Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0713690
Nº Convencional: JTRP00041032
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
DESCRIMINALIZAÇÃO
Nº do Documento: RP200802060713690
Data do Acordão: 02/06/2008
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 513 - FLS 01.
Área Temática: .
Sumário: A alteração introduzida no art. 105º do RGIT pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, suscita um problema de sucessão de leis penais a tratar no âmbito do nº 4 do art. 2º do Código Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
Na sequência do inquérito efectuado nos autos de processo comum nº …/04.0TAPRG, do ..º Juízo do Tribunal de Peso da Régua, deduziu o MºPº acusação contra os arguidos B………., Lda, e C………., devidamente ids. nos autos, imputando-lhe a prática, em concurso, de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelos arts. 6º, 7º nºs 1 e 3 e 105º nºs 1 e 4, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei nº 15/2001 de 5/6, e de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 30º nº 2 e 79º do C. Penal e 6º, 7º nºs 1 e 3 e 105º nºs 1, 4 e 6, todos do RGIT.
Distribuídos os autos, o Sr. Juiz proferiu despacho rejeitando a acusação e determinando a baixa dos autos para a fase de inquérito para os fins tidos por convenientes, despacho esse que foi renovado posteriormente.
Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o MºPº, pretendendo a revogação daqueles despachos e a sua substituição por outro que receba a acusação que havia deduzido contra os arguidos, formulando as seguintes conclusões:

1- A acusação foi deduzida em 08.12.2006 e da mesma consta, além do mais, a seguinte factualidade:
Nos meses de Outubro e Novembro de 2003, o arguido, na qualidade de legal representante da sociedade arguida, e no interesse desta, emitiu as facturas de fls, 46-71, relativas à actividade desenvolvida e remeteu a declaração periódica referente ao mês de Novembro de 2003 (período 0311), na qual se apurou imposto a entregar ao Estado (IVA) no valor de €6.194,68, conforme declaração periódica de fls. 135, que aqui se dá por reproduzida para os legais efeitos.
Nos meses de Julho, Agosto, Outubro e Novembro de 2004, o arguido, na qualidade de legal representante da sociedade arguida, e no interesse desta, emitiu as facturas de fls.188-195, 204-214 e 224-238, relativas à actividade desenvolvida e remeteu três declarações periódicas referentes aos meses de Agosto, Outubro e Novembro de 2004 (período 0408, 0410 e 0411), na qual se apurou imposto a entregar ao Estado (IVA), respectivamente, no valor de €935,54, €3.368,81 e €2.264,92.
A referida quantia não foi entregue pelos arguidos, nem no prazo legal da entrega da prestação, nem nos 90 dias sobre o termo do mesmo prazo.
O arguido, por si e em representação da arguida "B………, LDA", decidiu não entregar ao Estado as quantias mencionadas em 4) e 5) e apropriou-se das mesmas, obtendo, por essa via, vantagem patrimonial nesse valor.
Em 17 de Agosto de 2005 foram os arguidos notificados para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento do imposto sobre o Valor Acrescentado respeitante a Agosto de 2004 (0408), no montante de €935,54 - cfr. fls. 177 e 179 - o que não fizeram.
Apenas em 10.09.2004, 27.10.2004 e 31.08.2005, os arguidos procederam ao pagamento do montante em dívida mencionado em 4) e acréscimos legais, mediante pagamentos por conta, e em 31 de Outubro de 2005 do montante mencionado em 8), referente ao período de Agosto de 2004 - cfr. fls. 35-37 e 308.
Ao actuar da forma descrita, bem sabia o arguido que o IVA que liquidou e reteve não lhe pertencia e que o deveria ter entregue aos Cofres do Estado, e a este deveria ter sido entregue nos prazos legais e, não obstante, não o entregou em tal prazo, não tendo ainda entregue nos Cofres do Estado as quantias de €3.368,81 e €2.264,92.
O arguido agiu, ainda, em nome e no interesse da sociedade arguida, na qualidade de seu gerente.
Ao actuar da forma descrita fê-lo por dificuldades financeiras da sociedade.
Agiu o arguido de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
2- A acusação foi deduzida no dia 08 de Dezembro de 2006, antes da entrada em vigor da referida Lei do Orçamento, que introduziu alterações ao REGIT.
3- O arguido C………. e a sociedade arguida (esta notificada na pessoa do seu legal representante (o arguido C……….), foram notificados da acusação, também antes da entrada em vigor da citada lei, que alterou o REGIT.
4- Em 26.01.2007, antes de terem sido proferidos os doutos despachos que rejeitaram a acusação, e que constam de fls, 354 e 370, a sociedade arguida e seu legal representante, o arguido C………., foram notificados pela Administração Fiscal para procederem ao pagamento das prestações em dívida, demais acréscimos legais e coimas respectivas - cfr. fls. 342-345, 348-A-350 e 358-367.
5- Em 08 de Março de 2007, a Administração Tributária informou aos autos que notificados os arguidos para procederem a tais pagamentos, os mesmos não efectuaram qualquer pagamento e requereu o prosseguimento dos autos, por se não ter verificado a condição de não punibilidade.
6- Antes de proferidos os doutos despachos recorridos, já constavam dos autos as notificações efectuadas aos arguidos e informação da Administração Tributária do não pagamento pelos mesmos das prestações em dívida, acréscimos legais e coimas.
7- Basta ler-se o douto despacho recorrido de fls. 354, proferido em 20.03.2007, para se ver que os fundamentos aí aduzidos são contraditórios e que não constituem fundamento de rejeição da acusação.
8- Na verdade, começa por dizer-se que a lei 53- A/2006, de 20 de Dezembro- que aprovou a Lei do Orçamento - introduziu uma nova condição de punibilidade e depois conclui-se que da acusação não consta ter sido efectuada a notificação ao arguidos para tais pagamentos e que tal facto é elemento constitutivo do crime.
9- Por um lado diz-se que os factos constantes da acusação não constituem crime e, por outro, é determinada a baixa dos autos para a fase de inquérito, para suprir a insuficiência da acusação, ou seja, para nela apenas se fazer constar que foi efectuada a notificação a que alude o disposto na al. b), do n.04 do art. 105.°, do REGIT, o que resultava já dos documentos juntos aos autos, antes mesmo da prolação dos doutos despachos recorridos.
10- Todavia, contrariamente à conclusão a que chegou a Mma. Juiz a quo, a alteração introduzida pelo mencionado normativo não é elemento constitutivo do tipo legal de crime, sendo antes uma condição objectiva de punibilidade. E, neste sentido já se pronunciou o STJ, no Ac. proferido no processo 4086/06-3, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal de Coimbra, relato n.º 50b, publicado in www.STJ.pt. E o Tribunal da Relação do Porto, no ac. proferido no proc, n..° 0646222, em 14/02/2007.
11 – Actualmente, e dada a letra da lei – “os factos só são puníveis”- o não pagamento da prestação tributária, seja qual for o valor que esteja em dívida, constitui uma condição de punibilidade.
12- Não obstante a alteração do regime punitivo, o crime de abuso de confiança fiscal consuma-se com o vencimento do prazo legal de entrega da prestação tributária e que, em sede de tipicidade, a lei orçamental nada alterou.
13- Todavia, ressalva-se a aplicabi1idade do disposto no artigo 2° n.º4 do Código Penal, uma vez que o regime actualmente em vigor é mais favorável para o agente, quer sob o prisma da extinção da punibilidade pelo pagamento, quer na óptica da punibilidade da conduta (como categoria que acresce à tipicidade, à ilicitude e à culpabilidade – cfr. Decisão do Tribunal Colectivo de Santarém de 24.1.2007.
14- As condições objectivas de punibilidade são aqueles elementos do tipo situado fora do delito, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção anti jurídica tenha consequências penais. Apesar de integrarem uma componente global do acontecer e da situação em que a acção incide, não são, não obstante, parte desta acção.
15-Por seu turno, os pressupostos processuais são regras do procedimento cuja existência se fundamenta na possibilidade de desenvolver um procedimento penal e ditar uma sentença de fundo e, como os pressupostos processuais pertencem exclusivamente ao direito processual não afectam nem o conteúdo do ilícito. Nem a punibilidade do facto, limitando-se exclusivamente a condicionar a prossecução da acção penal.
16- O crime de abuso de confiança fiscal é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entregou a prestação tributária que devia. Ou seja, consuma-se no momento em que o mesmo não cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito. A norma do artigo 105° do RGIT não permite outra interpretação e reconduzir ao núcleo da ilicitude e da tipicidade o que são condições de exercício da acção penal não está de acordo com o espírito ou a letra da lei.
17- O que está em causa não é a mora, que constitui uma mera condição de punibilidade, mas sim a conduta daquele que perante a administração fiscal, agindo esta no interesse público, omite um dos seus deveres fundamentais na sua relação com o Estado.
18-Assim, entendemos que, perante esta alteração legal. Nos encontramos perante uma condição objectiva de punibilidade na medida em que se alude a uma circunstância em relação directa com o facto ilícito, mas que não pertence nem ao tipo de ilícito nem à culpa. Constitui um pressuposto material da punibilidade e conduz à conclusão da aplicabilidade de tal condição ao caso vertente, por aplicação directa do princípio da lei mais favorável, ínsito no artigo 2º, n.º 4, do C. Penal.
19- E atendendo a que o crime de abuso de confiança fiscal se consuma com o vencimento do prazo legal de entrega da prestação tributária - e que, em sede de tipicidade, a lei orçamental nada alterou- da acusação não tinha que constar (nem podia) que os arguidos foram notificados nos termos e para os efeitos da al. b) do n.º 4, do art, 105.°, do REGIT, já que a acusação foi deduzida e notificada aos arguidos antes da entrada em vigor da citada lei nº 53- A/2006, de 29 de Dezembro.
20- Assim, na esteira do entendimento do STJ e do Tribunal da Relação do Porto, que aqui perfilhamos, a nova redacção do art. 105.°, do REGIT e, nomeadamente, o seu n.º 4, consagra uma condição objectiva de punibilidade, pelo que se impunha o recebimento da acusação, não se impondo, sequer, a notificação a que alude o mencionado preceito legal, porquanto a condição objectiva de punibilidade, tal como resulta dos documentos juntos aos autos, está verificada.
21- Ao assim não decidir, e ao rejeitar a acusação, ordenando a baixa dos autos para a fase de inquérito - os doutos despachos corridos violaram o disposto nos arts. 105.° do REGIT e 311.°, do C.P.Penal.

