, praticada por pessoas certas e determinadas e que actuam, por regra, num espaço físico muito limitado.
V - Diz-se que este tipo de seguro tem natureza pessoal na medida em que aquilo que se segura não é o veículo, mas antes a responsabilidade da pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação dos danos causados a terceiros pelos veículos que tem em seu poder, no âmbito da sua actividade profissional.
VI - O FGA para se desobrigar no caso teria de alegar e provar que este réu, na altura do acidente, tinha direcção efectiva do veículo no exercício da sua actividade profissional e tal factualidade não se mostra sequer alegada
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 20183/21.5T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível do Porto - Juiz 1 Palácio


Relatora Juíza Desembargadora Ana Lucinda Cabral
1ª Adjunta Juíza Desembargadora Maria da Luz de Seabra
2ª Ajunto Juiz Desembargador Fernando Vilares Ferreira




Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I - Relatório
AA instaurou a presente acção de condenação contra BB e “Fundo de Garantia Automóvel”.
Pediu que estes fossem solidariamente condenados a pagar-lhe a quantia global de 7 160,38€, acrescida de juros de mora desde a data da citação.
Alegou, para tanto e em síntese, que um veículo sua propriedade, de matrícula “..-BH-..”, foi interveniente em acidente de viação envolvendo um outro veículo, de matrícula “..-NN-..”, propriedade do réu BB; afirmou que tal acidente foi provocado por culpa do condutor desta última viatura.
Defende ainda que o réu “Fundo de Garantia Automóvel” será responsável pelo pagamento da aludida quantia, uma vez que o responsável pelo acidente não beneficiava de seguro válido ou eficaz.
O valor peticionado reporta-se ao preço da reparação do veículo – ou seja, 1 235,38€ - e ao dano decorrente da impossibilidade de o utilizar por força da sua imobilização – no montante de 5 925€.

Contestou o réu “Fundo de Garantia Automóvel”, impugnando a matéria alegada pelo A..
Mais alegou que o veículo era conduzido, aquando do acidente, por CC.

O réu BB, por seu turno, não contestou.

Foi admitida a requerida intervenção do referido CC, tendo este admitido que, nas circunstâncias descritas na petição, conduzia o veículo “..-NN-..”. Rejeitou, no entanto, que tal veículo tivesse embatido no da autora. Mais impugnou os danos alegados pela mesma.
Dispensou-se a realização da audiência prévia.

Proferiu-se despacho saneador, tendo sido dispensada a indicação do objecto do litígio e a selecção dos temas da prova.

Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal.

Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“condeno os R. “Fundo de Garantia Automóvel” e BB e o interveniente principal CC, solidariamente, a pagarem à A. AA:
- a quantia de 1 235,38€ (mil duzentos e trinta e cinco euros e trinta e oito cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal civil, a contar da data da citação e até integral pagamento; e
- a quantia de 3 000€ (três mil euros), acrescida de juros, à taxa legal civil, a contar da presente data e até integral pagamento.”

FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL (FGA) veio interpor recurso, concluindo:
1. A sentença proferida condena o FGA e os responsáveis civis por ter dado como provado a inexistência de seguro do veículo responsável pelo sinistro em causa no ponto 9 dos factos provados.
2. Da prova produzida, não resulta provada a inexistência de seguro, tanto mais, que nas declarações prestadas pelo Réu CC, o mesmo informou que disponha de seguro de garagista à data do acidente em causa.
3. Encontra-se pendente recurso quanto ao meio de prova indeferido no sentido de conhecer a existência ou não de seguro de garagista através da junção da apólice.
4. A inexistência de seguro não pode resultar provada com fundamento na impugnação do FGA por desconhecimento.
5. A inexistência/existência de seguro não é um facto do qual o FGA possa ter conhecimento como facto pessoal seu, na medida em que o mesmo tem apenas acesso as informações prestadas pelas seguradoras.
6. Por outro lado, os seguros de garagista – como se trata no presente caso – não está sujeito a nenhuma base de dados que permita obter o seu conhecimento pois titula a carta.
7. O conhecimento da possível existência de seguro de garagista foi um elemento apenas obtido em sede de audiência de julgamento através das declarações do condutor do veículo.
8. Cabe a autora alegar e provar os pressupostos de que depende a responsabilidade do FGA, designadamente a inexistência de seguro válido e eficaz à data do acidente, nos termos do disposto no artigo 342.º do CPC.
9. Não tendo sido provada a inexistência de seguro, o princípio a observar em caso de dúvida resolve-se contra a parte a quem aproveita, nos termos do disposto no artigo 414.º do CPC.
10. Pelo que, o facto 9 dos factos provados tem que ser retirado, uma vez que não se encontra provada a inexistência de seguro.
11. E, por sua vez, ser aditado a matéria de facto não provada o mesmo:
“À data do sinistro, inexistia seguro de contrato de seguro obrigatório pelo qual tivesse sido transferido para entidade seguradora a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pela circulação do referido veículo “NN””.
12. Assim, não estando provada a inexistência de seguro, mostra-se inevitavelmente prejudicada a intervenção do FGA.
13. Pelo que, não poderá ser o FGA responsável pela indemnização a que foi condenado, nos termos do disposto no artigo 49.º, n.º1, al.b), a contrario.
14. Ao não os interpretar da forma acima assinalada, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 342º do Código Civil, 574º nº 3, 414.º, ambos do Código de Processo Civil e 48.º e 49.º, n.º1, al.b) do DL n.º 291/2007.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, nos termos acima peticionados e, consequentemente, ser revogada a sentença recorrida de acordo com o recurso ora apresentado.

