Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
528/25.0GAPFR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AMÉLIA CAROLINA TEIXEIRA
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
MENOR
FILHO DA VÍTIMA E DA ARGUIDA
Nº do Documento: RP20251015528/25.0GAPFR-A.P1
Data do Acordão: 10/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A recolha de declarações para memória futura de menor com de 10 anos, testemunha indireta de atos de violência doméstica dirigidos ao progenitor evita a perda ou deterioração da memória sobre os factos, preserva a integridade da prova e reduz a vitimização secundária decorrente de futura exposição em julgamento.
II - Compete ao Juiz de Instrução verificar, com base no requerimento e, se necessário, em exame liminar dos autos, a aplicabilidade da norma invocada, a legitimidade do requerente e a qualidade da pessoa a inquirir enquanto vítima.
III - Em atenção à limitação da intervenção judicial na fase de inquérito, esse controlo não pode traduzir-se numa indagação aprofundada sobre o estado material ou o conteúdo do processo.
IV - A avaliação, pelo juiz, da existência ou suficiência de indícios do crime denunciado excede os limites do controlo de admissibilidade da diligência; deve prevalecer o enquadramento jurídico proposto pelo titular do inquérito, salvo manifesta falta de fundamento legal, sem prejuízo de que a prova reunida possa, posteriormente, esclarecer melhor os factos e a respetiva subsunção jurídica.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso: 528/25.0GAPFR-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este
Juízo de Instrução Criminal de Penafiel - Juiz 2

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso do despacho da Senhora Juíza de Instrução Criminal de Penafiel, do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, que indeferiu o pedido de tomada de declarações para memória futura do menor AA, filho da arguida BB e do denunciante CC.
2. Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
1 - Nos presentes autos investiga-se a prática pela arguida BB de um crime(s) de violência doméstica, contra o seu marido CC.
2 - De acordo com o ofendido, pelo menos o último episódio foi presenciado pelo menor que se colocou no meio entre o ofendido e a arguida quanto esta ia pegar uma faca contra o ofendido.
3 - O filho do ofendido e da arguida AA nascido a ../../2015 deste ilícito tem 10 anos de idade.
4 - O Ministério Público, em cumprimento da DIRETIVA nº 5/2019, ponto IV. DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA promoveu que o menor AA fosse ouvido em sede de declarações para memória futura.
5- O Mº JIC indeferiu o pedido de declarações para memória futura com fundamento em suma que: não estamos perante um crie de violência doméstica.
6 - E desse despacho que vem interposto o presente recurso.
7- Com o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos desprovido de fundamento legal o indeferimento do pedido de declarações para memória futura.
8 - Em caso de pessoas vítimas do crime de violência doméstica, tem aplicação o regime previsto na Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro e na Lei 130/2015, de 4 de Setembro, bem como o disposto nos artigos 67. 0-A e 271.0 do Código de Processo Penal.
9 - Os factos inicialmente narrados indiciam um controlo total da vida do ofendido, o que também integra violência psicológica
A agressão de 9 de dezembro de 2022 implicou que o ofendido ficasse sujeito a fisioterapia.
No dia 10 maio de 2025, a arguida tirou uma faca da gaveta da cozinha, tendo o menor AA se colocado entre ambos.
10 - No crime de violência doméstica, a reiteração de factos deve ser globalmente apreciada e valorada como integrando um comportamento repetido, dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social, que se consuma com a prática do último acto de execução - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo: 119/12.5GBRMZ.E1 de 19-12-2013.
O crime de violência doméstica integra a categoria de crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, mas, para tal, tem-se exigido que se confirme uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa desde o início assumida pelo agente - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo:83/14.6GAMCD.G1 de 09-10-2017 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo: 1150/14.1GAMA1.P1 de 21-12-2016.
11 - De acordo com a literatura científica, as crianças/menores que vivem em contexto de violência doméstica, a esta sendo expostas por a assistirem, sofrem danos directos, sendo, pois, "vitimas" de tal crime.
12 - No caso concreto, o menor AA é especialmente vulnerável, não apenas porque tal é uma decorrência dos dispositivos legais referidos, mas também porque conta com 10 anos de idade, sendo filho do ofendido, tendo residindo com os intervenientes, assistiu aos factos denunciados suscetíveis de integrar a prática do crime de violência doméstica contra o seu pai, o qual reveste um grau de agressividade passível de gerar sentimento de insegurança à vítima.
13 - A Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, e, por conseguinte, em vigor no ordenamento jurídico português, estabelece no seu artigo 19.0, um quase poder dever de tomada de declarações para memória futura quando em causa está o depoimento de uma criança/menor/menor - neste sentido Acórdão do Tribunal da elação de Évora, Processo: 981/21.OPCSTB-A.El de 24-05-2022, Acórdão do Tribunal da Relação de Evora, proferidos em 23 de junho de 2020, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo: 128/224T9VFC-C.Ll-5 de 22-02-2023, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa Processo: 141/21.OSXLSB-A. L1-9, de 23 Setembro 2021.
