Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3075/24.3T8LOU-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: EXECUÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE FACTO
OBRIGAÇÃO DE FACTO NEGATIVO
VERIFICAÇÃO DA VIOLAÇÃO DA OBRIGAÇÃO
FUNDAMENTOS DOS EMBARGOS
Nº do Documento: RP202511133075/24.3T8LOU-A.P1
Data do Acordão: 11/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na execução de sentença que fixou uma obrigação de facto negativo, no requerimento executivo o exequente deve indicar que ocorreu uma violação dessa obrigação e requerer que a violação seja verificada por meio de perícia.
II - Essa execução compreende um incidente declarativo para verificar e reconhecer a violação da obrigação (a prática do facto positivo vedado).
III - O executado pode opor-se ao incidente com fundamento de que a violação não ocorreu, mas não deve fazê-lo por meios de embargos de executado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2025:3075.4.3T8LOU.P1

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SUMÁRIO:


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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:





I. Relatório:


AA, contribuinte fiscal n.º ...73, instaurou contra BB, contribuinte fiscal n.º ...94, e mulher CC, contribuinte fiscal n.º ...45, todos residentes em ..., Amarante, execução de sentença judicial, alegando o seguinte:


Por douta sentença transitada, os executados foram condenados a:

- reconhecer que há mais de 60 anos existe a favor do prédio do exequente uma servidão de passagem, a pé e de veiculo automóvel e agrícola, a favor do exequente

- que o caminho se inicia na Rua ... e se prolonga em paralelo a esta, atravessando na extrema poente, os prédios dos réus (os aqui executados e DD e mulher EE); o caminho tem 4 metros de largura e 60 metros de comprimento até ao prédio do autor, tendo uma bifurcação a nascente, em direcção à casa do referido DD e mulher, com uma largura de 4 metros e 30 metros de comprimento; faz um percurso em linha recta, em terra batida, paralelo ao prédio do exequente e que dá acesso à sua casa e logradouro, a pé, de veículo automóvel e agrícola.

- respeitar a servidão de passagem pelo caminho, abstendo-se de praticar qualquer acto que limite ou impeça o seu exercício, pelo exequente, pelo seu agregado ou por que queira dirigir-se a sua casa.

Sucede que no dia 17 de Agosto, os executados colocaram um esteio de cada lado do caminho e atravessaram uma corrente em ferro, impedindo que o exequente de circular.

No acesso ao logradouro da casa do exequente, retiraram terra, criando um elevado desnível, para que o exequente não consiga circular de automóvel, para aceder a sua casa.

Devem os executados remover os esteios e a corrente de ferro, dado que impede do exequente de circular e fazer qualquer manobra para aceder ao logradouro de sua casa.

Mais devem repor a terra que removeram do caminho, eliminando o acentuado desnível que criaram e que não permite a circulação de veículos.

Os executados deduziram embargos à execução, pedindo a extinção desta.


Para o efeito alegaram que as obras realizadas pelos executados não contendem com o caminho de servidão tal como definido na sentença exequenda, o qual se encontra livre para o exequente circular nele para sair e entrar no seu prédio, não tendo os executados colocado qualquer obstáculo à circulação do exequente para aceder ao seu prédio por aquele caminho, nem sequer com as obras e construções descritas no requerimento executivo, as quais não afectam ou reduzem o conteúdo do direito de servidão do exequente.


Mais defendem que a sentença não fixou o local onde o caminho dá acesso ao prédio do exequente, pelo que importaria agora delimitar o local da entrada para o prédio do exequente; os esteios e cadeado referidos no requerimento exequendo estão para além do prédio do exequente referido na sentença e, portanto, fora do percurso e sem nada reduzirem ao caminho de servidão e permitem ao exequente entrar no seu prédio de forma livre, fácil e segura; desde o local em que o caminho alcança o prédio do exequente até ao local onde os executados colocaram o cadeado distam cerca de 25 metros, pelo que os mesmos em nada perturbam o exequente.