O recurso foi admitido, não tendo havido resposta.
O Sr. Juiz sustentou o despacho recorrido, remetendo para os fundamentos nele vertidos.
O Exmº Procurador Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., sem que tivesse havido resposta.
No exame preliminar suscitou-se a questão da rejeição do recurso do arguido, por não dever ter sido admitido, tendo os autos sido remetidos à conferência.
Colhidos os vistos legais, foram os autos remetidos à conferência.
Cumpre decidir.

2. Fundamentação
É do seguinte teor o despacho recorrido que consta de fls. 354 dos autos:

Os arguidos B………., Lda. e C………. vêm acusados da prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo disposto nos artigos 6°, 7°, n.º 1 e 3 e 105°, n.ºs 1 e 4, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.
A Lei n.º 53 – A/2006, de 29 de Dezembro veio, no seu artigo 95°, alterar a redacção do n.º 4 do artigo 105° do RGIT, introduzindo a alínea b), de acordo com a qual, os factos descritos no citado artigo só são puníveis se, para além do prazo estabelecido na alínea a), comunicada à administração tributária, através de declaração, a quantia tributária não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
Veio então a Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro introduzir uma nova condição de punibilidade do crime de Abuso de Confiança Fiscal. Assim, o procedimento criminal só estará em condições de prosseguir, verificadas que sejam as condições previstas nas alíneas a) e b) do n.º 4 do citado artigo 105° do RGIT.
Uma vez que da acusação não consta que os arguidos tenham sido notificados, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105°, n.º 4, b) do RGIT, e sendo tal facto um elemento constitutivo do crime, sendo que quando o mesmo não se verifique, a conduta imputada consistirá na prática de uma contra-ordenação, ao abrigo do disposto no artigo 311°, n.ºs 1, 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), considerando que os factos constantes da acusação não constituem crime, na sequência da alteração introduzida pelo artigo 95° da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, rejeito a acusação, determinando a baixa dos autos para a fase de inquérito para os fins tidos por convenientes, suprindo-se a insuficiência da acusação.

