Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
168/22.5GFVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA TROVÃO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VÍTIMA MENOR
MENORES EXPOSTOS A CONTEXTOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RP20240605168/22.5GFVNG.P1
Data do Acordão: 06/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – A alínea e) do nº 1 do art. 152º do Cód. Penal, introduzida Lei nº 57/2021 de 16 de agosto, consagra expressamente o menor como vítima autónoma do crime de violência doméstica desde que ele seja descendente do agressor ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), não apenas quando as condutas descritas no seu proémio, o têm como alvo direto (enquanto pessoa objeto do crime, cfr. art. 14º nº 1 do Cód. Penal), mas que o atingem a título de dolo necessário ou dolo eventual (cfr. art. 14º nºs 2 e 3 do Cód. Penal) se os maus tratos sobre o/a respetivo/a progenitor/a, alvo preferencial do agente, são praticados na sua presença.
II – Assim, na alínea e) do nº 1 do art. 152º estão tutelados pela incriminação na vertente de inflição de maus tratos psíquicos, os menores expostos a contextos de violência doméstica que sejam filhos do agressor e/ou de alguma das pessoas referidas nas alíneas a) a c) do nº 1.
III – Com esta interpretação, não fica esvaziada a agravação contida no nº 2 do art. 152º do Cód. Penal consubstanciada na perpetração de condutas descritas no corpo do nº 1 «na presença de menor» porque essa agravação realça, não a perspetiva dos menores, mas sim a da vítima direta e a do próprio arguido (do mesmo modo que se ocorrer no domicílio comum ou no domicílio desta)
IV – Tal interpretação está em concordância com os textos da subalínea iii) do nº 1 a) do art. 67º-A do CPP, do art. 2º a) e 14º nº 6 da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro, resultantes da revisão operada pela Lei nº 57/2021 de 16 de agosto, ao alargarem o conceito de vítima à “A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica;”.

(da responsabilidade do relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 168/22.5GFVNG.P1
Comarca do Porto
Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia – Juiz 3


Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:



I - RELATÓRIO

Por acórdão depositado em 21/12/2023, na parte que aqui releva, o arguido AA foi absolvido da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de violência doméstica na forma agravada (na pessoa da sua filha menor BB), p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al. e) e nº2, al. a) do Código Penal, e de um crime de violência doméstica na forma agravada (na pessoa do seu filho menor CC), p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al. e) e nº2, al. a) do Código Penal, dos quais vinha acusado.

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O Ministério Público em 24/01/2024 interpôs recurso do acórdão, finalizando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

“1. O presente recurso visa o Acórdão, proferido em 20.12.2023, no processo à margem referenciado que absolveu o arguido AA, da prática em autoria material e em concurso real, de dois crimes de violência doméstica, na forma agravada, p. e p. pelo art. 152.º, n. º1, alínea e) e nº2, alínea a) do Código Penal, em relação aos filhos menores BB e CC, tal como vinha acusado.

2. Na douta sentença aqui recorrida decidiu o Tribunal a quo considerar que os factos dados como provados não integram o aludido tipo legal de crime em relação aos filhos menores, razão pela qual absolveu o arguido.

3. Considerando a totalidade da prova produzida, analisada em conjunto, outra teria que ser a decisão do Tribunal “a quo”.

4. É desta parte da decisão que se recorre por se entender que a prova constante dos autos e a que foi produzida em audiência, se bem analisada e conjugada entre si, teria de levar à condenação deste arguido, nos precisos termos em que vinha acusado.

5. O presente recurso visa, então, a apreciação pelo Tribunal Superior da existência do vício da contradição insanável da fundamentação, do vício do erro notório na apreciação da prova e do erro de julgamento.

6. No entender do Recorrente, o acórdão recorrido padece, antes de mais, do vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, previsto no art.º 410º, nº 2, al. b) do C.P.P., impondo-se a sua revogação.

7. Analisando o caso concreto, afigura-se-nos que a decisão recorrida padece do mencionado vício, pois que, a factualidade dada como provada e não provada mostra-se contraditória com a fundamentação da matéria de facto.

8. Afigura-se-nos que o douto acórdão, face à matéria de facto dada como provada, não poderia concluir que o arguido, ao atuar da forma como o fez em relação à progenitora dos menores – tal como consta dos factos provados n.ºs 4 a 6, 8, 10 a 12, 14, 32 a 34, 36 a 39, 40 a 45, 51 a 52, 64 a 66, 72, 73, 75 a 77, 81 – não tinha a intenção de ferir e magoar psicologicamente os menores dada a ligação afetiva que os unia à vitima DD e á tenra idade que tinham à data do sucedido, ou, pelo menos, que não tenha admitido esse resultado como necessário ou possível e não tenha aceite a sua ocorrência.

9. Assim, deverá ter-se por verificado o mencionado vício de contradição insanável, previsto no art. 410º, nº 2, al. b) do CPP, que impõe a revogação do acórdão, relativamente à absolvição dos dois crimes de violência doméstica, na forma agravada, p. e p. pelo art. 152.º, n.º1 alínea e) e n.º2 alínea a) do Código Penal, em relação aos filhos menores BB e CC.

10. Em nosso entender, devem dar-se como provados factos que o Tribunal deu como não provados, no que respeita às alíneas s) e t), padecendo a douta decisão de erro na apreciação da prova, que se invoca, nos termos do art. 410, nº 2, al. c) do CPP.

11. Na decisão em recurso não temos dúvidas em afirmar que a conclusão probatória que se impõe da prova produzida é contrária à alcançada pelo tribunal.

12. Ou seja, se bem analisada a prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com as regras da experiência comum, devia dar-se como provado, além dos factos dados como provados, que o arguido agiu, pelo menos, com dolo eventual, sabendo que, ao agir daquela forma, violenta contra a mãe dos filhos, e na presença destes afetava a saúde psíquica e emocional dos filhos, querendo, ainda, atingi-los na sua dignidade pessoal, o que também alcançou.

13. O elemento subjetivo do tipo de ilícito é composto pelo dolo genérico, nas suas modalidades de dolo direto, necessário ou eventual.

14. No caso em análise, resultou provado que o crime de violência domestica foi praticado na presença dos filhos menores, e ficaram provados os maus tratos psicológicos provocados nas crianças, existindo, por isso, um crime autónomo de violência doméstica.

15. Na verdade, os menores foram “forçados” a presenciarem factos traumáticos e violentos praticados contra mãe, e que, consequentemente e diretamente os afetou e comprometeu a sua saúde psíquica e emocional.

16. Resulta do teor do relatório da perícia de psicologia forense, efetuado no INML, respeitante ao menor CC, junto aos autos, a fls. 355 a 358, que: “A

sintomatologia identificada é compatível com as vivências abusivas que se configuram a exposição a uma dinâmica de violência doméstica como a descrita, sublinhando-se hipervigilância que face à separação dos progenitores se atenuou, mas ainda se mantém quanto à percepção de risco relativa à progenitora, dados os comportamentos passados que terá presenciado e às verbalizações de ameaça que descreve por parte do progenitor. (…).

Sinaliza-se risco emocional e psíquico para o menor (…) O CC deve beneficiar de acompanhamento psicológico na valência clínica.».

17. Resulta do relatório da perícia de psicologia forense, efetuado no INML, respeitante à menor BB, junto a fls. 361 a 365, que ainda que da avaliação formal não tenha sido sinalizada sintomatologia psicopatológica clinicamente significativa, a perícia de psicologia forense a que a mesma foi sujeita identificou a “experienciação de ansiedade fóbica, i.e., resposta de medo persistente em relação a uma pessoa ou situação específica.(…)Sinalizase risco emocional e psíquico para a menor. (…) a BB deve beneficiar de acompanhamento psicológico na valência clínica por forma a prevenir a intensificação da mesma e promover a elaboração das suas vivências com o suporte de um técnico especialmente habilitado para o efeito.»

18. Em face do teor das perícias psicológicas aos menores, dúvidas não restam que o CC e a BB foram também eles vítimas da violência doméstica, praticada pelo progenitor, porque sofreram maus tratos psicológicos, ficando afetados psicologicamente com as situações traumáticas vivenciadas no contexto familiar.

19. A exposição à violência, de acordo com diversos estudos científicos e doutrina, consubstancia uma forma de mau trato psicológico, porque aterroriza a criança, cria um clima de medo e oprime, com danos diretos na sua integridade psicológica e emocional.

20. Por todo o exposto, em nosso entender e, sempre salvaguardando o devido respeito que nos merece a douta decisão aqui recorrida, a prova que se produziu em julgamento é suficiente para dar como provado que, para além da factualidade assente e constante na sentença recorrida:

«s) O arguido bem sabia que com as suas condutas, praticadas na presença dos filhos menores, os maltratava psicologicamente, sabendo que com tal conduta lhes causava dor, mas em particular angústia e tristeza, pretendendo que os mesmos se sentissem menorizados e humilhados, o que logrou, bem sabendo que os afetava na sua saúde psíquica e física, querendo, ainda, atingi-los na sua dignidade pessoal, o que também alcançou;

t) Ao expor os menores BB e CC à violência a que submeteu a sua progenitora, sabia que ia causar nos mesmos um sentimento de permanente receio e de inquietação, atentando, assim, contra a sua saúde e bem-estar psíquico, o que logrou;»

21. No caso concreto e como já acima foi enfatizado, resultou provado que alguns dos factos praticados pelo arguido o foram na presença dos filhos menores, presença da qual aquele estava perfeitamente ciente e à qual foi indiferente.

22. Esse facto, em conjugação com o teor dos relatórios periciais realizados aos menores, dúvidas não restam que os menores foram vítimas diretas da conduta do arguido, sofrendo maus tratos psicológicos.

23. A apreciação efetuada pelo tribunal não compreendeu uma correta valoração conjunta de toda a prova, em face da prova produzida, afigura-se-nos terem sido incorretamente julgados os factos dados como não provados, referidos no ponto 20, impondo-se a sua correção e a subsequente condenação do arguido.

24. O crime de violência doméstica na forma agravada em relação aos menores encontra-se preenchido nos seus elementos objetivos e subjetivos, devendo o arguido AA ser condenado pela sua prática com uma pena de prisão suspensa na sua execução, e sujeito a regime de prova.

25. Atenta a factualidade que se deve considerar provada, o arguido incorreu na prática de dois crimes de violência doméstica na forma agravada, p. e p. pelo art. 152.º, n. º1, alínea e) e nº2, alínea a) do Código Penal, no que respeita aos filhos menores, pelo que, deverá que ser condenado pela prática de tais ilícitos penais.

26. Foram violados os art. 163º e 374º, nº 2, do Código de Processo Penal e art. 152.º, nº1, alínea e) e nº2, alínea a) do Código Penal.

27. Daí que deva ser alterada a decisão, por V. Ex.ªs, atentos os vícios invocados, substituindo o Acórdão recorrido por outro que condene o arguido no sentido requerido, relativamente aos dois crimes de violência doméstica na forma agravada, p. e p. pelo art. 152.º, n. º1, alínea e) e nº2, alínea a) do Código Penal, no que respeita aos filhos menores, BB e CC.

Assim, se fazendo JUSTIÇA! “.


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Em 29/01/2024 o recurso foi admitido.

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A este recurso respondeu o arguido AA em 12/02/2024, pronunciando-se pela sua improcedência, concluindo da seguinte forma (transcrição):

“I-) Não se pode ser condenado criminalmente por factos não descritos e declarados crime em lei anterior, nos termos do nº 1, do artigo 1º, do CP;

II-) A lei penal não permite o recurso à analogia para qualificar um facto como crime, nos termos do artigo 1º, nº 3, do CP;

III-) O artigo 152º do CP prevê a ofensa directa às vítimas elencadas no nº 1;

IV-) E o nº 2 do mesmo artigo prevê a agravação das condutas elencadas no nº 1, como agravantes;

V-) Nos termos das conclusões anteriores não se pode extrair uma nova norma que puna como crime autónomo a violência doméstica, ou factos constitutivos do crime de violência doméstica, cometido na presença de menores;

VI) Não existe qualquer contradição ou erro de julgamento em aceitar que o arguido estava ciente da presença dos menores, com o facto de não se provar que os menores foram vítimas directas da actuação do arguido, e de que este tenha de modo voluntário e consciente agredido física e psicologicamente os filhos.

Temos em que deve ser julgado improcedente o recurso, COMO É DE JUSTIÇA “.


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Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, em 27/03/2024, aderindo à resposta do arguido, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

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Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, não tendo havido resposta ao parecer.

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Cumpriu-se ainda o disposto no artigo 424º, nº 3 do CPP e, na sequência dessa comunicação, o arguido veio dizer que a vítima direta do crime é apenas a mãe dos menores atento o disposto nos arts. 14º nº 6 e 21º da Lei nº 112/2009 devendo analisar-se as conclusões dos relatórios periciais de acordo com o prudente arbítrio e as culpas concorrentes de ambos os pais e não pela perceção transmitida pelos menores.

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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi realizada a conferência.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões extraídas da respetiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso, como sejam os vícios da sentença/acórdão previstos no  art. 410º nº 2 do CPP e as nulidades (não sanadas) nos termos do nº 3 do referido art. 410º.

Da leitura das conclusões formuladas pelo recorrente, retiram-se as seguintes questões submetidas à apreciação deste Tribunal ad quem:

a contradição insanável entre a motivação da matéria de facto e a factualidade dada como provada e não provada (art. 410º nº 2 b) do CPP);

o erro notório da apreciação da prova ao julgar como não provados os factos descritos nas alíneas s) e t) (art. 410º nº 2 c) do CPP);

saber se o arguido deve ser condenado como autor de dois crimes de violência doméstica na forma agravada p. e p. pelo art. 152º nºs 1 e), 2 a) do Cód. Penal, no que respeita aos seus filhos menores BB e CC.


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Na parte que aqui releva, o acórdão recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação (transcrição; ignoram-se as notas de rodapé):

II. 1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA:

(Constante da acusação pública):

1 - A vítima DD e o arguido contraíram casamento católico no dia ../../2004.

2 - Fruto desta relação tiveram dois filhos, BB, nascida a ../../2006, e CC, nascido a ../../2011.

3 - Há cerca de 4 anos DD teve conhecimento, pelo próprio arguido, de que este mantinha uma relação amorosa extraconjugal.

4 - Desde então, a relação deteriorou-se e o arguido passou a maltratar DD, quer física, quer verbalmente, no interior da residência comum, sita na Travessa ..., ..., em Vila Nova de Gaia, e muitas vezes na presença dos seus filhos em comum.

5 - A situação agravou-se a partir do início do ano de 2022 e, em particular, em Junho de 2022, quando o arguido passou a trabalhar em Portugal e a convivência do casal passou a ser diária.

6 - Desde então, nas discussões que iniciava com DD, o arguido colocou em causa as capacidades intelectuais da ofendida, vociferando-lhe "és uma burra", "és uma otária" e "não consegues fazer nada sozinha".

7 - O arguido, frequentemente, acusou a ofendida de depender economicamente de si, dizendo-lhe "tu vives às minhas custas", porquanto o arguido, na sua atividade profissional, auferia um vencimento bastante superior ao da ofendida, que trabalhava como cabeleireira.

8 - O arguido nunca se coibiu de fazer todas estas acusações perante os próprios filhos e terceiros.

9 - A partir de Junho de 2022, tais discussões tornaram-se ainda mais frequentes, fazendo com que DD se sentisse constantemente humilhada e diminuída pelo arguido.

10 - Para além das expressões acima mencionadas, o arguido tinha por hábito acusar DD de andar com outros homens e de lhe ser infiel, bem como a acusar de se vestir de forma provocante para seduzir outros homens, apelidando-a de “puta”.

11 - E, referiu-lhe, por diversas vezes, que no dia em que não tivesse o seu apoio, teria que se dedicar à prostituição, dirigindo-se-lhe nestes termos: "vais ter de ir dar a cona para sobreviver", ''vais ser uma puta num bar".

12 - Quando fez estas acusações de infidelidade, fê-lo na presença dos filhos menores e da mãe da ofendida, EE.

13 - No dia 28 de Julho de 2022, após o jantar, na casa de morada de família, o arguido comunicou à ofendida que se, efetivamente, quisesse o divórcio ia ''ficar na merda", acrescentando ''vou-te fazer a vida negra" e "não vais ficar com nada".

14 - Porque a ofendida não demonstrou intenção de mudar de ideias, o arguido, na presença dos filhos menores do casal e da mãe da ofendida, EE, partiu o vidro do forno e do micro-ondas aos murros, atirando-os de seguida ao chão.

15 - Com medo, a ofendida enviou uma mensagem à sua prima, FF, no sentido de esta chamar a polícia, que acorreu ao local.

16 - Após a chegada das autoridades policiais à referida residência, o arguido não se coibiu de dizer à vítima, em alta voz, “olha, olha, esta noite vai ser com o guarda”, na altura em que o agente autuante elaborava a ficha de avaliação de risco junto de DD.

17 - No dia 08 de Setembro de 2022 o arguido pediu as chaves do carro da ofendida, tendo referido que se tinha esquecido do isqueiro.

18 - Nesse mesmo dia a ofendida encontrou no veículo uma câmara de filmar.

19 - Confrontado com este facto, o arguido disse a DD que a câmara tinha sido esquecida pelos filhos.

20 - No dia 14 de Setembro de 2022, à noite, o arguido pediu as chaves do carro à ofendida, argumentando que os vidros se encontravam abertos, tendo esta acedido ao seu pedido.

21 - No dia seguinte de manhã a ofendida encontrou no carro um dispositivo de localização GPS.

22 - No final de Setembro de 2022 o arguido conseguiu aceder à conta de Facebook da assistente e, sem a sua autorização para o efeito, fez-se passar pela mesma em conversas com GG, um amigo do casal.

23 - Nestas conversas, fazendo-se passar pela assistente, o arguido tentou estabelecer uma comunicação de teor romântico.

24 - Posteriormente, entre Setembro a Novembro de 2022, o arguido transmitiu à assistente que tinha usado a conta desta no Facebook, fazendo-se passar por ela, e acusou-a de ser infiel.

25 - Neste período de tempo, o arguido contactou com vários familiares da assistente para transmitir o que tinha feito, como foram os casos de FF, HH, II e JJ, enviando-lhes cópia parcial das conversas e telefonando-lhes, procurando difundir que a assistente lhe estaria a ser infiel.

26 - O arguido contatou KK, para quem a assistente trabalhava no seu salão de cabeleireiro, alegando que DD não era de confiar pois era mentirosa e alcoólica.

27 - Durante o ano de 2022 o arguido efetuou múltiplas chamadas para DD – tendo chegado às dez chamadas num dia - durante o seu horário de trabalho no referido estabelecimento comercial.

28 - Se a vítima não o atendia, o arguido, de seguida, ligava para o referido estabelecimento para saber se a vítima aí se encontrava.

29 - No dia 30 de Setembro de 2022 a assistente constatou que o seu n.º ...66 se encontrava desativado.

30 – A ordem de desactivação tinha sido dada pelo arguido, enquanto titular do contrato de fornecimento de telecomunicações à família, que compreendia o telefone fixo da residência, televisão, fornecimento de internet, 4 números de telemóveis cada um, destinados, respetivamente, à assistente, ao arguido e aos filhos menores.

31 - O número de telefone ...66 era usado pela assistente há mais de 20 anos.