O embargado contestou os embargos, defendendo que o cadeado e os dois ferros onde é preso são obstáculos físicos e estão colocados no caminho, impedindo a circulação do embargado e de quem queira deslocar-se a sua casa. Termina pedindo que os embargos sejam julgados improcedentes e os embargantes condenados no pagamento de sanção pecuniária compulsória, nos termos do disposto no art. 829-A do Código Civil, por cada dia de atraso até à remoção do impedimento ou obstáculo que circular no caminho ou, se assim não se entender, condenados no valor de indemnização pela privação / perturbação do uso do caminho, desde a citação ocorrida na execução, em valor nunca inferior a 50.00€ dia.


Após tentativa de conciliação, foi proferido saneador-sentença, tendo os embargos sido julgados improcedentes e ordenado o prosseguimento da execução.


Do assim decidido, os embargantes interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:


A. O Tribunal não motivou a decisão de facto, violando o disposto nos números 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil.


B. Por outro lado, o Tribunal baseou a solução jurídica em factos que não deu como provados, o que corresponde a nulidade nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alíneas b), c) e d) do CPC.


C. Não há acordo das partes quanto à verificação dos factos 3. e 4. tal como descritos na sentença, nem os mesmos foram demonstrados por meios de prova plena, pelo que não podiam ter sido convertidos em factos assentes sem antes terem sido sujeitos a produção de prova, o que ocorreria em julgamento com verificação do contraditório.


D. Deste modo, têm esses factos que ser eliminados.


E. Os Recorrentes não concordam com a conclusão de que a sua oposição não se integra no artigo 729º do CPC.


F. O processo executivo é um conjunto de actos judiciais que visam a satisfação coerciva de um direito, através da realização de actos previstos na lei, quando o devedor não cumpre voluntariamente uma obrigação.


G. Assim, a sua justificação está no incumprimento e no correlativo direito de exigir o cumprimento, pelo que a invocação da ausência de incumprimento será sempre causa de oposição à execução.


H. Só a obrigação exigível pode ser executada, e ela só será exigível se houver incumprimento.


I. Os factos alegados pelos Recorrentes nos seus embargos contendem directamente com a ausência de incumprimento, o que obriga o Tribunal a conhecer os fundamentos de oposição.


J. Os Recorrentes invocam também a incerteza da obrigação exequenda, com base na indefinição do local onde desemboca a servidão, sendo que só essa definição permite averiguar se o recorrido excede os limites do seu direito na pretensão que expressa no requerimento executivo.


K. No processo declarativo, o direito de servidão foi limitado ao trânsito de pessoas a pé, de veículo ligeiro e de tractor agrícola, o que não comporta, destarte, o trânsito de veículos pesados, ou a possibilidade de invasão do prédio do autor pelo recorrido, já após o fim do caminho, para fazer inversão de marcha.


L. As dúvidas quanto à certeza e exigibilidade da obrigação exequenda alvitradas pelos recorrentes preenchem de forma razoável a previsão da alínea e) do artigo 729º do Código de Processo Civil, pelo que existe fundamento legal para a oposição deduzida.


M. O douto tribunal a quo não possuía nos autos matéria suficiente para julgar a questão em despacho saneador-sentença.


N. A interpretação do artigo 595º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil acolhida pelo douto tribunal, correspondendo à noção de que poderia conhecer imediatamente do mérito da causa por adesão aos factos alegados pelo recorrido, pese embora fossem controvertidos, vem a ser inconstitucional por violação do citado artigo 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.


O. Perante dúvidas sobre o local onde desemboca a servidão, que não são supríveis pela análise da douta sentença que reconheceu a dita servidão, o tribunal de execução é forçado a concluir que a obrigação ínsita na douta sentença executada não é certa e exigível.


P. A douta sentença errou quando julgou improcedentes os embargos, não só porque não tinha nos autos matéria factual prova suficiente para decidir, como também porque o fez sem apreciar os limites do direito de servidão ou, então, sem reconhecer a sua incompetência para esse efeito, perante uma sentença que não contém uma obrigação completamente certa.


Q. A decisão recorrida violou o disposto no artigo 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, 3º, nº 3, 607º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Civil.


