Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00036659 | ||
Relator: | FONSECA RAMOS | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL CULPA IN CONTRAHENDO INDEMNIZAÇÃO DANO | ||
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Nº do Documento: | RP200312150355987 | ||
Data do Acordão: | 12/15/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recorrido: | 4 V CIV PORTO | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | REVOGADA A SENTENÇA. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O princípio da liberdade contratual - artigo 405 do Código Civil - não pode ser entendido tão latamente que legitime qualquer conduta das partes durante uma negociação [ninguém é obrigado a contratar, mesmo entrando num processo negocial], mas, não menos certo é que, havendo negociações avançadas de modo a criar expectativas legítimas na consumação do negócio, a parte que as romper sem fundamento, viola deveres de boa-fé e, por tal, constitui-se na obrigação de indemnizar pelo interesse negativo ou de confiança. II - A culpa in contrahendo pressupõe violação culposa de deveres acessórios de conduta. III - Na origem do dever de indemnizar, com fundamento na culpa in contrahendo, não tem, necessariamente, que estar o incumprimento de uma promessa, de um compromisso, basta que as meras declarações proferidas, no "iter contratual" sejam de molde, se não coerentemente continuadas, a conduzir à ruptura negocial, quando a outra parte, legitimamente, não estivesse a contar com a frustração do processo negocial, mas com a sua conclusão - investimento na confiança. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação do Porto “S................, Ldª.”, intentou, em 20.10.1997, pelos Juízos Cíveis do ..........., actualmente .. Vara Cível, acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra: Adriano ................ Pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 10.000.000$00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação e até efectivo reembolso. Para o efeito, alegou ter o Réu assentido que na fracção sua propriedade fosse instalada a sede da Autora que, por isso, lhe pagava, em média 100.000$00 por mês, sem que tivesse sido celebrado, formalmente, um contrato de arrendamento. Assim, ao longo do tempo em que ocupou as instalações, com o assentimento do Réu, edificou, a expensas suas, um pavilhão de 130 m2 no terreno que faz parte da referida fracção e no qual gastou 10.000.000$00, na perspectiva de aí prosseguir a sua actividade social, como veio a acontecer. Tendo a Autora, no âmbito de uma providência cautelar, instaurada pelo Réu, sido forçada a sair do local, dada a inexistência de um contrato de arrendamento, quando o Réu sempre lhe assegurou utilização do mesmo e não exigiu formalização do contrato, causou-lhe os prejuízos decorrente da realização da referida edificação sem que tivesse retirado os benefícios que esperava. De qualquer forma, o património do Réu saiu aumentado pelo valor da referida edificação e à custa do seu empobrecimento. O Réu contestou, dizendo ser verdade que consentiu que a Autora tivesse assento social nas suas instalações, mas que tal foi feito sem qualquer contrapartida. Diz que o pavilhão em causa, sendo uma construção amovível e clandestina, foi por ele custeado e por uma outra empresa de que é sócio, sendo certo que o preço é inferior ao atribuído pelo Autor. Por fim pede a condenação da Autora como litigante de má fé, em multa e indemnização que contemplem, designadamente, os custos do patrocínio do Réu. Na réplica, a Autora mantém ter sido ela quem custeou a construção do pavilhão, que entregou ao Réu quantias para pagamento de renda, sendo que a clandestinidade da construção tem a ver com o facto de a mesmo ter sido levada a cabo sem licença camarária, mas que o Réu se comprometeu a requerer e obter tal licenciamento que, como proprietário, da fracção só a ele cabia. Concluiu, pedindo, ainda, a condenação do Réu como litigante de má-fé, em multa e indemnização, incluindo nesta as despesas do patrocínio. **** Foi