A fls. 370 consta um despacho com o seguinte teor:

Renova-se a parte final do despacho de fls. 354.

3. O Direito
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões que suscitou reconduzem-se à de determinar se a falta de referência na acusação deduzida pelo MºPº à notificação dos arguidos nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do nº 4 do art. 105º do RGIT é essencial para que os factos descritos naquela peça processual integrem o crime de abuso de confiança fiscal cuja prática foi imputada aos arguidos e, decorrentemente, se havia fundamento para rejeitar a acusação ao abrigo do disposto no art. 311º nºs 1, 2 al. a) e 3 do C.P.P.

A rejeição da acusação, quando for manifestamente infundada, nomeadamente por os factos nela descritos não constituírem crime, está prevista nos nºs 2 al. a) e 3 al. d) do art. 311º do C.P.P..
Perante a redacção do art. 105º do RGIT, vigente na data em que a acusação foi deduzida, é inquestionável que os factos nela descritos integravam o ilícito criminal cuja prática foi imputada aos arguidos.
O despacho recorrido, no entanto, foi proferido já depois das alterações que o art. 95º da Lei nº 53-A/2006 de 29/12 introduziu ao nº 4 daquele preceito, impondo-se determinar se, entretanto, a conduta imputada aos arguidos foi descriminalizada ou se houve alterações a nível do tipo legal de ilícito em causa. Enquanto que a redacção anterior estabelecia que “Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação”, a nova redacção dispõe que “Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”
A relevância do acrescento contido nesta al. b) e as consequências que dele resultam para os processos que já anteriormente se encontravam pendentes tem vindo a ser debatida na jurisprudência e na doutrina, merecendo diferentes respostas de acordo com a forma como é configurada, em termos dogmáticos, a nova exigência de notificação dela constante (condição de punibilidade, condição de procedibilidade, causa de exclusão da punição). Consensual é, apenas, que a questão só se coloca relativamente aos casos em que foi feita a declaração do montante do imposto devido embora sem a entrega do respectivo montante (como sucede no caso de que nos ocupamos ), estando excluídos aqueles em que o contribuinte omite tal declaração.
De todo o modo, já se mostram consolidados os vários entendimentos[1], de que nos dá conta o Ac. RP 5/12/07, proc. nº 0416130 (relatado pelo Des. Joaquim Gomes), de que transcrevemos o pertinente excerto:
“A propósito deste novo segmento normativo e como de certo modo seria expectável, têm surgido as mais díspares interpretações (…), que podemos cingir nas seguintes:
a) Trata-se de uma condição objectiva de punibilidade, pelo não tendo havido uma modificação dos respectivos elementos constitutivos do tipo, não ocorre nenhuma hipótese de descriminalização.
Mas por ser uma nova condição mais benéfica para o arguido, mediante aplicação da lei mais favorável, dever-se-á conceder-lhe essa nova possibilidade de pagamento, notificando-o para o efeito, mediante o reenvio dos autos à primeira instância – neste sentido Ac. STJ de 2007/Fev./07 (recurso 4086/06), 2007/Mar./21 (recurso n.º 4079/06), Ac. R. P. de 2007/Fev./14 (recurso 0043/04); Acs. R. G de 2007/Jun./25 (recursos 2498/06, 2312/06) – ou oficiar-se à administração fiscal para que proceda a essa notificação – Acs. R. C. de 2007/Mar./21 (proc. 232/04.2IDGRD, 825/98.5TALRA)
b) Configura uma condição objectiva de punibilidade, que também está sujeita ao princípio da legalidade, o que implica, entre outras coisas, a proibição da retroactividade desfavorável ao agente.
Não se verificando, nos processos pendentes, a notificação prevista na al. b) do n.º 4 do art. 105.º, a aplicação da lei nova leva à descriminalização dos correspondentes factos – neste sentido Acs. R. P. de 2007/Jun./06 (Recurso 0384/04), Acs. R. C. de 2007/Mar./28 (proc. 59/05.4IDCTB, 178/04.4IDACB)
c) A nova exigência representa um alargamento do tipo de ilícito, co-fundamentadora da gravidade da ilicitude criminal da omissão e da correspondente criminalização, sendo por isso uma lei descriminalizadora/despenalizadora relativamente às situações anteriores à entrada da sua vigência em que não ocorreu a notificação agora prevista – veja-se neste sentido Taipa de Carvalho, em “O Crime de abuso de confiança fiscal” (2007), p.41/3.
d) A alteração legislativa modificou o ilícito do abuso de confiança fiscal, introduzindo um regime específico e autónomo para os casos em que as prestações deduzidas e declaradas não foram entregues, fazendo depender o seu preenchimento da desobediência por parte do agente a uma notificação da administração tributária para “pagar” as prestações deduzidas e declaradas.
Havendo um estreitamento do ilícito criminal e um alargamento daquelas que integram as condutas que integram a contra-ordenação prevista no art. 114.º, do RGIT, dá-se uma descriminalização – neste sentido Costa Andrade e Susana Aires de Sousa, na RPCC [Ano 17, n.º 1, p. 53 e ss., particularmente p. 71/2.
e) Trata-se de uma condição de procedibilidade, sem relevo quanto ao vencimento da obrigação tributária, nem quanto ao início do prazo de mora – neste sentido Ac. R. P. de 2007/Abr./11 [CJ I/216]
f) Representa uma condição de exclusão da punibilidade, como sustentamos, na medida em que a regularização da situação tributária leva à desnecessidade da pena, estando essa faculdade na disponibilidade do agente, muito embora exista uma vertente adjectiva, ou seja, a sua notificação para pagar a prestação tributária que devia ter sido entregue.
Nestes casos e em virtude da lei nova prever uma possibilidade de afastar a punição, deverá proceder-se a essa notificação – Ac. R. P de 2007/Jul./11 (recurso 3147/07) e de 2007/Out./10 (recurso 2154/07 de que o signatário foi relator conjuntamente com os mesmos adjuntos) – oficiando-se, para o efeito, à administração fiscal – Ac. R. C. de 2007/Mar./28 (proc. 72/03.6IDAVR).”
Por nós, aderimos à posição maioritária, em concreto àquela que se encontra expressa no sumário do Ac. STJ 21/03/2007, proc. nº 06P4079 ( relatado pelo Cons. Henriques Gaspar ):
“I - Na descrição do art. 105.º, n.º 1, do RGIT, a construção do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal define uma conduta que consiste na simples não entrega à administração fiscal de uma prestação tributária que o agente deduziu nos termos da lei como substituto tributário, e que estava, também nos termos da lei, obrigado a entregar em determinado prazo – o prazo de entrega que a lei fixa para cada tipo e espécie de prestação deduzida.
II - A conduta prevista no tipo traduz-se, pois, em uma omissão pura, na não entrega nos termos e nos prazos estabelecidos, isto é, esgota-se no não cumprimento de um dever, previsto na lei, de entrega das prestações deduzidas. Sendo uma infracção omissiva pura, consuma-se com a não entrega, dolosa, nos termos e no prazo da entrega fixado para cada prestação – art. 5.°, n.º 2, do RGIT.