Termos pelos quais deve o presente recurso ser julgado procedente, ordenando-se do suprimento das nulidades e revogando a douta sentença proferida em saneador, ordenando o prosseguimento dos autos para julgamento.


Não foi apresentada resposta a estas alegações.


Após os vistos legais, cumpre decidir.





II. Questões a decidir:


As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:

i. Se a decisão recorrida é nula.

ii. Sobre que factos existe acordo das partes.

iii. Se a não verificação do incumprimento da obrigação de prestação de facto negativa constitui fundamento de oposição à execução mediante embargos de executado.

iv. Se está verificado o incumprimento da obrigação de prestação de facto negativa.




III. Nulidades da decisão recorrida:


Os recorrentes começam por invocar a nulidade da sentença recorrida, com base na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, por a Mma. Juíza a quo «não ter motivado a decisão de facto, assim violando o disposto nos números 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil».


Independentemente de saber se o vício apontado se reconduz à figura da nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão (os fundamentos de facto são os factos julgados provados e esses estão especificados na sentença) ou, como nos parece, apenas à necessidade de accionar o mecanismo do aperfeiçoamento da motivação de decisão sobre a matéria de facto previsto no artigo 662.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil (considerando que não consta da sentença a necessária motivação da decisão sobre a matéria de facto), afigura-se-nos que tal vício na existe mesmo.


Com efeito, como em todas as situações, existem graus mais perfeitos e graus menos perfeitos de satisfazer os requisitos dos actos do magistrado e existem peças mais estruturadas e peças menos estruturadas. Não se pode confundir a situação de determinado requisito não ser satisfeito no local adequado ou estar apenas implícito, com a situação de ele não pura e simplesmente ter sido omitido.


A fundamentação de facto é composta por um facto que correspondente ao teor de uma sentença judicial, da sentença judicial dada à execução e que, enquanto título executivo, acompanha o requerimento executivo.


Sendo assim, tendo sido feito constar da fundamentação de facto que «foi dada à execução a douta Sentença proferida no âmbito do processo que correu termos no juízo local cível de Amarante sob o n.º 888/22.4T8AMT datada de 16.11.2023» e ainda que «consta do dispositivo da referida sentença o seguinte: [que depois se reproduz]», parece que leitor algum de boa fé pode deixar de entender que a decisão de julgar provado esse facto resulta do teor da … sentença. A sentença recorrida não o afirma de forma expressa, mas afirma-o de forma implícita, em termos de não deixar dúvidas a quem quer que seja.


Depois a fundamentação de facto compreende dois factos [o facto 3. No dia 17 de Agosto de 2024, os executados colocaram um esteio de cada lado do caminho referido em 2.3 e atravessaram uma corrente em ferro, e o facto 4. No acesso ao logradouro da casa do exequente, retiraram terra, criando um elevado desnível].


É certo que a sentença não segue a estrutura formalmente mais correcta de após a indicação dos factos julgados provados especificar a motivação da decisão de os julgar como tal. Todavia, lendo a sentença encontra-se nesta claramente enunciada a razão pela qual se entendeu que esses factos foram julgados provados.


Na página 6 da sentença está escrito: «No caso em apreço, o exequente alega que no caminho que integra a servidão de passagem constituída por decisão judicial os executados colocaram um esteio e uma corrente – o que alias é visível nas fotos que ambos juntaram aos autos. Os executados não contestam esta matéria.».


Depois na página 9 afirma-se que «Os executados não negam que hajam colocado o esteio de cada lado do caminho e uma corrente de ferro».


Por outras palavras, embora não tenha sido afirmado de forma isolada e no segmento adequado do ponto de vista da estrutura formal da sentença, é manifesto que a decisão de julgar provados aqueles factos foi tomada por se ter entendido que eles não foram impugnados pelos embargantes, isto é, que estão … provados por acordo das partes.


Tanto basta para excluir a existência do vício apontado.