14 - Nos termos do artigo 22º, nº 3 da Lei nº 130/2015, de 04 de Setembro, que aprova o Estatuto de Vítima Todas as crianças vítimas têm o direito de ser ouvidas no processo penal, devendo para o efeito ser tomadas em consideração a sua idade e maturidade.
Termos em que, e nos mais que doutamente se suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido, substituindo-o por outro que determine a prestação de declaração para memória futura da menor AA actualmente com 10 anos de idade, por este ser vítima especialmente vulnerável nos termos do disposto artigo 2º, alínea b) da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67º-A, nº 1, alíneas a) i e iii e b) e nº 3 do Código de Processo Penal, devidamente acompanhado por psicóloga do GAV.
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3. Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, e em sede do parecer previsto no artigo 416.º do Código de Processo Penal (CPP), o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.
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4. Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.
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II. Fundamentação
II.1. Questões a decidir
Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, se encontra delimitado pelas respetivas conclusões (cf. artigo 412º, nº 1 do CPP), a única questão a apreciar é:
- Saber se devem, ou não, ser tomadas declarações para memória futura ao menor AA, que conta com dez anos de idade, é filho da arguida e do denunciante.
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II.2. A decisão recorrida
i. Este é o teor da decisão recorrida (despacho de 10.09.2025):
O Ministério Público veio requerer a prestação de declarações para memória futura do filho menor.
Para o efeito, invoca que nos presente autos de inquérito se investiga crime de violência doméstica.
Apreciando:
A prestação de declarações para memória futura constitui uma exceção ao princípio constitucional da imediação consagrado no artigo 32.º, nº5 da Constituição da República Portuguesa. Daqui decorre que as declarações para memória futura recolhidas, neste caso, durante o inquérito têm natureza excecional.
O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento - artigo 33.º, n.º 1, da Lei nº 112/2009 de 16/09.
Na senda de grande parte da jurisprudência nacional, perfilhamos o a actual configuração do crime de violência doméstica, não exigindo comportamentos reiterados, pressupõe que se possa qualificar como maus tratos, o que não ocorre com qualquer agressão; sem se pretender branquear os comportamentos de violência doméstica e a gravidade dos mesmos na vida em sociedade e desvalorizar ou esvaziar de conteúdo útil a disposição do artigo 152.º, mas também sem reconduzir à mesma todo e qualquer acto de agressão entre cônjuges ou ex-cônjuges, entende-se que a configuração do crime pressupõe a existência de maus tratos físicos e psíquicos, ainda que praticados uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, traduzindo, nomeadamente, actos de crueldade, insensibilidade ou vingança da parte do agente e que, relativamente à vítima, se [acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/03/2010, proc. 345/07.9PAENT.E1, in www.dgsi.pt].
Sendo assim, podemos assentar, no que concerne ao crime de violência doméstica da previsão do artigo 152.° do Código Penal, que a ação típica aí enquadrada tanto se pode revestir de maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, com sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade, desde que os mesmos correspondam a atos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima.
Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, 334) entende que, segundo a "ratio" da autonomização deste crime, é aqui exigida uma reiteração das respectivas condutas.
No mesmo sentido se pronunciam Simas Santos e Leal Henriques (Código Penal Anotado, 2.º Vol. 301) e Maia Gonçalves (Código Penal Português, 551).
Também na Jurisprudência este entendimento tem tido acolhimento, como se pode ver, nomeadamente, dos Acórdãos do STJ de 30.10.2003 (CJ STJ XI, 3, 208) e de 4.2.2004 (proc. 2857/03).
A expressão "maus tratos", curiosamente, assumiu na nossa língua uma conceptualização própria, sendo extremamente rara a sua utilização no singular.
E, se é empregue no plural significa, efectivamente, que corresponde a acções reiteradas.
Mas o texto legal inclui a expressão " tratar cruelmente " que comporta, perfeitamente, acções isoladas.
Por outro lado, a autonomização relativamente a outros crimes (nomeadamente de ofensas à integridade física) que pode ser usada como argumento a favor da reiteração, não pode, a nosso ver, e ressalvada sempre a devida consideração, ser tida em conta no caso de maus tratos apenas psíquicos.
Estes podem ocorrer de modo muito intenso numa simples acção (que pode ser muito duradoura) e ter lugar de modo muito mais relevante, sob o ponto de vista da sua saúde ou mesmo dignidade, do que em alguns casos de reiteração.
Um só acto pode, efectivamente, implicar para a pessoa visada (e pensamos em especial nos menores, pessoas indefesas) violação intensa e perene da sua integridade psíquica. Todos sabemos, p. ex., de gaguezes que ficam após um único acto atingidor da pessoa.
Decerto que a reiteração há-de constituir sempre um elemento muito importante para se aferir da gravidade dos maus tratos ou do tratamento cruel. Mas não cremos, face ao que se acaba de referir, que não possa ter lugar - ainda que excepcionalmente - tal crime na ausência dela.
Estamos, assim, com o Acórdão do STJ de 14.11.1997 (CJ STJ, V, 3, 235) ao colocar o ponto de referência relativamente à verificação deste crime, não na reiteração, mas na gravidade traduzida por crueldade, insensibilidade ou até vingança.
