Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MANUEL SOARES | ||
| Descritores: | CRIME DE FURTO ÁGUA CANALIZADA COISA MÓVEL COISA ALHEIA DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO | ||
| Nº do Documento: | RP20161026149/14.2TAMAI.P2 | ||
| Data do Acordão: | 10/26/2016 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REC PENAL | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
| Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 937, FLS.82-86) | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I – O significado de coisa móvel que consta na descrição do crime de furto não pode ser equiparado em termos absolutos ao conceito de coisa móvel do direito civil. II – A água que corre nas canalizações de abastecimento publico, é um bem de valor económico, controlável e quantificável, com autonomia em relação ao seu meio de origem, que para efeitos penais se integra no conceito de bem móvel. III – Coisa alheia, para efeitos penais é aquela que esteja ligada por uma relação de interesse juridicamente tutelado a uma pessoa diferente daquela que pratica a infracção. IV – Os bens dominiais, devem considerar-se alheios para efeitos penais, dado que o seu uso e fruição comum não incluem o direito de os subtrair a quem tem o domínio da sua exploração económica para uso próprio e exclusivo. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo nº 149/14.2TAMAI Comarca do Porto, Tribunal de Maia Instância Local, Secção Criminal, J3 Acórdão decidido em Conferência no Tribunal da Relação do Porto 1. Relatório 1.1 Decisão recorrida Por sentença proferida em 22 de Janeiro de 2016, a Sra. Juiz decidiu condenar o arguido B… na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 7 euros, por um crime de furto, previsto no artigo 203º nº 1 do Código Penal (CP), que consistiu na subtracção de água da rede pública de abastecimento, para uso próprio na sua residência. 1.2 Recurso O Ministério não se conformou e interpôs recurso pedindo a revogação da sentença e a absolvição do arguido. Alegou, em resumo, o seguinte: - Na sentença não consta como facto provado que a água de que o arguido se apropriou pertencia ao município … – nem aliás isso estava imputado na acusação – mas a Sra. Juiz na motivação, ao subsumir os factos provados ao tipo de crime, considerou que a água foi comprada pelo município e portanto que lhe pertencia, o que integra o vício previsto no artigo 410º nº 2 al. a) do Código de Processo Civil (CPP); - Os factos provados não permitem a condenação por crime de furto porque a água de que o arguido se apropriou não é coisa móvel nem é alheia. 1.3 Resposta O arguido respondeu ao recurso dizendo, em suma, que deve improceder e que a sentença deve ser confirmada por estar bem elaborada, quer de facto quer de direito. 1.4 Parecer do Ministério Público na Relação Nesta Relação o Ministério Público limitou-se a apor o “visto” no processo. 2. Questões a decidir no recurso Teremos de ver em primeiro lugar se a sentença padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Depois, se isso não tiver ficado prejudicado pela decisão da questão anterior, há que analisar se os factos integram ou não o crime de furto pelo qual o arguido foi condenado. E caso integrem, importará ver oficiosamente a questão da eventual omissão de pronúncia sobre a qualificação do crime no furto de coisa de valor diminuto e destinada à utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou dos familiares. É indiferente a circunstância de o arguido ter respondido ao recurso pedindo que a sua condenação seja confirmada, porque o Ministério Público pode recorrer no seu interesse e não está na disponibilidade do arguido manter-se ou não uma condenação, caso esta se considere ilegal. 3. Fundamentação 3.1. Matéria de facto provada na sentença (transcrição): Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos: a) Em 9 de Dezembro de 2013, os C… procederam ao levantamento do contador da água na residência do arguido, à data sita no nº.., 2° dtº, Rua …, …, Maia, através de fecho e selagem da torneira de corte. b) Porém, em data não concretamente apurada, entre 9 e 12 de Dezembro de 2013, o arguido B… fez uma ligação directa entre os tubos de fornecimento de água da refe pública de canalização da sua residência, facto que foi constatado pelo funcionário do C…, D… quando no dia 12 de Dezembro de 2013, se deslocou à residência do arguido. c) Desta forma B… logrou fazer sua quantidade não apurada de água, mas que rondará 1 m3, no valor de 2,67. d) O arguido agiu livre e conscientemente, com o propósito de fazer sua a