Os recorrentes defendem ainda que a sentença enferma de nulidade por «falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão», «obscuridade que torna a decisão ininteligível» e «pronúncia sobre questões de que não podia tomar conhecimento», tudo isso por «basear a solução jurídica da lide na alegação de que um esteio e um ferro colocados pelos executados impedem o total acesso ao caminho tanto que dificultam o acesso a carrinhas de grande porte ou a inversão de marcha no local, sem dar esses factos como provados».


Mais uma vez parece que os recorrentes não têm razão e que confundem a nulidade da sentença com a possibilidade de a mesma ser precipitada por não estarem ainda provados os factos necessários para, com a necessária segurança, conhecer já do mérito.


A sentença especifica claramente os respectivos fundamentos de facto e pronuncia-se sobre questões de que podia e devia conhecer, sendo que não há nada nela que seja ininteligível e, estamos certos, os recorrentes compreenderam-na perfeita e totalmente. O que não quer dizer que ela esteja certa!


A sentença recorrida faz uma interpretação da sentença dada à execução e retira a conclusão de que a colocação dos esteios e da corrente de frente é uma violação da obrigação de facto negativo que a sentença impôs aos executados. Se essa interpretação é correcta e permite ou permita já essa conclusão, é algo que respeita já à oportunidade (o ter sido proferida no fim dos articulados, sem a realização da instrução da causa) e ao mérito (o acerto) da sentença, e não ao seu conteúdo, lógica ou estrutura.


Tudo isto para dizer que a sentença recorrida não é nula.





IV. Dos factos que se encontram provados por acordo das partes:


A apreciação do mérito do recurso passa, em primeiro lugar, por aferir se os factos dos pontos 3 e 4 foram correctamente considerados provados.


Os recorrentes defendem que «não há acordo das partes quanto à verificação dos factos, nem os mesmos se encontram reflectidos nos autos em meios de prova plena juntos pelas partes com os articulados, pelo que não podiam ter sido convertidos em factos assentes sem antes ter sido os mesmos debatidos em audiência contraditório, com produção e prova sobre eles».


A ausência de prova com valor de prova plena é inquestionável.


Resta ver a falta de impugnação por parte dos embargantes


Segundo esses factos:


«3. No dia 17 de Agosto de 2024, os executados colocaram um esteio de cada lado do caminho referido em 2.3 e atravessaram uma corrente em ferro.

4. No acesso ao logradouro da casa do exequente, retiraram terra, criando um elevado desnível.»

No requerimento executivo, como consta do relatório supra, o exequente alegou que «os executados colocaram um esteio de cada lado do caminho e atravessaram uma corrente em ferro, impedindo que o exequente de circular» e que «no acesso ao logradouro da casa do exequente, retiraram terra, criando um elevado desnível, para que o exequente não consiga circular de automóvel, para aceder a sua casa».


Para qualquer bom entendedor, estas palavras do exequente significam que ele está a alegar que os esteios foram colocados ainda no caminho, isto é, que a sua colocação representa uma afectação do caminho sobre a qual foi constituída (e reconhecida por sentença) a servidão de passagem.


Como é natural, para além dos limites do caminho o proprietário do prédio serviente deixa de estar onerado com a servidão e recupera a plenitude do seu direito de propriedade, podendo não apenas utilizar em exclusivo o seu prédio, designadamente vedando-o, como impedir qualquer outra pessoa de o usar seja para o que for.


O titular da servidão de passagem pode usar, para os fins da servidão (e só para estes, ainda que passar pelo caminho pressuponha, em regra, a realização das manobras necessárias para aceder ao espaço a que o caminho conduz), o espaço (o caminho) sobre o qual a servidão está constituída, mas não pode usar mais que esse espaço (v.g. para realizar melhor ou mais facilmente os actos que a servidão permite sobre o caminho).


Na petição inicial dos embargos, mais especificamente nos artigos 7.º e 33.º os embargantes aceitam ter realizado o que o exequente afirma no requerimento executivo, ou seja, a colocação dos esteios ligados por uma corrente de ferro e o abaixamento do nível do solo na linha delimitada por esses esteios.