Cumpre referir o Acórdão da Relação de Coimbra de 22/11/2017, no processo 1176/16.0PBCBR.C1, disponível no sitio www.dgsi.pt, onde se pode ler o seguinte, sobre este crime: integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.
O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc. É aquela envolvente que determina que acções susceptíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade. Por via do quadro legal estas acções ilícitas mantêm-se mas perdem autonomia, daí que ocorra concurso aparente entre estes vários crimes e o crime de violência doméstica.
Mas uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela.
Por isso é que «o crime de violência doméstica é muito mais que uma soma de ofensas corporais não sendo as condutas que integram o tipo consideradas autonomamente, mas antes valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador daquele crime» (TRL, processo 5752/09.0TDLSB, de 8-11-2011).
Também por isso a distinção entre o crime de violência doméstica, enquanto tal e por um lado, e o concurso dos crimes de ofensas, ameaça, injúria, etc., que as concretas acções podem configurar, por outro, faz-se com recurso ao conceito de maus tratos este exige o desprezo, humilhação, especial desconsideração pela vítima e a gravidade destas manifestações.
Sendo esta a regra há situações excepcionais em que bastará uma acção isolada para preencher o tipo legal. Em tais situações excepcionais a consumação do crime bastar-se-á com a prática de um só acto, desde que este único acto «assuma uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa, isto é, quando o comportamento singular só por si é claramente ofensivo da dignidade pessoal», quando a «gravidade intrínseca do mesmo preencha o tipo de ilícito» (TRC processo 835/13.4GCLRA, de 20-1-2016) …”
No caso referido, decidiu- que os actos praticados pelo arguido não são susceptíveis de configurar a ocorrência de um crime de violência doméstica, porque não assumem a tal intensa crueldade, insensibilidade, desprezo, aviltamento da dignidade humana necessárias ao crime pelo qual foi condenado.
Na realidade, o único acto ilícito que está em causa é o que consta do ponto 13, do qual resulta que no dia 25-9-2016 relativamente à ofendida «o arguido desferiu-lhe um pontapé na zona baixa lombar, várias palmadas na cabeça e face e vários puxões de cabelo …»…”
Com esta incriminação visa-se assegurar uma “tutela especial e reforçada da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pela sua caracterização e motivação - geralmente associada a comportamentos obsessivos e manipuladores - constituam uma situação de maus tratos, que é por si mesma indiciadora do perigo e da ameaça de prejuízo sério frequentemente irreversível “ [Cfr. Nuno Brandão, in “A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Julgar, 12º, 18].
*
Ora, do confronto do que se deixa exposto com a matéria indicada no requerimento que antecede, os factos apresentam inúmeras contradições e insuficiências, senão veja-se o episódio referido no art. 29.º e seguintes, onde se descreve estarem fora de casa, presentes ofendido e arguida, que culmina no facto 34.º, onde já se alega que o filho menor de ambos assistiu aos factos, encontrando-se o casal na cozinha da residência, sem que se entenda se se trata do mesmo episódio, do mesmo dia, na sua sequência, em que lapso temporal ocorreu para que se entenda o seu contexto; e se efectivamente o filho menor do casal assistiu aos factos, a que factos, e se esses assumem a relevância criminal pretendida pelo MP. Cremos que não. Aliás, não foram alegados os factos que no entender do requerente foram praticados na presença do menor, à excepção do referido e que não assume nenhum relevo.
Desde logo avulta que a qualificação de tais factos não tem cabimento no conceito de maus-tratos, não integrando, consequentemente, a prática do crime de violência doméstica. É que os factos não assumem a gravidade pretendida e exigida por este tipo de crime. Não se vislumbra que, os factos denunciados, possam consubstanciar a prática de um crime de violência doméstica, apenas configurando, salvo melhor entendimento, quando muito, de crimes de ofensas à integridade física simples, tão só. Ora, estes crimes não são suficientes para fundamentar o pedido de tomada de DMF encetado pela Digna Magistrada do MP.
Aliás, toda a matéria indiciada é susceptível de ser valorizada para efeitos de processo de divórcio, mas jamais para a prática do crime de violência doméstica, sendo boa parte dela até do foro íntimo do casal, destituída de qualquer interesse em matéria criminal.
Ora, com o devido respeito, a maioria das condutas descritas nem sequer seconsubstancia na prática de qualquer ilícito criminal.
Seria um salto ilógico partir apenas dos mencionados dados, que se tem vindo a referenciar, e deduzir a prática do crime de violência doméstica, sem ter sido possível depreender qual o concreto papel do arguido no cenário criminoso que a vítima trouxe a inquérito. Na realidade, uma decisão deste tipo apenas pode surgir quando, em sede de indícios, se tenha ultrapassado a fase das meras conjecturas ou dos palpites.
É que para tal é necessário que os autos contenham um número suficiente de circunstâncias certas de cuja conjugação se extraia, com rigor lógico dedutivo, uma conclusão sobre a ocorrência de uma infracção e da identidade dos seus agentes. E tal não acontece nos presentes autos.
