Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
380/19.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLA FRAGA TORRES
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
INSOLVÊNCIA DE HERANÇA INDIVISA DO DEVEDOR
Nº do Documento: RP20241125380/19.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 11/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A declaração de insolvência da herança indivisa por óbito do primitivo devedor constitui, à luz do art. 88.º do CIRE, fundamento para suspender a acção executiva movida por um credor daquele contra os herdeiros do mesmo para satisfação do seu crédito pelas forças da herança.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 380/19.4T8PRT.P1 – Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 2



Relatora: Carla Fraga Torres
1.º Adjunto: Manuel Fernandes
2.º Adjunto: Eugénia Maria Moura Marinho da Cunha




Acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:




I. Relatório.

Recorrente: AA
Recorridos: BB; CC; DD; EE; FF e GG

AA
apresentou acção executiva contra
BB; CC; DD; EE; FF e GG, únicos e universais herdeiros, enquanto filhos, de EE, previamente falecido, que, por força de um empréstimo que a própria lhe efectuou, subscreveu a seu favor uma confissão de dívida no valor equivalente a 19.951,92 € que, ainda em vida do mesmo, se venceu.
Mais alegou que, por força da morte de EE a dívida transmitiu-se para aqueles seus legítimos herdeiros a favor de quem, enquanto sucessores do mesmo, foi registada a propriedade do imóvel que identifica.
A executada CC deduziu embargos que foram julgados improcedentes, com o consequente prosseguimento da execução como requerido no requerimento executivo, por sentença transitada em julgado.
Por requerimento de 7/03/2024, a executada CC requereu que os bens/direitos a penhorar se restrinjam aos bens que pertençam à herança ilíquida e indivisa por óbito de EE e subsequentemente juntou certidão judicial da declaração de insolvência da herança ilíquida e indivisa do mesmo da qual consta decisão judicial neste sentido datada de 1/03/2023 proferida no Proc. 255/24.5T8STS do Juízo de Comércio de Santo Tirso, Juiz 6.
Em Resposta a Exequente opôs-se à pretensão da executada.
A 20/05/2024 o Tribunal proferiu o despacho seguinte:
“Quanto aos bens a penhorar nestes autos, os mesmos devem restringir-se aos bens que pertençam à herança ilíquida e indivisa por óbito de EE, falecido a 05 de Abril de 2016.
Porém, pese embora a herança ilíquida e indivisa não seja parte nos presentes autos e, por essa razão, não é de suspender a execução nos termos do disposto no artº 88º, do CIRE, a verdade é que os ora executados o são na qualidade de herdeiros do autor da herança e só podem ser penhorados bens que lhes caibam no inventário, o que equivale a dizer que este configura questão prejudicial e que fundamenta que a execução seja suspensa até que se determine se existiram bens partilhados.
Pelo exposto, suspendo a instância até a encerramento do processo de insolvência do primitivo executado falecido”.
Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a exequente, que, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões:
A. Entende a recorrente que não deve ser a instância suspensa até a encerramento do processo de insolvência do primitivo executado falecido;
B. Desde logo porque a herança ilíquida e indivisa não é parte nos presentes autos;
C. Depois, porque a penhora de eventuais bens que lhes caibam no inventário, não configura questão prejudicial que fundamente que a execução seja suspensa até que se determine se existiram bens partilhados;
D. Não se está perante qualquer processo de inventário ou de insolvência, que se encontre pendente, cujo desfecho pudesse, hipoteticamente, pôr em causa, enquanto questão prévia, a realização coativa da obrigação constante do tulo executivo, que está na base dos presentes autos;
E. Nestes e autos o direito está dito, tendo já precludido o direito a deduzir embargos de executado;
F. O referido processo de insolvência, já identificado nestes autos, também não representa questão prévia, pois que, não foi intentado aquele antes de ser instaurada a presente execução - esta em 07-01-2019, aquele já em 2024;
G. A suspensão da instância com fundamento na pendência de causa prejudicial não é aplicável à ação executiva, vista a natureza desta, em cujo âmbito não há que proferir decisão sobre o fundo da causa, por já se encontrar declarado o direito à prestação a realizar coativamente;
H. Também não consubstancia materialmente questão prévia, uma vez que quem é executado, como bem refere a douta decisão e se aceita, são os herdeiros do autor da herança a qual, no que se refere a bens imóveis, móveis, incluindo, quantias em dinheiro, já foi partilhada pelos aqui executados;
I. Sendo o ali referido único bem existente ainda da herança, alegadamente por partilhar, um jazigo, um bem impenhorável;
J. Não há lugar à suspensão da instância por vontade do juiz com fundamento na prejudicialidade de questão a apreciar noutra ação, se o decidido nesta não pode formar caso julgado material na ação suspensa;
K. A suspensão da instância, com fundamento em causa prejudicial, depende da verificação do nexo de prejudicialidade, o qual ocorre quando a decisão daquela possa destruir os fundamentos ou a razão de ser da causa dependente;
L. Existe prejudicialidade quando na causa prejudicial se discuta, em via principal, uma questão que seja essencial para a decisão da prejudicada e que nesta não possa ser resolvida a título incidental;
M. A relação de dependência tem de ocorrer perante outra causa “já proposta”, o que significa que a causa prejudicial tem de ser anterior à causa a suspender, só podendo motivar a suspensão ações que tenham sido instauradas anteriormente à ação em causa;~, o que não é, de todo, o caso dos autos;
N. Por outro lado, exige-se a comprovação de uma efectiva relação de dependência, de tal modo que a apreciação do litígio esteja efectivamente condicionada pelo que venha a decidir-se na ação prejudicial, a qual constitui, pois, um pressuposto da outra decisão (v.g. ação para cumprimento de um contrato e ação em que se invoque a nulidade desse contrato),
O. O momento processual que permita a dedução de embargos à execução, formando-se, pois, caso julgado material para a executada/embargante, quer no que respeita ao título ou a qualquer outro fundamento legal, que é vasto já precludiu,
P. Foram julgados improcedentes os embargos deduzidos nos autos, por sentença já transitada em julgado;
Q. O recurso à ação de insolvência não é, sequer, o meio processual adequado para defesa do património dos executados, como resulta, desde logo, da não correspondência entre as partes em ambos os processos;
R. O executado/opoente de um articulado no âmbito da oposição à execução, o requerimento/petição de embargos, nele está obrigado a deduzir/concentrar todos os fundamentos de oposição/defesa perante a exequente, incluindo os factos essenciais principais/nucleares de suporte;
S. Também no que se refere à oposição à penhora, não foi deduzido qualquer fundamento comparável com o que possa ser uma impenhorabilidade, com exercício do contraditório;
T. Sendo o único incidente, até ao momento, deduzido neste particular, também ele, julgado improcedente;
U. Pelo que sempre deveria prosseguir a presente execução;
V. Sem prescindir, não se poderá aplicar o disposto no argo 793.º CPC, sobre a suspensão da execução nos casos de insolvência, pela já referida não coincidência,
sequer, entre os requerentes deste e os executados nos presentes autos;
W. Por outro, lado, não estamos perante qualquer ação de inventário onde se esteja a apurar que bens estão por partilhar;
X. Só na sede própria e através de meios e defesa previsto para a ação executiva e nela sujeitos ao contraditório e à defesa da partes, se podem discutirr tais factos;
Y. Como resulta da lei, e ainda sem prescindir de quanto se disse, pode, eventualmente, o tribunal decidir pela suspensão da instância, quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.
Z. Mais dizendo que, não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão, se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens;
AA. Ora, não é o caso dos presentes autos,
BB. Faz-se, notar, ademais, que os executados, que beneficiaram, em larga escala do direito que tiveram à herança, já partilhada, de bens imóveis e móveis, de seu pai, o que têm demonstrado à saciedade, quer nos requerimentos processualmente inadmissíveis, quer nas improcedências das pretensões que foram deduzindo, tentam, até agora, sem êxito, furtar-se ao pagamento das obrigações que lhes são imputáveis, a todo o custo, usando o processo indevidamente, lançando mão de todos os meios legais que lhe ocorrem, como resulta ilustrado pelo lato âmbito de impugnação vertido nos requerimentos que foi juntando aos autos principais, e bem assim nos apensos.