Contudo, lendo a petição inicial no seu todo, é manifesto que os embargantes não aceitam e desse modo impugnam especificadamente que os esteios estejam colocados ainda no leito do caminho ou de forma a impedir, através da corrente de ferro que os liga, o uso do caminho tal como ele foi reconhecido na sentença.


Por outras palavras está assente por acordo das partes que os executados fizeram a modificação que as fotografias mostram, isto é, que colocaram os esteios ligados por uma corrente de ferro e baixaram o nível do solo sensivelmente entre os dois esteios, no espaço situado por baixo da corrente de ferro quando colocada.


O que não está assente e é controvertido é a circunstância de o espaço (no solo e aéreo) afectado ou envolvido nessas inovações ou modificações do estado anterior ou contemporâneo da sentença dada à execução ser ainda espaço sobre o qual está constituída a servidão de passagem (vulgo, espaço do caminho).


Logo, em rigor o que está assente por acordo das partes não é o que consta da sentença recorrida mas sim o seguinte que agora, alterando a decisão recorrida, se considera provado:


3. No dia 17 de Agosto de 2024, os executados colocaram os dois esteios metálicos, ligados por uma corrente de ferro, que se observam nas fotografias juntas com o requerimento executivo.

4. Na mesma zona, retiraram terra, baixando o nível do pavimento em relação à situação anterior a essa intervenção, conforme se observa nas mesmas fotografias.




V. Fundamentação de facto:


Estão provados, por documento e por falta de impugnação, os seguintes factos:


1. Foi dada à execução a douta Sentença proferida no âmbito do processo que correu termos no juízo local cível de Amarante sob o n.º 888/22.4T8AMT datada de 16.11.2023 .


2. Consta do dispositivo da referida sentença o seguinte:


«Em conformidade como acima exposto, julgo a acção parcialmente procedente, por provada e, em decorrência, condeno os réus a:

1- Reconhecer que o autor é dono e legítimo proprietário do prédio identificado no art. 1.º da petição inicial;

2- Reconhecer que, há mais de 60 anos, existe, a favor do prédio do autor, uma servidão de passagem, a pé, de veículo automóvel e agrícola, constituída por destinação de pai de família, nos termos do art. 1549 do CC;

3- Reconhecer que o caminho se inicia na Rua ... e se prolonga em paralelo à mesma, atravessando na extrema poente, os prédios dos réus, com 4 metros de largura e 60 metros de comprimento, até ao prédio do autor, tendo uma bifurcação a nascente, em direcção à casa do 1.º réu DD, com a largura de 4 metros e 30 metros de comprimento, num percurso em linha recta, em terra batida, paralelo ao prédio do autor e que lhe dá o acesso à casa e logradouro, a pé e de veículo automóvel e agrícola;

4- A respeitar a servidão de passagem pelo caminho, abstendo-se de praticar qualquer acto que limite ou impeça o seu exercício pelo autor, seu agregado familiar e por quem queira deslocar-se a sua casa, entregando aos autores um duplicado da chave do portão, ou, permitindo a extracção de uma cópia da chave, pelo autor.

Absolvo os réus dos restantes pedidos.

Custas da acção, na proporção de ¾ para os réus e ¼ para o autor, sem prejuízo da dispensa de elaboração da conta.

II. Julgo a reconvenção improcedente, por não provada e absolvo o autor/reconvindo do pedido reconvencional formulado pelos 1.ºs réus.

Custas da reconvenção a cargo dos 1.ºs réus, sem prejuízo da dispensa de elaboração da conta.

Registe e notifique.»

3. No dia 17 de Agosto de 2024, os executados colocaram os dois esteios metálicos, ligados por uma corrente de ferro, que se observam nas fotografias juntas com o requerimento executivo.


4. Na mesma zona, retiraram terra, baixando o nível do pavimento em relação à situação anterior a essa intervenção, conforme se observa nas mesmas fotografias.





VI. Matéria de Direito:


Como já foi referido, a decisão recorrida foi proferida findos os articulados, sem o processo ter chegado à audiência de julgamento, ou seja, foi entendido ser possível conhecer de mérito logo após os articulados.