Neste conspecto, não nos resta senão concluir pela carência de indícios quanto à prática, por banda do/a arguido/a, do crime participado de violência doméstica.
Face ao exposto, indefere-se a tomada de declarações para memória futura do filho/a/ do casal, como doutamente promovido, ao abrigo do disposto artigo 33.º, n.º 1, da Lei nº 112/2009 de 16/09, sem prejuízo de, caso venham a ser recolhidos elementos de prova de interesse para a responsabilização criminal do/s arguido/s pelo tipo de crime em investigação, se reapreciar eventual nova pretensão de idêntico teor.
Notifique.
Devolva ao MP.
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ii. Requerimento do Ministério Público [de 04.09.2025]:
Nos presentes autos investiga-se a prática pelo arguido BB de um crime(s) de violência doméstica, contra o seu marido CC.
Nos termos da DIRETIVA n.º 5/2019, ponto IV. DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA:
“A. Nas Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD)
2 Sempre que haja notícia da existência de crianças presentes num contexto de violência doméstica e independentemente de serem aquelas ou não destinatárias de atos de violência, o MMP da SEIVD-NAP requer obrigatoriamente a tomada de declarações para memória futura das mesmas.
B. Inexistindo Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD) O MMP, verificadas as situações elencadas nos n.ºs 1 e 2, deve igualmente requerer a tomada de declarações para memória futura, salvo a concreta verificação de condições de serviço que a tal obste, dando disso imediato conhecimento ao respetivo superior hierárquico, com vista à adoção das adequadas medidas gestionárias.
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De acordo com o ofendido, pelo menos o último episódio foi presenciado pelo menor que se colocou no meio entre o ofendido e a arguida quanto esta ia pegar uma faca contra o ofendido.
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A vítima AA, nascido a ../../2015 deste ilícito tem 10 anos de idade pelo que por força do disposto nos artigos 67º-A nº 1 al. b) e nº 3, com referência ao artº 1º al. j), todos do CPP, artigo 26º da Lei de Protecção de Testemunhas e artº 2º, al. b) da Lei de Protecção às vítimas de Violência Doméstica é considerada vítima especialmente vulnerável.
Nos termos do artº 28º da Lei de Protecção de Testemunhas, as declarações de testemunha especialmente vulnerável devem ter lugar no mais breve espaço de tempo após a ocorrência do crime e sempre que possível deve ser evitada a repetição da sua audição.
O instituto da tomada de declarações para memória futura constitui exactamente um dos mecanismos para evitar a repetição de audição da vítima e protegê-la do perigo de revitimização.
Doutro modo, por se tratar de um menor de 10 anos de idade, a sua inquirição no mais breve espaço de tempo possível, pode evitar uma eventual contaminação do seu depoimento e a perda de memória dos factos traumáticos na sua plenitude e com a precisão e rigor necessários à investigação.
No Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferidos em 23 de junho de 2020 concretiza-se no reconhecimento de que se as crianças/jovens assistem aos maus tratos psicológicos ou outros que são infligidos à progenitora, sempre sofrerá um dano na sua integridade emocional ou moral com
consequências no seu futuro desenvolvimento, qualquer que seja a sua idade - no caso concreto, uma vítima com 15 anos de idade.
Por relevantes transcrevem-se as seguintes passagens das doutas decisões:
(...) Tendo o jovem de quinze anos convivido com o seu padrasto e tendo assistido ao longo dos anos à violência doméstica exercida sobre a sua mãe, coloca-o no conceito de vítima especialmente vulnerável a que se refere o artigo 67.º-A do C.P.P. (nº 1 als. b), c) e d) e nº 3), não sendo aplicável o regime da lei de protecção de testemunhas, mas antes o regime especial dos crimes de violência doméstica, completado pelo regime aplicável às vítimas em geral dos crimes violentos, tendo-se em consideração o referido conceito de vítima previsto no artº 67º-A do C.P.P.. Tudo impunha, perante a possibilidade dada ao juiz de instrução de deferir ou indeferir o requerimento do M.P. para a tomada
de declarações para memória futura que o mesmo fosse deferido ao abrigo dos artigos 271.º e 67.º-A do C.P.P., 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, 33.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e 3.º da Convenção dos Direitos da Criança.
Em caso de pessoas vítimas do crime de violência doméstica, tem aplicação o regime previsto na Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e na Lei 130/2015, de 4 de Setembro, bem como o disposto nos artigos 67.º-A e 271.º do Código de Processo Penal e não o disposto na Lei n.º 93/99, de 14 de
Julho;
8 - De acordo com a literatura científica, as crianças/menores que vivem em contexto de violência doméstica, a esta sendo expostas por a assistirem, sofrem danos directos, sendo, pois, "vitimas" de tal crime, tendo, entre outros: um risco maior de problemas de saúde mental ao longo da vida, risco aumentado na saúde física, risco de abandono escolar e outros desafios educacionais, risco de envolvimento em comportamentos criminais, e dificuldades interpessoais em relacionamentos e amizades futuras, são também mais propensos a sofrer e a praticar bullying, e são mais vulneráveis ao abuso e exploração sexual, além de maior probabilidade de se envolverem em relacionamentos violentos.
