Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2163/23.8T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DA LUZ SEABRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
REGISTO CRIMINAL
Nº do Documento: RP202401162163/23.8T8OAZ.P1
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos termos do art. 236º nº 3 do CIRE, à devedora basta formular o pedido de exoneração do passivo restante e declarar expressamente que preenche os requisitos que permitem a exoneração do passivo restante e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos arts.237º ss do CIRE.
II - Ainda que a devedora seja notificada pelo tribunal para juntar aos autos o CRC e não o faça no prazo que lhe for concedido, o tribunal não deve indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante com fundamento de que a devedora não demonstrou não ter praticado qualquer um dos crimes previstos nos artigos 227º a 229º do Código Penal.
III - Mesmo que o tribunal entenda que aquele documento é essencial à prolação da decisão de deferimento ou indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, não se trata de um documento cuja obtenção dependa exclusivamente da devedora, podendo o tribunal obtê-lo oficiosamente a fim de proferir decisão, estando tal possibilidade expressamente prevista no art. 8º nº 2 al. a) da Lei nº 37/2015 de 5/5, o qual permite ao juiz aceder à informação do registo criminal, exclusivamente para a decisão do incidente de exoneração do passivo restante do devedor no processo de insolvência de pessoas singulares.
IV - Para a verificação do fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante previsto no art. 238º nº 1 al. f) do CIRE é necessária a demonstração positiva de que a devedora foi condenada por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos arts. 227º a 229º do CP (crimes de insolvência dolosa, frustração de créditos, insolvência negligente ou favorecimento de credores) nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2163/23.8T8OAZ.P1- APELAÇÃO
**
Sumário (elaborado pela Relatora):
………………………………
………………………………
………………………………
**
I. RELATÓRIO
1. AA apresentou-se à Insolvência, por requerimento de 5.06.2023, declarando pretender a exoneração do passivo restante.

2. Por despacho de 14.06.2023 foi determinado o seguinte (transcrição):
“Analisada a petição inicial constata-se que os artigos 5º a 9º não se referirão à requerente da insolvência (que é uma pessoa singular que trabalha por conta de outrem).
Para além disso, o documento nº 7 junto com a petição inicial também não é relativo à devedora destes autos.
Por fim, e relativamente à certidão de assento de nascimento, somente foi junto aos autos o rosto da mesma e não a certidão completa, necessária para que se comprove o estado civil da devedora (de que não existe informação na petição inicial).
Assim, convida-se a devedora a apresentar uma nova petição inicial devidamente corrigida, na qual constem os factos relativos à sua situação, juntando ainda, para além dos documentos tidos por convenientes, a certidão (completa) do seu assento de nascimento e, porque requereu a exoneração do passivo restante, o seu CRC.
Prazo: Cinco dias.
Notifique.”

3. A requerente da insolvência juntou petição inicial aperfeiçoada, sem que tenha junto o CRC.

4. Por sentença proferida em 2.07.2023, transitada em julgado, foi decretada a Insolvência de AA, tendo nela sido advertida a insolvente de que ainda não tinha sido junto aos autos o seu CRC.

5. Apresentado em 17.08.2023 o Relatório a que alude o art. 155º do CIRE pela Administradora de Insolvência, esta não se opôs ao deferimento do pedido de exoneração do passivo restante apresentado pela devedora.

6. Posteriormente, em 21.09.2023, foi proferido o seguinte despacho, do qual foi notificada a insolvente (transcrição):
“Tendo em conta que a devedora foi já notificada duas vezes para juntar aos autos o seu CRC e ainda não o fez, renova-se, pela última vez, tal pedido e adverte-se a devedora de que a não ser junto o mesmo, será indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Notifique.”

7. Por decisão proferida em 14.10.2022, Ref. Citius 441028468, foi indeferido liminarmente o pedido exonerativo formulado pela insolvente, tendo a mesma o seguinte teor (transcrição):
“INDEFERIMENTO LIMINAR DO PEDIDO DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Nestes autos, a devedora AA tem mandatária constituída – Cfr. procuração forense junta aos autos com o requerimento de 14/06/2023.
Por despacho de 14/06/2023 foi a devedora notificada para juntar aos autos, entre outros, o seu CRC, uma vez que havia pedido a exoneração do passivo restante.
Uma vez que a devedora não o fez, por despacho anterior ao da prolação da sentença de insolvência advertiu-se a devedora de que ainda não havia junto aos autos o CRC.
E a devedora nada fez.
Apresentado que foi o relatório a que se refere o artigo 155º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, foi cumprido o disposto no artigo 232º, nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas pelo que caberia declarar encerrado o processo e proferir decisão liminar de exoneração do passivo restante.
Porém, verificando-se que a omissão permanecia, por despacho proferido no dia 21/09/2023, foi a devedora notificada, por uma última vez, para juntar aos autos o seu CRC e advertida de que, não o fazendo, seria liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante.
A Il. Mandatária da devedora leu a notificação desse despacho no dia 04/10/2023 (pese embora a notificação tenha sido efectuada em 22/09/2023) e nada disse.
Desde a data em que a Il. Mandatária se considera notificada – 25/09/2023 – decorreram já 25 dias e desde a data em que Il. Mandatária leu a notificação decorreram 16 dias.
A devedora nada disse e não juntou aos autos o seu CRC, elemento essencial e único através do qual se pode atestar que não ocorre a circunstância prevista no artigo 238º, nº 1, al. f) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
E a sua junção cabe à devedora.
*
Atendendo a que a devedora não demonstrou não ter praticado qualquer um dos crimes previstos nos artigos 227º a 229º do Código Penal, o que somente poderia fazer através da junção aos autos do seu CRC e que esse documento não foi junto aos autos apesar das inúmeras notificações para o efeito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 238º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas indefere-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Notifique.”