A decisão recorrida apoia-se essencialmente em dois fundamentos: os fundamentos dos embargos não se ajustam à previsão fechado do artigo 729.º do Código Civil para que remete o artigo 876.º, n.º 2, do mesmo diploma; está demonstrado que a actuação dos executados viola a obrigação de facto negativo fixada na sentença dada à execução.


O primeiro fundamento é correcto.


Efectivamente os embargos de executado não se enquadram na previsão de qualquer das alíneas do artigo 729.º do Código Civil.


E não se enquadram porque a questão que verdadeiramente os executados colocam é apenas uma: a de saber se os esteios e a corrente de ferro foram colocados fora ou para além do espaço sobre o qual incide a servidão de passagem e, consequentemente, a obrigação dos executados de respeitarem esse direito do proprietário do prédio dominante e absterem-se de perturbar o seu exercício.


Esta questão consiste afinal na discussão sobre se foi ou não praticado um acto ilícito que os executados estavam obrigados a não praticar, sabendo-se que essa obrigação tem os limites do próprio direito de servidão de passagem cujo dever de respeito pelo proprietário do prédio serviente gerou a obrigação de não realizar actos de perturbação ou impedimento.


O artigo 729.º estabelece que a oposição à execução baseada em sentença pode ter algum dos fundamentos que elenca nas suas várias alíneas.


Perscrutando as teoricamente possíveis, a defesa dos executados não consiste:


i) na defesa da inexistência ou inexequibilidade do título: o título é a sentença e ela existe e é exequível;


ii) na defesa da falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva: a existência da violação da obrigação de um facto negativo não é um pressuposto processual, é um elemento constitutivo do direito dado à execução, com a diferença de se tratar necessariamente de um facto posterior à sentença que constitui o título executivo e por isso a sua verificação não constar do título;


iii) na sustentação da incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução: a obrigação de não fazer é perfeitamente certa, líquida e exigível e por isso é passível de execução; o que não está documentado no título é (a actuação positiva posterior que constitui) a violação da obrigação;


iv) na invocação de qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação que seja posterior ao encerramento da discussão no processo: os embargante não defendem que não estão vinculados à obrigação de facto negativo, por esta se ter extinguido ou modificado, defendem é que não violaram essa obrigação, pelo que não há lugar à prática do acto positivo de reposição da situação que a obrigação estabeleceu.


Importa esclarecer um equívoco que parece estar na génese da discussão travada.


A sentença condenou os executados a «respeitar a servidão de passagem pelo caminho, abstendo-se de praticar qualquer acto que limite ou impeça o seu exercício, pelo exequente, pelo seu agregado ou por que queira dirigir-se a sua casa». A violação desta obrigação de facto negativo é, pela sua própria natureza, algo sempre posterior ao trânsito em julgado da sentença e representativo de uma violação desta.


O processo de execução para prestação de facto divide-se em dois subprocessos consoante o seu objecto é a execução de uma obrigação de prestar um facto positivo, fungível ou infungível (artigos 868.º e seguintes do Código de Processo Civil), ou é a execução de uma obrigação de prestar um facto negativo (artigos 876.º e 877.º do Código de Processo Civil).


Enquanto naquele, a finalidade do processo é a realização do facto (positivo) devido e/ou a indemnização pela mora e/ou pelo incumprimento da obrigação, neste a finalidade do processo é a eliminação do facto ou da coisa que traduz a violação da obrigação negativa, isto é, a demolição da obra que tenha sido feita em transgressão da obrigação fixada no título.


Na execução para prestação de facto em que a obrigação exequenda é uma obrigação de facto negativo, precisamente porque a violação da obrigação (o incumprimento que permite o desencadeamento da execução) é posterior ao título executivo, não foi ainda verificada, nem está titulada, a execução compreende um incidente declarativo para verificar e reconhecer a falta de cumprimento da obrigação.


O artigo 876.º do Código de Processo Civil estabelece que quando a obrigação do devedor consista em não praticar algum facto, o credor pode requerer, no caso de violação, que esta seja verificada por meio de perícia.