III - Os factos descritos no art. 105.°, n.ºs 1 a 3, do mesmo diploma, só são, porém, puníveis – dispõe o n.º 4 desse preceito – se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (al. a)), ou «se a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos respectivos juros e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a comunicação para o efeito» (al. b)).
IV - Esta condição da al. b) foi prevista ex novo na redacção do n.º 4 do artigo 105.° do RGIT introduzida pela Lei de Orçamento para 2007.
V - As condições de que depende, no caso, a punibilidade da conduta («os factos […] só são puníveis») constituem, pela natureza com que se apresentam na estrutura da norma, e pela função e finalidades a que, aí, estão determinadas, elementos que não integram a tipicidade, a ilicitude ou a culpa, mas que se ligam apenas, por circunstâncias adjacentes à natureza relevantemente funcionalista da infracção, à finalidade da pena, diminuindo a intensidade ou eliminando as necessidades da punição.
VI - «São sobretudo razões de política criminal que sustentam [o artigo 105.º, n.º 4 do RGIT].
Desde logo e em primeiro lugar, o legislador terá atendido ao facto de a entrega, ainda que fora de prazo, pôr fim ao prejuízo patrimonial do Estado provocado pelo agente; por outro lado, aquela norma constitui um incentivo ao pagamento das prestações em falta e permite ainda evitar custos que o procedimento criminal acarreta para a administração fiscal; por último, esta alteração legislativa foi sensível à necessidade de um certo lapso temporal que permita à administração fiscal o tratamento das informações fiscais relevantes, designadamente as que dizem respeito ao cumprimento dos deveres fiscais» (cf. Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, 2006, pág. 136).
VII - Os elementos que não fazem parte do tipo, da ilicitude ou da culpa, isto é, que não integram nem contendem com a dignidade penal do facto, mas apenas com a admissibilidade do procedimento ou com a (des)necessidade circunstancial da punição, constituem ou pressupostos processuais ou condições objectivas de punibilidade.
VIII - Com efeito, em determinados casos, para que possa ter lugar o efeito sancionador, atende-se a outros elementos para além daqueles que integram o ilícito que configura o tipo. Por vezes, essas inserções ocasionais da lei entre a prática do facto ilícito e a sanção concreta, inscrevem-se no direito material, hipótese em que se fala de condições objectivas ou externas de punibilidade; noutros casos, constituem parte do direito processual e denominam-se pressupostos processuais.
IX - As condições objectivas de punibilidade são aqueles elementos situados fora da definição do crime, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais. Apesar de integrarem uma componente global do acontecer, e da situação em que a acção incide, não são, não obstante, parte desta acção (cf. Acs. do STJ de 7-02-2007, Proc. n.º 4086/06, e de 21-02-2007, Proc. n.º 4097/05). São elementos situados fora do tipo, cuja presença constitui um pressuposto da actuação das consequências penais de uma acção típica e antijurídica; sendo componentes globais da situação sobre que incide a acção, não são, porém, propriamente parte da acção (cf. Maurach – Zipf, Derecho Penal, Parte General, tomo I, pág. 372). As condições de punibilidade tomam, no rigor das coisas, um sentido de funcionalismo normativo, como elemento de ligação entre a dogmática do facto e a política criminal (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, 2004, pág. 622).
X - Não fazendo parte da acção, integram, todavia, o complexo facto-condições de que depende a aplicação de uma sanção penal (a punição), mas estão fora do perímetro de delimitação da infracção penal enquanto categoria autónoma de tipo de ilícito e de culpa.
XI - Integrando o complexo facto-condições, assumem, ainda, dimensão material, pela influência ou consequência que têm na construção e integração dos pressupostos da punição, mas não contendem com a natureza do crime, nem com implicações, sequências e consequências no plano das relações e criminalização-descriminalização quando se sucedam diversas condições de punibilidade.
XII - A projecção material das condições de punibilidade no complexo acção-qualificação penal-aplicação da pena (necessidade de pena) determina que a categoria seja ainda inerente ao regime de sancionamento e, por aí, aos princípios aplicáveis quanto aos efeitos da sequência temporal de normas de conteúdo material penal.
XIII - A regra é a do art. 2.°, n.° 4, do CP: aplicação do regime que concretamente se mostre mais favorável ao agente, no caso de as «disposições penais» vigentes no momento da prática do facto punível serem diferentemente estabelecidas em leis posteriores.
XIV - Não se tratando, como se referiu, de caso de modificação que tenha a ver com a definição do crime, não existiu alteração dos elementos da infracção do art. 105.° do RGIT (a não entrega da prestação tributária retida no prazo legalmente fixado), que permaneceu tal como se definia anteriormente à Lei 53-A/2006, de 29-12.
XV - Não tendo havido eliminação do número das infracções nem modificação dos respectivos elementos constitutivos, não se configura qualquer hipótese de descriminalização, mas tão só se verifica a previsão de uma outra condição de punibilidade que, se for o caso, deve ser tida em consideração se, e na medida em que, integrar um «regime» que «concretamente» se mostre mais favorável ao agente.
XVI - A favorabilia reside aqui em que deve ser proporcionada ao agente a possibilidade de preencher – pois pode depender apenas de facto seu – a nova condição que, uma vez satisfeita, pode determinar o afastamento da punibilidade, por desnecessidade de aplicação de uma pena: a regularização da situação fiscal com a entrega da prestação no prazo determinado após a notificação que lhe seja feita.”
Assim, e em conclusão:
Não constituindo a notificação a que alude a al. b) do nº 4 do art. 105º do RGIT elemento constitutivo do crime de abuso de confiança fiscal imputado aos arguidos, nem prevendo a lei a condição dela constante na data em que a acusação foi deduzida, e integrando os factos descritos nesta peça todos os elementos constitutivos do crime em questão, é forçoso concluir que inexistia fundamento para a rejeição dessa acusação. O procedimento correcto a adoptar, aquando da conclusão dos autos para a prolação do despacho a que alude o art. 311º do C.P.P., seria o de ordenar que tal notificação se efectuasse para posteriormente determinar, consoante ocorresse ou não o pagamento, se os autos deviam ou não seguir para julgamento. Isto, obviamente, na eventualidade de a mesma ainda não ter sido feita. Sucede que, no caso e quando foi proferido o despacho recorrido, a notificação em questão já tinha sido feita e já havia decorrido o prazo de 30 dias sem que os arguidos tivessem feito o pagamento das quantias em dívida, acrescidas de juros e do valor da coima aplicável, como os autos inequivocamente o documentam. Assim, não podia a acusação ter sido rejeitada com o fundamento invocado no despacho recorrido.