proferido despacho saneador - tabelar (fls. 197), determinada a matéria assente e fixada a base instrutória da causa (fls. 197-199), que motivaram as reclamações de fls. 202-203 e 204-205, decididas nos termos do despacho de fls. 214-215. Realizou-se a audiência de julgamento, dentro do formalismo legal, tendo sido decidida a matéria de facto controvertida pela forma exarada no despacho de fls. 657-658. *** A final foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu o Réu do pedido. *** Inconformada recorreu a Autora que, alegando, formulou as seguintes conclusões: 1ª- A Autora peticionou que o Réu fosse condenado a indemnizá-la pela quantia que desembolsou ao custear a construção de um pavilhão numa fracção propriedade dele Réu, onde tinha a sua sede com o assentimento deste, enquanto, também com o assentimento deste, a ocupou para nela exercer o seu objecto social - até ter sido judicialmente forçada a sair da fracção. 2ª- Fê-lo com dois fundamentos de direito: responsabilidade civil pré-contratual e, subsidiariamente, com base em enriquecimento sem causa. 3ª- A aliás douta sentença recorrida rejeitou o mencionado primeiro fundamento “de jure”, com o argumento de que, não se tendo provado que o Réu assegurara à Autora que formalizaria um contrato de arrendamento, “cairia por terra” a pretensão de o Réu ser responsabilizado perante a Autora, a título de “responsabilidade pré-contratual”. 4ª- Trata-se porém, de um raciocínio inexacto, salvo o devido respeito: é que a Autora não imputa ao Réu o incumprimento de uma promessa de celebrar um contrato, pretende, sim, a sua responsabilização por falta da celebração de um contrato que legitimasse formalmente a permanência da Autora na fracção, por esta aí ter feito uma edificação baseada numa relação de confiança que tinha com o Réu. 5ª- Com efeito, para subsistir responsabilidade civil pré-contratual, não é por forma alguma necessário que se verifique o incumprimento de um compromisso ou de uma promessa: basta a existência de uma conduta de um agente que, pela confiança que implica, gera em outrem expectativas quanto à futura conduta desse agente, levando esse outrem a fazer dispêndios baseado nessa confiança que de outra forma não teria feito e de que se vê desembolsado quando o agente trai essas expectativas. 6ª- A questão subjacente à diferença entre as duas situações é sobejamente explicada pelo Prof. Baptista Machado na sua obra “Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium”, como se explanou na presente alegação. 7ª- Encontrando-se, além do mais, provado que nunca se procedeu, pelo menos formalmente, à celebração de um contrato de arrendamento relativo a tal fracção ente ambos (Factos Assentes, al. E), e que a formalização de um contrato entre Autora e Réu nunca se deu por existir uma relação de confiança entre os gerentes da Autora e o Réu (resposta ao ponto 3° da Base Instrutória), 8ª- Segue-se que toda a “conduta comunicativa” do Réu - assentindo na instalação da sede, recebendo dinheiro, assentindo na construção, não formalizando qualquer acordo dada a existência de uma relação de confiança - pela sua pretensão de verdade ou de autenticidade, criou, como é de molde a criar, na Autora, a expectativa de que futuramente ele Réu não a “despejaria”. 9ª- É nesses factos que se traduz a responsabilidade pré-contratual dele Réu perante a Autora, pelos prejuízos que para ela resultaram de o Réu ter traído essa confiança, ao provocar a saída forçada da Autora da sua fracção (cfr. al. E) dos Factos Assentes). 10ª- Ao contrário do afirmado na decisão recorrida, na culpa in contrahendo, as expectativas suscitadas na contraparte não resultam de uma promessa, ou de uma garantia assegurada, mas de uma actuação desconforme a actuações anteriores de um agente, actuação essa violadora de uma confiança que tais actuações legitimamente causaram - podendo afoitamente falar-se de uma responsabilidade “quase negocial” (ob. cit., pág. 366). 