CC. A que acresce a deduzida ação de “pseudo” insolvência supra identificada, para partilha de um jazigo, pasme-se, e onde pretendem ver discutido ainda, findos os embargos de executado – e já fora da esfera executiva –, desde logo, eventual matéria de oposição à execução, já precludida,
DD. Tudo, compatível com uma atuação intencional para obstaculizar a justiça e para se furtarem intencionalmente as suas obrigações.
EE. Pelo que, também por isso, não deve ser suspensa a presente execução, prosseguindo os autos para penhora de bens partilhados e já na posse dos executados, com todas as consequências legais.
FF. Foram violados os argos 272.º. nºs 1 e 2, 276.º, 728.º, 731º., 732.º 1 e 2, e 729.º, 784.º, 785.º e 793.º, todos do CPC,
GG. A aplicação correta, dos referidos argos 272.º. nºs 1 e 2, 276.º, 728.º, 731º., 732.º 1 e 2, e 729.º, 784.º, 785.º e 793.º, deveriam ter sido interpretados no sentido da não suspensão da presente ação, com todas as consequências legais.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com o efeito e o modo de subida adequados.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II. Questões a decidir.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão que se coloca a este Tribunal é a de saber se, declara a insolvência da herança indivisa do devedor, existe fundamento para suspender a acção executiva movida contra os seus herdeiros.
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III. Fundamentação de facto.
Os factos a considerar são os que resultam do relatório que antecede.
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IV. Fundamentação de direito.

Delimitada a questão essencial a decidir, nos termos sobreditos sob o ponto II, cumpre apreciá-la.
Do circunstancialismo de que dispomos verifica-se que o título executivo que serve de base à presente execução é um documento particular de reconhecimento de dívida por parte de EE, entretanto falecido, de que os ora executados, enquanto filhos, são os únicos e universais herdeiros.
Conforme se deixou expresso em acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/11/2020 proferido nos embargos de executado apensos a estes autos principais “o falecimento do devedor não importa, salvo em casos excepcionais, que ora não relevam, a extinção da dívida contraída pelo de cujus, passando, com o falecimento do devedor, essa relação jurídica passiva para a titularidade dos respectivos herdeiros, que responderão, em certos termos, pela dívida contraída - cfr. artigos 2068º e 2071º, do Cód. Civil.
Este princípio geral, que temos por indiscutido, tem expressão, em termos substantivos nos artigos 2024º, 2025º, n.º 1 e 2032º, n.º 1, todos do Cód. Civil [7], e tradução, em termos adjectivos, nos artigos 53º e 54º, n.º 1, do actual CPC (correspondentes aos anteriores artigos 55º e 56º, do Código de 1961), preceituando aquele artigo 54º, n.º 1 que “ [T]endo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão. “ (sublinhados nossos)
Destarte, pressupondo a existência e exigibilidade da obrigação exequenda, pois que a questão da sua existência ou exigibilidade é matéria de direito substantivo e não de direito adjectivo, para assegurar a legitimidade passiva na execução dos demandados, tem o exequente que dirigir a execução contra os sucessores do devedor falecido, como fez a apelante no seu requerimento executivo inicial, e deduzir logo, no mesmo requerimento, os factos demonstrativos dessa sucessão, como também se mostra efectuado pela exequente/apelante – vide requerimento inicial executivo.
Portanto, a esse nível, a instância executiva mostra-se absolutamente válida e regular, inexistindo qualquer fundamento ao nível de uma pretensa ilegitimidade passiva dos executados e da ora embargante/apelada”.
Explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, “ Em tais circunstâncias, é imposto ao exequente algo mais do que a mera solicitação do cumprimento coercivo da obrigação exequenda, devendo alegar no requerimento executivo factos reveladores da sua legitimidade ativa ou da legitimidade passiva do executado (v.g. a morte e o vínculo sucessório…), em termos semelhantes aos que devem ser respeitados quando tal ocorre na acção declarativa (habilitação-legitimidade, nos termos dos arts. 351.º e ss.)…” (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2018, Reimpressão, Almedina, pág. 86).