A autora apresentou contra-alegações, defendendo que a sentença proferida ser integralmente mantida.

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se houve erro na decisão de facto e se o FGA não pode ser responsabilizado no caso.


II - Fundamentação de facto
O tribunal recorrido considerou:

Factos provados
1 – A aquisição do veículo ligeiro de mercadorias com matrícula “..-BH-..” encontra-se registada a favor da A. desde 29-4-2020.
2 – No dia 30-6-2020, pelas 20:15 horas, o referido veículo “BH”, encontrava-se estacionado na baía devidamente marcada no piso e destinada a estacionamento, na Rua ..., na cidade do Porto, no lado direito desta via, no sentido “Norte-Sul”, e em frente ao nº ...67.
3 – Nessa ocasião, o veículo ligeiro de mercadorias “..-NN-..”, conduzido pelo interveniente CC, provinha da Rua ... e, depois de chegar ao entroncamento desta rua com a Rua ..., virou à direita, visando passar a circular nesta última rua, no sentido “Norte-Sul”.
4 – Quando o veículo “NN” efectuava, naquele entroncamento, manobra de mudança de direcção à direita, para passar a circular na Rua ..., embateu no canto traseiro esquerdo do veículo “BH”, mais propriamente, na parte esquerda da traseira e na parte lateral esquerda, bem como na roda traseira esquerda.
5 – No dia 30-6-2020, a aquisição do veículo “NN” encontrava-se registada a favor do R. BB.
6 – Após o embate, o condutor do “NN” abandonou o local.
7 – No local onde se encontrava estacionado, o veiculo “BH” era visível a quem, como o condutor do “NN”, proviesse da Rua ..., a uma distância de pelo menos 6 metros.
8 – A Rua ... tem, no local onde ocorreu o embate, 6,50 metros de largura.
9 – À data do sinistro, inexistia contrato de seguro obrigatório pelo qual tivesse sido transferido para entidade seguradora a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pela circulação do referido veículo “NN”.
10 – Por força do embate, o “BH” sofreu danos na chapa das zonas traseira esquerda e lateral esquerda, bem como na roda esquerda traseira e no respectivo eixo e amortecedor.
11 – O custo da reparação desses danos ascende a 1 235,38€.
12 – O veículo “BH” foi reparado em 30-7-2021.
13 – Por força dos danos sofridos no embate, o veículo “NN” esteve impedido de circular até à sua reparação.
14 – O A. utilizava o veículo “BH” nas suas deslocações habituais.
15 – Em 13-10-2021, o A. enviou ao R. BB a carta junta como docs. 6 e 7 à petição, solicitando o pagamento da quantia de 7 160,38€ no prazo de 15 dias.
- Factos não provados
1 – À data do embate, o A. usava o “BH” para procurar emprego.
2 – A A. pagou à oficina reparadora do “BH” a quantia de 1 235,38€ a título de retribuição.