11ª- Ao quebrar a “fides” subjacente à ocupação e construção, quebrando o que o que se denomina por “autovinculação que origina a confiança” incorreu perante a Autora em responsabilidade civil pré-contratual, e como tal deverá a esse título ser condenado a ressarcir a Autora pelas quantias que esta despendeu na construção do pavilhão Cód. Civil, art. 227º, n°1. Sem prescindir: 12ª- Para rejeitar o segundo fundamento da Autora - enriquecimento sem causa - a sentença recorrida sustentou que a Autora poderia ter lançado mão do instituto da indemnização por benfeitorias, pelo que, tendo aquele instituto carácter residual, estar-lhe-ia vedado invocá-lo. 13ª - Porém, sempre com todo o respeito, não se trata de uma focagem correcta nem rigorosa da situação: é que - desde logo - afigura-se ser inexacto que o custeio da construção do pavilhão em causa por parte da Autora se possa configurar como “benfeitorias” feitas por esta na fracção do Réu. 14ª- A aliás douta sentença recorrida suscita, desde logo, a dúvida sobre a respectiva existência, quando afirma “(...) parecendo não estar em causa propriamente uma beneficiação do que existe (próprio das benfeitorias), mas antes a construção de uma coisa nova (...)”, mas conclui em seguida, por forma inexacta, traduzir-se essa edificação em “benfeitorias”. 15ª- Conclusão inexacta por - desde logo - bastar aquela afirmação para ficar arredada a hipótese de se configurar a edificação como benfeitorias, uma vez que, consistindo determinada obra numa inovação (como é o caso) e não unicamente numa melhoria, fica excluído o recurso ao regime legal das benfeitorias (cfr. Vaz Serra, anotação a Ac. STJ, in RLJ 108-266). 16ª- Por outro lado, e como é igualmente referido, e bem, na douta sentença recorrida, só podem ser considerados como benfeitorias os melhoramentos feitos em coisa por pessoa que a ela está ligada em consequência de uma relação ou vínculo jurídico; contudo, a mesma sentença, embora afirme em abstracto a existência desse vínculo, fica sem o definir ou concretizar, limitando-se à frase “(...) independentemente de se saber se no âmbito de um contrato de arrendamento, válido ou não, se comodato, etc.)” 17ª- Na realidade, não se pode curialmente afirmar que existia um vínculo jurídico da Autora relativamente ao bem do Réu; mesmo que se pudesse entender estar configurado um contrato de arrendamento nulo por falta de forma, sendo o mesmo nulo, não poderá traduzir a existência de um vínculo jurídico; 18ª- também não poderá classificar-se a situação como de comodato, uma vez que nunca um contrato de arrendamento nulo se poderia converter em comodato, e igualmente estar arredada tal hipótese face ao carácter gratuito de tal figura, que no caso não se verifica, face às entregas de quantias pela Autora ao Réu. 19ª- Em consequência, teremos de concluir que a Autora era uma simples detentora do bem (sendo aliás essa a razão do decretamento do procedimento que a forçou a sair), e é seguro que os “melhoramentos” feitos na coisa pelo simples detentor não podem ser considerados benfeitorias (cfr. Ac.s RL. 1989.10.24, in CJ 1999, IV-155; RP. 1996.05.02, in CJ 1996, III-175; STJ, 1996.02.08, CJ 1996, I-80). 20ª - Pelo que não poderia (nem deveria) a Autora lançar mão do instituto do direito ao eventual levantamento de benfeitorias, uma vez que a construção do pavilhão em causa nunca por nunca poderá traduzir-se em tal figura. 21ª- Por outro lado, ainda, nunca seria pela figura da acessão (referida de passagem na sentença face ao facto de a construção se traduzir em obras feitas em “prédio” (fracção) alheio) que a Autora poderia ver satisfeita a pretensão expressa na acção, uma vez que tal figura é uma forma de aquisição do direito de propriedade sobre imóveis (Cód. Civil, art. 1.340°), e como tal trata-se de uma faculdade, que não um ónus ou uma obrigação de quem construiu em terreno alheio. 22ª- Entendimento contrário redundaria em que quem construiu em prédio alheio ficar forçado a adquirir esse prédio - que não pretende adquirir -, pagando o respectivo valor á data da incorporação - que não pretende desembolsar! . 