No caso concreto, o menor é especialmente vulneráveis, não apenas porque tal é uma decorrência dos dispositivos legais referidos, mas também porque: conta com 10 anos de idade; sendo filho dos intervenientes e residindo com os mesmos é provável que tenham assistido a factos susceptíveis de, em abstracto, integrar a prática do indicado crime de violência doméstica, o qual reveste um grau de agressividade passível de gerar sentimento de insegurança à vítima; viveram com o denunciado e a ofendida desde os seus primeiros anos de vida, sendo a arguida, durante este concreto e crucial período da vida das testemunhas, uma das figuras adultas de referência;
Assim, afigura-se-nos absolutamente essencial a inquirição de AA, por ter presenciado pelo menos o último episódio denunciado, sendo por tal motivo o seu testemunho essencial para a descoberta da verdade.
Pelo exposto, face á sua idade, promove-se que o(a/os) AA seja(m) inquirido (a/os) em sede de declarações para memória futura, nos termos do disposto nos termos dos artigos 24º do Estatuto de Vítima, 33º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro (Lei de Protecção às Vítimas de Violência Doméstica) e 271º do CPP.
Sugere-se que seja questionado à menor:
- Qual o tipo de relacionamento com o denunciado/arguido?
Desde quando coabita/coabitou com o denunciado(a)?
- O local ou locais onde viveram, nessa situação, e as respectivas datas (sempre o mais concretas possível);
- As circunstâncias de tempo e lugar históricas (indicação cronológica) e concretas (o mais possível, evitando generalizações, e tentando a maior concretização possível) em que a sua mãe foi vítima de agressão física e/ou verbal/sexual ou outras por parte do denunciado. Assim:
i. Agressões? Com mãos (chapadas e/ou murros), pés, etc? E onde
ii. Ameaças? Quais? Deve dizer as frases concretas e o contexto em que foram proferidas e do qual se depreende os motivos porque temeu. Quando estava sozinha, por exemplo? À noite?
iii. Injúrias? Deve dizê-las;
iv. Comportamentos persecutórios devem ser também descritos o mais concretamente possível;
v. Quando e onde a sua mãe os sofreu, por indicação cronológica (começando sempre pelo mais antigo para o mais recente), o mais aproximada - Descrever o contexto e motivos (caso tenha perspectiva sobre isso, lesões sofridas em consequência daquelas;
- Esclarecer se o(a) denunciado(a) sofre de alguma problemática psiquiátrica/dependência, e/ou desemprego ou outra problemática relevante, e se já esteve internando, quando e onde, ou quem é o clínico que o acompanhada, ou que medicação toma, e se algum dia ameaçou que se suicidaria, quando e onde e em que contexto;
*
FACTOS INDICIADOS:
1.º
A arguida BB é casado com o ofendido CC há cerca de 22 anos.
2.º
Do casamento entre ambos nasceram dois filhos, a saber:
- DD, nascida ../../2004;
- AA, nascido a ../../2015.
3.º
O seu agregado familiar fixou residência habitual na Travessa ..., ..., em Paços de Ferreira.
4.º
A partir do nascimento do filho mais novo, o comportamento da arguida para com o ofendido alterou-se, nomeadamente a mesma começou a ficar mais agressiva no seu discurso para com o mesmo e restante agregado familiar.
5.º
No princípio do 2016, a arguida começou a trabalhar numa empresa de fabrico de Têxteis, dendo a relação tido altos e baixos.
6.º
Entre o final de 2021 e finais de 2022, a arguida adotou um comportamento diferente, estava mais agressiva para com o ofendido, nomeadamente quando o ofendido chegava a casa depois da 21h00 e 21h30 a arguida entrava em conflito com o mesmo por este chegar tarde, dizia que os filhos ainda não tinham comido, que não respeitava os horários, que não queria saber, entre outros.
7.º
A dada altura, a arguida exigiu que o ofendido a fosse levar e buscar ao trabalho, independente da hora, visto o ofendido trabalhar por contra própria no fabrico de cascos de sofás, por forma a controlá-lo.
8.º
A irmã do ofendido EE reside no mesmo prédio da residência do casal.
9.º
Frequentemente, na presença de EE, a arguida iniciava discussão com o ofendido nas quais exigia que o ofendido explicasse onde andava, o que tinha andado a fazer e o motivo por ter chegado àquela hora.
10.º
O ofendido mantinha-se calmo e sereno a ouvir a arguida.
11.º
Bastava o ofendido ir à residência da irmã EE que logo a arguida o começava a chamar.
12.º
Em agosto de 2022, dia não concretamente apurado, no interior da residência, o ofendido notou que quando tinha relações sexuais com a arguida era à mesma hora e mesmo dia da semana, de 15 em 15 dias, levando-o mesmo a questionar a arguida sobre o motivo deste comportamento.
13.º
Desagrada, a arguida pediu o divórcio ao ofendido, dizendo-lhe que deveria ser próprio a tratar do divórcio, o qual recusou dizendo que não trataria do divórcio que caso quisesse que ela própria trata-se.