8. Inconformada com a decisão que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, a insolvente interpôs recurso de apelação da decisão, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
I. A Recorrente pretende, com a interposição do presente recurso, alterar o sentido da daquela decisão, substituindo-a por outra que defira o pedido de exoneração do passivo restante.
II. A recorrente foi notificado do despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, pelo facto de a devedora não ter junto aos autos o seu CRC, elemento essencial e único através do qual se pode atestar que não ocorre a circunstância prevista no artigo 238º, nº 1 al. f) do CIRE.
III. Porém, a verificação da violação da condição prevista no artº 238º, nº 1, al. f), do CIRE, só por si não conduz ao preenchimento do requisito, sendo exigido que o devedor tenha atuado com dolo ou negligência grave.
IV. Todavia, entendemos, salvo melhor opinião que tal incumprimento não foi o verdadeiro fim da conduta da insolvente – e, portanto, que o dolo não é direto – tem-se por certo, a presença, no caso de um dolo eventual: o não cumprimento surge como uma aceitação do risco.
V. Não obstante, é de referir que não obstante a sua não junção aos autos pela devedora do seu CRC, está previsto no art. 8.º, n.º 1, al. a), da Lei de Identificação Criminal – Lei 37/2015, de 5 de Maio – que, o próprio magistrado judicial pode aceder diretamente à informação do registo criminal, para “decisão do incidente de exoneração do passivo restante do devedor no processo de insolvência de pessoas singulares.”
VI. Logo, podendo o próprio Juiz a quo aceder diretamente a essa informação, não tem sentido que a exija ao Requerente da insolvência e muito menos indefira liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante pela sua não junção aos autos.
VII. A decisão viola o disposto nos artigos 238º do CIRE e 18º da Constituição da República Portuguesa.
Concluiu, pedindo que seja dado provimento ao presente recurso e seja revogada a decisão proferida pelo tribunal a quo.”