água a que sabia não ter direito, não ignorando que desta forma estava a actuar contra a vontade da ofendida, a Câmara Municipal …, que a disponibilizava aos munícipes mediante pagamento. e) B… sabia a sua conduta proibida e punida por lei. Mais se provou que: f) Por sentença proferida em 19.04.2012, devidamente transitada em julgado, no âmbito do processo nº139/11.7GAPVZ do 1 ° Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Póvoa do Varzim, o arguido foi condenado pela prática, em 16.04.2011 e 21.04.2011, de um crime de furto qualificado p. e p. no art. 204°, nº1, aI. a) do Código Penal, de um crime de extorsão na forma tentada p. e p. no art. 223°, nº1, 22, e 23° do Código Penal e de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. no art. 3°, nº1 e 2 do DL nº2/98, de 3/01 na pena única de 255 dias de multa à taxa diária de €6,00, num total de €1530,00- g) Por sentença proferida em 15.05.2012, devidamente transitada em julgado, no âmbito do processo nº244/11.0GBMTS do 3° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos, o arguido foi condenado pela prática, em 26.03.2011, de um de falsificação ou contrafacção de documento p. e p. no art. 256°, nº1, e 3, do Código Penal, na pena de 110 dias de multa à taxa diária de €5,00, num total de €550,00. h) Por sentença proferida em 25.09.2012, devidamente transitada em julgado, no âmbito do processo nº239/10.0GFPRT do 2° Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto, o arguido foi condenado pela prática, em 11.12.2010, de um crime condução sem habilitação legal p. e p. no art. 3°, nº1 e 2 do DL nº2/98, de 3/01 na pena de 80 dias de multa à taxa diária de €5,00, num total de €400,00. i) Por sentença proferida em 24.04.2014, devidamente transitada em julgado, no âmbito do processo nº17/14.8PBVCD do 1° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila do Conde, o arguido foi condenado pela prática, em 11.04.2014, de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. no art. 3°, nº1 e 2 do DL nº2/98, de 3/01 na pena de 200 dias de multa à taxa diária de €6,00, num total de €1.200,00. j) Por sentença proferida em 15.10.2014, devidamente transitada em julgado, no âmbito do processo nº239/10.0GFPRT referido h) procedeu-se ao cúmulo jurídico da pena ali aplicada e da pena aplicada no processo referido g) tendo-se aplicado ao arguido a pena única de 140 dias de multa á taxa diária de €5,00, num total de €700,00, sendo que tal pena já se encontra extinta pelo pagamento. k) Por sentença proferida em 15.07.2015, devidamente transitada em julgado, no âmbito do processo nº24/15.3PBVCD do J1 - Secção Criminal - Inst. Local - Vila do Conde da Comarca do Porto, o arguido foi condenado pela prática, em 14.07.2015 de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. no art. 3°, nº1 e 2 do DL nº2/98, de 3/01 e de um crime de desobediência p. e p. no art. 348°, nº1, aI. b) do Código Penal, na pena única de 270 dias de multa à taxa diária de €7,00, num total de €1890,OO. I) Por sentença proferida em 21.05.2015, devidamente transitada em julgado, no âmbito do processo nº475/11.2GAVCD do J1 - Secção Criminal - Inst. Local - Vila do Conde da Comarca do Porto, o arguido foi condenado pela prática, em 23.02.2011 de um crime de violação de correspondência ou de telecomunicações agravada p. e p. no art. 194°, nº1, e 197°, aI. a), de um crime de burla simples p. e p. no art. 217°, de um crime de falsificação de boletins, actas ou documentos p. e p. no art. 256°, nº1 e 3, e de um crime de subtracção de documento e notação técnica p. e p. no art. 259, nº1, todos do Código Penal, na pena única de 320 dias de multa à taxa diária de €5,50, num total de €1.760,00. 3.2. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada Este vício está previsto no artigo 410º nº 2 al. a) do CPP. Ocorre nas situações em que decorre da simples leitura da sentença, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, que a matéria de facto provada na sentença não suporta a decisão de direito, quer quanto culpabilidade quer quanto à determinação da pena. Segundo o Ministério Público, a insuficiência consiste em a Sra. Juiz ter considerado na fundamentação da decisão que a água que o arguido consumiu depois de fazer a ligação directa da rede de abastecimento público à sua residência era pertença dos C…, quando nos factos provados não consta a quem pertencia. O que está provado sobre a titularidade de direitos sobre a água é que o seu fornecimento tinha sido interrompido pelos C…, com o levantamento do contador da residência do arguido, e que ele restabeleceu a ligação e agiu com o propósito de fazer sua a água a que sabia não ter direito, não ignorando que dessa forma actuava contra a vontade da entidade que a disponibilizava aos munícipes mediante pagamento. Julgamos que o Ministério Público não tem razão. A afirmação de que a água era “pertença” do município é apenas uma conclusão jurídica que a Sra. Juiz extraiu dos factos provados. Se esta conclusão é acertada ou não, isso é questão diferente, que tem a ver com o erro de direito invocado como segundo fundamento de recurso. Improcede portanto a arguição do vício da decisão. 