14.º
No dia 4 de outubro de 2022, o ofendido descobriu uma mensagem no telemóvel da arguida do patrão da mesma, onde dizia "Ai era tão bom estar aí a dar te uns beijos".
15.º
Desconfiado que a arguida manteria uma relação extraconjugal, o
16.º
No dia 6 de outubro de 2022, o ofendido descobriu novas mensagens onde a arguida tratava o seu patrão por "amor" e que o "amava muito", tendo o ofendido tirado as dúvidas que a arguida mantinha uma relação extraconjugal.
17.º
O ofendido confrontou a arguida, a qual fugia do assunto não dando uma resposta esclarecedora ao mesmo.
18.º
No dia 9 de dezembro de 2022, o ofendido contactou telefonicamente o patrão da arguida e confrontou-o sobre qual a relação que mantinha sobre qual seria a relação entre o mesmo e a sua mulher, tendo mesmo dito que eram coisas entre eles e que não tinha nada a ver com isso.
19.º
Após o ofendido ter descoberto que a arguida mantinha uma relação extraconjugal, várias vezes, a mesma dirigia-se a este e proferia comentários sarcásticos, bem como afirmava “VÊ LÁ SE UM DIA NÃO VAIS PRESO!”
20.º
Nesse mesmo dia, à hora de almoço, no interior da residência, a arguida e o ofendido discutiram, porquanto a arguida ficou desagradada com o contacto telefónico realizado pelo ofendido ao seu patrão.
21.º
Durante essa discussão, atirou um iogurte e uma colher contra o ofendido, dizendo que se ia embora de casa.
22.º
Nesse momento, o ofendido agarrou a chave da viatura, tendo a arguida se agarrado ao braço direito dando um puxão com força, ficando o ofendido com dores no mesmo.
23.º
O ofendido não foi hospital por sentir vergonha.
24.º
A arguida foi embora de casa, tendo ido para casa da sua irmã, no entanto ao fim de cinco dias voltou para casa.
25.º
Em janeiro de 2023, o ofendido andou no fisioterapeuta, no entanto como não estava a conseguir trabalhar devido ás dores, tendo feito exames pelo seguro do trabalho ao braço, tendo sido detetado uma rotura total do tendão espinhoso, tendo a seguradora dito que a lesão era anterior a data de entrado acidente na clínica (20 de janeiro de 2023).
26.º
Em maio de 2023, o arguido e a ofendida faziam 20 anos de casados, e após pressão da arguida, foram fazer uma viagem na companhia dos seus filhos.
27.º
Que até setembro de 2024 a relação foi decorrendo dentro da normalidade, sendo que a partir dessa altura o ofendido fez parte de um grupo de pais que tentavam angariar fundo para a viagem de finalistas do 4.° ano, onde o seu filho AA fazia parte.
28.º
Sendo que cada vez que o ofendido ia às reuniões, a arguida ligava constantemente ao mesmo para ir para casa, que queria fumar um cigarro.
29.º
No dia 10 maio de 2025, a arguida e o ofendido saíram para tomar café depois do almoço e foram a um café, nomeadamente nas Bombas da A... de Paços de Ferreira.
30.º
Já à saída do café, o ofendido perguntou à arguida se o patrão lhe pagava os almoços, visto ter reparado no talão da conta conjunta o pagamento de almoços por parte da arguida e não via os retornos por partes da entidade patronal.
31.º
Depois disso, já dentro da viatura, a arguida desagrada disse que “não precisava daquela merda para nada”, referindo-se ao cartão multibanco e atirando-o, quando estavam a chegar à residência o qual ficou dentro da viatura.
32.º
De seguida, o ofendido foi buscar o cartão ao chão da rua e levou para dentro de casa, e a arguida virou-se para o mesmo e disse que se visse o cartão que o partia.
33.º
A arguida passou junto ao ofendido dando-lhe um toque no braço, dirigindo-se diretamente ao cartão que estava pousado em cima do balcão da cozinha, pegou nele dobrou a meio, fechou na mão, dirigiu a mão à face do ofendido, como meio de provocação e intimidação, que por instinto do ofendido
para se defender com a sua mão esquerda ao desviar a mão da arguida acabou por bater na cara de mesma, tendo o denunciante recuado de seguida.
34.º
Que depois disso, a arguida ficou bastante agressiva: dirigiu-se à gaveta da cozinha, pegando numa faca, no entanto não chegou a tirá-la da gaveta, tendo o ofendido "o que vás fazer?" tendo esta respondido "isso era o que tu querias", estando já no meio de ambos o filho AA.
35.º
Depois disso, o ofendido disse à arguida que fosse embora que o estava a pôr doente, tendo a mesma se trancado no quarto batendo com muita força.
36.º
Que a partir desse dia começaram a dormir em quartos separados.
37.º
Em julho de 2025 iniciaram o processo de divórcio.
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Conclua ao M.º JIC.
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II.3. Apreciação do Recurso
Conforme decorre do relatório antecedente, está em causa o indeferimento do pedido de tomada de declarações para memória futura pelo menor AA, de dez anos de idade (nascido em ../../2015), formulado no âmbito de inquérito pendente contra BB.