9. Não foram apresentadas contra-alegações.

10. Foram observados os vistos legais.
*
II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
*
A questão a decidir é a seguinte:
- Se o pedido de exoneração do passivo restante deve ser liminarmente admitido.
**
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Para a decisão a proferir relevam todos os factos, inerentes à tramitação processual e respectivas peças processuais, constantes do relatório acima elaborado, tendo-se procedido à consulta integral dos autos principais para prolação da presente Decisão.
**
IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
Depreende-se da decisão recorrida que o tribunal a quo entendeu que se verificava a hipótese consagrada no art. 238º nº 1 al. f) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE) para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pela devedora no requerimento inicial, a qual veio, entretanto, a ser declarada insolvente.
Dela resulta que, “a devedora nada disse e não juntou aos autos o seu CRC, elemento essencial e único através do qual se pode atestar que não ocorre a circunstância prevista no artigo 238º, nº 1, al. f) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
E a sua junção cabe à devedora.
Atendendo a que a devedora não demonstrou não ter praticado qualquer um dos crimes previstos nos artigos 227º a 229º do Código Penal, o que somente poderia fazer através da junção aos autos do seu CRC e que esse documento não foi junto aos autos apesar das inúmeras notificações para o efeito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 238º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas indefere-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.”
Não podemos deixar de salientar que a decisão recorrida não contém qualquer elenco de factos provados e/ou não provados em que a mesma se alicerça, como se impunha, depreendendo-se do teor da fundamentação da decisão que o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante baseou-se exclusivamente no facto de a requerente não ter junto o CRC aquando do pedido de exoneração do passivo restante, nem quando foi interpelada para tal junção sob a cominação de que caso não o juntasse no prazo concedido lhe seria indeferido tal pedido.
O regime da exoneração do passivo restante, específico da insolvência das pessoas singulares, é um instituto novo, tributário do direito americano (e recebido no direito alemão) e da ideia de fresh start, ou novo arranque, que tem o propósito de libertar o devedor das suas obrigações, conferindo-lhe a oportunidade de (re) começar do zero.
A exoneração do passivo restante constitui, para o devedor insolvente, uma libertação definitiva dos débitos não integralmente satisfeitos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, nas condições previstas no incidente a que aludem os referidos arts. 235º e ss do C.I.R.E.[1]
Assim o passivo restante não é mais do que o conjunto dos créditos sobre a insolvência não integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento (neste sentido, Carvalho Fernandes, João Labareda, C.I.R.E. Anotado, Quid Iuris, 2008, pág. 778, anotação 3 e Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, pág. 559).
A exoneração do passivo restante, tendo por objectivo promover o ressarcimento dos credores, confere, por outro lado, aos devedores singulares insolventes a possibilidade de se libertarem dos débitos não satisfeitos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, com vista a permitir a sua reabilitação económica – vide o considerando n.º 45 do preâmbulo do diploma que aprovou o C.I.R.E. – DL 53/2004, de 18/03 .
Sendo assim, tal como refere Assunção Cristas, a apreciação liminar do pedido constitui-se como uma fase crucial de aferição dos requisitos a preencher e a provar, devendo a conduta do devedor ser analisada através da ponderação de dados objectivos passíveis de revelarem se o insolvente se afigura ou não merecedor de uma nova oportunidade e apto para observar a conduta que lhe será imposta. [2]
O art. 238º do CIRE estabelece os casos em que o juiz deve indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, sendo o elenco nele estabelecido taxativo.
Dispõe o artigo 238.º, n.º 1, alínea f) do CIRE, que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos arts. 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data.
Nos termos do art. 236º nº 3 do CIRE, à devedora bastava formular o pedido de exoneração do passivo restante e declarar expressamente que preenche os requisitos que permitem a exoneração do passivo restante e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos arts.237º ss do CIRE, como o fez a aqui requerente.
Tal como perfilha a maioria da Doutrina e Jurisprudência, consubstanciando os fundamentos de indeferimento liminar contidos no n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, factos impeditivos do direito à exoneração do passivo restante, por força do art. 342.º do CC, a respetiva alegação e prova compete aos credores ou ao Administrador da Insolvência que a ele se oponham, sendo que no caso sob apreciação nenhum deles deduziu qualquer oposição àquele pedido.
Assim defende Luís Menezes Leitão, “a decisão de indeferimento liminar pelo Tribunal deve ser tomada após audição dos credores e do administrador da insolvência na assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa desta, no prazo de 10 dias após o decurso do prazo de 60 dias após a prolação da sentença que declara a insolvência, a menos que o pedido seja apresentado fora de prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos que constituem fundamento de indeferimento (art. 238º, nº 2). Não ocorrendo nenhuma dessas situações, compete a quem pretenda que não seja concedida a exoneração do passivo restante efectuar a prova dos fundamentos de indeferimento liminar, atenta a sua natureza de factos impeditivos da pretensão do devedor (art. 342º, nº 2, CC).”[4]
No mesmo sentido, Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, fazendo alusão a jurisprudência abundante no sentido de considerar os factos constantes das várias alíneas do nº 1 do art. 238º do CIRE como matéria de excepção, cujo ónus de prova recai sobre os credores e o administrador da insolvência.[5]
Ora, a Administradora de Insolvência, quando apresentou o Relatório previsto no art. 155º do CIRE, não se opôs ao pedido de exoneração do passivo restante apresentado pela devedora na petição inicial, não tendo pugnado pelo indeferimento liminar desse pedido, nem o fizeram os credores devidamente citados para o pedido de insolvência e para se pronunciarem sobre o pedido de exoneração do passivo restante suscitado no requerimento inicial.