3.3. Erro na interpretação e aplicação do direito O que está em causa resume-se a saber se a pessoa que faz uma ligação directa entre a rede pública de abastecimento de água e a canalização da sua residência, passando a consumir água sem pagar a taxa devida, não pratica um crime de furto por a água não ser coisa móvel nem ser coisa alheia. O recurso suscita uma questão curiosa e pensamos que pouco debatida. Os seus argumentos baseiam-se integralmente no estudo do Procurador-adjunto Rogério Gomes Osório: “O crime de furto – um contributo para a análise de uma nova realidade”, publicado na revista digital Verbo Jurídico[1]. Na jurisprudência publicada não conseguimos encontrar qualquer decisão em que a matéria tivesse sido discutida no plano em que ela agora se coloca. Os acórdãos que analisámos, em que se decidiram casos semelhantes de “furto de água”, analisaram sobretudo a sua possível qualificação como furto por formigueiro, dando como adquirido indiscutível que a água é coisa móvel alheia. Citamos, entre outros possíveis, os do TRL, de 29NOV20109 e TRP, de 17ABR2013[2]. O enquadramento jurídico do caso suscita perplexidades porque nos remete para uma daquelas situações de evidente desarmonia entre o que diz o senso comum e o que parece dizer a lei – pelo menos, numa interpretação demasiado apegada ao texto. O estudo que referimos, que como dissemos serviu de base ao recurso, considera que a apropriação “clandestina” para consumo próprio de água da rede pública de abastecimento, sem conhecimento da entidade exploradora, não é crime de furto porque a água é classificada na lei civil como bem imóvel e porque é um bem do domínio público, que não é propriedade de ninguém – por isso é insusceptível de ser qualificada como coisa alheia. A tese é interessante e até sedutora, no plano teórico da hermenêutica jurídica. Contudo, não podemos perder de vista que, no outro plano em que nos colocamos, que é o de proferir uma decisão judicial, temos de encontrar uma solução que resolva o caso concreto com justiça e adequação à realidade. Não nos podemos dispersar num exercício diletante de tecnicismos jurídicos para mero deleite dos juristas, que não se adeqúe à realidade e choque o senso comum. Vamos então analisar o caso. A matéria de facto relevante está fixada. O Ministério Público não a impugnou e nada há a conhecer oficiosamente, para além do que já dissemos atrás quando afastámos o vício apontado à sentença recorrida. Também não há controvérsia sobre os elementos objectivos e subjectivos do crime de furto, nem sobre o bem protegido pela incriminação prevista no artigo 203º do CP. Recordando, brevemente, o tipo objectivo de ilícito consiste no acto de subtrair coisa móvel alheia com intenção de apropriação ilegítima. Como se trata de crime doloso, o tipo subjectivo de ilícito consiste na representação que o agente faz de cada um daqueles elementos típicos sublinhados e na intencionalidade da sua acção – numa das modalidades previstas no artigo 14º do CP. O bem jurídico protegido é o património alheio, na vertente que tem a ver com a disponibilidade material por terceiros de coisas com valor patrimonial e com título jurídico. O Ministério Público aceita que a acção do arguido preenche os conceitos de subtracção de coisa com intenção de apropriação ilegítima e com dolo, no sentido de que o arguido agiu intencionalmente para realizar uma acção que integra tais elementos. A divergência no recurso tem apenas a ver com a qualificação da água como bem móvel e como bem alheio. É sobre isto que nos vamos debruçar de seguida. Começamos pela natureza jurídica da água como “coisa imóvel”. O artigo 204º nº 1 al. b) do Código Civil (CC) qualifica “as águas” como coisa imóvel. Ao contrário do que acontece com as árvores, arbustos e frutos naturais, que o mesmo preceito autonomiza como coisas móveis quando deixam de estar ligadas ao solo (al. c) a contrario sensu), não há norma que dê diferente natureza jurídica à água, mesmo quando dividida e separada da sua unidade de