23ª- Ou seja: o instituto da acessão nunca seria forma de a Autora ser reembolsada do dispêndio que fez - pelo que apenas restava à Autora, subsidiariamente ao pedido formulado com base em responsabilidade civil pré-contratual, responsabilizar o R. com base no instituto residual do enriquecimento sem causa. 24ª- Por via do desembolso que a Autora fez ao custear a construção do pavilhão, o Réu ficou com este sem ter pago por ele um cêntimo sequer, ou seja, sem qualquer contrapartida - dessa forma tendo ilicitamente enriquecido, sem qualquer causa justificativa, o seu património, à custa do correlativo empobrecimento da Autora (Cód. Civil, art. 473°); 25ª- O dano da Autora cifra-se na quantia que desembolsou para a construção do pavilhão em questão, ou seja, a mencionada quantia de 7.983.144$00, ou seja, € 39.819,75, pelo que, com o fundamento principal ou com o subsidiário, deveria o R. ter sido condenado a pagar à Autora essa importância, acrescida dos juros de mora à taxa legal a contar da citação para a acção e até efectivo pagamento (Cód. Civil, arts. 804°, 805° e 559°). 26ª- Assim não tendo entendido, a aliás douta sentença violou, salvo o devido respeito, os normativos citados nas precedentes 11ª e 24ª conclusões. Nestes termos, deverá o recurso merecer provimento e, em consequência, ser revogada a respeitável sentença proferida, em conformidade com as conclusões que antecedem. O Réu contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença. *** Colhidos os vistos legais, cumpre decidir tendo em conta a seguinte matéria de facto: Da Matéria Assente: 1) - A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços de informática, bem como á comercialização de material de informática e Software - (al. A)); 2) - A Autora foi constituída pelo Réu, por Eduardo ..........., Mafalda ........... e Eduardo M..........., sendo que, actualmente, o Réu já não é sócio da mesma, tendo a Autora quatro sócios, sendo Jorge ............ e a referida Mafalda com uma quota, cada, de 2.000.000$00 e os referidos Eduardo ............ e Eduardo M............., cada um com uma quota de 1.000.000$00, conforme consta da certidão de fls. 12 a 14 - (al. B)); 3) - O Réu assentiu que na fracção que lhe pertence, sita na Rua ..........., n°..., ......, designada pela letra “A” e correspondente a um rés-do-chão e logradouro, fosse instalada a sede da Autora, quer por ocasião da constituição da Autora quer após a alteração de sócios referida em 2) a até, pelo menos, fim do mês de Fevereiro de 1997 - (al. C)); 4) - Nunca se procedeu, pelo menos formalmente, à celebração de um contrato de arrendamento relativo a tal fracção entre Autora e Réu - (al. D)); 5) - O Réu provocou a saída forçada da Autora da fracção, requerendo a entrega judicial das instalações - (al. E)); 6) - Na fracção referida em C) foi efectuado um pavilhão, sem licença camarária - (al. F)). Da Base Instrutória: 1 - A Autora fez pagamentos ao Réu - (resposta ao facto sob o nº2); 2 - A Autora pagava ao Réu montantes pela utilização da fracção, sendo que nunca se formalizou tal acordo por existir uma relação de confiança entre os gerentes da Autora e o Réu - (resposta ao facto sob o nº3); 3 - A Autora ao longo do tempo em que ocupou a fracção com o assentimento do Réu edificou um pavilhão de 130 m2 de área coberta de terreno que faz parte da fracção, no qual despendeu 7.983.144$00 incluindo IVA - (resposta ao facto sob o nº4); 4 - A Autora fê-lo na perspectiva de continuar a exercer a sua actividade nesse local - (resposta ao facto sob o nº5); 5 - A Autora apenas usufruiu a construção que fez durante um curto período de tempo - (resposta ao facto sob o nº7); Fundamentação: A questão objecto do recurso, delimitada pelo teor das conclusões do recorrente que, afora as de conhecimento oficioso, recortam o âmbito do recurso, consiste em saber se, no caso concreto, o Réu incorreu no dever de indemnizar, por responsabilidade pré-contratual, ou, se ao caso não for aplicável tal instituto, se a sua conduta é abarcada pela proibição do enriquecimento sem causa (questão esta suscitada, também, no recurso a título subsidiário). Dispõe o art. 227º do Código Civil: “1.Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte. 2. A responsabilidade prescreve nos termos do artigo 498º.”. “A responsabilidade pré-contratual pressupõe uma conduta eticamente censurável, e de forma acentuada, em termos idênticos aos do abuso do direito...” Ac. do STJ, de 9.2.1999, in CJSTJ, 1999, I, 84. “I – O instituto da responsabilidade pré-contratual ou pré-negocial ou da culpa in contrahendo fundamenta-se na tutela da confiança do sujeito na correcção, na honestidade, na lisura e na lealdade do comportamento da outra parte, quando tal confiança se reporta a uma conduta juridicamente relevante e capaz de provocar-lhe danos. II – Em aplicação do princípio da boa fé em que assentam os artigos 239º, 334º, 437º, nº1, e 762º, nº2, do Código Civil, dispõe o nº1 do artigo 227º do mesmo Código que quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação, dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar a outra parte...”– Ac. do STJ, de 9.1.1997, in BMJ, 457, 308. O Professor Menezes Cordeiro, na sua obra, “Da Boa Fé no Direito Civil”, Colecção Teses, depois de referir que a concepção da culpa in contrahendo acolhida no art. 227º do Código Civil encerra os deveres de protecção, de informação e de lealdade, escreve: “Os deveres de protecção obrigam a que, sob pretexto de negociações preliminares, não se inflijam danos à contraparte: danos directos, por um lado, à sua pessoa e bens, embora esta situação, em Portugal, possa ser solucionada pelos esquemas da responsabilidade civil, em termos abaixo precisados; danos indirectos, por outro, derivados de despesas e outros sacrifícios normais na contratação revestirem, por força do desenvolvimento subsequente do processo negocial, uma característica de anormalidade. Os deveres de informação adstringem as partes à prestação de todos os esclarecimentos necessários à conclusão honesta do contrato. Tanto podem ser violados por acção, portanto com indicações inexactas, como por omissão, ou seja, pelo silêncio face a elementos que a contraparte tinha interesse objectivo em conhecer. O dolo negocial - art. 253º/1 - implica, de forma automática, a violação dos deveres de informação. Mas não a esgota: pode haver violação que, não justificando a anulação do contrato por dolo, constitua, no entanto, violação culposa do cuidado exigível e, por isso, obrigue a indemnizar por culpa in contrahendo. Os deveres de lealdade vinculam os negociadores a não assumir comportamentos que se desviem de uma negociação correcta e honesta [...]”. “Ultrapassada pelas legislações modernas a fase inicial (devido aos estudos de Jehring) em que este tipo de responsabilidade se colocava apenas a respeito da celebração de negócios nulos ou anuláveis, a evolução legislativa orientou-se no sentido de alargar cada vez mais os horizontes da responsabilidade pré-negocial “até englobarem no seu conceito, quer as hipóteses de negócio inválido e ineficaz, quer aquelas em que se haja estipulado um negócio válido e eficaz, surgindo, todavia, do processo formativo danos a reparar, quer ainda, as situações em que não se tenha celebrado negócio algum, por virtude de ruptura de fase negociatória ou decisória” (Cfr. Prof. Almeida Costa - Direito das Obrigações – 4ª edição - 203) – Ac. do STJ, de 13.5.2003 acessível no sítio da Internet- DGSI- Sumários do STJ, número convencional JSTJ000 de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Moreira Alves. “O princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo e a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem” - Baptista Machado in, RLJ 117-232, [...]