4. Decisão
Pelo exposto, julgam procedente o recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido e determinam a sua substituição por outro que receba a acusação ou que, pelo menos, não a rejeite com o mesmo fundamento.
Sem tributação.

Porto, 6 de Fevereiro de 2008
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias (junto declaração de voto vencida)
Jaime Paulo Tavares Valério

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[1] A nível jurisprudencial é esmagadoramente maioritária a corrente que (por um ou outro fundamento) considera não ter havido descriminalização, como se constata desta breve resenha: Acs. STJ 7/2/07, proc. nº 4086/06-3ª, C.J. XV, I, pág. 184; 21/2/07, proc. nº 06P4097;14/3/07, proc. nº 06P4459; 21/3/07, proc. nº 06P4079; 12/9/07, proc. nº 2817/07-3ª; 10/10/07, proc. nº 07P2077; RE 29/5/07, proc. nº 1764/07-1; 6/11/07, proc. nº 2210/07-1; RG 5/2/07, proc. nº 2056/06, C. J. XXXII, pág. 289; 26/3/07, proc. nº 1917/06-2; 18/6/07, proc. nº 983/07-1; 17/9/07, proc. nº 1118/07-2; RC 7/3/07, proc. nº 86/03.6IDSTR.C1, C.J. XXXII, t. II, pág. 37; 14/3/07, proc. nº 1728/06.7YRCBR; 21/3/07, proc. nº 825/98.5TALRA.C!; 21/3/07, proc. nº 232/04.2.IDGRD; 28/3/07, proc. nº 72/03.6IDAVR.C1; RL 24/4/07, proc. nº 10227/06-5; 3/7/07, proc. nº 4191/2007-5; 18/9/07, proc. nº 5304/2007-5; 18/9/07, proc. nº 5349/2007-5; 13/9/07, proc. nº 5972/07-9; 27/9/07, proc. nº 7129/07-9; RP 14/2/07, proc. nº 0646222; 2/5/07, proc. nº 1123/07, C.J. XXXII, t. III, pág. 210; 11/7/07, proc. nº 0713147; 3/10/07, proc. nº 0612240; 15/10/07, proc. nº 0740906; 10/10/07, proc. nº 0713172; 10/10/07, proc. nº 0712154; 24/10/07, proc. 0713760; 24/10/07, proc. nº 0713235; 5/12/07, proc. nº 0416130.
Em sentido contrário, Acs. RP 6/6/07, proc. nº 0644055; RC 28/3/07, proc. nº 59/05.4IDCTB; 28/3/07, proc. nº 178/04IDACB; 5/12/07, proc. nº 2464/03.1TALRA.


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Processo nº 3690/07-1 (Declaração de voto de vencida)
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias (1ª adjunta)