Na situação dos autos, como já foi salientado pelo identificado acórdão do apenso de embargos de executado, no requerimento executivo a exequente alegou justamente, como lhe era exigível, a morte do primitivo devedor e a fonte da vocação sucessória dos aqui executados que, nos termos do art. 2024.º do CC, foram chamados à titularidade das relações jurídicas patrimoniais do falecido pai com a consequente devolução dos bens que a este pertenciam.
É que, como salientam Pires de Lima e Antunes Varela, “…na sucessão hereditária não são propriamente os bens que se deslocam …do património de uma pessoa para o de outra, mas sim o sucessor (especialmente o herdeiro, o heres) quem é chamado a ocupar o lugar – o trono, a posição de titular, a antiga persona – do finado…As relações jurídicas, após a morte do seu titular, continuam a ser as mesmas, quer a lei dizer no seu retrato ontológico do fenómeno; o que muda é o sujeito – e apenas o sujeito- delas…” (in “Código Civil Anotado”, Vol. VI, Coimbra Editora, págs. 3 e 5).
Assim, como também explica Inocêncio Galvão Telles, “Posto perante este facto de um património perder o seu titular por virtude do falecimento, o ordenamento jurídico atribui – no sentido de oferecer – esse património ou os bens que o constituem a outra ou outras pessoas, para que não fiquem sem dono. A isto se dá o nome de devolução da sucessão. O ordenamento jurídico chama essas pessoas a suceder, deferindo-lhes os bens” (“in “Direito das Sucessões”, Noções Fundamentais, 6.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 18).
E sendo complexo o fenómeno sucessório, ao chamamento segue-se no iter sucessionis o acto complementar denominado de aceitação, posto que “a lei não impõe aos chamados o benefício. Limita-se…a oferecer-lho. Eles são livres de o querer ou não” (Galvão Telles, in loc. cit., pág. 18) e, portanto, a pessoa chamada à herança só a adquire com a aceitação a que se refere o art. 2050.º do CC.
Em todo o caso, a herança constitui um património autónomo, porquanto tem, nos termos do art. 2068.º do CC, relativo à responsabilidade da herança, dívidas próprias que se distinguem das dívidas do herdeiro que só se podem fazer pagar pelos bens da herança, como, em termos adjectivos, se encontra previsto no art. 744.º do CPC.
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, embora a questão das dívidas da pessoa falecida tenha sido deslocada para outro lugar (arts. 2068.º e segs.) “a sucessão tanto abrange a substituição no lado activo, como no lado passivo das relações hereditárias, embora o fenómeno típico da devolução, subsequente ao chamamento, apenas se refira aos bens, no lado activo da relação jurídico-patrimonial” (loc. cit., págs. 4 a 7).
Por sua vez, os arts. 2097.º e 2098.º do CC tratam, respectivamente, da satisfação dos encargos da herança antes e depois da partilha.
Os autores que vimos de citar, em anotação ao art. 2097.º do CC, explicam que “…entre os encargos referidos no artigo 2068.º é, fundamentalmente, ao pagamento das dívidas do falecido e ao cumprimento dos legados, suportados pelas forças da herança, que os artigos 2097.º e seguintes se referem.
Antes da partilha, e depois de satisfeitas as despesas relacionadas com o próprio fenómeno sucessório (as despesas com o funeral e os sufrágios do seu autor, os encargos com a administração e liquidação da herança), são os bens constitutivos da herança que, no seu conjunto, respondem pelo verdadeiro passivo da herança, formado, por seu turno, quer pelas dívidas do de cuius, inerentes ao património hereditário, quer pelos legados, nascidos das derradeiras liberalidades do testador à custa do mesmo património.
Efectuada a partilha, a responsabilidade pela satisfação destes encargos já passa a processar-se em termos radicalmente diferentes, que são os descritos na disposição subsequente ….” (in loc. cit., pág. 159).