. “Toda a conduta, todo o agir ou interagir comunicativo, além de carrear uma pretensão de verdade ou de autenticidade (de fidelidade à própria identidade pessoal) desperta nos outros expectativas quanto à futura conduta do agente” e “todo o agir comunicativo implica uma auto-vinculação (uma exigência de fidelidade à pretensão que lhe é inerente), na medida em que desperta nos outros determinadas expectativas quanto a uma conduta futura. Mas esta auto-vinculação não tem que ter em todos os casos a mesma força” (p. 233). “Do ponto de vista estrito do direito, parece-nos que a tutela da confiança só tem razão de ser quando a conduta contrária à “fides” causar ou for susceptível de causar danos a outrem” - Baptista Machado, in RLJ 117-295. O dano indemnizável é o interesse negativo, “o dano resultante de violação da confiança de uma das partes na probidade e lisura do procedimento da outra por ocasião dos preliminares e da formação do contrato” (Almeida Costa, in RLJ, 116-206). “Na responsabilidade pré-negocial protege-se a confiança depositada por cada uma das partes na boa-fé da outra e consequentes expectativas quanto à futura celebração do contrato ou à sua validade e eficácia”. Antunes Varela in “Direito das Obrigações”, Vol. II, pág. 14, cita a definição que do conceito dá Diez Picado é um “arquétipo de conduta social: a lealdade nas relações, o proceder honesto, esmerado, diligente”. A culpa in contrahendo consagrada normativamente no Código Civil de 1966 coenvolve deveres de protecção, de informação e de lealdade. O dever de lealdade implica a proibição de interrupção de negociações em curso, sobretudo se a conduta do infractor tiver antes contribuído para que o seu interlocutor contratual tenha uma real e fundada expectativa na consumação do contrato, ou seja, o agente que rompe as negociações trai o investimento de confiança que com a sua conduta incutiu na outra parte. Como ensina o Professor Menezes Cordeiro in, “Da Boa-Fé no Código Civil”, Colecção Teses, págs. 583-584: “A culpa in contrahendo funciona, assim, quando a violação dos deveres de protecção, de informação e de lealdade conduza à frustração da confiança criada na contraparte pela actividade anterior do violador ou quando essa mesma violação retire às negociações o seu sentido substancial profundo de busca de um consenso na formação de um contrato válido, apto a prosseguir o escopo que, em termos de normalidade, as partes lhe atribuam”. “[...] Não há qualquer motivo para a limitar a negócios consensuais: a lei não faz restrição, não há negociações sujeitas a forma e os negócios solenes exigem, por maioria de razão, negociações sérias e honestas; tão pouco há motivo para eliminar a responsabilidade quando a parte prejudicada tenha conhecimento do evento danoso, salvo, como é natural, quando ela, tendo presentes todas as consequências de tal evento e a sua intensidade, dispense, de modo objectivo, a efectivação de informação ou não integre uma situação de confiança...”. O princípio da liberdade contratual – art. 405º do Código Civil – não pode ser entendido tão latamente que legitime qualquer conduta das partes durante uma negociação [ninguém é obrigado a contratar mesmo entrando num processo negocial], mas, não menos certo é que, havendo negociações avançadas de modo a criar expectativas legítimas na consumação do negócio, a parte que as romper sem fundamento, viola deveres de boa-fé e, por tal, constitui-se na obrigação de indemnizar pelo interesse negativo ou de confiança. A culpa in contrahendo pressupõe violação culposa de deveres acessórios de conduta que, muitas vezes, se inscreve no âmbito de condutas abusivas do direito – art. 334º do Código Civil. Na origem deste dever de indemnizar, com fundamento na culpa in contrahendo, não tem, necessariamente, que estar o incumprimento de uma promessa, de um compromisso, basta que as meras declarações proferidas, no “iter contratual” sejam de molde, se não coerentemente continuadas, a conduzir à ruptura negocial, quando a outra parte, legitimamente, não estivesse a contar com a frustração do processo negocial, mas com a sua conclusão –investimento na confiança. Como ensina o Professor Baptista Machado em estudo publicado em “Obra Dispersa” Vol. I, págs.351/352. “Desta “autovinculação” inerente à nossa conduta comunicativa derivam ao mesmo tempo regras de conduta básicas, também postuladas pelas exigências elementares de uma ordem de convivência e de interacção, que o próprio direito não pode deixar de tutelar, já que sem a sua observância nem essa ordem de convivência nem o direito seriam possíveis. Donde poderíamos já concluir que as próprias “declarações de ciência” ou o simples dictum (que não chega ser um promissum) podem vincular, quer porque envolvem uma responsabilização pela pretensão de verdade que lhes é inerente, quer pelos efeitos que podem ter sobre a conduta dos outros que acreditam em tais declarações[...]