Em termos dogmáticos não posso deixar de concordar com a tese que defende a descriminalização/despenalização do crime de abuso de confiança previsto no art. 105 nº 1 e 4 do RGIT, após alteração introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29/12 (que entrou em vigor em 1/1/2007), quanto às omissões de entrega de prestações tributárias deduzidas e comunicadas à Administração Tributária, em relação às quais o termo do prazo de 90 dias, aludido no art. 105 nº 4-a) do RGIT, ocorreu antes de 1/1/2007.
Desde 1990 (1ª versão do RJIFNA, aprovada pelo DL nº 90-A/90, de 15/1) que o crime de abuso de confiança “fiscal” tem vindo a sofrer mudanças na sua configuração, sendo a mais recente a resultante da alteração introduzida pelo artigo 95 da citada Lei nº 53-A/2006 ao nº 4 do art. 105 do RGIT.
Como sabido, quando foi aprovado o RGIT (Lei nº 15/2001, de 5/6), o legislador aproximou perigosamente o ilícito criminal do abuso de confiança (art. 105 nº 1 do RGIT) da contra-ordenação (art. 114 nº 1 do RGIT), uma vez que (tendo abandonado, quer o “elemento subjectivo complementar” do dolo típico – inicialmente previsto no art. 24 do RJIFNA, na versão de 1990 – quer a exigência de “apropriação” – esta introduzida pelo DL nº 394/93 de 24/11, em substituição daquele elemento subjectivo complementar) ambos os ilícitos passaram a pressupor “a mera não entrega”, incriminando-se “a mera mora, independentemente de o ilícito criminal só ser punível se decorrerem mais de 90 dias (artigo 105 nº 4) sobre o termo do prazo legal da prestação”[1].
Nessa altura, por regra, o primeiro momento de mora na não entrega da prestação tributária, fazia com que o agente incorresse na prática da contra-ordenação prevista no art. 114 nº 1 do RGIT e, se essa mora continuasse para além dos referidos 90 dias, o agente incorria na prática do crime de abuso de confiança (art. 105 nº 1 do RGIT), desde que agisse dolosamente (só assim não sucedia, sendo punido ainda pela contra-ordenação, se os factos não constituíssem crime – cf. cit. art. 114 nº 1 – caso em que a mora podia ser superior ao período de 90 dias).
A nível doutrinal, maioritariamente passou a entender-se que, essa exigência (de o facto só ser punível depois de decorridos os aludidos 90 dias) contida no art. 105 nº 4 do RGIT (antes, portanto, da alteração introduzida pela Lei nº 53-A/2006) – que distinguia o crime de abuso de confiança da contra-ordenação – pertencia à “categoria” autónoma da punibilidade (punibilidade que – como defendido por Figueiredo Dias[2] – era orientada pela ideia de dignidade penal e que permitia perfeccionar o Tatbestand, no sentido da Teoria Geral do Direito, fazendo “entrar em jogo a consequência jurídica e a sua doutrina autónoma”), “categoria” esta “a acrescer ao ilícito e à culpa”[3].
Por isso, também, na prática judiciária, as acusações (tal como as decisões condenatórias) por este tipo de crime, passaram a conter, na descrição da respectiva conduta imputada ao(s) arguido(s), a indicação de que a quantia devida a título de prestação tributária “não foi entregue pelo(s) arguido(s), nem no prazo legal de entrega da prestação, nem nos 90 dias sobre o termo desse mesmo prazo”.
Repare-se que, anteriormente, a exigência do decurso daquele prazo de 90 dias, estava também prevista no art. 24 do RJIFNA (no nº 5 na versão original e, no nº 6, na versão do DL nº 394/93 de 24/11), embora fosse qualificada como “condição de instauração do processo criminal” (mas, nessa altura, em qualquer das versões do RJIFNA, era mais clara a distinção entre o crime e a contra-ordenação).
Daí que, quando foi publicado o RGIT, as questões de sucessão de leis que se colocaram (portanto, em relação ao RJIFNA) quanto ao crime de abuso de confiança (fiscal) não se prenderam com essa matéria relativa ao decurso do dito prazo de 90 dias (não obstante ter passado a ser a mora decorrente do decurso desse prazo de 90 dias – sem entrega dolosa da prestação tributária – que estabelecia a diferença entre o crime e a contra-ordenação e, como tal, ter passado esse prazo a ser qualificado como “pressuposto adicional de punibilidade” ou como “condição objectiva de punibilidade”, em vez de “condição de procedibilidade” como sucedia na versão do RJIFNA[4]).
Por isso, também, Costa Andrade suscitou a questão da inconstitucionalidade material (por violação do art. 18 nº 2 da CRP), resultante de o legislador não poder “qualificar, ao mesmo tempo, o mesmo facto como ilícito criminal e como ilícito contra-ordenacional”[5].
Mas, será que as alterações introduzidas pela Lei nº 53-A/2006 pretenderam, também, redefinir fronteiras (que haviam desaparecido) entre os dois tipos de ilícito (crime e contra-ordenação)?[6]
As alterações introduzidas, pela referida Lei nº 53-A/2006, ao nº 4 do art. 105 do RGIT, se é certo que não suscitam questões quanto à redacção da sua alínea a) (por continuar a fazer depender a punibilidade, como crime de abuso de confiança, do decurso do aludido prazo de 90 dias), tem desencadeado polémica viva e saudável (na medida em que, com o contributo de todos, suscitará, em princípio, uma maior discussão e o repensar do tema, de forma aberta e não estanque) quanto à qualificação da exigência contida na sua alínea b) (que é nova).
E, enquanto Costa Andrade e Susana Aires de Sousa sustentam que essa alteração (não obstante “deixar alguns momentos da factualidade típica” na dependência de “actos de funcionários da administração fiscal”, sem fixar prazo para a prática desses actos), significa um diferente recorte do ilícito criminal (sendo estreitado o universo de condutas puníveis como crime, ao mesmo tempo que é alargado o âmbito da contra-ordenação), em que se “acentua o peso do desvalor associado à violação dos deveres tributários” (ilícitos “que passam a emergir cada vez mais como puros crimes de desobediência aos deveres que impendem sobre o substituto fiscal”)[7], Taipa de Carvalho salienta que essa nova exigência contida na alínea b) do nº 4 do art. 105 do RGIT, não está “apenas na não entrega da prestação tributária (…) mas, também e ainda na persistência do devedor tributário na omissão da acção de entrega, apesar de notificado para o fazer no prazo de 30 dias após a notificação.”[8]
De qualquer modo, a questão que se coloca (restrita aos casos em que, a não entrega da prestação tributária, foi atempadamente declarada à administração tributária) é a de saber quais as consequências dessa alteração nos casos pendentes no tribunal.
E, o problema suscita-se porque o certo é que o ilícito criminal do abuso de confiança “fiscal” continua a existir, embora, desde 1/1/2007, a sua punibilidade (a sua existência) dependa, também (cumulativamente), da desobediência (a significar a tal persistência na omissão da acção de entrega) à notificação da administração tributária, nos moldes assinalados pela alínea b) do nº 4 do art. 105 do RGIT.