32 - No dia 7 de outubro de 2022, ao final da tarde, depois de a ofendida chegar a casa e tomar banho, o arguido voltou a acusá-la de ter tido um encontro amoroso e de lhe ter sido infiel.

33 - De seguida, o arguido pegou na roupa interior usada pela assistente, roupa essa que se encontrava já para lavar, e perseguiu-a pela casa, acusando-a de ser infiel e chamando-lhe “porca” e “puta”.

34 - Esta discussão decorreu na presença da filha menor, BB, que tentou intervir e acalmar o arguido, tendo ficado abalada.

35 - No dia seguinte, 8 de Outubro de 2022, logo pela manhã, o arguido transmitiu à assistente em tom sério: "Ou te pões fina ou os teus filhos ficam órfãos".

36 - No dia 21 de Outubro de 2022 o arguido comprou o jantar para a família.

37 - A meio do jantar, o arguido questionou a ofendida e os filhos se não estava bom e disse: "estou sempre a fazer coisas boas e aqui ninguém me agradece", "ninguém me dá valor".

38 – Depois do jantar, o arguido ameaçou que se matava caso a vítima se separasse dele.

39 - Nessa discussão, que ocorreu na cozinha e na presença dos filhos menores, o arguido aproximou-se da assistente, que se encontrava sentada numa cadeira, apontou-lhe uma faca à barriga e empurrou-a contra o armário da cozinha, vindo a vítima a embater com um dos seus ombros na esquina de um dos móveis, o que lhe causou dores.

40 - Nesse momento, o arguido pegou noutra faca, de cozinha, das maiores que possuía e próprias para cortar carne, e fechou-se na casa-de-banho.

41 - DD, com receio do que o arguido poderia fazer, seguiu-o, juntamente com os seus filhos.

42 - Ao abrir a porta da casa de banho, DD e os menores viram o arguido em pé, dentro do duche, de costas para porta, empunhando a faca com ambas as mãos e com a ponta da lâmina virada para a sua barriga.

43 - Quando se apercebeu da presença das vítimas, o arguido disse “Sai daqui, que eu vou-me matar. Já que não me dás mais uma chance, prefiro a morte”.

44 - Entretanto, o menor CC começou aos gritos, em pânico, e suplicou à mãe para voltar para o pai.

45 - O menor chegou a dizer: “Se ele se mata, eu também me mato”.

46 - DD aproximou-se do arguido e retirou-lhe a faca.

47 - Depois de conseguir acalmar o arguido, a vítima chamou as autoridades policiais.

48 - No dia seguinte, o arguido informou que iria viver para casa dos pais.

49 - Desde o dia 21.10.2022 que o arguido não residia com a vítima, mas passava lá grande parte do seu tempo.

50 - Nos dias seguintes o arguido efetuou diversos telefonemas a DD, nos quais lhe chamou mentirosa.

51 - Por volta das 17 horas do dia 1 de Novembro, quando DD estava na casa-de-banho com a filha menor, foi surpreendida pelo arguido que, sem mais, entrou na casa-de-banho e agarrou-a pela cara com força e disse-lhe: "Não vês que faço isto para o teu bem, acorda para a vida.".

52 - De seguida, o arguido desferiu uma cabeçada na testa da assistente e disse-lhe que ela “era dele e de mais ninguém”.

53 - A assistente sentiu dor, tendo começado a chorar de medo.

54 - No dia 02.11.2022, pelas 13h00, o arguido informou DD de que iria buscar o filho de ambos a casa dela.

55 - O arguido dirigiu-se a casa de DD e exigiu levar a criança.

56 - Perante a recusa da mãe, o arguido vociferou “Nunca foste mãe e agora estás preocupada” e disse-lhe que “andava metida” com o GG e com outros homens.

57 - Dito isto, o arguido lançou-se sobre DD, apertando-lhe o pescoço com uma das mãos e empurrando-a contra o armário da cozinha.

58 - De repente, AA largou a vítima e saiu acompanhado pelo menor CC, que presenciou todo o episódio.

59 - Na manhã do dia 03.11.2022 o arguido rondou o local de trabalho de DD.

60 - Quando DD estava a chegar ao local de trabalho, o arguido atravessou o seu carro na frente do carro daquela.

61 - Com medo, DD tentou sair daquele local, mas foi perseguida pelo arguido, que voltou a bloquear-lhe a passagem.

62 - O arguido só desistiu da perseguição e abandonou o local quando se apercebeu que DD se preparava para chamar a polícia do seu telemóvel.

63 - Mais tarde, quando DD almoçava com a mãe num restaurante em ..., o arguido aproximou-se do referido estabelecimento e colocou a sua cabeça no interior.

64 - No dia 07.11.2022, na casa de morada de família, o arguido iniciou uma discussão com a vítima DD, por não concordar com o seu pedido de divórcio, invocando que a sua mãe estava com um esgotamento derivado de toda esta situação.

65 - A dada altura, o arguido aproximou-se de DD, encostou-a contra um móvel e projetou-a contra o chão.

66 - Nesse momento, para proteção da sua mãe, a menor BB interveio, mas o arguido afastou-a com o propósito de facilitar o contacto físico com DD.

67 - Como consequência direta da agressão infligida pelo arguido, DD sofreu as seguintes lesões “membro superior direito: equimose amarelada na face anterior do terço distal do antebraço com 2x2 cm; membro superior esquerdo: equimose azulada na face lateral do terço médio do braço com 3x3 cm; membro inferior esquerdo: equimose azulada a face medial do terço médio da perna esquerda com 2x2 cm”, que lhe determinaram cerca de 8 dias de doença, sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional”.

68 - No dia 14.11.2022, pelas 18h30, quando regressavam do estabelecimento de ensino Escola Secundária ..., sito na Rua ..., ... – local onde se tinham reunido com a psicóloga da escola para falarem sobre o seu filho CC - o arguido pressionou a vítima DD para irem juntos, na sua viatura, buscar a menor BB ao Colégio ....

69 - Inicialmente, DD não demonstrou vontade em ir com o arguido no seu veículo automóvel, mas acabou por ceder porque o arguido lhe disse “se não vieres comigo no carro, espeto-te uma traseirada no teu carro e já não vais a lado nenhum”.

70 – Enquanto isso, colocou a traseira do seu veículo junto à traseira do veículo da vítima, estando esta de pé junto ao seu carro, tendo-a atingindo na zona dos joelhos e impedindo-a de sair daquele local.

71 - No trajeto, o arguido e a vítima DD mantiveram uma discussão sobre a situação familiar.

72 - Quando a menor BB já se encontrava no referido automóvel, o arguido disse “a tua mãe é uma mentirosa porque ela anda com o GG. Mas nem que eu vá para a cadeia, eu vou desmascara-los. Eu vou para a cadeia, mas um dia sou solto.”.

73 - Ao chegarem à residência comum, sita na Travessa ..., casa ..., ..., DD saiu do referido veículo automóvel e entrou na dita habitação, vindo a ser seguida pelo arguido.

74 - Junto ao portão, o arguido forçou DD a dar-lhe um beijo, encostando-a com força contra o portão, o que acabou por conseguir, não obstante a resistência física demonstrada pela mesma.

75 - Já no interior da habitação, o arguido, sem mais, empurrou a vítima para o solo e, de seguida, colocou as suas mãos no pescoço daquela, apertando-o, causando-lhe dor e sufoco.

76 - Enquanto apertava o pescoço de DD, o arguido dizia-lhe, furioso, “és minha, não és de mais ninguém” e chamava-lhe “burra” e “otária”.

77 - Ao presenciar tal situação, a menor BB começou a gritar por socorro, fazendo com que o arguido acabasse por cessar tal conduta.

78 - DD aproveitou estar liberta do arguido e saiu da sua residência, tendo-se deslocado a casa do seu irmão.

79 - Como consequência direta da agressão infligida pelo arguido, DD sofreu as seguintes lesões “Membro inferior direito: equimose esverdeada com 5 cm de diâmetro no terço médio da face medial da coxa. Três equimoses acastanhadas com 2 cm de diâmetro na face anterior do joelho. Equimose esverdeada com 2 cm de diâmetro no terço médio da face anterior da perna”, que lhe determinaram cerca de 8 dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral por 2 dias com afetação da capacidade de trabalho profissional por 2 dias”.

80 - O arguido quis maltratar física e psicologicamente o seu cônjuge, sabendo que com tal conduta lhe causava dor, mas em particular angústia e tristeza, pretendendo que a mesma se sentisse menorizada e humilhada, o que logrou, bem sabendo que a afetava na sua saúde psíquica e física, querendo, ainda, atingi-la na sua dignidade pessoal, o que também alcançou.

81 – E atuou, por vezes, no interior da casa de morada de família para melhor lograr os seus intentos e, algumas vezes, na presença dos seus filhos menores.

82 - O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, desinteressando-se pela saúde da ofendida, estado psíquico e pelo seu bem-estar, bem sabendo que as condutas supra descritas lhe estavam vedadas e eram punidas por lei, e, ainda assim, não se inibiu da sua realização.

(Constante do pedido de indemnização civil):

83 - Nas circunstâncias supra referidas em 75. a demandante pensou que ia morrer e esteve quase a desmaiar com a falta de ar.

84 - Fruto das agressões acima descritas, o demandado causou lesões, dores físicas, humilhação, desgosto, ansiedade e medo na demandante.

85 - As acusações de ser menos capaz intelectualmente e de ser dependente humilharam a demandante, fazendo-a sentir-se diminuída.

86 - A demandante foi diagnosticada com uma depressão, tendo sido medicada com Escitalopram 10 mg.

87 - As expressões utilizadas pelo demandado causaram vergonha, humilhação e tristeza à demandante.

88 - Em face das acusações do demandado, acima aludidas, a demandante começou a ter problemas de auto-estima, duvidando das suas próprias capacidades.

89 - No trabalho, quando a demandante ouvia o telefone a tocar, pensando que era o demandado a ligar, sentia-se ansiosa.

90 - Ao longo do tempo esta tristeza e ansiedade ao ouvir o toque do telefone no trabalho deu lugar a medo, chegando a tremer e a ter ataques de choro em frente à patroa e a clientes.

91 - A Demandante temia igualmente o efeito que a sua morte teria na vida dos seus filhos menores e quem poderia cuidar deles, tendo falado com familiares sobre o destino dos filhos caso fosse assassinada.

(Constante do Certificado do Registo Criminal do arguido):

92 – Do Certificado do Registo Criminal do arguido AA nada consta.

(Constante do Relatório Social do arguido):

93 – À data dos factos constantes dos presentes autos o arguido e a ofendida viviam em Vila Nova de Gaia, sendo o agregado familiar constituído por estes elementos mais os dois filhos do casal, atualmente com 17 e 12 anos de idade.

Precedendo uma relação de namoro que o arguido iniciou com 19 anos e a ofendida com 15, casaram em 2004, mantendo esta relação até 2022. Nesta altura o arguido exercia atividade profissional na Bélgica, onde se encontrava emigrado, com funções na área da metalomecânica, auferindo, segundo diz, um ordenado na ordem dos 4000€ mensais. Neste âmbito, por via da sua profissão, o arguido permanecia por períodos de tempo consideráveis no estrangeiro, tendo estado emigrado em vários países da europa por força do exercício da profissão de serralheiro tubista, como encarregado de obras e em cargos de chefia, sempre com rendimentos avaliados como bastante satisfatórios. Referiu um sentimento de alguma solitude pessoal, decorrente desta vivência fora da esfera familiar, pelo que, segundo diz, priorizava a relação com a ofendida - e mais tarde com os filhos - sempre que se deslocava a Portugal, circunscrevendo a sua permanência no país de acordo com a partilha de interesses comuns e valorizando o convívio com estes e outros elementos da família.

Segundo o arguido, após uma fase alargada considerada equilibrada, perceciona pela negativa uma mudança na vida do casal, que ter-se-á alterado/agravado um pouco antes do inicio da pandemia Covid19, apontando à ofendida alguma sobranceria e distância na relação entre ambos, alegadamente desvinculando-se dos valores afetivos que, segundo o próprio, devem integrar uma relação entre um casal, fazendo ainda menção a uma alegada interação, pouco transparente, da ofendida com um amigo de infância da própria. Refere ele próprio ter mantido um relacionamento extraconjugal, que considerou furtuito, com uma cidadã polaca, temática que, apesar de ter interferido na dinâmica de ambos por um determinado período, ainda assim a ofendida o terá desculpado.

DD referiu que o casal experienciou harmonia familiar, dita satisfatória, durante uma boa parte do relacionamento, ainda que com a existência de períodos pontuais conturbados, designadamente, há cerca de seis anos atrás em que o arguido lhe terá confessado que mantinha uma relação extraconjugal com uma cidadã estrangeira. Ainda assim, a ofendida diz ter reconsiderado, reposicionando-se favoravelmente à continuidade do relacionamento, até porque, segundo disse, pretendeu zelar pelo interesse dos descendentes. Todavia, ainda segundo a própria, a dinâmica relacional ter-se-á continuado a deteriorar, enquadrando-se neste pressuposto as novas e alegadas relações extraconjugais por parte do arguido, subsistindo conflituosidade reiterada, com consequências, relativamente à harmonia e equilíbrio familiar. Estas circunstâncias terão desencadeado a existência de fases mais controversas, com reiteradas discussões, verbalizando que o arguido ter-se-á tornado obsessivo e ciumento.

O processo de desenvolvimento de AA inscreveu-se numa matriz familiar, constituída pelos pais e mais dois irmãos, um deles adotivo, de suficientes recursos socioeconómicos, tendo crescido integrado no agregado de origem. Ainda assim, dado que o pai do arguido esteve também emigrado, a necessidade de ajuste a esta realidade implicou o abandono da escolaridade ao 6º ano, (ainda que atualmente esteja a frequentar o processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências RVCC), passando a trabalhar ainda em idade precoce, tendo emigrado aos 21 anos de idade, integrando, desde logo, o setor da metalomecânica, atividade na qual foi consolidando a sua experiência e estruturando o seu percurso profissional, com o exercício de funções praticamente até à atualidade.       

Atualmente o arguido integra o agregado familiar dos pais, os quais lhe têm prestado todo o apoio necessário, considerando as condições habitacionais e económicas de que usufruem.

Existe a referência de que o arguido poderia/poderá consumir por vezes bebidas alcoólicas em excesso, mas este parece não assumir esta adição, não valorizando este consumo ou a assunção da sua gravidade/ilicitude em função de alegados excessos etílicos. Presentemente encontra-se em acompanhamento na especialidade de psicologia, apontando que o presente processo se repercutiu negativamente nas várias áreas da sua vida, lamentando, designadamente, não poder estabelecer quaisquer contactos com os filhos.

Confrontado o arguido e sempre que conseguiu descentrar-se da sua situação pessoal e pensar abstratamente acerca da natureza dos factos subjacentes ao presente processo, parece evidenciar capacidade reflexiva e crítica, com discurso ajustado ao socialmente expetável no que se refere à censura contra crimes como o de que aqui vem acusado.

A trajetória de vida do arguido parece integrar-se em características sociais marcadas pela valorização do trabalho, com a precocidade da autonomia de vida.

Não se identificam, no seu percurso vital e até ao presente, disfunções significativas ou desvio ao normativo, aparentando a eventual prática criminal circunscrever-se ao domínio da relação conjugal e suas particularidades.

Em caso de condenação, AA, suportado pela intervenção da DGRSP, reunirá condições para cumprir uma medida de execução na comunidade, nomeadamente, o reunir de ferramentas que lhe permitam o interiorizar do desvalor da sua conduta visando uma maior estabilidade pessoal/emocional e a prevenção de comportamentos de natureza idêntica àqueles pelos quais se encontra acusado, eventualmente subordinado a obrigações relacionadas com eventual problemática de consumo excessivo de bebidas alcoólicas.

(Resultantes da audiência de julgamento):

94 – O arguido confessou parte dos factos vertidos na acusação pública, disse estar arrependido e pediu desculpas aos filhos, à aqui assistente e à família desta.


*


II.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA:

Com interesse para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos, constantes da acusação ou do pedido de indemnização civil, designadamente, que:

a) O referido em 6. dos factos provados sucedesse com frequência quase diária;

b) Nas circunstâncias supra referidas em 16. dos factos provados o arguido tivesse chamado a assistente de “puta”;

c) Nas circunstâncias supra referidas em 19. dos factos provados o arguido tivesse dito à assistente “és mesmo muito burra";

d) Tivesse sido o arguido a colocar no interior do veículo o dispositivo de localização GPS supra aludido em 21. dos factos provados;

e) Nas circunstâncias supra referidas em 28. dos factos provados, o arguido ligasse para a proprietária do estabelecimento, KK;

f) O pedido de cancelamento do telefone da assistente, supra aludido em 30. dos factos provados, tivesse sido efectuado sem o consentimento da assistente e sem previamente o arguido lho comunicar;

g) Nas circunstâncias supra referidas em 33. dos factos provados, o arguido tivesse dito à DD "metes- me nojo", "não vales nada";

h) Nas circunstâncias supra referidas em 39. dos factos provados, o arguido tivesse dito disse à DD: “És uma ingrata. Não vales nada. Não mereces os sacrifícios que faço por ti.”;

i) Nas circunstâncias supra referidas em 48. dos factos provados, o arguido tivesse afirmado que iria dar uma coça ao irmão da vítima e a um amigo dela, acrescentando que se iria vingar na sua família;

j) Nas circunstâncias supra referidas em 50. dos factos provados, o arguido tivesse dito à DD: “Tens amantes. Andas com outros gajos”;

k) No dia 01.11.2022 o arguido deslocou-se a casa da vítima, para ir buscar o filho, e disse à DD que era uma “mãe de merda”, apertando-lhe a cabeça com ambas as mãos e desferindo-lhe uma cabeçada, que a atingiu no meio da testa.

l) Nas circunstâncias supra referidas em 56. dos factos provados, o arguido tivesse dito à assistente: “És uma cabra. Olha para ti, pareces uma puta. Tu és minha e não és de mais ninguém, ouviste?”;

m) O referido em 57. dos factos provados tivesse causado a DD dificuldade em respirar;

n) Nas circunstâncias supra referidas em 57. dos factos provados, o arguido tivesse encostado a sua cara à da vítima e lhe tivesse dito: “Em ti ninguém te toca. Só eu. Ouviste?”.

o) No dia 02/11/2022, ao regressar a casa de DD com o seu filho CC, o arguido tentou forçar DD a que lhe desse um beijo na boca, mas, perante a sua recusa, agarrou-a pelos pulsos e tentou beija-la à força;

p) Nas circunstâncias supra referidas em 65. dos factos provados, o arguido tivesse agarrado a DD pelo pescoço;

q) Nas circunstâncias supra referidas em 66. dos factos provados, o arguido tivesse apertado os pulsos da menor BB;

r) Nas circunstâncias supra referidas em 78. dos factos provados, o arguido se tivesse apoderado do telemóvel da assistente;

s) O arguido quis maltratar física e psicologicamente os seus filhos, sabendo que com tal conduta lhes causava dor, mas em particular angústia e tristeza, pretendendo que os mesmos se sentissem menorizados e humilhados, o que logrou, bem sabendo que os afetava na sua saúde psíquica e física, querendo, ainda, atingi-los na sua dignidade pessoal, o que também alcançou;

t) Ao expor os menores BB e CC à violência a que submeteu a sua progenitora, sabia que ia causar nos mesmos um sentimento de permanente receio e de inquietação, atentando, assim, contra a sua saúde e bem-estar psíquico, o que logrou;

u) A demandante sentia ansiedade durante a noite, tendo ataques de choro e problemas em adormecer e, pela privação de sono, passava os dias cansada;

v) A demandante deixou de conseguir dormir, tendo que ser medicada para adormecer, passando a tomar Diazepam Ratiopharm;

w) Pessoas que contactavam com a demandante no dia-a-dia e no trabalho começaram a reparar nas alterações de comportamento da demandante, que se mostrava agora sempre cansada e triste;

x) O referido em 86. dos factos provados tivesse ocorrido em Maio de 2022 e tivesse sido causado pela conduta do demandado supra descrita;

y) A demandante começou a temer que os filhos menores a passassem a ver como o demandado a descrevia;

z) A demandante andava tão ansiosa que não conseguia parar de tentar perceber se andava a ser seguida pelo demandante;

aa) Muitas vezes a demandante pedia ajuda a pessoas que estivessem com esta para ver se o demandado estava escondido a persegui-la;

bb) Nas circunstâncias supra referidas em 52. dos factos provados, a demandante, nos dias seguintes, teve um hematoma na testa, tendo sido questiona por várias pessoas sobre o que lhe tinha acontecido, o que muito a envergonhou;

cc) Os hematomas referidos em 67. dos factos provados eram bem visíveis, sendo a demandante questionada sobre os mesmos por familiares, o que muito a envergonhou;

dd) Nas circunstâncias supra referidas em 70. dos factos provados, o demandado tivesse dito à demandante que a ia esmagar com o carro;

ee) Nas circunstâncias supra referidas em 71. dos factos provados a demandante pediu várias vezes para o arguido parar o carro para esta sair, continuando a sentir fortes dores nos joelhos e náuseas;

ff) De 28 de Julho a 14 de Novembro de 2022 a demandante temeu pela vida todos os dias;

gg) A demandante teme ainda pelo seu futuro e o que pode vir a acontecer, e que tudo se pode vir a repetir, vivendo angustiada, abalada, nervosa e sobressaltada, continuando com necessidade de recorrer ao uso de antidepressivos e ansiolíticos;

hh) Antes, sempre foi uma pessoa bem-disposta e gostava de conviver com amigos e colegas;

ii) Nos últimos anos, passou a fechar-se em casa, a isolar-se, deixando de conviver com os demais;

jj) A demandante perdeu o ânimo e o orgulho, tendo crises de ansiedade e de pânico com frequência([1]).