Embora a disposição use a expressão “pode”, parecendo querer qualificar o requerimento do exequente como facultativo, trata-se de facto de um dever do exequente, no sentido de que o requerimento executivo tem de apresentar esse conteúdo para que a execução possa prosseguir (ainda que para o efeito seja necessário o – convite ao – aperfeiçoamento do requerimento).


O que é facultativo (rectius alternativo, e por isso redunda numa opção, numa possibilidade) são os outros pedidos do exequente: que o juiz ordene a demolição da obra, a indemnização do exequente pelo prejuízo sofrido ou o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória.


Por sua vez o artigo 877.º estabelece que cabe ao juiz decidir se houve falta de cumprimento da obrigação; se a reconhecer a execução prossegue para alcançar o demais pedido pelo exequente (a demolição, a indemnização, a sanção pecuniária compulsória; se não a reconhecer, a execução é extinta.


Sucede que estas disposições não estabelecem os termos processuais desse incidente, como é que ele é processado, se e como pode o executado intervir nele.


O artigo 876.º diz que o executado pode deduzir oposição à execução, mediante embargos, com os fundamentos previstos nos artigos 729.º e seguintes, que nada têm a ver com a falta de cumprimento da obrigação; acrescenta que a oposição ao pedido de demolição pode fundar-se no facto de esta representar para o executado prejuízo consideravelmente superior ao sofrido pelo exequente.


A norma não diz que a oposição do executado pode ainda fundar-se na própria inexistência de violação da obrigação. Todavia, o princípio do contraditório, o princípio do processo equitativo, o direito de defesa ou da proibição da indefesa conduz-nos, com facilidade, a aceitar que o executado tenha de ter a possibilidade de arguir este fundamento, ou seja, possa opor à execução a inexistência do incumprimento da obrigação de facto negativo, possa contraditar a afirmação do exequente de que esse incumprimento teve lugar, possa influenciar a tomada de decisão pelo juiz.


O que significa uma de duas coisas: ou admitimos que, apesar de a lei processual não o referir expressamente, os embargos podem ter esse fundamento, o qual, quando arguido, será pois discutido e julgado nos embargos; ou admitimos que a sua invocação gera um incidente processual atípico, subordinado às regras dos artigos 292.º a 295.º, por remissão do artigo 551.º, n.º 1, com as alterações do artigo 876.º (realização de verificação por peritos), todos do Código de Processo Civil.


Naturalmente, se optarmos pela segunda via, a dedução desse meio de oposição à execução por meio de embargos traduz um erro na qualificação (em rigor, na escolha) do meio processual utilizado, pelo que nos termos do n.º 3 do artigo 193.º do Código de Processo Civil, o desfecho não é a anulação do processado, mas o aproveitamento para que se sigam os termos processuais adequados.


Como quer que seja, pese embora tenha começado por afirmar que os embargos (apesar de terem sido admitidos liminarmente) não podiam ter como fundamento os factos invocados pelos executados (o que, na sua tese, teria bastado para os julgar improcedentes e determinar o prosseguimento da execução, independentemente de saber se nesta haveria ainda que decidir algo a título incidental) a Mma. Juíza a quo acabou por apreciar esses factos e concluir que ao «colocar um esteio e um ferro [os] executados … impedem o total acesso ao caminho tanto que dificultam o acesso a carrinhas de grande porte ou a inversão de marcha no local», razão pela qual julgou os embargos «improcedentes».


Desse modo, a sentença recorrida acabou por aceitar que não havia erro na qualificação do meio processual e decidiu nos próprios embargos a questão efectivamente suscitada. Uma vez que essa opção não vem impugnada, iremos considerar que a questão processual ficou estabilizada e não é mais passível de sindicância por este tribunal.


A ser assim há então que passar ao segundo fundamento da decisão: que está já demonstrado que houve violação da obrigação de prestação de facto negativo.