Para a verificação do fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante de que o tribunal a quo se socorreu, necessário se tornava a demonstração positiva nestes autos que a devedora fora condenada por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos arts. 227º a 229º do CP (crimes de insolvência dolosa, frustração de créditos, insolvência negligente ou favorecimento de credores) nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data.
Tal como referem Ana Prata, Jorge Morais e Rui Simões, “em caso de condenação pela prática de um destes crimes, entende-se que o devedor não merece o benefício associado à possibilidade de recuperação integral, uma vez que o seu comportamento em relação aos credores foi, num passado recente, especialmente censurável.”[6]
Acontece que, o tribunal a quo, subvertendo o regime do ónus da prova acima referenciado, apesar de não ter havido qualquer oposição ao pedido de exoneração do passivo restante, nem constando dos autos documento autêntico que comprovasse a condenação da devedora num daqueles crimes especificamente previstos no art. 238º al. f) do CIRE, condenou a devedora ao indeferimento de tal pedido apenas porque não demonstrou não ter praticado qualquer um dos crimes previstos nos artigos 227º a 229º do Código Penal.
Contrariamente ao consagrado no art. 27ºnº 1 al. b) do CIRE que permite ao juiz conceder ao requerente, sob pena de indeferimento do pedido de declaração de insolvência, prazo para juntar os documentos que deviam ter sido juntos com a petição (arts. 23º e 24º do CIRE), não há qualquer preceito legal que permita ao juiz indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante por falta de junção de um documento comprovativo das condições previstas no art. 238º, precisamente porque a lei claramente só impõe que o pedido de exoneração do passivo restante venha acompanhado da declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes, declaração essa apresentada pela aqui requerente.
Se é certo que a requerente remeteu-se ao silêncio quando foi reiteradamente notificada para juntar aos autos o CRC, inclusivamente depois de advertida de que se não o fizesse ser-lhe ia indeferido o pedido de exoneração do passivo restante, violando um princípio geral de colaboração para com o tribunal (violação pela qual podia e devia ter sido punida em multa) não é menos certo que essa omissão não permitia ao juiz decidir como decidiu, desde logo porque da ausência desse documento não se pode inferir qualquer condenação, muito menos pelos crimes que especificamente estão contemplados na al. f) do art. 238º do CIRE.
Se o juiz a quo tinha dúvidas sobre o registo criminal da devedora que se apresentou à insolvência e requereu o pedido de exoneração do passivo restante, podia facilmente consultar o CRC da mesma, previamente à decisão de indeferimento de tal pedido, sob pena de correr o risco desnecessário de vir a proferir uma decisão manifestamente infundada, como aconteceu.
Como se veio a comprovar do CRC entretanto junto pela requerente, embora tal junção tenha ocorrido já depois do prazo que lhe havia sido concedido para o efeito, não existe qualquer condenação da requerente por algum daqueles crimes.
Há mesmo quem sustente, como é o caso de Adelaide Menezes Leitão, que deve haver lugar a uma “análise ex officio, a realizar pelo juiz, de todos os requisitos de admissão do pedido de exoneração do passivo restante em nome do princípio do inquisitório (previsto expressamente no art. 11º do CIRE) (ainda que o ónus de alegação dos factos que configurem causa impeditiva da admissão da exoneração do devedor caiba aos credores e ao administrador da insolvência). Esta averiguação impõe-se sobretudo pela teleologia do instituto.”[7]
Ainda que o tribunal a quo entendesse que tal documento era essencial à prolação da decisão de deferimento ou indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, não se trata de um documento cuja obtenção dependa exclusivamente da devedora, podendo o tribunal obtê-lo oficiosamente a fim de proferir decisão.
Tal como alegou a recorrente e bem, a Lei nº 37/2015 de 5/5, no art. 8º nº 2 al. a), consagrou especificamente a possibilidade de o juiz aceder à informação do registo criminal, exclusivamente para a decisão do incidente de exoneração do passivo restante do devedor no processo de insolvência de pessoas singulares.
Ainda que porventura assim não se entenda, afigura-se-nos manifestamente desproporcional indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, que acarreta gravosas consequências para a insolvente, apenas porque esta não juntou em devido tempo um documento que o próprio tribunal podia obter facilmente.
Resulta, pois, evidenciado nestes autos, que não se verifica o fundamento taxativamente previsto no art. 238ºnº 1 al. f) do CIRE de que o tribunal a quo se socorreu para decidir pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, não merecendo acolhimento a decisão recorrida, desde logo porque não se mostra demonstrado nos autos, como se impunha, que a devedora tenha sido condenada por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos arts. 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data.
Deste modo, não se poderá manter a decisão recorrida a qual deverá ser substituída por outra que deferindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante imponha as determinações previstas no art. 239º do CIRE, em função dos elementos de facto que o tribunal a quo obtenha sobre os rendimentos e despesas da insolvente e outros elementos com relevância para a fixação do rendimento disponível.
**
V. DECISÃO:
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Apelante/Insolvente, revogando-se a decisão recorrida, devendo ser substituída por decisão de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante contendo as determinações exigidas pelo art. 239º do CIRE.
Custas a cargo da massa insolvente- arts. 303º e 304º do CIRE.
Notifique.

Porto, 16 de Janeiro de 2024
Maria da Luz Seabra
João Proença
Alberto Taveira

(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
___________________
[1] O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, pág. 102 e 103.
[2] Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição Especial, Almedina, pág. 170.
[3] Neste sentido Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, CIRE Anotado, 2013, pág. 656
[4] A Recuperação Económica dos Devedores, 2ª edição, pág. 140
[5] CIRE Anotado, 2013, pág. 661
[6] Ob cit, pág. 660
[7] Pré-considerações para exoneração do passivo restante, Cadernos de Direito Privado, 35, pág. 68