origem. Ou seja, no limite, de acordo com esta interpretação, a água que tiramos da torneira e bebemos pelo copo será juridicamente uma coisa imóvel, porque tudo o que não é imóvel, é móvel: artigo 205º nº 1 do CC. Porém, como sabemos, a água, que é um bem da natureza, passível de utilização e transformação nas não de criação humana, pode ser dividida e destacada da unidade de que fazia parte e ser objecto de relações jurídicas às quais não se adequa minimamente o regime legal relativo à constituição e transmissão de direitos sobre coisas imóveis. Certamente ninguém deixaria de considerar absurdo que os negócios de transmissão de direitos sobre a água que está engarrafada para consumo humano estivessem sujeitos às exigências de forma de celebração de escritura pública ou documento particular autenticado. Esta dificuldade decorre do facto de as normas do direito civil que regulam a propriedade e utilização das águas particulares como bens imóveis (artigos 1385º e seguintes) e das do direito administrativo que regulam a titularidade e utilização das águas do domínio público (sobretudo as Leis 54/2005, de 15NOV e 58/2005, de 29DEZ), estarem concebidas para as águas que nascem, correm ou se depositam no solo, provenientes de nascentes ou da chuva e para as águas dos oceanos e não para porções de água individualizadas que são todos os dias objecto de relações jurídicas ou de facto. Diz o Ministério Público no recurso que a norma penal que define o furto usa o conceito de coisa móvel com o sentido que lhe é dado pela lei civil. Por um lado porque quando o legislador penal quis definir conceitos de forma diferente do que resultaria da aplicação da lei civil, o fez expressamente (por exemplo nos artigos 202º e 255º do CP) e por outro lado porque atribuiu expressamente natureza de coisa imóvel à água, ao tutelar a propriedade sobre este bem com uma incriminação específica (artigo 215º nº 2 do CP). Qualquer destes argumentos não é decisivo. Dizer que o conceito de coisa móvel previsto na incriminação do furto é o que está previsto na lei civil, de forma completamente desligada daquilo que é a percepção comum sobre o significado dessa expressão, cria dificuldades inaceitáveis. Nas situações de fronteira, em que os próprios juristas civis não se entendem sobre a qualificação de certa coisa como móvel ou imóvel, ou em que a sua qualificação civil não coincide minimamente com o seu significado comum (e aqui estamos a referir-nos, por exemplo, à água autonomizada em partes que podem ser objecto de comércio jurídico), seria absurdo concluir que o legislador criou uma norma penal cujo conhecimento da ilicitude ou dos elementos objectivos do tipo exigisse uma licenciatura em direito. A percepção social sobre a ilicitude da subtracção de pinhas arrancadas das árvores ou de areia extraída de uma pedreira não necessita de conhecer a ressalva final da al. c) do nº 1 do artigo 204º do CC – que muda a natureza desses bens de imóveis para móveis – para representar que se trata de actos ilícitos de furto. Não pode deixar de ser a essa percepção social que a norma está dirigida, porque ela se destina a regular a vida comum de todas as pessoas; as que têm formação jurídica e as que não têm. O facto de existir na lei um crime autónomo de usurpação de coisa imóvel, através do desvio ou represamento de águas, também não nos convence. Nada autoriza a concluir que o legislador quis englobar no artigo 215º nº 2 do CP todos os actos criminalmente relevantes que tivessem por objecto água. Esta norma está concebida para as águas desviadas ou represadas que estão de alguma forma ligadas ao solo ou ao seu meio natural. Se não fosse assim, ou seja, se pudéssemos concluir que a água da torneira de uma casa – por ser coisa imóvel, na tese do recurso – também estaria incluída nesta incriminação, então poderíamos ter de dizer que o represamento violento dessa água poderia constituir crime de usurpação de coisa imóvel, o que manifestamente cairia fora do âmbito de aplicação previsto para esta norma e seria até absurdo. Mas a tese de que a água é sempre um bem imóvel para os efeitos da incriminação do furto, levaria a situações ainda mais incompreensíveis e que escapariam ao que é a percepção social sobre a ilicitude do furto. Pensemos, por exemplo, na pessoa que entra nas instalações de uma empresa de engarrafamento de água e se apropria da água já tratada e pronta a ser engarrafada para venda – não falamos dos recipientes mas apenas da água. Ou na pessoa que aproveita a ausência do vizinho e subtrai com uma mangueira a água armazenada no tanque