O referido inquérito tem por objeto a investigação de factos que o Ministério Público qualifica como integrando o crime de violência doméstica, sendo o ofendido o pai do menor, e simultaneamente, filho da arguida.
O Ministério Público fundamentou o pedido na alegada ocorrência de episódios de violência dirigidos ao ofendido - que elenca - e que o menor terá presenciado, pelo menos, em parte, designadamente o último desses episódios. Definiu o objeto da diligência mediante a indicação de concretas questões a colocar ao menor e invocou para o efeito o disposto nos artigos 271º e 67-A, nº 1, al. b) e nº 3, com referência ao artigo 1º, al. j), do CPP, artigos 24º, 26º e 28º da Lei de Proteção de Testemunhas e artigos 2º, al. b) e 33º da Lei de Proteção às Vítimas de Violência Doméstica.
A Senhora Juíza de Instrução Criminal recusou a requerida diligência, por entender que os factos indiciariamente apurados não consubstanciam a prática, por parte da denunciada, de um crime de violência doméstica, não resultando igualmente percetível quais os factos que terão sido presenciados pelo menor.
Vejamos.
Resulta do exposto que o processo se encontra ainda na fase de inquérito.
Tal fase processual compreende o conjunto de diligências destinadas a investigar a existência de um crime, determinar os respetivos agentes e a sua responsabilidade, com vista à decisão sobre o exercício da ação penal, nos termos do artigo 262º do CPP.
No ordenamento jurídico português, o processo penal tem uma estrutura essencialmente acusatória, em conformidade com o artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP, de ora em diante), que consagra a separação entre as funções de investigação e de julgamento. Compete ao Ministério Público o exercício da ação penal (artigo 48.º do CPP) - isto é, investigar e acusar -, e ao juiz o julgamento dos factos apresentados, quer pelo Ministério Público (artigo 283.º, do CPP), quer pelo assistente (artigo 285.º, do CPP).
Sendo o inquérito dirigido e realizado, em exclusivo, pelo Ministério Público (artigos 53.º, 262.º, 263.º e 267.º, todos do CPP), cabe-lhe definir o seu objeto, escolher e calendarizar as diligências probatórias, bem como promover a intervenção do Juiz de Instrução nos casos legalmente previstos (artigos 268º e 269º do CPP). Tal regime decorre do artigo 263º do CPP, em articulação com os artigos 32º, nº 5 e 219º, nº 2, da CRP, que consagram, respetivamente, a estrutura acusatória do processo penal e a autonomia do Ministério Público.
Assim, no modelo acusatório adotado pelo CPP, constitui traço essencial o afastamento do juiz relativamente à preparação da ação penal, sendo a sua intervenção no inquérito reservada a atos e diligências que se se prendem com direitos fundamentais e outras matérias que o legislador conferiu ao juiz.
É neste quadro que se insere o incidente de tomada de declarações para memória futura, suscitado a requerimento dos sujeitos processuais, ao abrigo dos artigos 268º, nº 2 1, alínea f), e 271º, do CPP.
Originalmente concebida como mecanismo de caráter preventivo para garantir a conservação de prova em risco de perecimento ou inviabilização antes do julgamento, a recolha de declarações para memória futura viu o seu âmbito funcional ampliado pelo legislador, abrangendo também a proteção das vítimas, em especial as pessoas especialmente vulneráveis (cfr. Dá Mesquita, ob. cit. Tomo III, 2ª edição, p. 1012 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, vol. II, 5ª edição atualizada, p. 133).
Na situação em análise, de acordo com o requerimento do Ministério Público, a realização da diligência probatória encontra fundamento na legislação aplicável à proteção das vítimas de violência doméstica, designadamente, na Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, que estabelece o Regime Jurídico da Prevenção da Violência Doméstica e da Proteção e Assistência às suas Vítima (artigo 1º, da mesma Lei).
Nos termos do artigo 33º dessa lei, o juiz pode proceder à inquirição da vítima durante o inquérito, a fim de que o respetivo depoimento possa, se necessário, ser valorado no julgamento. A tomada de declarações para memória futura pode ser requerida pela própria vítima ou pelo Ministério Público (n º 1), devendo a diligência decorrer em ambiente informal e reservado, de modo a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas. Durante o ato processual, a vítima deve ser assistida por técnico de apoio ou profissional que lhe preste acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, mediante autorização prévia do tribunal (nº 3). A inquirição é conduzida pelo juiz, podendo, em seguida, o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais (nº 4).
Idêntica previsão consta do artigo 24º do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei nº 130/2015, de 4 de setembro, igualmente invocado pelo Ministério Público, quanto às vítimas especialmente vulneráveis. Também os artigos 26º, nº 2 e 28º, da Lei de Proteção de Testemunhas (Lei nº 93/99, de 14 de julho), preveem a possibilidade de as vítimas especialmente vulneráveis serem ouvidas para memória futura, ao abrigo do disposto no artigo 271º, do CPP.