*


II.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida, cotejada com as regras da experiência comum e da normalidade social, tendo sopesado as declarações prestadas pelo arguido, conjugadas com os depoimentos das testemunhas e com os diversos elementos periciais e documentais contantes dos autos, nos moldes que a seguir se expõem.

O arguido prestou declarações em audiência de julgamento, tendo confessado parte dos factos de que vem acusado.

Relatou as discussões que travou com a sua então mulher, DD, durante o período de tempo em que viveram maritalmente, às quais assistiam por vezes os filhos menores do casal, BB e CC, admitindo que no “calor” das discussões lhe pudesse ter chamado “burra” algumas vezes.

Confirmou, também, que certo dia do ano passado1 telefonou para um amigo da assistente, de nome GG, fazendo-se passar por aquela e dizendo-lhe que “tinha saudades”, após o que contactou vários familiares e amigos da assistente dizendo-lhes o que tinha feito e acusando a mulher de lhe ser infiel; bem como contactou a patroa da assistente – a aqui testemunha KK – alegando que a esposa era mentirosa e alcoólica.

Para além disso, em Setembro de 2022 procedeu à desactivação do telemóvel da assistente e dos demais aparelhos de telecomunicações existentes na casa de morada de família; sendo que, apesar de nunca ter dito à DD que ela vivia às custas dele, disse-lhe que, se se divorciassem, ela teria de arranjar outra pessoa para poder sobreviver.

Relativamente ao episódio descrito na acusação pública e reportado ao dia 28/07/2022, esclareceu que, por essa altura, a ora assistente já pretendia o divórcio - o que o deixava magoado, deprimido e furioso - e, por isso, puxou a porta do forno da cozinha, que desencaixou e caiu ao chão, e retirou o micro-ondas do local onde se encontrava embutido e colocou-o no chão da cozinha, levando-os depois para o exterior da habitação. Nessas circunstâncias, não chamou “puta” à DD, admitindo, no entanto, poder ter-lhe dito que nessa noite ela “ia com o guarda”.

Admitiu, ainda, o episódio narrado na acusação pública e reportado ao dia 7 de Outubro de 2022, apenas negando ter acusado a assistente de lhe ser infiel.

Também admitiu, no essencial, o episódio reportado ao dia 21 de Outubro de 2022, negando apenas ter, nessas circunstâncias, derrubado a assistente da cadeira onde se encontrava sentada e tê-la insultado. Nos dias seguintes, telefonou à então mulher e, no meio duma discussão, disse-lhe que não era boa mãe e chamou-lhe mentirosa.

Rejeitou, no entanto, os episódios de perseguições e de agressões físicas e verbais narrados na acusação pública e reportados aos dias 01/11/2022, 02/11/2022, 03/11/2022 e 07/11/2022, afirmando que, nessas ocasiões, só discutiu com a mulher – admitindo que no dia 01/11/2022 a agarrou pelo rosto dizendo-lhe que tudo o que fazia era para o bem dela -, não a tendo agredido por qualquer forma.

Relativamente aos factos reportados a 14/11/2022, o arguido confirmou ter dito à assistente para entrar no carro dele senão dava uma “traseirada” no carro dela, bem como confirmou ter dito à filha BB, quando esta entrou na viatura, o que consta da acusação pública. Mais confirmou que, nesse dia, já no interior da habitação, a dada altura a assistente desequilibrou-se e caiu e então “foi para cima dela” e pôs-lhe as mãos ao pescoço. A DD estava com dificuldades em respirar e então ele colocou-a no sofá e abriu a janela da divisão para ela poder respirar melhor. Os filhos assistiram a isto, sendo que a BB estava a gritar, em pânico, pedindo-lhe para parar.

No mais, negou, categoricamente, alguma vez ter insultado ou agredido fisicamente os filhos menores BB e CC, admitindo apenas poder tê-los “afastado” quando os mesmos se interpunham entre ele e a progenitora aquando das discussões.

Esta versão dos factos coincide, no essencial, com o teor das declarações prestadas pelo arguido em sede de 1º interrogatório judicial e que foram reproduzidas em audiência de julgamento.

 No entanto, a narrativa apresentada pelo arguido, quanto à essencialidade dos factos que não assumiu, não mereceu a este Tribunal credibilidade dado o seu teor marcadamente negacionista, infundado e incongruente, tendo, para além do mais, tentado desacreditar a ofendida DD imputando-lhe a responsabilidade pelos problemas existentes na relação. Para além disso, a sua versão dos factos resultou totalmente infirmada pelo conjunto da prova produzida, bastando, para tanto, atentar no teor objectivo, coerente e convincente das declarações prestadas pela assistente DD e pela ofendida BB.

Assim é que a assistente DD relatou em audiência de julgamento que casou com o aqui arguido em 2004, tendo dois filhos menores em comum. O arguido esteve emigrado em vários países, mas vinha a Portugal de 4 em 4 meses e aqui permanecia durante cerca de 15 dias. Há cerca de 6 anos, a assistente tomou conhecimento de que o arguido mantinha um relacionamento amoroso com outra mulher5 e a partir daí deixou de confiar nele. O arguido começou então a ser agressivo com ela, dizendo-lhe, algumas vezes na presença dos filhos e da sua mãe6, que ela era uma otária, uma burra, que não valia nada e que era ele quem sustentava a casa.      

Acusava-a, ainda, na presença dos filhos, de lhe ser infiel, dizendo-lhe que ela era uma “puta” e que “andas vestida parece que vais atacar”, “vais ter de dar a cona para o bar para sobreviver”.

Com tudo isto, a assistente sentia-se humilhada.

Em Junho de 2022, quando o arguido regressou definitivamente a Portugal, a situação agravou-se, começando o arguido a chegar a casa de madrugada e embriagado.

Assim é que, certo dia do ano de 2022, quando a família estava a jantar na cozinha da habitação do casal, gerou-se uma discussão entre ambos por causa do assunto do divórcio e então o arguido exaltou-se e, de repente, arrancou o micro-ondas e atirou-o ao chão e partiu o vidro da porta do forno, que caiu no chão. Ela ficou com medo porque o arguido estava muito alterado e agressivo e, por isso, chamou a Polícia, que se deslocou à habitação. À frente do agente policial, o arguido, dirigindo-se à assistente, disse-lhe que naquela noite ela ia “dormir com o Polícia”.

Contou também que, num dia do mês de Setembro ou Outubro do ano passado, quando regressava do trabalho, o arguido foi ter com ela ao carro e viu que ele deixou no banco de trás do carro uma câmara pequena. Os filhos disseram que não puseram lá a câmara.

Noutro dia, à noite, o arguido avisou-a de que o vidro do seu carro estava aberto (sendo que estava a chover), prontificando-se para o ir fechar. No dia seguinte ela constatou a existência dum pequeno dispositivo dentro do carro que antes não existia.

Relativamente às contas do facebook, explicou que o arguido tinha os códigos de todas das suas contas e sempre teve acesso às mesmas. Certo dia, invadiu a sua conta do facebook e fez-se passar pela assistente numa conversa que manteve com um amigo comum, de nome GG.10 Também enviou mensagens para a sua patroa (KK), para o seu irmão (JJ) e para os seus primos (FF e HH) dizendo que a assistente o tinha traído com o GG, sendo que os seus familiares a confrontaram com isto.

Contactou, também, a sua patroa dizendo-lhe que a assistente era alcoólica, que “não prestava para nada” e para “não investir nada nela que não valia a pena”. Além disso, telefonava frequentemente para o salão de cabeleireiro onde a assistente trabalhava, perturbando o seu trabalho.

Ainda: o arguido desactivou o seu número de telemóvel, que ela já tinha há muito tempo, e, tendo-o confrontado, o mesmo retorquiu que “era ele quem pagava”.

Contou, ainda, que certo dia em que estava na casa-de-banho a tomar banho (aí se encontrando também a sua filha BB, que assistiu a isto), o arguido pegou nas cuecas da assistente, cheirou-as, chamou-lhe “porca” e “puta” e disse-lhe “vais ter com os teus amantes”. No dia seguinte ele ameaçou-a: “Ou te pões fina ou os teus filhos ficarão órfãos”, o que a deixou muito assustada, tendo pedido ajuda ao irmão.

Relatou, ainda, que noutro dia o arguido foi comprar o jantar para a família e quando se encontravam todos à mesa, o arguido disse-lhes que ninguém reconhecia nada do que fazia. De repente, levantou-se da mesa segurando na mão uma faca, que apontou na direcção da barriga da assistente, e empurrou a assistente, a qual bateu com um ombro contra um móvel. De seguida, dirigiu-se para a casa-de-banho levando consigo uma outra faca de grandes dimensões; a assistente e os menores foram atrás dele e viram-no dentro do chuveiro (poliban) com a faca na mão apontada para a sua barriga, dizendo que se matava se a assistente se separasse dele. Nessa altura, o filho menor disse à mãe para “voltar para o pai porque se ele se matasse, também ele se mataria”. A assistente conseguiu retirar-lhe a faca e chamou a Polícia.

Sobre o episódio ocorrido no dia 01/11/2022, a assistente DD referiu que nesse dia o arguido encostou a sua cabeça à dela, deu-lhe uma cabeçada e disse-lhe, à frente da BB, que “ela era dele e de mais ninguém”.

Sobre o episódio ocorrido no dia 02/11/2022, a assistente relatou que, nesse dia, o arguido exigiu levar com ele o filho CC e, perante a recusa da assistente, gerou-se um discussão entre ambos e o arguido empurrou-a contra um móvel da cozinha e apertou-lhe o pescoço com força, enquanto encostava a sua cabeça contra a dela.    

Nessa ocasião, o arguido disse à assistente que “era uma mãe de merda” e que “andava metida” com o GG e com outros homens, enquanto ela chorava com medo; sendo que a filha BB se encontrava na sala.

Acerca dos factos ocorridos no dia 03/11/2022, descreveu que, nesse dia, o arguido a perseguiu de carro até ao salão de cabeleireiro onde a mesma trabalhava e atravessou o seu carro à frente do dela, tendo ido embora quando a assistente ameaçou chamar a polícia. Mais tarde, nesse dia, estando a assistente a almoçar num restaurante, juntamente com a sua mãe e uma prima, o arguido abeirou-se dela e encostou-lhe a cabeça.

Quanto aos filhos menores, confirmou que o arguido nunca os agrediu directamente, tendo apenas atingido, sem querer, a menor BB no rosto numa ocasião em que a mesma se tinha interposto entre ambos aquando de uma discussão.

Confirmou, também, ter-se deslocado ao INML a fim de realizar exames médicos às lesões sofridas.

Contou, outrossim, que no dia 07/11/2022 o arguido recebeu um telefonema do pai dele dizendo que a mãe estava com um esgotamento e o arguido acusou a assistente de ser a causadora da depressão da mãe.

Relativamente à ocorrência do dia 14/11/2022, relatou o seguinte: nesse dia, eles tinham uma reunião marcada na Escola do filho CC e o arguido pressionou-a para ela ir no carro dele dizendo-lhe que se não fosse“mandava uma traseirada” no carro dela; de seguida, o arguido “mandou” o carro dele para cima dela e atingiu-a nas pernas. Ela, com medo, acedeu e foram no carro do arguido à reunião. No regresso, quando chegaram a casa, o arguido encostou-a contra o portão da habitação e tentou beijá-la à força, e ela, para se libertar, mordeu-lhe o lábio e arranhou-o.    

Entraram depois para o interior da habitação, sempre a discutir, e aí o arguido atirou-a ao chão, pôs-se em cima dela e colocou-lhe as mãos no pescoço, apertando-o com força, enquanto lhe dizia que ela “era dele e demais ninguém” e que era uma “burra” e uma “otária”. Ela não conseguia respirar e a filha BB, muito aflita, arrancava os cabelos do pai na tentativa de parar a agressão. De repente, o arguido largou a assistente, tendo esta pedido que ele chamasse uma ambulância, pensando que ia morrer. Ambos os menores assistiram a isto.

Por sua vez, a ofendida BB relatou em audiência de julgamento que os seus pais sempre tiveram discussões, mas pioraram a partir de Junho do ano passado. Nessas discussões, o seu pai dizia à assistente, por vezes na sua presença e do seu irmão, que se se divorciassem ela não iria sobreviver porque era ele o dono do dinheiro e que ela teria que ser “puta” para arranjar dinheiro, para além de lhe chamar “burra”. A sua mãe sentia-se triste com isto.

Contou que, certo dia, o pai ficou exaltado, “passou-se” e atirou com o forno e o micro-ondas para o chão, tendo lá comparecido a Polícia e familiares.

Noutra ocasião, viu o pai a apertar os pulsos da mãe e, noutra altura, a agarrá-la e a dar-lhe uma cabeçada.

Também contou que a certa altura a mãe encontrou, no seu carro, uma câmara de filmar, tendo ficado surpreendida por a ver ali; admitindo que poderia ter sido ela ou o seu irmão a deixarem-na ali.

Contou, também, o episódio ocorrido no dia 21/10/2022: nesse dia estavam a jantar e o pai ficou triste por ninguém agradecer o jantar que ele tinha comprado para a família e, por isso, começou a discutir com a mãe, que estava sentada numa cadeira.     

De repente, o pai empurrou a mãe contra um armário e ela bateu com o braço no armário, tendo ficado com o braço pisado. Depois, o pai pegou numa faca que estava na mesa e apontou-a à barriga mãe. A seguir, o pai foi à casa-de-banho e ela, a mãe e o irmão foram atrás dele, tendo visto o pai dentro do poliban com uma faca grande encostada à sua barriga dizendo que se mataria se a mãe não ficasse com ele; então o seu irmão começou a chorar e a dizer que se o pai se matasse também ele se matava.

A mãe conseguiu tirar-lhe a faca da mão e depois o INEM levou-o para o Hospital. Ela e o irmão ficaram muito assustados e preocupados com esta situação.

Noutra ocasião em que ela estava com a mãe na casa-de-banho da habitação, o seu pai chegou a casa muito exaltado, discutiram e ele começou a dizer que a mãe tinha estado com outro homem e então foi cheirar as cuecas que a mãe tinha usado e que estavam no cesto da roupa suja para lavar.

Noutro dia, em que também estava com a mãe na casa-de-banho da habitação, o pai tentou beijar a mãe à força, esta não queria e então o pai agarrou-lhe a cabeça e deu-lhe uma cabeçada e a mãe começou a chorar.

Assistiu ainda ao episódio em que, no regresso duma reunião na Escola do irmão, quando chegaram a casa, o pai tentou beijar a mãe à força e então esta, para se defender, arranhou-o e mordeu-lhe o lábio. Depois disto, o pai atirou a mãe para o chão, pôs-se em cima dela e começou a “esganá-la” e ela começou a ficar “roxa” com dificuldade em respirar. Ao ver isto, a testemunha gritou por socorro e ela e o irmão tentaram afastar o pai, que parou com a agressão. Depois, o pai deitou a mãe no sofá, “abanou-a com livros” e abriu a janela para entrar ar; a mãe dizia que não se estava a sentir bem, mas o pai não os deixou chamar a ambulância. A mãe conseguiu fugir e pediu socorro ao irmão. Eram visíveis as marcas no pescoço da sua mãe e ela e o irmão ficaram muito aflitos com esta situação.

Também relatou o incidente – a que igualmente assistiu, juntamente com a avó e o irmão - em que os pais começaram a discutir e então o pai arrancou o micro-ondas e o forno e atirou-os para o chão, ficando os vidros espalhados por todo o lado. Mais uma vez, ela e o irmão ficaram muito assustados.

Quer ela, quer a mãe, tinham muito medo do pai, mas este nunca bateu aos filhos, sucedendo apenas que numa ocasião, no meio duma discussão dos pais, ela pôs-se no meio deles e o pai, sem querer, deu-lhe acidentalmente um empurrão (uma cotovelada).

Esclareceu, ainda, que há já há vários anos que os pais discutiam frequentemente e, nessas alturas, o pai chamava a mãe de “burra”, “porca” e “otária”, acusava-a de ter amantes e dizia-lhe que “não era nada sem ele”, que teria de “ir para um bar” para

ganhar dinheiro e que “se não fosse dele, não era de mais ninguém”. Para além disso, era muito controlador (seguia a mãe para o trabalho).

Como acima se viu, o arguido negou algumas destas agressões, tendo ensaiado uma explicação para as lesões evidenciadas no corpo da vítima – ter a mesma enrolado um pano de cozinha à volta do pescoço e ter batido com as mãos num móvel para o “incriminar” que resultou totalmente infirmada pelo relato assertivo e circunstanciado feito pelas ofendidas DD e BB. Com efeito, as ofendidas DD e BB relataram todos estes factos de forma que se nos afigurou totalmente isenta, congruente, segura e fundamentada, tendo demonstrado conhecimento pessoal e directo dos mesmos – posto que os vivenciaram -, pelo que nos mereceram total credibilidade. Veja-se, ademais, que a menor BB, apesar da sua pouca idade (17 anos) e dos episódios familiares traumáticos a que assistiu, foi capaz de os transmitir ao tribunal de forma madura, objectiva e consistente, não se evidenciando no seu discurso qualquer tipo de ideação e/ou condicionamento.