de rega para encher a sua piscina particular. Não haveria aqui crime de furto por as águas são coisas imóveis? Parece-nos que o significado de coisa móvel que consta na descrição do crime furto não pode ser equiparado em termos absolutos ao conceito de coisa móvel do direito civil. Aliás, há outros casos em que a doutrina e jurisprudência (embora não de forma unânime, reconhecemos) aceitam que a apropriação é susceptível de integrar o crime de furto, mas em que o objecto dessa apropriação são bens que também não se incluem no conceito civil de coisas móveis. Pensemos, por exemplo, na apropriação de energias mecânicas como a electricidade, que não têm corporeidade mas podem ser consideradas coisas móveis se forem controláveis e quantificáveis – ver por exemplo o acórdão do TRP, de 24SET2009[3]. Na anotação ao artigo 215º, § 12, do Comentário Conimbricence do Código Penal, considera-se que a separação das águas da massa complexiva ligada a um prédio ou terreno retira o carácter imobiliário às mesmas, passando a ser coisas móveis susceptíveis de crime de furto. Também na anotação ao artigo 203º, § 48, se considera que coisas - no sentido corrente de objectos corpóreos susceptíveis de deslocação no espaço – que sejam partes integrantes, ou mesmo componentes de coisas imóveis, desde que destacadas e autonomizadas, passam a ser coisas móveis susceptíveis de apropriação para preenchimento do crime de furto. É também este o nosso entendimento no que respeita à água que corre nas canalizações de abastecimento público. Trata-se de um bem com valor económico, controlável e quantificável, com autonomia em relação ao seu meio de origem, que para efeitos penais se integra no conceito de bem móvel. Passamos agora a verificar se a água da rede de abastecimento público não é, em relação a cada pessoa que a possa subtrair, “coisa alheia”. A tese do Ministério Público é esta: a água de abastecimento doméstico é um bem do domínio público, que não pode ser objecto de direito de propriedade por particulares, cuja distribuição não corresponde a uma venda mas sim à prestação de serviço pelo qual se paga uma taxa; logo, não se trata de bem alheio, no sentido de pertencer a terceiro. Será? As águas podem ser particulares ou públicas. O regime jurídico das primeiras está regulado no código civil e o das segundas em leis especiais (artigo 1385º do CC). Nas águas particulares não há qualquer dificuldade em aceitar que podem ser objecto de direito de propriedade, pois isso está expressamente previsto e regulado (artigos 1302º e 1385º e seguintes do CC). Já no que respeita às águas do domínio público, temos de analisar a sua legislação específica para verificar de que tipo de titularidade podem ser objecto, tendo em conta, previamente, que em tudo o que não houver regulação especial e não contrarie a sua natureza própria, são ainda aplicáveis as regras do código civil, entre as quais, naturalmente, as relativas à propriedade e posse e à defesa desses direitos (artigo 1304º do CC). O artigo 84º nº 1 da Constituição dispõe que pertencem ao domínio público as águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos. O regime da titularidade e utilização dos recursos hídricos do domínio público está regulado na Lei nº 54/2005, de 15NOV (Lei da titularidade da água – LTA) e as normas que enquadram a gestão desses recursos na Lei nº 58/2005, de 29DEZ (Lei da gestão da água – LGA). O domínio público lacustre e fluvial engloba os cursos de água aproveitada para canalização para consumo público (artigo 5º c) da LTA). A sua titularidade pertence ao Estado (artigo 6º nº 1). Mas o que é essa titularidade? “O domínio público compreende os bens que, atentas as finalidades de utilidade pública a que são afectos e a colectividade a que servem, estão sujeitos a um regime jurídico caracterizado pela sua impenhorabilidade, imprescritibilidade, inalienabilidade e indisponibilidade” (ver o estudo disponível online: “Natureza jurídica do direito de utilização privativa do domínio público hídrico: entre o direito obrigacional e o direito real administrativo”, Sandra Cristina Pereira Guerreiro[4]). Segundo o disposto no Decreto-Lei nº 280/207, de 7AGO, que define o regime jurídico do património imobiliário público, que naturalmente inclui as águas do domínio público, a titularidade do Estado abrange os poderes de uso, administração, tutela, defesa e disposição (artigo 15º). Porém, os poderes de disposição não incluem os meios de transmissão de direito do direito privado (artigo 18º). Os recursos hídricos do domínio público são de uso e fruição comum