Já em comentário do art. 2098.º, estes autores escrevem que “uma vez realizada a partilha da herança, o panorama jurídico da responsabilidade pelos encargos dela (nomeadamente, quanto aos antigos débitos do de cuius) sofre uma alteração substancial, embora sem nunca esquecer a raiz da proveniência dessas dívidas.
Enquanto a herança se manteve no estado de indivisão, porque nenhum dos herdeiros tinha ainda direitos sobre os bens certos e determinados, todos os bens hereditários respondiam colectivamente, a partir da divisão da herança, passa a responder cada herdeiro, individualmente, pela satisfação de cada dívida da herança (ou de cada encargo dela), mas apenas em proporção da quota que lhe coube na partilha (dentro, por conseguinte, das forças dos bens que especificadamente recebeu da herança, nos termos resultantes do disposto no art. 2071.º)” – in loc. cit., págs. 160/161.
Neste sentido, são igualmente esclarecedores os ensinamentos de Lopes Cardoso:
“Estando indivisa a herança, os bens que a constituem respondem colectivamente pela satisfação das dívidas do seu autor (CCiv., arts. 2097.º e 2068.º). Mas, efectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos na proporção da quota que lhe tenha cabido na herança (idem, art. 2098.º-1) …Tudo vale dizer que o credor não é obrigado a aguardar que as partilhas se processem na adequada forma para, no processo, ir reclamar o seu crédito. Se o inventário não está pendente, pode exigi-lo de todos os herdeiros desde que a todos demande, pois, se demandar parte deles, só lhe ficará lícito reclamar a parte que aos demandados caiba na respectiva responsabilidade (CCiv., arts. 535.-2 e 2091.º-1; CPCiv., arts. 263.º e 33)”– in “Partilhas Judiciais, Vol. II, 6.ª Edição, Almedina, pág. 379).
Retomando o caso dos autos, o que se verifica é que a demanda executiva foi instaurada contra todos herdeiros do falecido devedor enquanto titulares da herança deixada por este em ordem a que os bens que dela fazem parte possam responder pela satisfação da dívida exequenda.
Assim, a presente execução tem por escopo justamente obter o pagamento de uma dívida do primitivo devedor através dos bens da respectiva herança indivisa que, por, entretanto, ter sido declarada insolvente ficou afecta à satisfação, depois das dívidas da própria massa insolvente, dos direitos de todos os credores da insolvência, nos termos dos arts. 46.º e 51.º do CIRE.
Como sublinha Luís Manuel Teles de Menezes Leitão “mesmo após a aceitação da herança por qualquer herdeiro, mantém-se a possibilidade de declarar a sua insolvência, dado que esta constitui um património autónomo sujeito a administração do cabeça-de-casal até à sua liquidação e partilha (art. 2079.º CC) e os patrimónios autónomos estão genericamente sujeitos à insolvência pelas dívidas da herança, atenta a limitação da sua responsabilidade às forças da herança (art. 271.º) – in “Direito da Insolvência” 2017, 7.ª Edição, Almedina, pág. 87.
Com efeito, a insolvência, visando a satisfação de direitos de crédito de todos os credores sobre do património remanescente do devedor, constitui uma verdadeira execução coletiva (art. 10.º, n.º 4 do CPC).
Recorda este último autor que “a razão de ser do processo de insolvência é a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um único processo e o façam em condições de igualdade…, não tendo nenhum credor quaisquer outros privilégios ou garantias, que não aqueles que sejam reconhecidos pelo Direito da Insolvência, e nos precisos termos em que este os reconhece” (in loc. cit.,, pág. 180).
E por força da parte final do art. 10.º, n.º1, al. a) do CIRE, a herança manter-se-á imperativamente indivisa até ao encerramento do processo.
A massa insolvente será, pois, nos termos do art. 46.º do CIRE constituída por todo o património da herança indivisa à data da declaração de insolvência, sendo os bens isentos de penhora integrados apenas se o devedor voluntariamente os integrar e a impenhorabilidade não for absoluta. Soma-se ainda os bens que forem sendo reintegrados no processo de insolvência através do exercício pelo administrador de insolvência da resolução em benefício da massa nos termos do art. 120.º do CIRE.