. Do exposto podemos também concluir que o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo e que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem. Assim tem de ser, pois, como vimos, poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens.” Após estas necessárias considerações de enquadramento doutrinal e jurisprudencial sobre o instituto da culpa in contrahendo, ou responsabilidade pré-contratual, vejamos de perto o caso dos autos. O Réu, enquanto sócio da Autora, assentiu a que numa fracção autónoma que lhe pertencia, fosse alojada a sede da Autora. Esta pagava-lhe montantes pela utilização da fracção, nunca se chegando a formalizar qualquer contrato de arrendamento por “existir uma relação de confiança entre os gerentes da Autora e o Réu”. Provou-se, ainda, que a Autora, ao longo do tempo em que ocupou a fracção, com o assentimento do Réu, edificou um pavilhão com 130 m2 de área coberta de terreno que faz parte da fracção, no qual despendeu 7.983.144$00 incluindo IVA. A Autora fê-lo na perspectiva de continuar a exercer a sua actividade nesse local. O Réu provocou a saída forçada da Autora da fracção, requerendo a entrega judicial das instalações e, como resulta do procedimento cautelar de restituição provisória de posse – cfr. fls. 23 a 46, invocou que a Autora ocupava as instalações por mera tolerância, omitindo que recebia “montantes” por tal ocupação. Temos, assim, que a Autora ao fazer pagamentos ao Réu, por causa da instalação da sua sede em propriedade deste, com quem nunca chegou a formalizar qualquer contrato de arrendamento, tinha uma legítima expectativa em o celebrar, tanto mais, que apenas por razões de confiança, entre a Autora e o Réu, tal não ocorreu. Entretanto, o Réu retirou vantagem económica dessa ocupação, não só porque recebia pagamentos – a intenção (poderemos dizê-lo) corresponderia ao pagamento de renda ou preço locativo – o que logo exclui a figura do comodato, contrato gratuito por definição, art.1129º do Código Civil - além disso, o Réu beneficiou da construção de um pavilhão na qual a Autora despendeu 7.983.144$00. Ora, a ocupação remunerada e a construção do pavilhão tinham, numa perspectiva negocial, como contrapartida, a formalização de um contrato que, na nossa óptica, só poderia ser de arrendamento (recorde-se que só não foi formalizado porque as relações de confiança existentes não apontaram para a urgência em o formalizar). Numa perspectiva de adequação social, quando as partes confiam nos seus interlocutores contratuais, durante o “percurso negocial”, descuram procedimentos de segurança, mormente, a formalização ou solenização de contratos. No caso em apreço, o facto de o contrato de arrendamento, mesmo a dar-se como assente, como celebrado seria nulo, por inobservância da forma legalmente prescrita – mas tal circunstância não constitui óbice à aplicação do instituto da responsabilidade pré-contratual. Justamente aí é que está a censura que pode ser feita à parte que, por culpa sua, frustra a celebração do contrato na forma devida, mas não se coíbe de, prevalecendo-se das relações de confiança, aproveitar as vantagens da situação irregular, que faz protelar, até que, surpresamente, provoca a ruptura das negociações. Permitimo-nos citar de novo Menezes Cordeiro quando, ao ponderar sobre o âmbito de aplicação do instituto, escreve lapidarmente: – “Não há qualquer motivo para a limitar a negócios consensuais: a lei não faz restrição, não há negociações sujeitas a forma e os negócios