e gratuita para as suas funções de recreio, estadia e abeberamento (artigo 58º da LGA). Porém, a sua utilização privativa pode ser conferida a particulares por acto oneroso de transmissão temporária dos poderes de fruição. A captação de água para abastecimento público está sujeita a concessão (artigo 61º a) da LGA). A concessão não transfere para o concessionário a titularidade da água, tal como esse direito existia na esfera do Estado, mas apenas a sua utilização privativa para os fins de abastecimento público (artigo 68º nº 2 da LGA). A concessão é o acto pelo qual a pessoa colectiva de direito público permite a um particular a utilização de bens do domínio público e o seu aproveitamento próprio por um certo período (ver o estudo disponível online: “A utilização do domínio público hídrico por particulares”, Alexandra Leitão[5]). No que respeita à natureza jurídica do direito de utilização privativa obtido pelos particulares em resultado da concessão, de acordo com o citado estudo de Sandra Cristina Pereira Guerreiro, “não é subsumível ao direito de propriedade, entre outras razões, por não ser atribuído ao titular a exclusividade dos direitos sobre o bem, reservando a Administração o direito de gestão e administração dominial”, “também que não é subsumível ao direito de superfície” porque “nem todas as utilizações sujeitas a título de utilização de recursos hídricos implicam construir ou manter construções ou plantações” e por o “uso e fruição do subsolo não se transmitir para o superficiário, o que se afigura incompatível com uma série de utilizações, como sejam as captações subterrâneas de água”. É sim subsumível ao instituto do usufruto porque “permite o uso e fruição, por um determinado período de tempo”, “é transmissível” e “podem ser acrescidas coisas, nomeadamente construções em respeito pelo fim económico do bem, tal como no direito de utilização privativa, desde que se cumpram os termos – o destino económico do bem – do título”. Considera-se neste estudo, em suma, que este direito de utilização privativa do domínio público hídrico reveste a natureza de um direito real, subordinado a um regime de direito administrativo. Chegados aqui, depois desta breve resenha do regime jurídico da titularidade da água e da sua concessão para abastecimento público, estamos em condições de dizer que, ao contrário que se afirma no recurso, a água subtraída pelo arguido é para ele um bem alheio. A água do domínio público hídrico, muito embora não seja propriedade do Estado, com o sentido estrito do direito civil, é objecto de uma relação de titularidade de domínio que confere poderes de uso, administração, tutela, defesa e disposição equiparáveis ao direito de propriedade. Uma vez cedida a sua exploração para o abastecimento público doméstico, a entidade concessionária não é igualmente proprietária da água mas tem sobre a mesma um direito real de usufruto sujeito às regras especiais administrativas. Para efeitos penais, coisa alheia é aquela que esteja ligada por uma relação de interesse juridicamente tutelado a uma pessoa diferente daquela que pratica a infracção (ver a anotação §49 ao artigo 203º no Comentário Conimbricence). Os bens dominiais, embora extra comércio jurídico, devem considerar-se alheios para efeitos penais, dado que o seu uso e fruição comum não incluem o direito de os subtrair a quem tem o domínio da sua exploração económica para uso próprio e exclusivo. Não se pode confundir o direito de beber água de uma nascente com um pseudodireito de apropriação sub-reptícia de água inserida num circuito de exploração comercial. A lógica do recurso, de que não há crime porque o Estado não vende a água à empresa que faz a sua captação e tratamento, porque esta também não a vende ao município da Maia e porque este não a vende igualmente aos particulares, não nos merece acolhimento. Então, de acordo com esta tese – perguntamos nós – como a água que entra regularmente nas casas particulares não pertence a quem a pagou, porque também já não pertencia a quem a disponibilizou, quer dizer que uma pessoa pode ir à torneira da casa de outra apropriar-se da água, contra a vontade de quem a pagou, e não pratica um furto? Isto é razoável? O facto de a lei não se referir à venda de água mas sim ao seu abastecimento não nos impressiona. Primeiro, porque, como vimos, a relação de domínio sobre a coisa que pode ser violada num crime de furto não é apenas o direito de propriedade. Depois, porque é a própria lei que noutras situações, ainda a propósito da titularidade de direitos sobre água proveniente do domínio público