Para além da forma convicta e coincidente como foram narrados todos estes factos pelas ofendidas, os respectivos relatos foram ainda corroborados pelos depoimentos das testemunhas JJ (irmão da assistente); KK (patroa da assistente); EE (mãe da assistente); LL, MM e NN (militares da GNR que se deslocaram à casa de morada de família nas situações em apreço); FF (prima direita da assistente); HH (companheiro da testemunha FF) e II (companheira do irmão da assistente).

Assim é que a testemunha JJ, irmão da assistente e frequentador da casa do casal, referiu que nunca presenciou qualquer agressão física do arguido à sua irmã, mas uma vez viu que a DD tinha nódoas negras nos pulsos e na testa.

Sabe, além disso, que o arguido sempre foi muito desconfiado sobre a fidelidade da mulher, muito ciumento e muito controlador.

A testemunha LL relatou o que viu quando chegou à habitação do casal no dia 28/07/2022: a porta do forno e o micro-ondas estavam no exterior da habitação (colocados a canto do pátio/logradouro), sendo visíveis os “buracos” vazios onde eles tinham sido encaixados.

O arguido estava exaltado, transtornado e frustrado, mas acedeu a sair de casa nessa noite e, quando estava a ir embora, disse à esposa que ela nessa noite iria “dormir com o Guarda” (referindo-se à testemunha).

No interior da habitação encontravam-se os filhos do casal e a mãe da DD e, no exterior, estava o irmão da vítima.

Confirmou o teor do auto de notícia fls. 4 e ss., que elaborou e subscreveu.

 Por sua vez, a testemunha MM contou o que presenciou no dia 21/10/2022 quando a patrulha da GNR foi chamada à residência do casal: quando lá chegaram, a ora assistente e a filha estavam desesperadas, contando que o aqui arguido estava dentro do quarto dizendo que se ia matar. Entrou, então, no quarto e viu o arguido deitado na cama tendo com ele uma faca, que acabou por lhe entregar voluntariamente. Aparentava estar calmo, mas parecia estar sob o efeito do álcool.

Confirmou o teor do auto de fls. 82 e ss., que elaborou e subscreveu.

a testemunha NN teve intervenção nos factos ocorridos nos dias 02/11/2022 e 07/11/2022, que relatou nestes termos: no dia 02/11/2022, quando chegou ao local, viu que a DD tinha marcas de agressão no pescoço e estava transtornada e com medo.

Confirmou o teor do auto de fls. 93 e ss., que elaborou e subscreveu, tendo ainda captado, por iniciativa própria, as imagens da assistente de fls. 95.

Quanto aos factos ocorridos no dia 07/11/2022, afirmou que, quando chegou à habitação, ouviu o casal a discutir por motivos familiares, estando ambos nervosos, sendo que a DD e a filha estavam bastante ansiosas e assustadas, receando que a situação “descambasse”. Depois os ânimos serenaram.

Confirmou o teor do auto de fls. 132 e ss., que elaborou e subscreveu.

Por seu turno, a testemunha KK confirmou que no verão de 2022 o ora arguido telefonou muitas vezes para o salão de cabeleireiro de que é proprietária para falar com a DD e, sempre que isso acontecia, esta ficava muito nervosa e ansiosa.    

Para além disso, telefonou uma vez à testemunha dizendo-lhe para não contar/apostar muito na DD porque ela era alcoólica e mentirosa.

Contou, ainda, que em Outubro ou Novembro do ano passado viu a DD com “pisaduras” num braço, nas pernas (joelhos) e no pescoço e que a mesma estava psicologicamente abalada.

A DD sempre demonstrou ter medo do marido: sempre que ele ligava, ela ia a “correr” atender o telemóvel (mesmo quando estava a trabalhar e mesmo sabendo que tal era proibido no horário de trabalho) e ficava a tremer, tendo chorado várias vezes à sua frente.

Confirmou, também, que a ora assistente procurou ajuda médica no ano passado e tomava anti-depressivos por causa de toda esta situação.

A testemunha EE, que viveu em casa da sua filha DD durante vários anos, mencionou que o arguido, à frente dos filhos menores, dizia à DD que ela era uma “merda”, uma “vadia”, que “não valia nada”, que “não ganhava nada”, que “tudo era dele” e que ela “vivia às custas dele”, tendo-lhe dito certa vez, na sua presença, que se saísse de casa tinha de “ir dar a cona para sobreviver”. Era também muito ciumento, acusava-a de ter amantes e chamava-lhe “burra” e “otária”.

Descreveu, também, o episódio ocorrido no dia 28/07/2022, a que assistiu: estava no 1º andar da habitação e ouviu o arguido, muito agressivo, a discutir com a DD; depois ouviu um estrondo, desceu ao andar de baixo e viu o micro-ondas no chão da cozinha. A BB e o CC ficaram em pânico.

Noutra ocasião, estava ela, a filha e uma sobrinha a almoçar no Café “...” e o arguido chegou lá, disse algo ao ouvido da DD e foi-se embora, tendo esta ficado cheia de medo.

Confirmou, ainda, que numa ocasião viu “pisaduras” nos braços e no pescoço da DD.

Também disse que a sua filha DD sempre teve muito medo do arguido por ele ser agressivo por causa dos ciúmes e, desde que estes problemas entre eles começaram (há cerca de um ano), a DD teve de tomar tranquilizantes por estar sempre muito “em baixo” e a chorar.

Por seu turno, as testemunhas FF e HH, que conviveram com este casal, relataram as situações em que lhes foi pedida ajuda (pela DD ou pela BB) e se deslocaram à habitação do casal (episódios ocorridos nos dias 28/07/2022 e 21/10/2022); bem como confirmaram a circunstância de o aqui arguido lhes ter enviado um print duma conversa em que parecia que a DD estava a falar com o GG. A DD ficou perturbada com esta situação por ser alguém a fazer-se passar por ela.

A testemunha FF descreveu, ainda, o episódio ocorrido em 2022 em que se encontrava num Café, juntamente com a DD e a mãe desta, e o arguido apareceu por lá, deixando a DD muito nervosa.

Foram, ademais, categóricas e coincidentes em afirmar que a ora assistente tinha medo do marido.

Finalmente, a testemunha e II contou que, há cerca de 2 anos, num jantar de família em que também participou, gerou-se uma discussão entre o casal e o arguido disse à assistente que a ia “deixar sem nada”, que ele é que “mandava em tudo”, e chamou-lhe “burra”; a assistente sentiu-se humilhada e começou a chorar.

Afirmou, também, que no dia em que o arguido foi detido a assistente foi ter com ela, gritando por socorro, e nessa altura pôde constatar que a mesma tinha os joelhos esmurrados e marcas no pescoço, tendo a testemunha chamado a Polícia.

Confirmou que o arguido era ciumento, controlador e dominador: a DD tinha que ter autorização dele para sair com as amigas e tinha que chegar a casa às horas que ele marcasse, controlando todos os seus passos; também exigia saber a roupa que ela usava, questionando os filhos sobre isso. Ademais, dizia, à frente dos filhos, que a mulher tinha vários amantes.

Asseverou que a DD tinha muito medo do marido, ficou com baixa auto-estima, andava mais triste, cansada e alterada e teve de recorrer a ajuda médica, com toma de medicação para a depressão.

As sobreditas testemunhas relataram todos estes factos de forma isenta, convincente e fundamentada, negando, inclusivamente, alguns dos factos alegados na acusação, circunstância que só credibiliza os seus depoimentos.

Em conjugação com tais depoimentos, avultam, ainda, os elementos documentais e periciais constantes dos autos, a saber:

- Auto de noticia, a fls. 4 a 6;

- Assento de nascimento, a fls.119 e ss;

- Fichas de sinalização, a fls.13 a 16;

- CRC, a fls.37;

- Aditamentos, a fls. 58 a 59, 82 a 83, 93 a 94 e 132, 143 e ss, 192;

- Autos de apreensão, a fls. 60 a 61 (respeitante ao aparelho de localização GPS), 87 (respeitante à faca de cozinha);

- Relatórios fotográficos, a fls. 86, 95, 162 e ss;

- Assentos de nascimento, a fls.119 a 125;

- Relatório da perícia de avaliação do dano corporal, a fls.188 e ss. (relativo ao episódio ocorrido no dia 07/11/2022 onde vêm assinaladas as lesões apresentadas pela assistente – nos membros superiores e membro inferior – compatíveis com a agressão de que foi vítima).

- Relatório da perícia de avaliação do dano corporal, a fls. 257 e ss. (relativo ao episódio ocorrido no dia 14/11/2022 e do qual consta que a assistente DD apresentava lesões nos joelhos, o que corrobora a versão dos factos relatada pela assistente);

- Relatório da entrevista social, a fls. 263 e ss;

- Relatórios da perícia de psicologia forense, a fls.355 a 358 (relativo ao menor CC), 360 a 365 (relativo á menor BB).

Destarte, da análise concatenada e crítica de todos estes elementos probatórios, resultou para este Tribunal Colectivo a convicção segura acerca da ocorrência dos factos acima dados por demonstrados.

Quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido, o Tribunal teve em conta o respectivo CRC, junto aos autos

No que respeita às suas condições pessoais, valorou-se o teor do Relatório Social, bem como o depoimento das testemunhas OO (mãe do arguido); PP (irmão do arguido); QQ (“irmão de criação” do arguido); RR (amigo do arguido há mais de 30 anos); SS (amiga de infância do arguido) e RR (o qual foi colega de trabalho do arguido).

No que concerne à factualidade considerada não provada, estribou-se o Tribunal na circunstância de sobre a mesma não ter sido produzida prova bastante capaz de convencer o Tribunal da sua veracidade.

Efectivamente, e quanto à câmara de filmar encontrada no interior do veículo da assistente, apesar de esta ter dito que viu o arguido a coloca-la no interior da viatura, certo é que o mesmo negou estes factos, afirmando que a câmara pertencia à sua filha BB e era utilizada nas férias da família, admitindo que tivesse ficado esquecida dentro do carro; eventualidade que também foi aventada pela própria menor. E o mesmo se diga em relação ao dispositivo de localização GPS, sendo que o arguido negou ter sido ele a coloca-lo no interior da viatura, adiantando que era um equipamento de origem do carro, o que foi negado pela assistente. Nessa medida e sendo certo que nenhuma das testemunhas ouvidas afirmou ter visto o arguido a colocar tais equipamentos na viatura da assistente, terão tais factos que ser considerados como não provados, mais não seja por apelo ao princípio processual penal “in dubio pro reo”.

De igual forma, não ficou suficientemente esclarecida a situação da alteração do número do telemóvel da assistente, tendo a testemunha KK referido que foi a própria assistente quem quis mudar de número de telemóvel porque estava em processo de divórcio e tinha receio que o arguido, que tinha acesso ao seu telemóvel, se fizesse passar por ela.

Quanto aos episódios ocorridos nos dias 01/11/2022, 02/11/2022 e 07/11/2022, é de assinalar a circunstância de, nem a assistente, nem a ofendida BB terem confirmado as duas cabeçadas do dia 1 de Novembro alegadas nas acusação pública (mas apenas uma delas – a infligida nessa dia, da parte da tarde, na casa-de-banho da habitação do casal); já o beijo forçado reportado na acusação ao dia 2 de Novembro não foi aludido por nenhuma das ofendidas, nem por qualquer outra testemunha, e a agressão no pescoço reportada no libelo acusatório ao dia 7 de Novembro também não foi confirmada pela assistente ou por qualquer testemunha, sendo certo que o Guarda NN, que se deslocou à habitação nesse dia, referiu não ter visto qualquer marca no pescoço da vítima, lesão que também não vem assinalada no relatório médico-legal de fls. 188 a 189.

Relativamente ao invocado nexo de causalidade entre a relatada conduta do arguido e a depressão de que sofre a assistente, inexistem nos autos elementos probatórios seguros, designadamente de cariz médico, para se poder afirmar – com um mínimo de segurança - que tal comportamento tenha sido causal (ou concausal) daquela patologia; sendo certo que as testemunhas que aludiram a estes factos não possuem conhecimentos especializados na matéria.

E o mesmo se diga a respeito da actual situação pessoal da aqui assistente, tendo a testemunha KK asseverado que, presentemente, a DD está mais tranquila e segura do que quer fazer da vida e já não tem medo do arguido.

Sobre a demais factualidade considerada não provada não foi produzida qualquer prova([2]).


*


III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.1. Dos crimes de violência doméstica:

Vem o arguido AA acusado da prática, em autoria material e concurso real, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al. a) e nº2, al. a) do Código Penal, e dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al. e) e nº2, al. a) do mesmo diploma legal.

Dispõe o artigo 152º do Código Penal (na parte relevante para estes autos):

1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

(…)

e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.;

(…);

2. No caso previsto no número anterior, se o agente:

a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;

(…)

é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”.

Como é sabido, o crime de violência doméstica “… revela uma construção jurídica complexa, na medida em que o bem jurídico tutelado é multifacetado, incorporando várias modalidades de protecção da vítima pois visa proteger a integridade e saúde, quer física, quer psíquica da vítima, a par de proteger a sua dignidade e integridade moral como ser humano. Por isso, na tutela da violência doméstica integram-se outras tutelas que também estão previstas no código penal enquanto tutelas de bens jurídicos isolados, como ocorre no crime de ofensa à integridade física, no crime de ameaça, nos crimes sexuais etc. No plano dos princípios, todos aqueles crimes podem fazer parte do leque de comportamentos de que o agente se socorre para infligir maus-tratos à vitima, no contexto familiar, clássico da violência doméstica. Assim, o crime de violência doméstica visa, acima de tudo, acautelar situações de vivência conjugal e/ou familiar que, pela sua continuidade no tempo, interacção próxima entre agente e vítima, assente muitas vezes em situações de grande intimidade física, ocorridas num contexto de reserva de vida privada, longe dos olhares das pessoas, e assente numa especial vulnerabilidade da vítima, fruto da sua dependência emocional e/ou económica no agressor, produza comportamentos violentos, reiterados e de difícil destrinça em termos de momentos concretos, levando a que os comportamentos do agressor possam ser agrupados numa “única” actuação criminógena que acaba por pôr em causa todo o suporte psíquico e físico da vítima.”.

O bem jurídico protegido no tipo legal de crime de violência doméstica reside, pois, na dignidade da pessoa humana, incluindo-se todos os comportamentos que lesem essa dignidade. Também se faz apelo ao bem jurídico saúde enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental e que pode ser afectado por uma variedade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade.

Os maus tratos podem ser de natureza física, traduzindo-se em actos de ofensa à integridade física simples, ou psíquicos, consistindo estes em actos que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, tais como crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas (o tipo objectivo inclui as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual). Temos, assim, que no crime de violência doméstica as condutas típicas podem, elas próprias, integrar diversos tipos legais, nomeadamente ofensas corporais voluntárias simples, ameaças, injúrias, sendo que a execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único.

Ao nível subjectivo, este crime exige o dolo, traduzido no conhecimento da relação subjacente à incriminação da violência doméstica e no conhecimento e vontade da conduta e/ou do resultado.

Postas estas breves considerações teóricas, vejamos o caso dos autos.

Em face dos factos dados como provados, não existem dúvidas acerca da prática pelo arguido AA do crime de violência doméstica na pessoa da sua então mulher DD. De facto, a conduta do arguido aí descrita patenteia que o mesmo infligiu à aqui assistente maus-tratos físicos, psíquicos e emocionais, traduzidos em agressões físicas, insultos, ameaças e perseguições61 que se consubstanciaram em insultos (burra, otária, puta, porca); acusações permanentes de infidelidade (“esta noite vai ser com o guarda”); menosprezo (“não consegues fazer nada sozinha”, “vives às minhas custas”); intimidação (destruição da porta do forno e do micro-ondas no interior da habitação, obriga-la e entrar no seu veículo); ciúmes doentios (“és minha e não és de mais ninguém”); controlo, possessão, perseguição e manipulação constantes (telefonemas constantes, “inspecção” da roupa interior da assistente, ameaça de que se matava se a assistente o deixasse, atravessando o seu veículo à frente do da assistente); difamação perante a sua entidade patronal (alegando que a assistente era mentirosa e alcoólica); devassando a sua conta de facebook e fazendo-se passar por ela; ameaçando-a de morte (“Ou te pões fina ou os teus filhos ficam órfãos”); apontando-lhe uma faca; empurrando-a contra móveis; acusando-a de ser má mãe; atingindo-a com o seu veículo nos joelhos; desferindo-lhe uma cabeçada e apertando-lhe o pescoço por duas vezes.

Todo este acervo factual, apreciado à luz do circunstancialismo concreto duma normal relação conjugal e sua repercussão sobre a mesma, transmite, sem qualquer margem para dúvidas, um quadro de degradação da dignidade e integridade pessoais da ora assistente DD inerentes ao ser humano. Na verdade, tal quadro factual patenteia que o arguido AA, agindo de forma livre, deliberada e consciente e bem sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punida, previu e quis tratar a aqui assistente de modo desumano e humilhante – ao ameaça-la, intimida-la, persegui-la, devassa-la, difama-la e agredi-la física e verbalmente nos termos acima descritos. E tais comportamentos são de molde a que a assistente DD se sentisse atemorizada, menorizada e profundamente humilhada e que fosse atingida na sua dignidade enquanto ser humano, o que o arguido pretendeu e conseguiu.

Analisado todo o contexto de vivência em comum, constata-se um acentuado desvalor da actuação do arguido, que ao longo deste período e por diversas ocasiões atingiu a assistente na sua dignidade, insultando-a e agredindo-a fisicamente, no interior da casa de morada de família e por vezes na presença dos filhos menores de ambos; bem como a perseguiu, ameaçou e controlou os seus movimentos, por não aceitar o fim da relação conjugal, numa atitude bastante afastada do comportamento normal e de respeito que se espera e exige de um companheiro com quem se partilha a vida.

Atente-se, ademais, na gravidade do último episódio ocorrido no dia 14 de Novembro de 2022, em que o arguido apertou o pescoço da vítima, que se sentiu a sufocar, agressão que poderia ter tido um desfecho fatal; o que é por demais revelador do total desprezo, desrespeito e desconsideração a que o arguido votava a assistente DD e configura acto particularmente assustador para a vítima. E o mesmo se diga em relação ao episódio ocorrido no dia 8 de Outubro de 2022, em que o arguido disse à mulher “Ou te pões fina ou os teus filhos ficam órfãos” - o que configura uma ameaça de morte -; bem como as situações ocorridas a 2 de Novembro de 2022, em que igualmente lhe tinha apertado o pescoço, e a 1 de Novembro de 2022, em que lhe desferiu uma cabeçada.

Também as repetidas expressões com que injuriava a esposa – chamando-lhe burra, otária, puta e porca, acusando-a sistematicamente de ter amantes, rebaixando-a por auferir um ordenado superior ao dela, dizendo-lhe que não valia nada e que vivia às custas dele, são profundamente vexatórios e humilhantes para a vítima.

Acresce o ambiente de intimidação e de controlo e perseguição constantes a que sujeitava a vítima, conforme já visto.

Todo este cenário é, inquestionavelmente, susceptível e idóneo para causar medo, constrangimento, humilhação, tristeza e angústia na vítima, tal como se apurou.