solenes exigem, por maioria de razão, negociações sérias e honestas”. Na sentença recorrida, afirmou-se que a Autora “tinha uma a perspectiva de continuar a exercer a sua actividade nas instalações do R., tal perspectiva não se alicerçava em mais que uma relação de confiança entre os gerentes da Autora e o Réu e já não, como pretende, numa garantia deste na formalização do contrato arrendamento”. Daqui parte a sentença para a conclusão de que, não havendo arrendamento válido e estando a ocupação apenas assente numa relação de confiança, a Autora estaria à mercê da quebra dessa relação “inclusive pela invocação da nulidade do contrato”. Com o devido respeito discordamos. O facto de o Réu poder, no quadro circunstancial descrito, “violar a relação de confiança e o dever de informação”, já que podia invocar a nulidade do contrato [para a qual contribuiu], é que evidencia a sua conduta desleal, por se prevalecer de uma situação que lhe conferia supremacia jurídica mas, que sendo invocada no quadro referido, é profundamente anti-ética, por lesiva da boa-fé e abusiva do direito, revelando autêntico “venire contra factum proprium”. Houve clara frustração da confiança, quando o Réu, apesar do recebimento de quantias pagas pela Autora pela ocupação, e de saber que esta construíra um pavilhão a expensas suas, é desalojada das instalações, porque o Réu pôde invocar a inexistência de um contrato de arrendamento, que só não existiu precisamente porque, traindo o investimento de confiança da Autora, o não formalizou, podendo, assim, invocar a nulidade do contrato e a falta de título da ocupação, tudo isto sem curar de atender à posição da Autora, que construiu o pavilhão que, agora e desde a sua saída, apenas beneficia o Réu; isto para lá da irrelevante consideração, aqui e agora, do carácter clandestino, ou não, da edificação. Temos, assim, que o Réu ao frustrar a expectativa da Autora na celebração do contrato de arrendamento e ao tornar-lhe impossível a fruição do pavilhão, que construiu a expensas suas, para no local ter a sua sede, agiu culposamente, frustrando a consumação dos acordos negociais que vinham tratando, pelo que incorreu em responsabilidade civil. Foi o Réu quem, culposamente, procurou ou quis evitar a não celebração do contrato de arrendamento, ou se se admitir que foi celebrado, provocou a respectiva nulidade. Por tal, tem de “responder pelos danos que culposamente” causou à Autora – parte final do nº1 do art. 227º do Código Civil. A indemnização devida reporta-se ao dano negativo ou de confiança de modo a colocá-la na posição em que estaria se não fora a conduta do Réu ao frustar a conclusão ou validade do contrato de arrendamento. Esse dano consubstancia-se no facto de a Autora ter despendido a quantia de 7.983.144$00, actualmente € 39.819,75, relativa à construção de um pavilhão na propriedade do Réu e de que este ficou a beneficiar. Sobre tal montante incidem juros de mora desde a citação – 4.2.1998 – fls. 55 – nos termos das disposições conjugadas dos arts. 804º, nº2, 805º, nº1, 806º, nº1, e 559º do Código Civil. Os juros serão contados à taxa legal anual de 10% enquanto vigorou a Portaria 1171/95, de 25.9; de 7% desde o início de vigência da Portaria 263/99, de 21.4 e à taxa de 4%, desde 1 de Maio até efectivo reembolso – Portaria 291/2003, de 8 de Abril. Face à solução a que se chegou e uma vez que a pretensão do apelante tem acolhimento ao abrigo do instituto da responsabilidade civil por “culpa in contrahendo”, fica prejudicada a questão subsidiariamente colocada pelo recorrente – a do enriquecimento sem causa. Decisão: Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, condenando- se o Reú/apelado a pagar à Autora/apelante, a quantia de € 39.819,75, acrescida de juros de mora, desde a citação até efectivo reembolso, nos termos antes referidos. Custas, pela apelante e pelo apelado, em ambas as instâncias, na proporção do decaimento. Porto, 15 de Dezembro de 2003 António José Pinto da Fonseca Ramos José da Cunha Barbosa José Augusto Fernandes do Vale |