hídrico, confere direitos que seria absurdo não estarem tutelados pela protecção penal contra a apropriação ilícita. Pense-se, por exemplo, no aproveitamento comercial das águas minerais e naturais e na indústria do engarrafamento e venda de águas de mesa. Toda a regulamentação que consta nos Decretos-leis nºs 84/90, de 18MAR e 86/90, de 16MAR está estabelecida no pressuposto de que as empresas concessionárias da exploração dessa água ficam com uma relação de domínio em tudo equiparável ao direito de propriedade sobre a mesma, quando é separada e engarrafada para venda. E o que se compra é a água, não é apenas o serviço de engarrafamento e distribuição. O arguido, ao subtrair e consumir contra a vontade do município da Maia, água que estava disponível nas canalizações apenas para quem pagasse o serviço de abastecimento, praticou um acto de apropriação ilegítima de coisa alheia. É indiferente que nos factos provados não conste a quem pertencia a água. A sua qualificação como bem alheio é uma conclusão que decorre da prova de que se tratava de água para abastecimento público e da operação de interpretação da lei que levámos a cabo. 3.4. Omissão de pronúncia de conhecimento oficioso O artigo 379º nº 1 al. c) do CPC dispõe que a sentença é nula quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. O vício consiste na violação do dever do tribunal julgar todas as questões objecto do processo, ou introduzidas pelos sujeitos processuais, na acusação, na contestação ou noutros actos processuais que submetam questões à sua apreciação, ou resultem da discussão da causa e possam ser consideradas prejuízo das regras dos artigos 378º e 379º do CPP. Não foi alegado o vício a que já de seguida nos vamos reportar, mas isso é indiferente, dado que o artigo 379º nº 2 do CPP permite o seu conhecimento oficioso. A jurisprudência do Assento do STJ de 6MAI1992 não é aplicável a esta nulidade, não apenas porque se reportou a um vício diferente: falta de indicação na sentença das provas que serviram para formar a convicção do tribunal; mas também porque é anterior à alteração feita no preceito pela Lei nº 25/2008, que acrescentou a al. c) ao nº 2 e o nº 2. No momento do despacho do artigo 311º do CPP, o Sr. Juiz então em funções no tribunal recorrido decidiu rejeitar a acusação por considerar que os factos se integravam no crime do artigo 207º nº 2 al. b) do CP e que, consequentemente, sendo necessária acusação particular, o Ministério Público não tinha legitimidade para a acção penal. Na sequência de recurso interposto pelo Ministério Público, o aludido despacho foi revogado por acórdão desta Relação. Considerou-se nesse acórdão que o facto de a coisa furtada ser água não permitia logo a conclusão de que se tratava do crime particular vulgarmente designado por furto por formigueiro. Segundo esse acórdão, tal apuramento não se podia fazer no momento do recebimento da acusação, pelo que era necessário apurar mais tarde – em julgamento, dizemos nós – as razões que motivaram o arguido a apropriar-se da água, para além da sua concreta situação económica, para se verificar se actuou movido por uma necessidade imediata e indispensável. Significa isto que o objecto do processo passou a conter outra questão que o tribunal teria de vir a investigar no julgamento e de decidir na sentença, por assim já ter sido determinado em sede de recurso, como pressuposto para o recebimento da acusação e prosseguimento do processo. E a necessidade de conhecer essa questão tornava-se ainda mais evidente por razões de proporcionalidade e justiça, às quais não podemos fechar os olhos, visto que o valor da água de que o arguido se apropriou é de € 2,67! Sucede que a sentença é silenciosa a este respeito. Ela não reflecte qualquer tomada de posição do tribunal sobre os factos necessários para qualificar o crime como furto de coisa de valor diminuto e destinada à utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou dos familiares, previsto no artigo 207º nº 2 al. b) do CP. A sentença é, portanto, nula, por ter omitido a pronúncia sobre tal questão, cuja apreciação o tribunal não podia deixar de fazer. De acordo com o disposto no artigo 379º nº 2, a nulidade em causa pode ser suprida em sede de recurso, desde que o tribunal disponha de todos os elementos para o fazer. No plano da economia e utilidade dos actos processuais, não faria, na verdade, sentido anular a sentença para que o tribunal de primeira instância suprisse um vício que o tribunal de recurso esta em condições de suprir. Nada se fez constar nos factos provados sobre as condições