A conduta do arguido, especialmente a levada a cabo entre Junho e Novembro de 2022, configura, pois, maus tratos físicos e psicológicos infligidos à ofendida DD, sua então esposa, o suficiente para a subsumir à previsão normativa do artigo 152º, nº1, al. a) do Código Penal.

Mostram-se, pois, perfectibilizados todos os elementos, objectivo e subjectivo, do tipo legal de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al. a) do Código Penal, cometido pelo arguido na pessoa do seu cônjuge DD, agravado pela circunstância de alguns dos factos em apreciação terem sido praticados pelo arguido no domicílio comum da vítima e na presença dos filhos menores de ambos, BB e CC - artigo 152º, nº2, al a) do CP.

Resta dizer que não vêm apuradas quaisquer causas de exclusão da ilicitude e/ou da culpa.


*

Relativamente aos imputados crimes de violência doméstica na pessoa dos menores BB e CC, a factualidade apurada a esse respeito não é, em nosso juízo, idónea a terem-se por preenchidos os elementos constitutivos desse tipo de ilícito.

Na verdade, nada vem apurado nos presentes autos que consubstancie a prática de qualquer acto pelo arguido directamente dirigido aos menores BB e CC.

Por outro lado, sendo certo que este crime se basta com um só acto, esse acto sempre teria de ser suficientemente grave para “… por em causa a dignidade humana da vítima; terá de traduzir “um tratamento ofensivo da dignidade pessoal, com a consequente impossibilidade de desenvolvimento da personalidade. (…)”. Quer dizer, quando estiver em causa uma única conduta agressiva, é necessário que este acto revista certas características mais danosas para integrar o crime de violência doméstica, ao invés do que sucede com o crime de ofensa à integridade física.. A previsão da conduta típica de violência doméstica respeita apenas a actos, sejam eles reiterados, sejam isolados, “reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima” (idem), não abrangendo aqueloutros actos que não revelem o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” “que fundamentam a especificidade deste crime”.

No caso concreto e como já acima enfatizado, nenhuma factualidade se apurou susceptível de se inserir numa situação de violência parental, integrando uma atividade de agressão verbal e/ou física, de ameaça ou de atemorização dos filhos menores - em tudo contrárias ao dever de proteção que recai sobre os pais, enquanto responsáveis pelo seu desenvolvimento equilibrado e harmonioso - com o consequente comprometimento do livre e saudável desenvolvimento da personalidade das vítimas.

Daí que se considere não estarem preenchidos os elementos objetivos deste tipo de crime, assim se impondo a absolvição do arguido dos imputados crimes de violência doméstica na pessoa dos seus filhos menores BB e CC.


*

Cumpre, no entanto, fazer especial referência aos factos praticados na presença dos menores, para a partir daqui questionar se a mera exposição das crianças à violência familiar constitui ou não um crime autónomo ou uma mera agravação da conduta do agente.

Sabe-se que as crianças expostas à violência parental têm mais problemas comportamentais, exibem afecto significativamente mais negativo, respondem menos apropriadamente às situações, mostram-se mais agressivas com os pares e têm relacionamentos mais ambivalentes com as pessoas que delas cuidam do que as crianças de famílias não violentas.

A família pode ser para algumas crianças um lugar de perigo. A exposição à violência familiar é um importante fator de risco e deve ser considerado uma forma de maus tratos psicológicos.

Ora, no caso dos autos, apesar de se ter provado que alguns dos factos praticados pelo arguido o foram na presença dos filhos menores - presença da qual aquele estava perfeitamente ciente e à qual foi indiferente -, o certo é que não vêm demonstrados factos susceptíveis de considerar estes menores como vítimas directas da conduta do arguido, não se tendo apurado que o mesmo tenha, de modo voluntário e consciente, agredido física ou psicologicamente os filhos.

A alínea a) do nº2 do artigo152º do Código Penal consagra, como agravante do tipo legal base (definido no seu nº1), a circunstância de o agente “Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima”.

São qualificadoras do crime aquelas circunstâncias que: a) revelam determinados motivos, interesses, meios ou modos de execução; b) produzem resultados graves ou gravíssimos para o bem jurídico afetado; c) expõem a vítima ao maior poder de ação do agente, seja em função da idade, de parentesco ou outra relação de confiança.    

Em tais hipóteses, a reprovabilidade da conduta justifica um tratamento penal específico e mais rigoroso.

Destarte, nesta matéria, entendemos que se a presença do menor é considerada pelo legislador como uma circunstância agravante da punibilidade da conduta do agente é porque não considera a presença da criança como um crime autónomo merecedor de um juízo de censura autonomizável. O legislador pune apenas a conduta que tem como vítima directa a pessoa menor da idade, mas apenas quando esta vítima é o alvo directo visado pela acção do agente. E, no nosso caso, face à factualidade que se apurou, não se pode considerar que os menores BB e CC foram vítimas directas da acção do arguido, pelo que a conduta deste apenas preenche a circunstância qualificativa prevista na alínea a) do nº2 do artigo 152º do Código Penal, não sendo, pois, autonomizável (Veja-se, ademais, que as propostas legislativas que visavam criminalizar, como tipo de ilícito autónomo, a exposição dos menores à violência doméstica, não obtiveram acolhimento, como se pode ver pelos Projectos de Lei nºs 1/XIV/1ª e 76/XV/1ª. Mais um argumento, parece-nos, para se entender que, face ao direito constituído, a mera exposição dos menores à violência doméstica exercida entre os progenitores não constitui um ilícito autónomo, mas sim uma circunstância qualificativa agravante) “([3]).


*

Análise do mérito do recurso

1ª questão: a contradição insanável entre a motivação da matéria de facto e a factualidade dada como provada e não provada (art. 410º nº 2 b) do CPP).

A matéria de facto não provada que vem questionada no presente recurso pelo MºPº, limita-se aos seguintes factos:

s) O arguido quis maltratar física e psicologicamente os seus filhos, sabendo que com tal conduta lhes causava dor, mas em particular angústia e tristeza, pretendendo que os mesmos se sentissem menorizados e humilhados, o que logrou, bem sabendo que os afetava na sua saúde psíquica e física, querendo, ainda, atingi-los na sua dignidade pessoal, o que também alcançou([4]);

t) Ao expor os menores BB e CC à violência a que submeteu a sua progenitora, sabia que ia causar nos mesmos um sentimento de permanente receio e de inquietação, atentando, assim, contra a sua saúde e bem-estar psíquico, o que logrou”.

Alega o MºPº que face à matéria de facto dada como provada, a decisão recorrida não poderia concluir que o arguido, ao atuar da forma como o fez em relação à progenitora dos menores – tal como consta dos factos provados nºs 4 a 6, 8, 10 a 12, 14, 32 a 34, 36 a 39, 40 a 45, 51, 52, 64 a 66, 72, 73, 75 a 77 e 81 - não tinha a intenção de ferir e magoar psicologicamente os menores dada a ligação afetiva que os unia à vitima DD e á tenra idade que tinham à data do sucedido, ou, pelo menos, que não tenha admitido esse resultado como necessário ou possível e não tenha aceite a sua ocorrência.

Entende, por isso, que deverá ter-se por verificado o vício da contradição insanável, previsto no art. 410º nº 2 b) do CPP, que impõe a revogação do acórdão, relativamente à absolvição dos dois crimes de violência doméstica, na forma agravada, p. e p. pelo art. 152º nº 1 alínea e) e nº 2 alínea a) do Código Penal, em relação aos filhos menores BB e CC.

Apreciando.

A matéria de facto fixada na sentença/acórdão penal pode ser impugnada por duas vias:

- através da invocação dos vícios a que alude o art. 410º nº 2 do CPP (impugnação restrita, a que se convencionou chamar de «revista alargada»);

- através da impugnação ampla em matéria de facto nos termos do art. 412º nº 3 do CPP, em que a sua apreciação alarga-se à prova produzia em audiência (se documentada), mas com os limites assinalados pelo recorrente em face do ónus de especificação que lhe é imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412º.

No caso dos autos, o recorrente optou pela via da impugnação restrita invocando os vícios decisórios previstos nas alíneas b) e c) do nº 2 do art. 410º do CPP (pese embora na conclusão nº 5 se refira expressamente ao “erro de julgamento” sobre o qual nada diz no corpo da motivação).

A via de impugnação da matéria de facto por que optou o recorrente é restrita porque se cinge apenas ao que consta do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência, de onde devem imediatamente resultar após a simples leitura da decisão por qualquer pessoa minimamente atenta, e nunca em conjugação desta com o que consta de outros locais do processo, nomeadamente, com os relatórios da perícia de psicologia forense de fls. 355 a 358 (relativamente ao menor CC) e 360 a 365 (relativo à menor BB) de que se serve o recorrente; ou seja, no que concerne à verificação dos referidos vícios decisórios, o texto da decisão recorrida deve ser autossuficiente.

Os referidos vícios decisórios consistem em defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e, por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum([5]).

A contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no art. 410º nº 2 b), pode ocorrer entre vários vectores no mesmo plano: contradição entre os factos provados, contradição entre factos provados e motivos de facto, contradição entre factos provados e não provados, contradição entre a indicação das provas e os factos provados, contradição entre a indicação das provas e os factos não provados, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão([6]), quando esta não se encontra em sintonia com os factos apurados([7]).

A contradição relevante tem que ser uma contradição entre a fundamentação e a decisão proferida pelo tribunal a quo e não uma contradição entre a fundamentação e a decisão que o recorrente entende que o tribunal deveria ter proferido.

O recorrente entende que a contradição apontada ocorre entre a factualidade fixada na decisão – provada e não provada e, quanto a esta, apenas a acima descrita – e a fundamentação/motivação da matéria de facto.

O Tribunal fundamentou a sua convicção no que respeita aos factos não provados descritos nas alíneas s) e t) nos seguintes termos: “Sobre a demais factualidade considerada não provada não foi produzida qualquer prova “.

Em face de tal fundamentação (ausência dela) improcede esta alegação do recorrente.

Por um lado, lida a motivação da decisão em matéria de facto no que respeita aos factos considerados como provados não se deteta contradição alguma, nem vem posta em causa.

No que respeita aos factos não provados acima descritos (atinentes ao elemento subjetivo dos dois crimes de violência doméstica na forma agravada p. e p. pelo art. 152º nºs 1 e) e 2 a) do Cód. Penal, alegadamente praticados pelo arguido contra cada um dos filhos menores por terem presenciado os maus tratos físicos e psicológicos de que foi vítima a progenitora no interior da residência comum) em bom rigor, inexiste fundamentação/explicação das razões da convicção do tribunal quanto à sua não ocorrência, fica-se sem se perceber por que razão o Tribunal considerou como não provados os factos atinentes ao elemento subjetivo dos crimes em questão, ou seja, do dolo do arguido na modalidade de dolo direto (cfr. art. 14º nº 1 do Cód. Penal) conforme a imputação feita na acusação, traduzido no seguinte: “s) O arguido quis maltratar física e psicologicamente os seus filhos, sabendo que com tal conduta lhes causava dor, mas em particular angústia e tristeza, pretendendo que os mesmos se sentissem menorizados e humilhados, o que logrou, bem sabendo que os afetava na sua saúde psíquica e física, querendo, ainda, atingi-los na sua dignidade pessoal, o que também alcançou;

t) Ao expor os menores BB e CC à violência a que submeteu a sua progenitora, sabia que ia causar nos mesmos um sentimento de permanente receio e de inquietação, atentando, assim, contra a sua saúde e bem-estar psíquico, o que logrou”.

Sem fundamentação quanto a esta parte, não pode dizer-se que há contradição desta com aquilo que é dado como provado ou não provado.

Também não existe contradição entre os factos provados que integram o elemento objetivo do tipo legal da violência doméstica na modalidade de inflição de maus tratos psíquicos a(aos) menor(es) descendente(s) (comum) do agressor/arguido AA e da ofendida DD (cfr. art. 152º nºs 1 e) e 2 a) do Cód. Penal na redação introduzida pela Lei nº 57/2021 de 16 de agosto; concomitantemente, o art. 67º-A ) nº 1 a) subalínea iii) do CPP, considera «vítima» a criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação (…) no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica) e os factos não provados descritos nas alíneas s) e t), integradores do elemento subjetivo (conhecimento e vontade de praticar um certo ato que é tipificado na lei como crime) do(s) referido(s) tipo(s) de crime a título de dolo direto, o qual se basta com o dolo genérico nas suas modalidades de dolo direto, necessário ou eventual, porquanto se trata de factos (atitude interior do agente) diferentes.

Não fica, porém, excluída a prática dos referidos crimes na modalidade do dolo necessário (art. 14º nº 2 do Cód. Penal), o que não foi sequer ponderado pelo Tribunal a quo.  Pode ler-se a este respeito no Ac. do STJ de 12/03/2009([8]) que “Existe dolo necessário quando o agente sabe que, como consequência de uma conduta que resolve empreender, realizará um facto que preenche um tipo legal de crime, não se abstendo, apesar disso, de empreender tal conduta” Ora o arguido, ao atuar como atuou sobre a ofendida progenitora dos menores, filhos comuns de ambos, infringindo-lhe maus tratos físicos e psíquicos na presença destes, tendo conhecimento dos laços afetivos que unem os menores à progenitora e a idade dos mesmos na data da prática dos factos, pelo menos terá representado que lhes iria causar sofrimento psicológico, angústia e um sentimento de permanente receio e inquietação (pelo que pudesse suceder à progenitora às mãos do arguido), atentando assim contra a sua saúde e bem-estar psíquico, não se abstendo apesar disso, de empreender as condutas que levou a cabo (cfr. arts. 125º e 127º do CPP e 349º do Cód. Civil, como se verá infra).

Pelo exposto, improcede este primeiro fundamento do recurso.


*

2ª questão: o erro notório da apreciação da prova ao julgar como não provados os factos descritos nas alíneas s) e t) (art. 410º nº 2 c) do CPP).

O recorrente alega que devem dar-se como provados factos que o tribunal deu como não provados, no que respeita às alíneas s) e t), padecendo a decisão de erro na apreciação da prova nos termos do art. 410º nº 2 c) do CPP.

Afirma que se bem analisada a prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com as regras da experiência comum, devia dar-se como provado (além dos factos que já constam como provados) ainda que o arguido agiu pelo menos com dolo eventual, sabendo que ao agir daquela forma violenta contra a mãe dos filhos e na presença destes, afetava a saúde psíquica e emocional dos filhos, querendo ainda atingi-los na sua dignidade pessoal, o que também alcançou.

Diz que no caso em análise resultou provado que “o crime de violência doméstica foi praticado na presença dos filhos menores e ficaram provados os maus tratos psicológicos provocados nas crianças, devidamente avaliados através de perícias psicológicas, existindo, por isso, um crime autónomo de violência doméstica; os menores foram “forçados” a presenciarem factos traumáticos violentos praticados contra a mãe  e que consequentemente e diretamente os afetou e comprometeu a sua saúde psíquica e emocional….sobretudo face à idade de cada um deles à data dos factos, o CC com 11 anos e a BB com 16 anos” (sic).

De seguida, o recorrente transcreve excertos dos relatórios de perícia de Psicologia Forense realizados no INML,CF a cada um dos menores, para concluir que também os menores CC e BB foram vítimas de violência doméstica praticado pelo progenitor aqui arguido AA pelo que a conclusão probatória que se impõe da prova produzida é contrária à alcançada pelo tribunal.

Apreciando.

Na apreciação dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP o tribunal de recurso analisa apenas a decisão recorrida, uma vez que dela têm que resultar como documento único ou em conjugação com as regras da experiência.

O erro notório na apreciação da prova a que alude a alínea c) do nº 2 do art. 410º do CPP é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente e, tal erro, como se prescreve na 2ª parte do corpo do nº 2 do art. 410º, tem de resultar do próprio texto da decisão recorrida por si só ou com recurso às regras da experiência comum, não sendo permitida a consulta de outros elementos constantes do processo([9]), como por exemplo, o teor dos relatórios de perícia de Psicologia Forense levados a cabo no INML,CF a cada um dos menores (dos quais constam as consequências observadas a nível psíquico, sofridas pelos menores em resultado da atuação típica e ilícita do arguido relativamente à progenitora dos mesmos), de que se serve o MºPº recorrente para invocar o aludido vício decisório.

Entre as situações de erro notório na apreciação da prova (apreciação que deve fazer-se de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, conforme dispõe o art. 127º do CPP fora dos casos de prova tarifada/pericial ou da que se extrai de documento autêntico cuja falsidade não tenha sido invocada), figura aquela em que o tribunal conclui pela atuação sem dolo contra as regras da experiência e o entendimento da generalidade das pessoas que têm consciência dos valores que a comunidade pretende ver defendidos([10]).

Neste sentido, decidiu o Ac. do STJ de 22/05/1997([11]) que “O erro notório na apreciação da prova  (…) existe quando o homem de formação média dele se dá conta facilmente e para existir é essencial partir de um facto que ficou provado e extrapolar dele um absurdo, um outro facto repelido pela própria lógica à base de um raciocínio elementar”, como por exemplo a situação versada no Ac. do STJ de 12/03/1998([12]) sobre a “(…) a circunstância de na sentença recorrida se ter dado como provado que o arguido apontou uma pistola à cabeça de alguém, que se encontrava a cerca de dois metros de distância, ter disparado e atingido mortalmente o visado na cabeça, e, seguidamente, como não provado, o propósito de o matar, já que tais factos, à luz da experiência comum, são inconciliáveis”.

No caso destes autos, lendo o texto da decisão recorrida, configura um erro notório na apreciação da prova o dar-se como provado que o arguido a partir de Junho de 2022,  nas discussões que iniciava com DD (mãe dos menores CC e BB, filhos nascidos do seu casamento com o arguido) colocou em causa as capacidades intelectuais da ofendida, vociferando-lhe “és uma burra”, “és uma otária”, “não consegues fazer nada sozinha”, “vives às minhas custasperante os próprios filhos (factos provados nºs 4, 6 a 8); perante os próprios filhos lhe fazia acusações de infidelidade tais como “andar com outros homens” “vestir-se de forma provocante para seduzir outros homens” e apelidando-a de “puta” (factos provados nºs 10 a 12); na presença dos filhos menores do casal, porque a ofendida manifestou querer divorciar-se dele, o arguido partiu o vidro do forno e do micro-ondas aos murros, atirando-os de seguida ao chão (factos provados nºs 13 e 14); na presença da filha menor BB o arguido pegar na roupa interior usada pela ofendida DD que se encontrava para lavar, perseguindo-a pela casa, acusando-a de ser infiel e chamando-lhe “porca” e “puta”,  tendo a menor tentado intervir e acalmar o arguido, ficando abalada (factos provados nºs 32 a 34); em 21/10/2022, na cozinha e na presença dos filhos menores, o arguido aproximou-se da ofendida DD que estava sentada numa cadeira e apontou-lhe uma faca à barriga e empurrou-a contra o armário da cozinha, vindo a vítima a embater com um dos ombros na esquina de um dos móveis, o que lhe causou dores  (nº 39 dos factos provados); depois de ter dito que se matava se a ofendida se separasse dele, na presença dos filhos menores o arguido pegando numa faca de cozinha própria para cortar carne, fechou-se na casa de banho colocando-se dentro do duche, em pé, de costas para a porta, empunhando a faca com ambas as mãos e com a ponta da lâmina virada para a sua barriga, ao aperceber-se da presença dos filhos afirmou: “sai daqui que eu vou-me matar. Já que não me dás mais uma chance, prefiro a morte”, tendo causado pânico no menor CC que começou aos gritos e suplicou à mãe para voltar para o pai e que o menor chegou a dizer: ”Se ele se mata, eu também me mato”; na presença da menor BB (dia 01/11/2022) o arguido ter agarrado com força no rosto da ofendida DD e ter dito “não vês que faço isto para teu bem, acorda para a vida” e de seguida desferiu uma cabeçada na testa da mesma enquanto dizia que “era dele e de mais ninguém”; na presença do menor CC o arguido dirigindo-se à ofendida DD disse: ” nunca foste mãe e agora estás preocupada” e que “andava metida” com o GG e com outros homens; na presença do menor CC o arguido ter-se lançado sobre a ofendida DD e apertado o pescoço desta com uma das mãos e empurrando-a contra um armário da cozinha; em 07/11/2022, no interior da casa de morada de família e na presença da menor BB, o arguido aproximou-se da ofendida DD encostou-a a um móvel e projetou-a contra o chão e, quando a menor interveio para proteger a mãe, o arguido afastou-a com o propósito de facilitar o contacto físico com a ofendida DD; em 14/11/2022, quando a menor BB se encontrava no interior do automóvel do arguido, este disse-lhe: ”a tua mãe é uma mentirosa porque ela anda com o GG. Mas eu nem que vá para a cadeia, eu vou desmascará-los. Eu vou para a cadeia, mas um dia sou solto”; no mesmo dia, na presença da menor BB e no interior da casa de habitação, o arguido empurrou a DD para o solo e colocou as suas mãos no pescoço dela apertando-o e causando-lhe dor e sufoco enquanto lhe dizia furioso: “ és minha não és de mais ninguém” e chamava-lhe “burra” e “otária” e que a menor começou a gritar por socorro, fazendo com que o arguido acabasse por cessar tal conduta, e seguidamente, dar como não provado que o arguido agiu dolosamente no que respeita aos seus filhos menores.