III – Do mérito do recurso
Sustenta o recorrente que da prova produzida não resulta provada a inexistência de seguro, tanto mais, que nas declarações prestadas pelo réu CC, o mesmo informou que disponha de seguro de garagista à data do acidente em causa.
Que a inexistência/existência de seguro não é um facto do qual o FGA possa ter conhecimento como facto pessoal seu na medida em que o mesmo tem apenas acesso as informações prestadas pelas seguradoras. Que o conhecimento da possível existência de seguro de garagista foi um elemento apenas obtido em sede de audiência de julgamento através das declarações do condutor do veículo. Que cabe à autora alegar e provar os pressupostos de que depende a responsabilidade do FGA, designadamente a inexistência de seguro válido e eficaz à data do acidente, nos termos do disposto no artigo 342.º do CPC.
Que o facto 9 dos factos provados tem que ser retirado, uma vez que não se encontra provada a inexistência de seguro e deve ser aditado à matéria de facto não provada o mesmo:
“À data do sinistro, inexistia seguro de contrato de seguro obrigatório pelo qual tivesse sido transferido para entidade seguradora a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pela circulação do referido veículo “NN””.
Atentemos.
É ponto assente que a responsabilidade civil emergente da circulação automóvel recai sobre quem tem a direcção efectiva do veículo, tal como refere o artigo 503º do C. Civil. Tal significa que abrange todos aqueles casos em que, com ou sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objectiva, por se tratar das pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas, tomar as providências para que o veículo funcione sem causar danos a terceiros. A direcção efectiva do veículo é o poder real (de facto) sobre o veículo e constitui elemento comum a todas as situações referidas, sendo a falta dele que explica, em alguns dos casos, a exclusão da responsabilidade do proprietário. (V.g. P. Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 3ª edição revista e actualizada).
É quem tem a direcção efectiva do veiculo que assume o risco da sua circulação e, havendo contrato de seguro, sobre a seguradora não recai uma obrigação de indemnização autónoma perante terceiros lesados, respondendo apenas se e na medida em que houver responsabilidades que lhes caibam garantir.
Portanto, a exigência da direcção efectiva é para afastar a responsabilidade daqueles que, a qualquer título, não tenham o poder efectivo da direcção ou disposição do veículo e, por isso, não criem o risco especial derivado da sua utilização. (Vide Vaz Serra, Anotação ao Acórdão do STJ de 01.04.1975, RLJ, ano 109, pág. 163).
A intervenção do FGA acontece para garantir o pagamento das indemnizações devidas a terceiro pelo sujeito da obrigação de segurar que não tenha cumprido essa obrigação, de acordo com o disposto no artigo 49º do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
O seguro de garagista, de que fala o recorrente, é o seguro que está actualmente previsto no artigo 6º, nº3, do DL 291/2007, sendo um seguro de responsabilidade civil para garantir a utilização do veículo enquanto o garagista tiver a sua direcção efectiva, isto é, o utilizar por virtude das suas funções e no exercício da sua actividade profissional.
Neste caso, segura-se o risco decorrente do exercício de uma actividade bem delimitada, praticada por pessoas certas e determinadas e que actuam, por regra, num espaço físico muito limitado.
Diz-se que este tipo de seguro tem natureza pessoal na medida em que aquilo que se segura não é o veículo, mas antes a responsabilidade da pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação dos danos causados a terceiros pelos veículos que tem em seu poder, no âmbito da sua actividade profissional.
Na verdade, o proprietário de uma viatura automóvel que a entrega a uma oficina para reparação perde a sua direcção efectiva a favor do garagista durante o período de reparação.
.O garagista não exerce a sua actividade sob a direcção do dono do veículo e não existe uma relação de subordinação ou de dependência entre ambos.
Como explicitam Adelino Garção Soares, José Maia dos Santos e Maria José Rangel Mesquita, Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, 2ª ed., Coimbra, 2001, pág. 25,” em princípio o denominado seguro de garagistas só cobre os riscos resultantes de sinistros ocorridos com veículos de terceiros por si utilizados no desempenho da sua actividade profissional”.
Neste momento da narração se consegue entender facilmente que a alegação pura e simples de que o réu CC detinha seguro de garagista é completamente inócua para o caso que nos ocupa.
O FGA para se desobrigar no caso teria de alegar e provar que este réu, na altura do acidente, tinha direcção efectiva do veículo no exercício da sua actividade profissional.
Patentemente, tal factualidade não se mostra sequer alegada pelo que a decisão de facto e de direito da sentença permanece incólume no total decaimento do recurso.
Resta, quanto à impugnação do ponto 9º da decisão de facto, corroborar o afirmado na sentença.
Efectivamente, a jurisprudência maioritariamente se tem pronunciado no sentido de que o FGA deve ter conhecimento da existência ou não de seguro válido para os efeitos da segunda parte do nº 3 do artigo 574º do actual CPC (artigo 490º do CPC de 1961) pelo que, se o FGA não invocar a existência de um seguro válido e eficaz com identificação da seguradora, tal equivale a confissão da alegação da autora quanto à inexistência do dito seguro. [cfr. entre outros, Acs. do STJ de 15/4/2010, proc. nº 355/2002.E1.S1 e de 12/5/2011, proc. nº 886/2001.C2.S1 in www.dgsi.pt]
Quer dizer, o que fica é que Fundo de Garantia Automóvel será responsável pelo pagamento da indemnização uma vez que não demonstrou que o responsável pelo acidente beneficiava de seguro válido ou eficaz operativo no caso em análise.

Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação.

Custas pelos apelantes.


Porto, 30 de Janeiro de 2023
Ana Lucinda Cabral
Maria da Luz Seabra
Fernando Vilares Ferreira


(A relatora escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.)