pessoais do arguido nem sobre o seu agregado familiar. Ele faltou ao julgamento e não foi feito relatório social. Contudo, constam na motivação da decisão da matéria de facto, com interesse, os seguintes elementos, que resultaram da discussão em audiência, relatados por testemunhas a quem o tribunal conferiu credibilidade: - O contador da água foi mandado tirar pelo senhorio do arguido uma vez que ele não pagava as contas, apesar de várias vezes avisado (E…). - A água – 1 m3, com o valor de € 2,67 – foi utilizada pontualmente, algures no tempo, num intervalo de 3 dias, para consumo doméstico, pelo arguido, mulher e filho, por necessidade (testemunha F…). - O arguido desmontou a ligação espontaneamente (testemunha F…). - O arguido pagava por mês € 330,00 de renda de casa (documento de fls. 34). Com base naquelas provas, analisadas e credibilizadas no julgamento, temos de aditar esses factos à matéria de facto e verificar se permitem o enquadramento no crime do artigo 207º nº 2 al. b) do CP. No acórdão do TRP, de 17ABR2013, já citado atrás, considerou-se que os pressupostos desse crime não se verificavam numa situação semelhante, mas em que estava em causa a subtracção de água com o valor de € 112,94, num período de tempo maior e com mais continuidade. Em sentido contrário, decidiu nomeadamente o acórdão do TRL, de 29NOV2010[6], relativamente à apropriação de água, em valor desconhecido e em que a ligação “clandestina” foi estabelecida mais de uma vez. Pensamos que no caso que estamos a decidir se impõe a conclusão de que o crime se enquadra no tipo do artigo 207º nº 2 al. b) do CP. A subtracção de água foi pontual, cessou por acção espontânea do arguido e visou obter uma quantidade muito pequena, o que indicia que se tratou de uma necessidade imediata e premente. O seu valor é baixíssimo e está no limiar da dignidade que justifica tutela penal. O arguido era avisado para pagar as contas e não o fazia. Tratando-se de alguém com família a cargo e do bem de consumo doméstico mais importante e mais barato, essa falta de pagamento é indício de dificuldades económicas. Só uma pessoa que não tem dinheiro é que deixa de pagar a água nestas circunstâncias. A renda suportada pelo arguido, de € 330,00 mensais, também é compatível com uma situação económica deficitária. A água subtraída foi utilizada para consumo doméstico do arguido, mulher e filho, por necessidade. Não se sabe que tipo de consumo, mas quer tivesse sido para beber, para cozinhar ou para a higiene, não deixam de estar em causa necessidades de grande relevo inerentes à dignidade humana e necessárias à subsistência física. Neste quadro, parece-nos que o furto de € 2,67 de água, para consumo doméstico do arguido e família, por dificuldades económicas e razões prementes e pontuais, integra o crime de furto de coisa de valor diminuto, destinada à utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do arguido, mulher e filha. O crime do 207º nº 2 al. b) do CP depende de acusação particular. Consequentemente, face ao disposto no artigo 50º do CPP, o Ministério Público carece de legitimidade processual para proceder criminalmente contra o arguido, o que leva à revogação da sentença e à absolvição, embora por fundamentos diferentes do recurso e aparentemente contra a vontade do arguido. 3.5. Custas Não são devidas custas pelo recorrente, uma vez que não decaiu totalmente no recurso – artigo 513º nº 1 a contrario sensu. 4. Decisão Pelo exposto, acordamos em não conceder provimento ao recurso, mas em revogar a sentença por falta de legitimidade do Ministério Público para promover a acção penal pelo crime praticado pelo arguido, que é o do artigo 207º nº 2 al. b) do Código Penal, e não aquele pelo qual foi condenado. Isento de custas. Porto, 26 de Outubro de 2016 Manuel Soares João Pedro Nunes Maldonado _____________ [1] http://www.verbojuridico.net/ficheiros/doutrina/penal/rogerioosorio_crimefurto.pdf [2] http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/944ae177dd2f98af80257807004b7c18?OpenDocument http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/24b64b0bde0d52f280257b78002e9ae5?OpenDocument [3] http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/0/2093a48f6d08fd2a802575ac004c5b66 [4] http://www.icjp.pt/sites/default/files/papers/natureza_juridica_direito_uso_privativo_dominio_hidrico.pdf [5] http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/direito_da_agua_-_a_utilizacao_do_dominio_publico_hidrico_por_particulares.pdf [6] http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/944ae177dd2f98af80257807004b7c18?OpenDocument |