O crime de violência doméstica é um crime doloso (por não estar expressamente prevista a sua punição a título negligente, cfr. art. 13º do Cód. Penal), bastando para o preencher, o dolo genérico (se o agente representa e quer concretizar os elementos objetivos do tipo legal([13])), nas suas modalidades de dolo direto, necessário ou eventual, uma vez que o tipo legal do art. 152º do Cód. Penal não prevê um dolo específico (como sucede por ex., na burla ou na falsificação ou contrafação de documento).

Da matéria da facto provada resulta à saciedade que o alvo preferencial das condutas do arguido foi sempre a sua cônjuge DD, progenitora dos menores nascidos do casamento celebrado com o arguido, o que não exclui de todo,  que o arguido, em algumas ocasiões atuando na presença dos menores, conhecendo os laços afetivos que os unem à progenitora e a idade dos mesmos na data da prática dos factos, previu que ao infligir maus tratos físicos e psicológicos à mãe destes, lhes provocaria sofrimento, angústia e um sentimento de permanente receio e inquietação (pelo que pudesse suceder à progenitora às mãos do arguido), bem como teve conhecimento ainda da reação que neles produziu a sua conduta típica e ilícita (cfr. factos provados nºs 42 a 44, 66 e 77) e, apesar disso, não se absteve de empreender as condutas que levou a cabo, mostrando ao assim atuar, uma total indiferença e desprezo pelos sentimentos dos menores, atentando contra a sua saúde e bem-estar psíquico, com conhecimento da ilicitude e com liberdade de determinação e atuação de acordo com essa avaliação, pelo que leva a concluir, de acordo com as regras da lógica, da normalidade do acontecer e da experiência comum, que atuou pelo menos com dolo necessário – cfr. arts. 125º e 127º do CPP e 349º do Cód. Civil e 14º nº 2 do Cód. Penal.

Na verdade, o arguido atuou do modo descrito sem para tal ter procurado momentos em que os menores estivessem ausentes do domicilio comum ou em que, estando presentes, não tivessem possibilidade de se aperceber das agressões por si produzidas sobre a progenitora (embora nos pareça difícil de conceber que, dentro do domicílio comum, os menores, estando noutro compartimento, não ouçam vozes alteradas, sons de dor por ela emitidos ao ser agredida, não se apercebam do ruído do embate do corpo da mãe contra armários ou contra o solo; precisamente a corroborar o que acaba de dizer-se, basta atentar no relato do menor CC no INML,CF – cfr. relatório pericial de Psicologia Forense de fls. 355 a 358 - quanto a condutas perpetradas pelo arguido sobre a progenitora numa ocasião em que o menor se encontrava noutro local da residência:” uma vez ele tentou esganar a mãe mas depois viu que a mãe estava a ficar sem ar e parou. Eu estava no meu quarto a dormir e a BB começou a gritar por mim e eu fui lá...quando eu desci estava a mãe no chão e o pai com a cara toda arranhada, acho que foi a mãe para defender-se que lhe arranhou a cara...a mãe estava roxa ainda um bocado...começámos a puxar os cabelos e a BB rebentou sem querer o colar dele ao tentar puxar…”), demonstrando total falta de consideração e indiferença pelos sentimentos e sofrimento das duas crianças e pelos eventuais danos emocionais/psicológicos decorrentes das suas condutas na saúde psíquica dos mesmos, tanto mais que foi prosseguindo em tais condutas típicas apesar de ter tomado conhecimento, em cada atuação (antecedente), da reação que causou nos filhos menores  (cfr. factos provados nº 43 e 44, quanto a chantagem emocional), não se coibindo, apesar disso, de passar à atuação seguinte, de continuar a exercer maus tratos físicos e psicológicos na presença dos mesmos (cfr. factos provados nºs 66, 72 e 77) sobre a progenitora, constituindo-se num foco de infelicidade para duas crianças a quem tinha especiais deveres de respeito, de cuidar e proteger (cfr. art. 1874º do C.C.).

Assim, apesar de ter sido correto julgar como não provados os factos que traduzem  o dolo direto do arguido na parte atinente à sua atuação típica quanto aos seus filhos menores que expôs a contextos de violência física e psíquica perpetrada contra a respetiva progenitora no interior do domicílio comum,  descritos nas alíneas “s) o arguido quis maltratar (…) psicologicamente os seus filhos, (…) bem sabendo que os afectava na sua saúde psíquica, (…), o que alcançou” e “t) Ao expor os menores BB e CC à violência a que submeteu a sua progenitora, sabia que ia causar nos mesmos um sentimento de permanente receio e de inquietação, atentando, assim, contra a sua saúde e bem-estar psíquico, o que logrou”, não se afigura correto não se ter dado como provados os factos quanto ao elemento subjetivo, na modalidade do dolo necessário.

Conforme decidiram o Ac. da R.C. de 27/05/2015([14]), “O dolo – ou o nível de representação ou de reconhecimento que a sua afirmação supõe sob um ponto de vista fáctico – pertence, por natureza, ao mundo interior do agente. Por isso ou é revelado pelo próprio, sob a forma de confissão, ou tem de ser extraído dos factos objectivos – isto é, inferido através da consideração de determinado circunstancialismo objectivo com idoneidade suficiente para revelá-lo “ e o Ac. da R.P. de 24/09/2018([15]), “II - A intenção de um determinado sujeito quando pratica certos factos é algo que não é sensorialmente percecionável por terceiros, sendo vivenciada exclusivamente pela pessoa que atua, tratando-se de um facto interno que não é passível de prova direta, por não ser apreensível por qualquer dos sentidos do ser humano e, mesmo quando confessada, trata-se apenas de um relato da pessoa que alegadamente experienciou essa determinação. III - O perfil da intenção enquanto facto interno, indiciada seja por palavras, seja por atitudes, implica que a sua prova seja feita por via indireta, especialmente por presunções judiciais “.

Face ao exposto, por se verificar erro notório na apreciação da prova ao extrair dos factos objetivos provados uma conclusão com eles inconciliável segundo as regras da lógica, da normalidade do acontecer e da experiência comum (art. 127º do CPP), nos termos dos arts. 428º e 431º a) do CPP, adita-se à matéria de facto dada como assente os seguintes factos:

81-C: o arguido representou e previu que com as suas condutas,  praticadas na presença dos filhos menores BB e CC, os iria maltratar psicologicamente, nomeadamente, causar-lhes dor emocional/sofrimento, em particular, angústia, tristeza e permanente inquietação, mas apesar disso, não se absteve de as empreender, bem sabendo que ao assim actuar, os afectava na sua saúde psíquica, o que logrou;

81-D: Ao expor os menores BB e CC à violência a que submeteu a sua progenitora, sabia que, como consequência dessa atuação, iria causar nos mesmos um sentimento de permanente receio e de inquietação, mas apesar disso, não se absteve de agir como agiu, atentando, assim, contra a sua saúde e bem-estar psíquico”.

Porém, não se determina a eliminação do elenco da matéria de facto não provada, os factos aí descritos nas alíneas s) e t), porquanto os descrevem na modalidade de dolo direto.

Ainda nos termos dos arts. 428º e 431º a) do CPP, altera-se a factualidade descrita no nº 82 dos factos provados, passando a ler-se:

“82 – O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, desinteressando-se pela saúde dos ofendidos DD, BB e CC, estado psíquico e pelo seu bem-estar, bem sabendo que as condutas supra descritas lhe estavam vedadas e eram punidas por lei, e, ainda assim, não se inibiu da sua realização”.

Procede, assim este fundamento do recurso, embora com diferente fundamentação.


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3ª questão: de saber se o arguido deve ser condenado como autor de dois crimes de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º nºs 1 e), 2 a) do Cód. Penal, no que respeita aos seus filhos menores BB e CC.

O recorrente alega que em face dos factos provados, aos quais acrescem os acima aditados e tendo resultado provados maus tratos psicológicos nas crianças, avaliados através de perícias psicológicas realizadas pelo INML,CF em 13/01/2023 (a fls. 355 a 358 e 360 a 365), transcrevendo o recorrente trechos/excertos desses relatórios periciais, foram também eles vítimas de violência doméstica praticada pelo progenitor, ficando afetados psicologicamente com as situações traumáticas vivenciadas no contexto familiar, pelo que incorreu o arguido na prática de (mais) dois crimes de violência doméstica na forma agravada p. e p. pelo art. 152º nºs 1 e) e 2 a) do Cód. Penal, devendo ser condenado pela prática de tais ilícitos. 

Apreciando.

Os factos referentes aos danos causados aos dois menores (filhos do arguido/agressor e da ofendida DD) a nível psíquico, descritos nos relatórios periciais de Psicologia Forense levados a cabo pelo INML,CF, não constam descritos na matéria de facto provada, nem sequer constavam alegados na acusação pública (referência 413382371), na qual o MºPº se limitou a descrever os danos físicos observados pelo INML,CF no âmbito do exame pericial de Patologia Forense, provocados no corpo da ofendida DD em resultado da atuação do arguido, nada tendo sido dito/descrito (por lapso), apesar de constarem dos autos, quanto aos danos observados a nível psíquico, na saúde dos dois menores.

Entre os diversos meios de prova arrolados na acusação, constam os relatórios da perícia de psicologia forense, de fls. 355 a 358, 360 a 365.

O arguido foi notificado da acusação.

Além disso, na acusação, o MºPº requer que venha a ser fixado às vítimas (menores de idade) um montante de reparação económica, atento os prejuízos a apurar nos autos decorrentes da influência da conduta do arguido na sua vida, nos termos do art. 82º-A do C.P e art. 21º nº 2 da Lei 112/09 de 16/9.

Por se mostrar relevante para a decisão a proferir face ao pedido formulado, nos termos do disposto no art. 424º nº 3 do CPP foi ordenada a notificação do arguido para, querendo, em 10 dias se pronunciar quanto à possibilidade de este Tribunal vir a dar como provados os factos descritos nos relatórios periciais do INML,CF no âmbito dos exames de psicologia forense a que foram submetidos os menores na fase do inquérito, de cujo teor o arguido já tinha conhecimento.

Nessa sequência, o arguido veio defender que que em face do disposto nos arts. 14º nº 6 e 21º da Lei nº 112/2009 de 16/09 a única vítima direta do crime é a progenitora dos menores e que os relatos dos mesmos junto do INML, CF devem ser apreciados de acordo com um prudente arbítrio, não esquecendo as culpas concorrentes de ambos os progenitores, defendendo a manutenção do decidido pelo Tribunal a quo.

O nº 6 do art. 14º da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro (número antes inexistente) foi introduzido pela Lei nº 57/2021 de 16 de agosto, que entrou em vigor no dia 17/08/2021([16]) e tem a seguinte redação: “Sempre que existam filhos menores, a atribuição de estatuto de vítima à criança e à pessoa adulta é comunicada imediatamente pelas autoridades judiciárias ou pelos órgãos de polícia criminal à comissão de proteção de crianças e jovens e ao tribunal de família e menores territorialmente competentes”.

A referida norma constitui aplicação do direito à pessoa considerada «vítima» de acordo com a definição contida no art. 2º alínea a) do mesmo diploma, que passou a abranger expressamente os menores que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica, cuja redação tem o seguinte teor: “a) «Vítima» a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152º do Código Penal, incluindo as crianças ou os jovens até aos 18 anos que sofreram maus tratos relacionados com exposição a contextos de violência doméstica; “.

Em nada estas normas contrariam o disposto no art. 21º da referida Lei.

Concomitantemente ao art. 67º-A nº 1 a) do CPP foi aditada a subalínea iii), que esclarece que os menores são considerados vítimas de crime, sejam eles vítimas diretas (primeira parte) quer sejam apenas suas vítimas indiretas: “incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica” – destacado e sublinhado nossos.

A mesma Lei nº 57/2021 acrescentou a alínea e) ao nº 1 do art. 152º do Código Penal, precisamente para deixar claro que também são típicas, proibidas e puníveis os maus tratos psíquicos exercidos pelo agente sobre menor que seja seu descendente e/ou descendente de uma das pessoas referidas nas alíneas a) a c) do nº 1, donde resulta que da leitura conjugada dos diplomas acabados de citar, estão tutelados pela incriminação na vertente de inflição de maus tratos psíquicos, os menores expostos a contextos de violência doméstica que sejam filhos do agressor e/ou de alguma das pessoas referidas nas alíneas a) a c) do nº 1.

Uma leitura do preceito da alínea e) do nº 1 do art. 152º que entenda apenas o menor como a pessoa diretamente visada por alguma das ações descritas no corpo do nº 1 (como se faz na decisão recorrida), equivaleria a fazer letra morta do disposto nos arts. 2º a) e 14º nº 6 da Lei nº 112/2009 de 16/09 e do art. 67º-A nº 1 a) e sua subalínea iii) do CPP.

Não assiste, pois, razão ao arguido quando defende que o crime de violência doméstica incrimina as ações típicas do agente dirigidas apenas contra a vítima direta. 

Em consequência,  em face do pedido formulado pelo MºPº e para evitar que a matéria de facto dada como provada se mostre insuficiente para a decisão ( justa) de direito a proferir, nos termos do disposto no art. 424º nº 3 primeira parte, por referência ao art. 358º nº 1 do mesmo Código, adita-se à matéria de facto dada como assente, os seguintes factos, descritos nas conclusões dos relatórios periciais juntos aos autos, cfr. arts. 163º e primeira parte do nº 1 do art. 127º (“Salvo quando a lei dispuser diferentemente, (…)”), ambos do CPP:

“80-A: Como consequência das agressões infligidas pelo arguido sobre a progenitora dos menores, supra descritas, à menor BB foi identificada experienciação de ansiedade fóbica, isto é, resposta de medo persistente em relação a uma pessoa ou situação específica. A ansiedade identificada – que se eleva a níveis de hipervigilância e a uma desajustada inversão de papéis na díade parental, assumindo-se a figura de protecção da progenitora perante o progenitor – é compatível com a vivência de violência doméstica a que será exposta, denotando-se ainda da sua narrativa um impacto negativo sob a forma de projecção presente e futura nas suas próprias relações de intimidade. O impacto vindo de descrever ainda se mantém quanto à percepção de risco relativo à progenitora, dados os comportamentos passados que terá presenciado e às verbalizações de ameaça que descreve por parte do progenitor, embora o facto de os progenitores já não coabitarem atenue os seus níveis de alerta. A BB evidencia ressonância emocional congruente com as vivências relatadas e com o seu perfil e nível desenvolvimental. Sinaliza-se risco emocional e psíquico para a menor, considerando-se ainda face ao seu relato – embora salvaguardando-se não se ter efectuado avaliação pericial ao progenitor – a existência de risco para a progenitora “;

80-B: Como consequência das agressões infligidas pelo arguido sobre a progenitora dos menores, supra descritas, a avaliação do CC sinaliza indicadores no limiar da expressão clínica no âmbito de comportamentos que se inscrevem em problemas de atenção e queixas somáticas, i.e., queixas de aparente patologia de índole orgânica que resultam da experienciação de ansiedade. As repercussões desta sintomatologia parecem estender-se ao relacionamento com os pares e ao desempenho no contexto académico. A sintomatologia identificada é compatível com as vivências abusivas que se configuram a exposição a uma dinâmica de violência doméstica como a descrita, sublinhando-se hipervigilância que face à separação dos progenitores se atenuou mas ainda se mantém quanto à percepção de risco relativa à progenitora, dados os comportamentos passados que terá presenciado e às verbalizações de ameaça que descreve por parte do progenitor”.

Prosseguindo.

No caso dos autos, em face da matéria de facto provada e face ao conteúdo da norma do art. 152º do Cód. Penal, é manifesto que se encontram preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos que integram o tipo de crime de violência doméstica imputados ao arguido na acusação quanto a cada um dos filhos menores nascidos do casamento celebrado entre o arguido/agressor e a ofendida DD e, no caso, sendo várias as vítimas (a progenitora dos menores BB e CC e os ditos menores, cfr. art. 30º nº 1 do Cód. Penal), o agente comete tantos crimes quantas as vítimas atingidas, atento o bem jurídico protegido pela incriminação (um bem complexo, pluriofensivo, manifestando-sena tutela, a título principal, do bem jurídico saúde e, a título secundário, a pacífica convivência familiar, doméstica e para-familiar” porque “a existência presente ou pretérita de um vínculo jurídico-familiar, ou pelo menos afetivo, transfere a conduta em causa para um patamar superior de danosidade social”([17])), eminentemente pessoal na vertente saúde([18]), ou por outras palavras, a integridade das funções corporais da pessoa nas suas dimensões física e psíquica([19]) ou ainda estado completo de bem-estar físico e mental), cfr. art. 30º nºs 1 e 3 do Cód. Penal,  existindo um concurso efetivo dos três crimes de violência doméstica([20]), sendo um deles, o crime de violência doméstica (maus tratos físicos e psíquicos) perpetrado diretamente contra a progenitora dos menores (art. 152º nº 1 a) do CP), cônjuge do arguido/agressor, agravado por ter sido praticado na presença dos filhos menores([21]) de ambos e ainda no domicílio comum (nº 2 a) do art. 152º) e, os restantes dois crimes de violência doméstica na vertente de maus tratos psíquicos, de que são vítimas autónomas cada um dos menores BB e CC que presenciaram/vivenciaram os maus tratos (art. 152º nº 1 e) do CP), igualmente agravados por terem sido praticados no domicílio comum (nº 2 a) do art. 152º).