Assim, no caso presente, os requisitos de admissibilidade da tomada de declarações requerida correspondem aos previstos nas normas legais citadas. Compete, pois, ao Juiz de Instrução verificar a aplicabilidade da legislação invocada, a legitimidade do requerente e a qualidade da pessoa a inquirir enquanto vítima. Essa aferição deve basear-se na informação constante do requerimento e, se necessário, em exame liminar do processo.
Contudo, atenta a delimitação da intervenção judicial na fase de inquérito, o controlo do juiz não pode envolver uma indagação aprofundada sobre o estado e conteúdo do mesmo. A avaliação judicial da existência ou suficiência de indícios da prática do crime de violência doméstica denunciado excede os limites do controlo da admissibilidade legal da diligência, devendo, nesta fase prevalecer o enquadramento jurídico efetuado pelo titular do inquérito, salvo em caso de manifesta falta de fundamento legal (cf. Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 08.01.2025, proferido no processo nº 429/24.9GAPFR-A.P1, inédito). Sem prejuízo de que, em momento posterior, a prova recolhida possa permitir um melhor esclarecimento dos factos e da respetiva subsunção jurídica.
Do mesmo modo, inexiste fundamento legal que legitime o juiz de instrução a pronunciar-se sobre a necessidade ou utilidade de realização de diligências investigatórias prévias, ou sobre a adequação e oportunidade da requerida tomada de declarações para memória futura, sob pena de violação da titularidade do exercício da ação penal, que cabe em exclusivo, ao Ministério Público (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.01.2023, proferido no processo 604/22.0PAVFX-A.L1-9, disponível em www.dgsi.pt).
No caso concreto, carece de fundamento legal a decisão de indeferimento da diligência requerida pelo Ministério Público, baseada essencialmente na alegada inexistência de indícios da prática, pela denunciada, de um crime de violência doméstica, a partir da análise do conteúdo do requerimento apresentado e de considerações teóricas sobre o tipo legal.
Atendendo à factualidade exposta no requerimento apresentado pelo Ministério Público - e realçada na motivação do recurso -, não se afigura destituído de fundamento o enquadramento jurídico-penal por si efetuado, sendo possível, no âmbito das possibilidades indiciárias, a existência de suspeita fundada de que o pai do menor AA, possa ter sido vítima de um crime de violência doméstica, cuja dimensão objetiva carece de investigação, tendo o menor alegadamente presenciado, pelo menos, parte dos factos, designadamente a parte final do episódio que alegadamente terá ocorrido no dia 10 de maio de 2025.
O Ministério Público pretende a prestação de declarações para memória futura pelo menor, relativamente a factos de que este terá conhecimento direto e que são relevantes para a descoberta material. Tendo presenciado alegados atos de violência entre os progenitores, o menor assume a condição de vítima indireta da violência doméstica em investigação, integrando-se claramente na alínea a), subalínea iii), do nº 1 do artigo 67º-A, do CPP, beneficiando do estatuto de vítima.
Sendo menor e devendo depor contra um dos seus progenitores, impõe-se que tal depoimento ocorra em condições que favoreçam a genuinidade e espontaneidade da prova, prevenindo a revitimização. A indiciada exposição a situações de violência interparental torna-o igualmente vítima do crime de violência doméstica em investigação, com potenciais consequências negativas na sua saúde psicológica, enquadrando-o na alínea b) do nº 1 do artigo 67º-A, do CPP, como vítima especialmente vulnerável.
A prestação antecipada de declarações pelo menor - atualmente com dez anos de idade - visa não só evitar a perda de memória dos acontecimentos presenciados, garantindo a preservação da prova, mas também salvaguardar a vítima de futura exposição em julgamento, reduzindo o risco da vitimização secundária.
Face às disposições legais aplicáveis, a tomada de declarações para memória futura do menor AA, encontra pelo suporte legal, quer por aplicação direta do disposto no artigo 33º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, quer por força da Lei de Proteção de Testemunhas, atendo o seu estatuto de vítima especialmente vulnerável, à luz do artigo 67º-A, nº 1, alínea b), do CPP.
Em síntese, confirmam-se os requisitos de admissibilidade da tomada de declarações para memória futura do menor, de dez anos de idade, atenta a investigação em curso pela prática, pela denunciada, de um crime de violência doméstica. Reconhece-se a sua qualidade de vítima desse crime, sendo considerada vítima especialmente vulnerável (cf. artigo 67º-A, nº 1, alínea a), subalínea iii) e alínea b), do Código de Processo Penal; artigo 2º, alíneas a) e b), da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro). O menor tem direito a ser ouvido (cf. artigos 17º e 22º, da Lei nº 130/2015, de 04 de setembro), e o Ministério Público tem legitimidade para requerer a diligência (cf. artigo 33º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro).
Procede, pois, o recurso.
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III. Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência, revogam o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que determine a realização da diligência requerida pelo Ministério Público.
Sem custas.
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Porto, 15 de outubro de 2025
(anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original)
Os Juízes Desembargadores
Amélia Carolina Teixeira
José Quaresma
Pedro M. Menezes

Elaborado e integralmente revisto pela relatora (art.º 94)