Em relação a esse fundamento há que dizer, com todo o devido respeito, que a decisão é, salvo melhor opinião, precipitada por duas razões essenciais: a primeira é a de que a lei manda que a verificação seja feita por peritos; a segunda é a de que não está ainda demonstrada a violação.


Em relação à primeira razão, como vimos o artigo 876.º do Código de Processo Civil estabelece que a verificação da violação da obrigação de prestação de facto negativo é feita «por meio de perícia», sendo que se o perito concluir «pela existência da violação, … deve indicar logo a importância provável das despesas que importa a demolição, se esta tiver sido requerida».


Como as normas processuais são sempre e por natureza imperativas, em princípio, essa diligência só pode ser dispensada se o resultado a alcançar com a mesma já se encontrar assente por acordo das partes e/ou provado por documento com força probatória plena. O que manifestamente não é o caso.


Em relação à segunda razão, cremos que a Mma. Juíza a quo não se apercebeu que uma coisa é os esteios terem sido colocados e mesmo unidos por uma corrente de ferro (facto em relação ao qual existe sim acordo das partes) e outra coisa é os mesmos estarem colocados em local sobre o qual ainda incide a servidão de passagem. Sobre este facto em concreto não existe acordo das partes, pois os embargantes defendem que os esteios foram colocados já depois do fim do caminho afecto à servidão, ou seja, em área do prédio dos executados que já não se encontra onerado com a servidão.


As fotografias juntas pelo exequente permitem concluir que os esteios foram colocados no local onde se encontram e de no enfiamento deles foi retirada terra e baixado o nível do solo. Mas não permitem concluir que esse local ainda está situado na área onerada com a servidão!


Na sentença dada à execução os aqui executados foram condenados a reconhecer «que o caminho se inicia na Rua ... e se prolonga em paralelo à mesma, atravessando na extrema poente, os prédios dos réus, com 4 metros de largura e 60 metros de comprimento, até ao prédio do autor, tendo uma bifurcação a nascente, em direcção à casa do 1.º réu DD, com a largura de 4 metros e 30 metros de comprimento, num percurso em linha recta, em terra batida, paralelo ao prédio do autor e que lhe dá o acesso à casa e logradouro, a pé e de veículo automóvel e agrícola».


Nenhuma fotografia pode revelar que os esteios estão implantados dentro dos 4 metros de largura e dentro dos 60 metros de comprimento do «caminho».


Esse facto, que será aquele que constituirá a violação da obrigação imposta pela sentença, só pode ser apurado no local, medindo o caminho desde o seu início na entrada do prédio dos executados, onde se encontra o portão, passando pelo local onde ele faz uma curva para se prolongar na direcção das casas existentes nos imóveis, até se alcançar o comprimento total de 60 metros, e medindo desde o seu eixo 2 metros para cada lado, até perfazer a largura de 4 metros.


Se a servidão tem esta extensão, isso significa que o exequente terá de entrar para o seu prédio até ao limite dos 60 metros do caminho, não sendo por isso, totalmente correcta a afirmação dos embargantes de que não está concretamente definido o limite do caminho. Esse limite é o que decorre do comprimento que a sentença assinalou ao caminho que reconheceu e cujo respeito impôs ao proprietário serviente.


Por outras palavras, está ainda por apurar que houve violação da obrigação exequenda e por isso a decisão recorrida terá de ser revogada, ordenando-se a tramitação da acção para apurar esse facto, designadamente por meio de perícia (artigo 876.º do Código de Processo Civil).





VII. Dispositivo:


Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida e ordenam o prosseguimento da tramitação dos autos para apurar se houve violação da obrigação exequenda (se a colocação dos esteios e da corrente e a baixa do nível do solo tiveram lugar em espaço afecto à servidão de passagem), designadamente por meio de perícia.


Custas do recurso pelo recorrido, o qual vai condenado a pagar aos recorrentes, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportaram e eventuais encargos.



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Porto, 13 de Novembro de 2025.



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Os Juízes Desembargadores
Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 916)
1.º Adjunto: Maria Manuela Esteves Machado
2.º Adjunto: Isabel Peixoto Pereira










[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]