Na verdade, o contexto em que os factos foram praticados pelo arguido, embora tivessem como alvo preferencial a progenitora dos menores, não pode deixar de se repercutir, negativamente, na saúde psíquica dos mesmos, como aliás revelam, as conclusões dos relatórios periciais de psicologia forense no âmbito do exame a que foi submetido cada um dos menores.

É dado assente no domínio da psicologia, que a criança vítima de maus tratos é tanto aquela a quem são diretamente infligidas ofensas físicas ou psíquicas, como a que é espectadora de situações de violência familiar.

Para além dos Autores citados pelo MºPº no recurso, ensina a Prof. Teresa Magalhães([22]) que “a exposição de crianças a situações de violência doméstica repetida entre adultos da família, constitui uma forma de abuso emocional. Para além dos danos psicológicos, cria-se um risco acrescido da criança vir a sofrer lesões traumáticas ou doenças, de ter um mau desempenho e aproveitamento escolar, (…), bem como de perpetuar esta violência pela transmissão geracional da mesma.  No caso de violência intrafamiliar, estão em jogo afetos intensos que são, por via do abuso, postos em causa”.

Celina Manita([23]), também defende que o testemunho da violência conjugal pela criança, constitui uma forma de mau trato/abuso psicológico, entendido como um ataque concreto pelo adulto ao desenvolvimento do self e competência social da criança, uma amostra de um comportamento fisicamente destrutivo; uma das formas de mau trato emocional  frequente em situações de violência conjugal consiste precisamente em expor a criança a modelos de papéis negativos e limitados, porque encorajam a rigidez, a autodestruição, os comportamentos violentos e antissociais.

Clara Sottomayor([24]) a propósito das crianças que testemunham episódios de violência de um progenitor sobre o outro e o fenómeno da vitimação indireta, defende que “a violência contra a mãe é uma forma de abuso psicológico das crianças. O facto de os filhos assistirem ou meramente se aperceberem da violência conjugal provoca nestes problemas comportamentais, psíquicos e físicos”.

Maria Elisabete Ferreira na sua obra intitulada “Violência Parental e Intervenção do Estado. A questão à luz do direito português”,  ensina na pág. 64, que “ No mesmo sentido, a EU, no Relatório do Parlamento Europeu “rumo a uma estratégia da EU sobre os direitos da criança (2207//2093(INI) A6-0520/2008, no seu ponto 79, solicita a todos os Estados-Membros que considerem uma criança que testemunhou violência doméstica como vítima de um crime e, no seu ponto 81, recomenda que a futura estratégia atribua especial importância à proteção médica, psicológica e social dos jovens de ambos os sexos vítimas de (…) violência (…) indireta; recorda que o impacto da violência indireta no bem-estar das crianças, bem como a sua prevenção, deverão estar incluídos nos trabalhos da Comissão “ – destacado da nossa autoria.
A corroborar tudo o que acaba de dizer-se, pode ler-se no ponto 13 da Diretiva (UE) 2024/1385 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de maio de 2024, no Jornal Oficial da União Europeia, sobre o combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica, com o seguinte teor: ”(13) Devido à sua vulnerabilidade, testemunhar a violência doméstica pode ser devastador para as crianças. Crianças que testemunham violência doméstica dentro da família ou unidade doméstica normalmente sofrem danos psicológicos e emocionais diretos que afetam seu desenvolvimento e correm um risco aumentado de sofrer de doenças físicas e mentais, tanto a curto quanto a longo prazo. O reconhecimento de que as crianças que sofreram danos causados diretamente por terem testemunhado violência doméstica são elas próprias vítimas marca um passo importante na proteção das crianças que sofrem por causa da violência doméstica.

Conforme resulta da matéria de facto provada, os factos foram perpetrados pelo arguido após a entrada em vigor da Lei nº 57/2021 de 16 de agosto que introduziu alterações no art. 152º nº 1 do Cód. Penal, acrescentando-lhe a alínea e), que consagra expressamente o menor como vítima autónoma do crime de violência doméstica desde que ele seja descendente do agressor (como no caso destes autos) ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c) ( como sucede também no caso destes autos) pois os dois menores ofendidos são filhos comuns do arguido e da ofendida DD, cônjuge do arguido.

Até à publicação da referida Lei, a jurisprudência maioritária não considerava a criança (ou jovem até aos 18 anos de idade) enquanto vítima do crime de violência doméstica, nas situações em que esta presencia ou vivencia os atos típicos praticados sobre um progenitor pelo outro progenitor (entre outras), imputando ao agressor em tais situações a prática de apenas um crime de violência doméstica, pese embora a tipicidade da conduta do agente já resultasse da redação do nº 1 d) do art. 152º do Cód. Penal (“em razão da idadeou dependência económica, que com ele coabite”).

A referida alteração legislativa e o aditamento da alínea e) ao nº 1 do art. 152º,  visa garantir a proteção das crianças e jovens contra o risco de violência física e psicológica em contexto familiar, mesmo que esta ocorra em situações em que não haja coabitação (que não é o caso dos autos), como nos casos em que os progenitores apenas têm os menores a seu cargo ao fim de semana, ou pontualmente, em contexto de direito de visita.

No recente Ac. do STJ de 02/05/2024([25]), exarou-se que “Importa, igualmente, ter em conta que a violência doméstica representa hoje um dos mais importantes fatores de perigo para a saúde, desenvolvimento, segurança e educação das crianças. Como lembra Rui do Carmo, as crianças são vítimas de graves traumas quando vivenciam cenas de violência na família, pelo que as últimas alterações ao tipo legal, designadamente, com a inclusão da alínea e) ao seu nº 1, bem como à redação do art. 2º al. a), da Lei n.º 112/2009, de 16/09, e à do art. 67º -A nº 1 al. a) iii), do C.P.P., vão no bom sentido de afastar a velha e pouco rigorosa distinção que se fazia entre crianças vítimas de violência doméstica e crianças expostas à violência doméstica  - negrito de destacado da nossa autoria.

Mas ainda antes da revisão do art. 152º do Cód. Penal, na jurisprudência, e bem, o Ac. da R.L. de 19/06/2019([26]) já havia decidido que “1. Comete o crime de violência doméstica p. e p. pelo artº 152º nº 1 al. a) e d) e nº 2 do cód. penal, contra o ex-marido e filha de ambos, a mulher divorciada que, no contexto de uma relação familiar, por causa das responsabilidades parentais para com a menor, impede o pai de estar com a filha, ao mesmo tempo que o insulta, bem como aos seus amigos na presença da menor, com epítetos grosseiros e vocábulos ofensivos, ameaçando-o de não mais lhe deixar ver a filha, deixando esta fortemente transtornada e em choro. 4. Quanto à menor, aplica-se a al. d) do nº 1 e nº 2 da mesma norma, tendo em conta a sua idade que, dos 2 aos 11 anos viveu sob forte pressão e stress devido a situações conflituosas geradas pela arguida, (mãe). 5. A menor é neste caso uma "pessoa particularmente indefesa", tendo em conta a idade e a dependência familiar, social e económica, desta em relação à mãe, geradora de uma especial incapacidade de defesa ou de reacção perante os actos de maus-tratos físicos e psíquicos infligidos pela arguida. (…)”. No mesmo sentido se pronunciou o Ac. da R.E. de 07/05/2019([27]) exarando que “Realiza inquestionavelmente maus tratos psíquicos o acto de apelidar recorrentemente de “puta” a mãe da vítima (…), fazendo-o na frente da vítima e para que esta o ouça”.

No caso destes autos, entre outros comportamentos típicos perpetrados na presença dos filhos menores, o arguido, na presença dos mesmos (ora de ambos, ora apenas na presença da menor BB), apelidou a respetiva progenitora de “burra”, “otária”, “puta”, “porca” e “mentirosa”.

Também P. Pinto de Albuquerque([28]) sobre a alteração introduzida no art. 152º do Cód. Penal pela Lei nº 57/2021 de 16 de agosto, refere que “Na revisão do CP de 2021, o legislador confirmou expressamente duas formas de violência que já resultavam da lei anterior: a violência económica (…); e a violência contra menor descendente do agressor ou de alguma das vítimas das alíneas a), b) e c) do nº 1 do art. 152º “.

Violência essa contra menor, que não tem que ser direta, ou seja, tê-lo como alvo direto (enquanto pessoa objeto do crime), como se entendeu na decisão recorrida (art. 14º nº 1 do Cód. Penal), mas que o atinge a título de dolo necessário ou dolo eventual (cfr. art. 14º nºs 2 e 3 do Cód. Penal) quando os maus tratos sobre o/a respetivo/a progenitor/a, alvo preferencial do agente, são praticados na sua presença.

Coloca-se a questão de saber se face a esta interpretação, não ficaria esvaziada a agravação contida no nº 2 do art. 152º do Cód. Penal consubstanciada na perpetração de condutas descritas no corpo do nº 1 «na presença de menor».

Crê-se que assim não sucede, porque como consta do Parecer do CSMP de 12/04/2021([29]), essa agravação “se liga diretamente à outra vítima ou à vítima inicial, do mesmo modo que se ocorrer no domicílio comum ou no domicílio desta “.

Pense-se na hipótese de maus tratos físicos ou psíquicos (p. ex., ameaça de morte, injúrias com epítetos soezes) perpetrados sobre a progenitora do menor (que pode também ser filho comum desta com o agressor) levados a cabo pelo agressor na via pública, na presença do menor, que assim os testemunha.  Em tal caso, o agente incorre em dois crimes de violência doméstica, sendo um quanto à vítima direta (progenitora do menor), p. e p. pelo art. 152º nºs 1 a) ou c) e 2 a) do Cód. Penal e o outro crime de violência doméstica praticado contra o menor, p. e p. pelo art. 152º nº 1 e) do Cód. Penal.

Na verdade, como se disse supra em nota de rodapé, a agravação (do limite mínimo da moldura penal) que no caso opera (art. 152º nº 2 a) do Cód. Penal) realça, no que ao presente caso interessa, não a perspetiva dos menores, mas sim a da vítima direta e a do próprio arguido. Explicando: para uma mãe, sofrer o tipo de maus tratos que aqui estão em causa em frente aos filhos é infinitamente mais doloroso, pela humilhação suprema de ser tratada como lixo em frente aos filhos e até pelo receio de que a violência possa alastrar para os filhos e o horror da impotência de nada poder fazer. Uma vítima nessa circunstância sofre as mesmas dores físicas e psicológicas de outra que não é maltratada à frente dos filhos, mas sofre ainda esse acréscimo, incomensurável, de dor e aflição, que justifica a agravação, que tem como reverso a insensibilidade do arguido que foi indiferente a esse acréscimo de sofrimento. Os filhos não são eles mesmos, equação nessa agravação.

A não se entender assim, como supra se deixou já dito, seria transformar em letra morta os textos da subalínea iii) do nº 1 a) do art. 67º-A do CPP, do art. 2º a) e 14º nº 6 da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro, resultantes da revisão operada pela Lei nº 57/2021 de 16 de agosto, ao abrangerem/alargarem o conceito de vítima à “A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica;”.

E nada resulta do texto do nº 1 alínea e) do art. 152º do Cód. Penal que contrarie esta interpretação. Pelo contrário, o conjunto das normas acabadas de referir formam entre si um todo coerente.

Em abono do ora decidido concorre o disposto nos nºs 1 e 3 do art. 9º do Cód. Civil ao estatuir que “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico” e que “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.   

O Prof. Baptista Machado([30]), falando sobre a doutrina tradicional e os fatores hermenêuticos de interpretação da lei de que se serve o intérprete, ensina serem para esta doutrina, dois os factores interpretativos: a) o elemento gramatical (texto da lei) e b) o elemento lógico, o qual se subdivide em três elementos: o racional; o sistemático (contexto da lei e lugares paralelos) e o elemento histórico.

O elemento sistemático compreende outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei)([31]), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o «lugar sistemático» que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou a unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.

Baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário.

Nomeadamente, o recurso aos «lugares paralelos» pode ser de grande utilidade, pois que, se um problema de regulamentação jurídica fundamentalmente idêntico é tratado pelo legislador em diferentes lugares do sistema, sucede com frequência que num desses lugares a fórmula legislativa emerge mais clara e explícita. Em tal hipótese, porque o legislador deve ser uma pessoa coerente e porque o sistema jurídico deve ser por igual forma um todo coerente, é legítimo recorrer à norma mais clara e explícita para fixar a interpretação de outra norma (paralela) mais obscura ou ambígua”.

E mais adiante([32]), sobre a posição adotada pelo art. 9º do Cód. Civil refere que o seu nº 1 dá três elementos de interpretação sem qualquer hierarquia entre eles, sendo quanto ao da «unidade do sistema jurídico» que “uma lei só tem sentido quando integrada num ordenamento vivo e, muito em especial, enquanto harmonicamente integrada na «unidade do sistema jurídico» “.

Em decorrência do que vem de dizer-se e aplicando ao caso dos autos, dos relatórios periciais e da matéria de facto provada agora aditada sob os nºs 80-A e 80-B, resultou que em consequência das condutas do arguido, a menor BB revela “experienciação de ansiedade fóbica, isto é, resposta de medo persistente em relação a uma pessoa ou situação específica. A ansiedade identificada – que se eleva a níveis de hipervigilância e a uma desajustada inversão de papéis na díade parental, assumindo-se a figura de protecção da progenitora perante o progenitor “ e o menor CC “sinaliza indicadores no limiar da expressão clínica no âmbito de comportamentos que se inscrevem em problemas de atenção e queixas somáticas, i.e., queixas de aparente patologia de índole orgânica que resultam da experienciação de ansiedade. As repercussões desta sintomatologia parecem estender-se ao relacionamento com os pares e ao desempenho no contexto académico. (…), sublinhando-se hipervigilância que face à separação dos progenitores se atenuou mas ainda se mantém quanto à percepção de risco relativa à progenitora (…)”.

Não se desconhece que parte da doutrina considera o crime de violência doméstica como um crime de dano (quanto ao bem jurídico) e de resultado (quanto ao objeto da ação), fazendo depender o preenchimento do tipo da efetiva lesão do bem jurídico eleito([33]). Mas há também quem defenda tratar-se de um crime de perigo abstrato, nomeadamente Nuno Brandão([34]), para o qual “o tipo tem em vista atos de violência, traduzidos na inflição, reiterada ou não, de maus tratos físicos ou psíquicos, não sendo necessário ao seu preenchimento a demonstração de que como consequência da conduta do agente sobreveio na vítima um estado somático patológico objetivável, um transtorno da sua saúde psíquica ou mental, defendendo que da leitura da norma do art. 152º não existe nenhuma exigência expressa de que a lesão da integridade física ou a produção de perturbações ao nível da saúde psíquica da vítima constituam elementos do tipo “, tese que também perfilhamos.

Defende este Autor que é “o perigo para a saúde do objeto da ação alvo da conduta agressora que constitui motivo de criminalização, pretendendo-se deste modo oferecer uma tutela antecipada ao bem jurídico em apreço, própria dos crimes de perigo abstracto “.  Dá como exemplo de maus tratos físicos todo o tipo de comportamentos agressivos que se dirigem diretamente ao corpo da vítima e que em regra também preenchem a factualidade típica de ofensa à integridade física, como murros, bofetadas, pontapés e pancadas (…), empurrões, arrastões, puxões, apertões de braço ou puxões de cabelos, mesmo que se não comprove uma efetiva lesão da integridade corporal da pessoa visada; e como maus tratos psíquicos (que selecionamos tendo em conta a situação versada nos presentes autos no que respeita aos crimes perpetrados indiretamente contra os filhos menores em comum do arguido e da ofendida DD, que tiveram como alvo preferencial a progenitora dos mesmos), “os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, as ameaças, as perseguições, etc” e que, “para se assumirem como atos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm que possuir relevância específica no seio de outros tipos legais de crime “.

No mesmo sentido, na jurisprudência, o Ac. da R.P. de 11/03/2015([35]), decidiu que “O crime de Violência doméstica é um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido. Não é, pois, necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem atos em abstrato suscetíveis de provocar tais danos “.

Assim, os danos provocados na saúde psíquica das vítimas observados através dos exames periciais constantes dos autos são de relevar e fazer refletir em sede das consequências jurídico-penais da conduta apurada do arguido, nomeadamente, em sede de determinação da medida concreta da pena e do montante da reparação oficiosa formulada pelo MºPº na acusação (cfr. art. 82º-A do CPP e a não oposição expressa ao seu arbitramento por parte da legal representante dos menores ofendidos) a atribuir às respetivas vítimas.

Uma vez operada a qualificação jurídica da conduta do arguido, cumpre de seguida, de acordo com o decidido no AUJ do STJ nº 4/2016 de 22 de fevereiro([36]), proceder à determinação da pena a aplicar (“Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369º, 371º, 379º, nº 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424º nº 2 e 425º nº 4, todos do Código de Processo Penal”).

Ao crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º nºs 1 e) e 2 a) do Cód. Penal corresponde em abstrato, pena de prisão de dois a cinco anos. 

Está em causa a prática pelo arguido de dois crimes (contra os menores BB e CC) praticados no interior do domicílio comum.

De acordo com o disposto no artigo 71º do Código Penal, tendo presente que «as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Assim, a medida da pena há-de ser dada pela medida da tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, que se traduz na tutela das expectactivas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada» (cfr. Figueiredo Dias, in «Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime», Aequitas, p. 227) – cfr. artº 40º, nºs 1 e 2, do Código Penal.

Assim, para a determinação concreta da pena, balizada pela moldura penal abstrata, importa apreciar três fatores: a culpa manifestada pelo arguido na prática dos crimes em causa, como limite máximo da pena concreta; as necessidades de prevenção geral, como limite mínimo necessário para tutelar o ordenamento jurídico, de modo a repor a confiança no efeito tutelar das normas violadas em relação aos valores e bens jurídicos que lhe subjazem; e as necessidades de prevenção especial manifestadas pelo arguido, que vão determinar, dentro daqueles limites, qual o quantum da pena necessário para o reintegrar socialmente, se for caso disso, e/ou ter sobre ele um efeito preventivo no cometimento de novos crimes.

Nessa conformidade, nos termos do nº 2 do artº 71º, do Código Penal, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (na medida em que já foram valoradas pelo legislador ao fixar os limites abstratos da moldura legal), funcionem como atenuantes ou agravantes, circunstâncias essas que estão elencadas exemplificativamente no nº 2 do referido preceito legal.

A este título considerou o Tribunal a quo e não vem posto em causa no presente recurso, que aqui completamos, considerando os ofendidos menores de idade:

“o grau de ilicitude dos factos praticados pelo arguido AA, plasmada no respectivo modo de execução e no período de tempo em que os mesmos ocorreram (com maior incidência no período compreendido entre Junho e Novembro de 2022), se situa num patamar mediano para o(s) tipo(s) de crime em presença; sendo, no entanto, de realçar a multiplicidade de situações ocorridas (insultos, ameaças, acusações, perseguições, (…), manipulação, agressões físicas), a gravidade dos factos ocorridos no dia 14 de Novembro de 2022 (presenciadas pela menor BB) e as lesões que a assistente sofreu em duas das agressões físicas de que foi vítima.

Doutra banda, os bens ou valores jurídicos lesados são comunitariamente muito relevantes, acrescendo o laço afectivo do arguido com a vítima DD (bem como os laços afetivos que unem os filhos menores à respetiva progenitora, aos quais se mostrou indiferente) a impor-lhe um especial dever de respeito (dever esse a ser também observado por parte do progenitor para com os filhos, como resulta do disposto no art. 1874º do C.C.).