Ora, quer se entenda que essa nova exigência “não só faz parte do ilícito criminal como o completa” (como sustentam Costa Andrade e Susana Aires de Sousa, salientando que o tipo é reconformado “pela via do alargamento dos pressupostos típicos”[9]), quer se conceba como “um verdadeiro elemento integrante ou co-constitutivo do tipo de ilícito” do crime de abuso de confiança “fiscal” (como defende Taipa de Carvalho[10]), a consequência (em casos como o destes autos) será a da aplicação do disposto no art. 2 nº 2 do CP.
E isto, não obstante aquela conduta (refiro-me às omissões de entrega de prestações tributárias deduzidas e comunicadas à Administração Tributária, em relação às quais o termo do prazo de 90 dias aludido no art. 105 nº 4-a) do RGIT ocorreu antes de 1/1/2007[11], como sucede no caso destes autos), a partir de 1/1/2007, continuar a ser proibida e sancionada, mas não como crime.
Repare-se que o pagamento das “quantias em dívida” (prestações tributárias em dívida, comunicadas atempadamente à administração tributária, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável), no prazo aludido no art. 105 nº 4-b) do RGIT (que determina a não punibilidade como crime de abuso de confiança) – não sendo, portanto, espontâneo e voluntário – depende de um acto administrativo (a tal notificação da administração tributária, sempre após o decurso do prazo aludido no art. 105 nº 4-a) do RGIT), que não está na disponibilidade do “devedor” tributário.
Por outro lado, justifica-se que não exista (não chegue a nascer) a infracção criminal, por o “devedor” tributário (o depositário da prestação tributária deduzida e comunicada) ter pago (além do mais), o valor da coima aplicável pela contra-ordenação cometida, prevista no artigo 114 nº 1 do RGIT (sendo certo que, pelo mesmo facto, não pode ser punido simultaneamente como autor de uma contra-ordenação e de um crime de abuso de confiança).
Ou seja, enquanto antes de 1/1/2007, “a reposição voluntária da verdade tributária”, dentro do prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação, impunha que a conduta não fosse punível como crime (art. 105 nº 4 do RGIT, antes da alteração da Lei nº 53-A/2006), a partir de 1/1/2007, essa reposição pode ocorrer posteriormente ao decurso desse prazo de 90 dias (mesmo que de forma não espontânea e, portanto, de modo “provocado” pela actuação da administração tributária), mas sempre no prazo de 30 dias a contar da notificação que a administração tributária fizer ao abrigo do disposto no art. 105 nº 4-b) do RGIT.
Hoje em dia (desde 1/1/2007), em situações como a aqui em apreço, não é pelo facto de a reposição voluntária e espontânea não ter ocorrido naquele prazo de 90 dias, que passa a existir o crime de abuso de confiança (fiscal), como sucedia anteriormente; é necessário, ainda, o não pagamento voluntário (da prestação em dívida comunicada, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável) após aquele prazo (30 dias) concedido na sequência da prática de um acto que tem de ser desencadeado pela administração tributária.
Se, todavia, essa reposição da verdade fiscal tiver lugar após a existência (o nascimento) da infracção criminal (o que, desde 1/1/2007, só pode ocorrer se, para além do decurso do prazo de 90 dias aludido no art. 105 nº 4-a) do RGIT, não houver o pagamento da prestação tributária comunicada, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias da notificação feita pela administração tributária, nos termos da alínea b) do mesmo nº 4 do citado artigo), então, consoante os casos, poderá o agente beneficiar da dispensa da pena ou da atenuação especial da pena (art. 22 do RGIT).
Claro que, no caso destes autos, não houve esse tal pagamento voluntário e espontâneo no prazo de 90 dias, aludido no então art. 105 nº 4 do RGIT (hoje art. 105 nº 4-a) do RGIT) mas, a verdade é que, também, antes de 1/1/2007 (tendo sido a acusação deduzida antes dessa data) não existia aquela obrigação, para a administração tributária, de efectuar a notificação aludida no art. 105 nº 4-b) do RGIT.
Por isso, em tempo oportuno (antes do nascimento da infracção criminal) não ocorreu o cumprimento do disposto no art. 105 nº 4-b) do RGIT.
Sendo assim, nesses casos, não me parece que aquela nova exigência (que faz com que, o que antes de 1/1/2007 era crime de abuso de confiança, deixasse de o ser a partir de 1/1/2007, por não se verificar aquela circunstância nova) possa ser superada a posteriori pela administração tributária ou pelo tribunal (em substituição daquela).
É que, implicando o cumprimento do disposto no art. 105 nº 4-b) do RGIT a persistência da contra-ordenação (art. 114 nº 1 do RGIT) e, depois (não ocorrendo o pagamento da prestação tributária em dívida, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias a contar da notificação feita pela administração tributária), a conversão daquela contra-ordenação em crime[12], então, em casos como o destes autos (em que o “objecto do processo” também já estava definido pela acusação, mediante a imputação de crimes de abuso de confiança, perfeitos à luz do RGIT na versão em vigor à data dos factos), já não era possível “perfectibilizar” o crime imputado aos arguidos (de acordo com a nova exigência decorrente da alteração introduzida pela Lei nº 53-A/2006), sob pena de essa interpretação atentar contra o disposto no art. 2 nº 2 do CP e no art. 29 nº 4 da CRP, contra o princípio da legalidade e implicar a tal “recriminalização“ de que fala Taipa de Carvalho.
Daí que não possa concluir que, a alteração introduzida pela Lei nº 53-A/2006, apenas determine a concessão ao arguido de “nova possibilidade de pagamento”, por aplicação do disposto no art. 2 nº 4 do CP.
Pressupondo o disposto no art. 105 nº 4-b) do RGIT que, ainda não é possível qualificar aquela conduta ilícita como crime (a questão colocar-se-á a montante e não a jusante da infracção criminal), não se pode ordenar o seu cumprimento quando os autos já prosseguiram os seus termos normais (ver normas “Do Processo”, Parte II do RGIT, v.g. artigos 42 nº 3 e 4[13], 43º[14] e 74º[15]), partindo do pressuposto (lícito face à lei então vigente) da existência do crime de abuso de confiança (fiscal), que foi denunciado e investigado dando causa aquela acusação (com a imputação de tais crimes).
Nessa medida, uma vez que a peça acusatória em questão nestes autos foi deduzida mesmo antes de 1/1/2007, a conclusão seria a de que, já não podia ser ordenado o cumprimento do citado art. 105 nº 4-b) do RGIT (não produzindo quaisquer efeitos a notificação que, entretanto, fora efectuada para tal fim), impondo-se a extinção do procedimento criminal instaurado contra os arguidos, por aplicação do disposto no art. 2 nº 2 do CP.
Por isso (sem prejuízo da natural abertura a novos argumentos em sentido contrário), não posso acompanhar a decisão que fez vencimento.

Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias

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[1] Manuel da Costa Andrade, “T. C., Acórdão nº 54/04 – processo nº 640/03 (O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza de um acórdão do Tribunal Constitucional)”, in RLJ ano 134º, nº 3931 e 3932 (1 de Fevereiro e 1 de Março de 2002), p. 312, que seguimos de perto.
[2] Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, a Doutrina Geral do Crime, Coimbra: Coimbra, Editora, 2004, pp. 264 e 265.
[3] Costa Andrade, ibidem. Por sua vez, Américo Taipa de Carvalho, O crime de abuso de confiança fiscal, as consequências jurídico-penais da alteração introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, Coimbra: Coimbra Editora, Setembro de 2007, pp. 33 e 34, entende que a punibilidade “não é uma categoria geral do crime” mas, “em relação a determinados crimes, o legislador faz depender a sua punibilidade e, consequentemente, a responsabilidade penal do agente da verificação de determinadas circunstâncias adicionais à ilicitude típica da acção e à culpa do agente”. Acrescenta, ainda, Taipa de Carvalho, que estes “pressupostos adicionais de punibilidade” «têm que ver, na maior parte dos casos, com a necessidade penal (e não com a dignidade penal)» e, portanto, «fundamentar-se-á em razões político-criminais». Também, Susana Aires de Sousa, Os crimes fiscais, análise dogmática e reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, pp. 136 e 137, defende que o disposto no art. 105 nº 4 do RGIT (na redacção anterior à Lei nº 53-A/2006) é um pressuposto adicional de punibilidade, sustentando a tese de Figueiredo Dias.
[4] Assim, Manuel da Costa Andrade e Susana Aires de Sousa, “As metamorfoses e desventuras de um crime (abuso de confiança fiscal) irrequieto, reflexões críticas a propósito da alteração introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro”, in RPCC ano 17º, fasc. 1 (Jan-Março 2007), p. 55.
[5] Manuel da Costa Andrade, in cit. RLJ, pp. 320 a 323. E, colocou a questão da inconstitucionalidade precisamente por o legislador no RGIT, quanto ao crime de abuso de confiança (fiscal), ter prescindido da “apropriação” (tal como sucedia no RJIFNA, embora na versão original, enquanto intenção de apropriação), esvaziando o crime do “lastro de densidade axiológica”, sugerindo “a falta de legitimidade constitucional” ou, ao menos, obrigando “a procurar algures novos topoi e caminhos de legitimação e solvabilidade constitucional”.
[6] Assim o sugere o Relatório da Lei do Orçamento Geral do Estado para 2007 (a citada Lei nº 53-A/2006), por todos conhecido, pressupondo-se, ainda, de acordo com o disposto no art. 9 nº 3 do CC que o legislador também “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” Repare-se que, no dito Relatório, sob o título de “Despenalização da Não Entrega de Prestação Tributária (Retenções de IR/Selo e IVA)”, o legislador faz uma opção de política criminal, salientando a necessidade de distinguir (em termos de valoração criminal) as diferentes condutas associadas à falta de entrega da prestação tributária. E, enquanto em relação ao sujeito passivo que não cumpre o dever de comunicar à administração tributária a dedução da prestação tributária, o legislador não tem dúvidas que esse comportamento o faz incorrer no crime de abuso de confiança (fiscal) – por existir “clara intenção de ocultação de factos à Administração Fiscal” – já em relação ao sujeito passivo que cumpriu esse dever de comunicação, o legislador só avança para a existência do crime quando adquire a certeza de que também existe essa “clara intenção de ocultação dos factos à Administração Fiscal” (certeza essa que apenas adquire através da notificação efectuada nos termos do art. 105 nº 4-b) do RGIT, face ao subsequente comportamento do sujeito passivo). Será então que o legislador foi de algum modo (embora parcialmente) sensível à crítica de Costa Andrade, in cit. RLJ, p. 322, quando, comparando o tratamento dado em relação a credores e devedores privados, tendo presente o crime comum de abuso confiança, assinala: “Se o credor é o Fisco (ou a Segurança Social), o devedor em mora é criminalmente sancionado. Cabe então perguntar se este privilégio do Estado-Fisco, que vê os seus créditos garantidos pelo jus puniendi de que o próprio Estado está armado, tem ou não justificação ética. Pode o Estado mobilizar o arsenal de meios sancionatórios criminais em defesa da efectivação tempestiva dos seus créditos e denegar o mesmo tratamento aos credores privados, apesar de tudo com muito menos meios de reacção contrafáctica? Mais: incriminando e punindo estes seus devedores em mora, pode o Estado dispensar idêntica tutela privilegiada aos seus credores quando se constitui ele próprio em devedor em mora? E pode legitimar as suas escolhas à vista dos princípios de igualdade e proporcionalidade?”
[7] Manuel da Costa Andrade e Susana Aires de Sousa, ob. cit., p. 71.
[8] Taipa de Carvalho, ob. cit., p. 40.
[9] Manuel da Costa Andrade e Susana Aires de Sousa, ob. cit., p. 64.
[10] Taipa de Carvalho, ob. cit., pp. 40 e 104.
[11] Taipa de Carvalho, ob. cit., p. 57.
[12] Taipa de Carvalho, ob. cit., p. 58.
[13] Artigo 42 (duração do inquérito e encerramento) do RGIT
(…)
3 – Concluídas as investigações relativas ao inquérito, o órgão da administração tributária, da segurança social ou de polícia criminal competente emite parecer fundamentado que remete ao Ministério Público juntamente com o auto de inquérito.
4 – Não são concluídas as investigações enquanto não for apurada a situação tributária ou contributiva da qual dependa a qualificação criminal dos factos, cujo procedimento tem prioridade sobre outros da mesma natureza.
[14] Artigo 43 (decisão do Ministério Público) do RGIT
1 – Recebido o auto de inquérito e respectivo parecer, o Ministério Público procede nos termos dos artigos 277º a 283º do Código de Processo Penal, tendo em conta o disposto no artigo seguinte.
2 – O Ministério Público pratica os actos que considerar necessários à realização das finalidades do inquérito.
[15] Artigo 74 (indícios de crime tributário) do RGIT
1 – Se até à decisão se revelarem indícios de crime tributário, é de imediato instaurado o respectivo processo criminal.
2 – Se os indícios do crime tributário respeitarem ao facto objecto do processo de contra-ordenação, suspende-se o procedimento e o respectivo prazo de prescrição até decisão do processo crime.