De onde, por força do art. 88.º do CIRE, a declaração de insolvência da herança ilíquida e indivisa por óbito do primitivo devedor não pode deixar de determinar a suspensão de quaisquer diligências executivas requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente, como sucede na presente execução, independentemente de a herança indivisa, por já ter titulares e, portanto, já não estar jacente, não ter a qualidade formal de parte (cfr, art. 12.º, al. a) do CPC; com interesse, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8/06/2022, Proc. 4611/22.5T8PRT.P1).
Aliás, o património do falecido, ou seja a sua herança, é inerente à qualidade de parte legítima dos aqui executados atribuída pelo já citado art. 54.º do CPC. De onde, não sendo parte pela via autónoma reconhecida à herança jacente pelo art. 12.º, al. a) do CPC, a herança indivisa é elemento constitutivo da qualidade de parte reconhecida aos aqui executados.
Neste conspecto, a herança ilíquida e indivisa do falecido devedor, sendo certo que não dispõe de personalidade judiciária para assumir tal qualidade de forma autónoma, nem por isso, enquanto indivisa, perde a natureza de património autónomo exigida para o reconhecimento da qualidade de parte aos seus titulares, e, como tal, assume ela própria a qualidade jurídica exigida por lei para assim ser considerada.
Sobre a identidade das partes, Manuel de Andrade, com pertinência e utilidade que se julga ultrapassar o âmbito da excepção de caso julgado tratado pelo autor, salienta que “A identidade das partes para tal efeito não é a simples identidade física. Tem lugar quando as partes nos dois processos sejam as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica…E sê-lo-ão, fundamentalmente, quando os litigantes no novo processo forem as próprias pessoas que pleitearam, no outro, ou sucessores delas (entre vivos ou mortis causa), na relação controvertida: herdeiros, legatários…As partes no novo processo serão, pois, idênticas às do anterior quando sejam pessoas que na relação ventilada ocupem a mesma posição que, ao tempo, estas ocupavam” (in “Noções Elementares de Processo Civil”, Reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, págs. 309/310).

Do que vem de se dizer, resulta pois, que, embora por fundamento legal distinto, bem andou o Tribunal a quo em suspender a instância executiva até ao encerramento do processo de insolvência da herança ilíquida e indivisa por óbito do primitivo devedor EE.
Note-se que a decisão recorrida, apesar de, a propósito do processo de insolvência, mencionar a herança ilíquida e indivisa, no respectivo segmento decisório refere “processo de insolvência do primitivo executado falecido”, o que, manifestamente, resulta tratar-se de um lapso manifesto na medida em que o processo de insolvência diz respeito justamente à herança ilíquida e indivisa por óbito do falecido devedor, como se colhe inclusive da própria certidão judicial junta pela executada.
Nesta medida, ao abrigo do art. 614.º do CPC, rectifica-se o apontado lapso no sentido de no segmento decisório do despacho recorrido onde consta “até ao encerramento do processo de insolvência do primitivo executado falecido” passe a constar “até ao encerramento do processo de insolvência da herança ilíquida e indivisa por óbito de EE”.
Sobre a possibilidade de a correcção de lapsos manifestos pelo Tribunal de recurso vide José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil” Anotado, Vol. 2.º, 4.ª Edição, Almedina, pág. 732).
Assim, o recurso mostra-se improcedente, inexistindo motivo para, com excepção da apontada correcção, alterar a decisão recorrida que, em face do exposto, se confirma em conformidade.
As custas são da responsabilidade da Recorrente atento o seu decaimento (art.º 527º do CPC).
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):
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V. Decisão
Perante o exposto, decide-se rectificar a decisão recorrida, substituindo o segmento final “até ao encerramento do processo de insolvência do primitivo executado falecido” por “até ao encerramento do processo de insolvência da herança ilíquida e indivisa por óbito de EE” e, julgar improcedente a apelação, confirmando-se, embora com fundamento legal distinto, a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Notifique.







Porto, 25/11/2024.
Carla Fraga Torres
Manuel Domingos Fernandes
Eugénia Cunha