De destacar, ainda, as elevadíssimas necessidades de prevenção geral atentos os bens jurídicos protegidos e a grande frequência com este tipo de crime ocorre na comunidade, tantas vezes com resultados (infelizmente) dramáticos.

Não são, todavia, prementes as exigências de prevenção especial posto que o arguido não conta com antecedentes criminais.

No que respeita à culpabilidade do arguido, importa frisar a média intensidade do dolo com que actuou, relativamente aos seus filhos menores (dolo necessário).

Quanto à personalidade do arguido AA, é de realçar, pela positiva, a circunstância de ter assumido a prática de alguns dos factos em discussão nestes autos, mostrando-se arrependido e pedindo desculpas à mulher e aos filhos.

No que concerne às suas condições pessoais, plasmadas no respectivo relatório social junto aos autos, é de realçar, a favor do arguido, as seguintes circunstâncias:

- regista hábitos e rotinas de trabalho, que valoriza, encontrando-se laboralmente activo;

- revela bom comportamento anterior e posterior aos factos;

- a nível académico, encontra-se a frequentar o programa de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC);

- Encontra-se bem inserido no agregado familiar dos progenitores, os quais lhe têm prestado todo o apoio necessário, considerando as condições habitacionais e económicas de que usufruem;

- Encontra-se em acompanhamento na especialidade de Psicologia;

- evidencia capacidade reflexiva e crítica, com discurso ajustado ao socialmente expectável no que se refere à censura contra crimes como o de que vem acusado”.

Tudo visto, julgamos adequada a imposição de uma pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão por cada um dos crimes de violência doméstica cometidos contra os menores.

Estando os três crimes em causa numa relação de concurso efetivo, importa construir a moldura do concurso que, nos termos do artigo 77º do CP tem como limite máximo a soma das (três) penas parcelares e como limite mínimo a pena concretamente mais elevada.

A pena única a aplicar será, deste modo determinada entre o mínimo de 3 anos (pena parcelar mais elevada, aplicada pelo crime cometido contra a ofendida DD, progenitora dos menores) e o máximo de 7 anos e seis meses de prisão, face ao disposto no art. 77º nº 2 do Cód. Penal.

Para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 71º nº 1, a lei fornece ao tribunal um critério especial: «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente» (cfr. art. 77º nº 1, 2.ª parte).

Atendendo aos já explicitados fatores concretos de determinação da pena, considerando em conjunto a gravidade dos factos praticados, o período de tempo em que ocorreram e a personalidade do arguido revelada nos factos, malformada, persecutória e manipuladora relativamente à sua cônjuge, violadora das normas mais elementares de respeito pela dignidade alheia e, quanto a todos os ofendidos, de desrespeito pelos direitos pessoais alheios, considerando ainda que os crimes cometidos contra os seus filhos menores não ultrapassou o âmbito da relação estabelecida entre arguido e a progenitora, entendemos justo e proporcional aplicar-lhe a pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão.

A 1ª Instância aplicou ao arguido a pena substitutiva da suspensão da execução da pena de prisão subordinada à observância da regra de conduta consistente na obrigação de o arguido frequentar programas específicos de prevenção de violência doméstica, mediante o apoio e fiscalização dos Serviços de Reinserção Social.

Mantêm-se os pressupostos formais e materiais para a manutenção da referida pena de substituição previstos no art. 50º do Cód. Penal face à medida da pena única aplicada ao arguido (não superior a 5 anos de prisão), ficando a execução dessa pena suspensa por igual período de tempo (quatro anos e oito meses), subordinada à condição já aplicada em 1ª Instância no que respeita à ofendida DD, abrangendo-se agora também os filhos menores.

As exigências de prevenção especial continuam a não reclamar o cumprimento efetivo da pena de prisão dada a ausência de antecedentes criminais e porque os crimes praticados contra os menores não os tiverem como alvo preferencial, não ultrapassaram o contexto da relação estabelecida entre o arguido e a respetiva progenitora, acreditando-se que não teriam ocorrido fora desse contexto.

As exigências de prevenção geral são importantes, em face da danosidade social do crime, da sua frequência e da intenção preventiva que o legislador pôs na previsão autónoma e agravada deste crime.

Após a separação do casal e a aplicação ao arguido, para além de outra, da medida de coação da proibição de contactos por quaisquer meios com os três ofendidos, a situação de risco para os ofendidos tem sido avaliada como média (cfr. ainda os contactos que o arguido insiste em estabelecer com os menores enviando-lhes mensagens por telemóvel, violando a medida de coação imposta de proibição de contactos e a advertência feita pelo Tribunal quanto à necessidade de cumprir escrupulosamente as medidas de coação aplicadas, sob pena de serem revogadas, tudo conforme ata de audiência de julgamento, sessão do dia 18/10/2023, com a referência 452922172).

O MºPº qualificou juridicamente os factos da acusação por referência também aos números 4 e 5 do artigo 152º do CP, o que configura um pedido expresso de condenação em penas acessórias (também) relativamente aos crimes cometidos contra os menores.

Nesta senda, decide-se aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contactos com os menores pelo período fixado para a suspensão da execução da pena única de prisão aqui aplicada (quatro anos e oito meses), proibição essa que inclui o afastamento do arguido da residência e/ou dos estabelecimentos de ensino e ainda de outros locais frequentados pelos menores, sem prejuízo do que vier a ser determinado pelo Tribunal de Família e Menores quanto às responsabilidades parentais e regime de visitas ao progenitor. 

Por último, no que respeita ao pedido de arbitramento de uma quantia a título de reparação dos prejuízos sofridos resultantes da conduta do arguido na vida dos menores formulado pelo MºPº na acusação nos termos do disposto no art. 82º-A do Cód. Penal e 21º nº 2 da Lei nº 112/2006 de 16 de setembro, tendo sido ordenada pelo Tribunal a quo a notificação do arguido para se pronunciar conforme despacho proferido em 22/08/2023 (referência 451127759), o que foi cumprido na mesma data pela secretaria judicial por via postal simples com prova de depósito para a morada do arguido (referência 451150412) bem como ao mandatário do mesmo (referência 451150310) e, não tendo havido qualquer resposta, atendendo à condenação do arguido pelos crimes imputados, à não oposição à reparação (cfr. requerimento da assistente DD de 21/08/2023 com a referência 46333555, em representação dos seus dois filhos menores), sendo os menores considerados «vítima» do crime na aceção da alínea a) do artigo 2º a) e 14º nº 6 ambos da Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro revisto pela Lei nº 57/2021 de 16 de agosto e considerando o intervalo de tempo em que os crimes foram praticados, a multiplicidade de atos em que se traduziram, o grau mediano da culpa com que o arguido atuou (dolo necessário) e não o demoveu de os protagonizar, o grau de violação do especial de dever de respeito que se lhe impunha face aos menores por serem seus filhos (cfr. art. 1874º nº 1 do Cód. Civil), a intensidade dos danos psíquicos gerados nos menores pelos crimes de violência doméstica de que foram vítimas e pelos quais vai o arguido aqui condenado e a situação económico-financeira do arguido, nos termos dos arts. 483º e 496º nºs 1 e 3, primeira parte, 562º e 566º todos do Cód. Civil, tem-se por adequado fixar o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos por cada um dos menores residentes com a progenitora (que de acordo com os factos provados exerce a profissão de cabeleireira por conta de outrem), em € 1.000,00 (dois mil euros), o que perfaz o montante global de € 2.000,00, pelos crimes de que foram vítimas.

A esta quantia acrescerão juros de mora calculados à taxa legal em vigor, a contabilizar desde a data da notificação da presente decisão e até efetivo e integral pagamento.

Procede, portanto, o recurso nos termos referidos.


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III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência:
A) Julgar verificado o vício decisório do erro notório na apreciação da prova (art. 410º nº 2 c) do CPP) e nessa conformidade, nos termos dos arts. 428º e 431º a) do CPP, aditar à matéria de facto provada os seguintes factos:
a) 81-C: o arguido representou e previu que com as suas condutas,  praticadas na presença dos filhos menores BB e CC, os iria maltratar psicologicamente, nomeadamente, causar-lhes dor emocional/sofrimento, em particular, angústia,  tristeza e permanente inquietação, mas apesar disso, não se absteve de as empreender, bem sabendo que ao assim actuar, os afectava na sua saúde psíquica, o que logrou;
b) 81-D: Ao expor os menores BB e CC à violência a que submeteu a sua progenitora, sabia que, como consequência dessa atuação, iria causar nos mesmos um sentimento de permanente receio e de inquietação, mas apesar disso, não se absteve de agir como agiu, atentando, assim, contra a sua saúde e bem-estar psíquico”.
B) Nessa sequência, alterar a redação do nº 82 da matéria de facto provada, devendo passar a ler-se:
“82 – O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, desinteressando-se pela saúde dos ofendidos DD, BB e CC, estado psíquico e pelo seu bem-estar, bem sabendo que as condutas supra descritas lhe estavam vedadas e eram punidas por lei, e, ainda assim, no que respeita aos menores, não se inibiu da sua realização”;
C) Nos termos do art. 424º nº 3 primeira parte por referência ao art. 358º nº 1, ambos do CPP, aditar à matéria de facto provada, os seguintes factos:
80-A: Como consequência das agressões infligidas pelo arguido sobre a progenitora dos menores, supra descritas, à menor BB foi identificada experienciação de ansiedade fóbica, isto é, resposta de medo persistente em relação a uma pessoa ou situação específica. A ansiedade identificada – que se eleva a níveis de hipervigilância e a uma desajustada inversão de papéis na díade parental, assumindo-se a figura de protecção da progenitora perante o progenitor – é compatível com a vivência de violência doméstica a que será exposta, denotando-se ainda da sua narrativa um impacto negativo sob a forma de projecção presente e futura nas suas próprias relações de intimidade. O impacto vindo de descrever ainda se mantém quanto à percepção de risco relativo à progenitora, dados os comportamentos passados que terá presenciado e às verbalizações de ameaça que descreve por parte do progenitor, embora o facto de os progenitores já não coabitarem atenue os seus níveis de alerta. A BB evidencia ressonância emocional congruente com as vivências relatadas e com o seu perfil e nível desenvolvimental. Sinaliza-se risco emocional e psíquico para a menor, considerando-se ainda face ao seu relato – embora salvaguardando-se não se ter efectuado avaliação pericial ao progenitor – a existência de risco para a progenitora;
80-B: Como consequência das agressões infligidas pelo arguido sobre a progenitora dos menores, supra descritas, a avaliação do CC sinaliza indicadores no limiar da expressão clínica no âmbito de comportamentos que se inscrevem em problemas de atenção e queixas somáticas, i.e., queixas de aparente patologia de índole orgânica que resultam da experienciação de ansiedade. As repercussões desta sintomatologia parecem estender-se ao relacionamento com os pares e ao desempenho no contexto académico. A sintomatologia identificada é compatível com as vivências abusivas que se configuram a exposição a uma dinâmica de violência doméstica como a descrita, sublinhando-se hipervigilância que face à separação dos progenitores se atenuou mas ainda se mantém quanto à percepção de risco relativa à progenitora, dados os comportamentos passados que terá presenciado e às verbalizações de ameaça que descreve por parte do progenitor;
D) Revogar o acórdão recorrido na parte em que absolveu o arguido AA da autoria material, na forma consumada e em concurso real de dois crimes de violência doméstica na forma agravada perpetrados contra os seus dois filhos menores de idade p. e p. pelo art. 152º nºs 1 e) e 2 a), 4 e 5 do Cód. Penal e, em consequência:
- Condenar o arguido AA como autor material da prática, na forma consumada e em concurso real, de dois crimes de violência doméstica na forma agravada, perpetrados contra os seus dois filhos menores de idade BB e CC, p. e p. pelo art. 152º nºs 1 e) e 2 a), 4 e 5 do Cód. Penal, nas penas parcelares de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão por cada crime;
- em cúmulo jurídico das concretas penas aplicadas aos menores e à progenitora (três anos de prisão) nos termos do disposto no art. 77º nºs 1 e 2 do Cód. Penal, condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na execução, nos termos do disposto no art. 50º nºs 1 e 5, do CP, por igual período de tempo, subordinada à observância da regra de conduta da obrigação de frequentar programas específicos de violência doméstica, abrangendo os menores, mediante o apoio e fiscalização dos Serviços de Reinserção Social;
- Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de contactos com os seus filhos menores pelo período de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses, proibição que inclui o afastamento do arguido da residência e/ou dos estabelecimentos de ensino e ainda de outros locais frequentados pelos menores, sem prejuízo do que vier a ser determinado pelo Tribunal de Família e Menores quanto às responsabilidades parentais e regime de visitas ao progenitor;
- Condenar o arguido AA no pagamento da quantia de € 1.000,00 a cada um dos seus filhos menores a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelos crimes de violência doméstica que contra eles foram praticados p. e p. pelo art. 152º nºs 1 e) e 2 a) do Cód. Penal, perfazendo o montante global de €2.000,00, ao qual acrescerão juros à taxa legal em vigor a contar da data da notificação da presente decisão e até efetivo e integral pagamento.  

Não é devida tributação – cfr. art. 522º nº 1 do CPP.

Notifique – cfr. art. 425º nº 4 do CPP.




Porto, 05/06/2024
Lígia Trovão
Maria Joana Grácio
Luís Coimbra

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[1] Destacado e sublinhados da nossa autoria.
[2] Os destacados e sublinhados são da nossa autoria.
[3] Os destacados são da nossa autoria.
[4] Da acusação pública (referência 413382371) constava o seguinte: “O arguido quis maltratar física e psicologicamente a sua cônjuge e seus filhos sabendo que com tal conduta lhes causava dor, mas em particular angústia e tristeza, pretendendo que os mesmos se sentissem menorizados e humilhados, o que assim logrou, bem sabendo que os afetava na sua saúde psíquica e física, querendo, ainda, atingi-los na sua dignidade pessoal, o que também alcançou”.
[5] Cfr. Ac. da R.C. de 12/06/2019, no proc. nº 1/19.5GDCBR.C1, relatado por Vasques Osório, disponível in www.dgsi.pt
[6] Cfr. Ac. do STJ de 20/04/2006 no proc. nº 06P363, relatado por Rodrigues da Costa, acedido in www.dgsi.pt
[7] Cfr. Ac. da R.P. de 06/10/2004, no proc. nº 0441909, relatado por Torres Vouga, acedido in www.dgsi.pt
[8] Cfr. proc. nº 08P3781, relatado por Raúl Borges, acedido in www.dgsit.pt
[9] Cfr. M. Simas Santos e M. Leal-Henriques no CPP Anotado, II Volume, 2ª edição, 2000, págs. 740 e 742.
[10] Cfr. M. Simas Santos e M. Leal-Henriques in ob. cit., pág. 741.
[11] Cfr. proc. nº 40/97, apud, M. Simas Santos e M. Leal-Henriques in ob. cit., pág. 777.
[12] Cfr. proc. nº 1433/97, apud, M. Simas Santos e M. Leal-Henriques in ob. cit., pág. 780.
[13] Cfr. Ac. da R.E. de 28/02/2023, no proc. nº 3308/22.0T8STR-A.E1, relatado por Gomes de Sousa, acedido in www.dgsi.pt
[14] Cfr. proc. nº 11/10.8GASJP.C1, relatado por Fernando Chaves, acedido in www.dgsi.pt
[15] Cfr. proc. nº 8049/15.2T8PRT.P1, relatado por Carlos Gil, acedido in www.dgsi.pt
[16] O que significa que todos os atos perpetrados pelo arguido indiretamente contra os seus filhos menores, com início em junho de 2022 (factos provados nºs 5 a 8), ocorreram todos no domínio da lei nova, ficando excluída qualquer ponderação tendo em vista o disposto no art. 2º nº 4, primeira parte, do Cód. Penal.
[17] Cfr. Maria Elisabete Ferreira in “Violência Parental e Intervenção do Estado- A questão à luz do direito português”, págs. 181 a 188.
[18] Sufragando o entendimento de que há um maior desvalor da conduta praticada por alguém sobre quem diretamente impendam “deveres jurídico-familiares, designadamente deveres penais-familiares, considerando o disposto no art. 1874º do Cód. Civil quanto aos deveres de respeito, auxílio e assistência entre pais e filhos”, cfr. Noémia Lima Pinto, in “A emergência de um novo bem jurídico ou a reconfiguração dos tradicionalmente consagrados?”, Janeiro de 2023, pág. 48.
[19] Cfr. Nuno Brandão, in “A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica”, Revista Julgar Online, nº 12, 2010, págs. 15 e 16.
[20] Cfr. ob. cit., pág. 668, nota 18 ao art. 152º.
[21] Não existindo qualquer violação da proibição da dupla valoração, na medida em que a agravação, no mínimo, da moldura sancionatória, no que ao caso destes autos interessa, está equacionada pelo legislador na perspetiva da vítima direta do crime e do arguido, a pessoa diretamente visada com a prática do crime, de modo que as condutas desvaliosas perpetradas na «presença de menor» ligam-se diretamente à outra vítima (pela humilhação, vexame, aflição e dor sofridas pela progenitora por ser agredida na presença dos filhos e receio que essa violência possa alastrar para os filhos e o horror pela impotência de nada poder fazer e também pela insensibilidade do agressor indiferente a esse sofrimento acrescido, o que já não se passará, em igual medida, com outra vítima direta que não seja agredida na presença dos filhos) do mesmo modo que se ocorrer no domicilio comum ou no domicílio desta.
[22] Cfr. “Violência e Abuso – Estado da Arte”, págs. 47, 48 e 85.
[23] Cfr. “Impacto Psicológico dos Maus Tratos e da Violência Indireta sobre Crianças”, UP, setembro de 2010.
[24] Cfr. O poder paternal como cuidado parental e os direitos da criança, in Cuidar da Justiça e de Crianças e Jovens, a função dos Juízes Sociais – Atas do Encontro, Coimbra: Almedina, 2003, pág. 16.
[25] Cfr. proc. nº 1061/21.4GBVNG.P1.S1, relatado por Pedro Branquinho Dias, acedido in www.dgsi.pt
[26] Cfr. proc. nº 7886/15.2TDLSB.L1-3, relatado por A. Augusto Lourenço, acedido in www.dgsi.pt
[27] Cfr. proc. nº 1508/15.9T9BJA.E1, relatado por Ana Barata Brito, acedido in www.dgsi.pt
[28] Cfr. Comentário do CPP à luz da CRP e da CEDH, 5ª edição atualizada, pág. 660, nota 9.
[29] Cfr. Sobre o projeto de Lei nº 779/XVI/2ª (PAN), disponível para consulta em linha aberta na internet.
[30] Cfr. “Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, Coimbra, 1990, págs. 183 e segs.
[31] Cfr. precisamente os arts. 2º a) e 14º nº 6 da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro e subalínea iii) do nº 1 a) do art. 67º-A do CPP.
[32] Cfr. ob. cit., págs. 190 e 191.
[33] Cfr. P. Pinto de Albuquerque in ob. cit., pág. 664.
[34] Cfr. ob. cit. págs. 17 e 18.
[35] Cfr. proc. nº 91/14.7PCMTS.P1, relatado por Pedro Vaz Pato, acedido in www.dgsi.pt
[36] Publicado no DR nº 36/2016, I Série, de 22/02/2016.